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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.6 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre a morte e o morrer na hipermodernidade

 

Considerations on death and dying in the hypermodernity

 

 

Jorge Coelho SoaresI; Marília Antunes Dantas*,II

I Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Cidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
II Professora da Universidade Católica de Petrópolis e da Universidade Estácio de Sá em Petrópolis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo ser uma análise crítica da tentativa vigente de circunscrição técnica e legal do conceito de eutanásia, que tende a deslocar esta discussão das questões existenciais sobre a morte e o morrer no contexto histórico e social atual. Tendo como fio condutor a relação entre o aspecto do direito da promoção do alívio do paciente, um objetivo crucial na tradição médica, aponta que ele deve ser considerado sob três diretrizes: a realidade social e as estruturas simbólicas a partir das quais construímos nossa gramática social do mundo; os imaginários sociais que emergem em cada dado momento histórico sobre a vida e a morte e, mais especificamente, o contexto atual, nesses tempos hipermodernos, marcados pelo hiperconsumo, pelo hipernarcisismo e pela ideologia do excesso e da urgência e cuja forma de expressão por excelência do mal-estar hipermoderno é a perda gradual de sentido, o apagamento dos horizontes morais e a redução do espaço para o exercício da liberdade e da autonomia dos indivíduos. Neste contexto, a relação do indivíduo hipermoderno com a própria morte e a dos outros parece oscilar entre considerá-la desde o destino certo, ao lugar de puro horror, como o eterno retorno à nadificação de si mesmo, no âmbito de uma cultura tragicofóbica, que tende a interpretar a morte como uma traição cometida pela tecnociência, que nos acena ilusoriamente com a possibilidade de juventude eterna e “extinção” da morte.

Palavras-chave: Morte, Hipermodernidade, Eutanásia, Ética.


ABSTRACT

The article has as its objective, the analysis of the legal and technical circumscription of the concept of euthanasia, as well as some psychosocial aspects, having as it’s main thread the rights of a patient to promote his/her own relief, an objective which is crucial in the medical profession. This should be considered from three viewpoints: a social reality as the symbolic structures on which we base our behavior in society, the social imageries that emerge at given historical times about life and death; and, more specifically, our current context in hyper modern times, marked by hyper-consumerism, hyper-narcissism and by the idealogical concept of excesses and urgency. These lead to a gradual loss of self-expression, an uneasiness in these very modern times, a loss of sense, of moral values and the reduction of space in which to exercise individual liberties and autonomy. In this context, the hyper-modern individual, has a relationship with death, his own and that of others, which oscillates between seeing death as certain destiny or sheer horror, a return to nothingness, and in a “ tragifobic” culture, the tendency is to interpret death as a treachery of techno science, which beguiles us with the illusion of the death of death.

Keywords: Death, Hypermodernity, Euthanasia, Ethics.


 

 

Considerações sobre a morte e o morrer na hipermodernidade1

 

Julgar se a vida vale ou não a pena ser
vivida é responder à questão fundamental
da filosofia. O resto, se o mundo tem três
dimensões, se o espírito tem nove ou doze
categorias, aparece em seguida.

(Camus, O Mito de Sísifo, 1989, p. 23)

Recentemente um filme do cineasta Alejandro González Iñárritu, apresentou uma possível resposta para um dilema que atormentou os filósofos ocidentais do período medieval: quanto pesa a alma? Segundo um dos personagens deste filme, quando a alma sai do corpo, ele fica mais leve e, com precisão, se poderia afirmar que este peso corresponderia a vinte e um gramas (21 gramas). A alma seria, portanto, muito leve, diáfana, com o mesmo peso e leveza do menor dos beija-flores.

Coerente com a lógica da mensuração que preside o funcionamento da modernidade – posto que “medir é obrigar uma realidade fugidia a ficar imóvel” (CROSBY, 1999, p.18) -, podemos, quem sabe, nos tranqüilizar quanto ao “peso” da alma. Falta-nos, porém, o principal: estabelecer o seu “valor”. Se conseguirmos estabelecer o valor de uma alma, poderemos, quem sabe, compará-lo ao de outras almas. Feito isto, estaremos mais bem preparados para decidir, em situações críticas, quem merece viver e quem pode ser descartado. O valor atribuído a uma alma será então uma forma tranqüilizadora de decidir seu destino.

Precisamos, de qualquer forma, estabelecer senão uma escala para esta valoração, o sentido que esta valoração terá, principalmente se formos confrontados com uma situação grave de crise externa em que não poderemos mais nos furtar a esta decisão. Michael Osterholm (e John Schwartz), autor do livro Living Terrors - What América needs to know to survive the coming bioterrorist catastrophe (Delta, 2001), publicado antes do 11 de setembro, infectologista americano, em entrevista para a televisão em abril de 2006, discutindo sobre a disseminação mundial do vírus H5N1, que ele considera inevitável, afirmou, à guisa de exemplo, que caso se confirme a pandemia, será preciso escolher “entre atender um homem de 72 anos e um jovem de 24 anos. Será preciso escolher entre dar atendimento aos servidores da saúde e os demais, já que os mesmos se tornarão essenciais para todos os outros”.

Hans Jonas, filósofo alemão, também se fez esta pergunta diante das possíveis benesses tecnológicas que podem vir a salvar ou prolongar a vida. Devemos privilegiar as pessoas de especial qualidade e mérito? De proeminência social? Aqueles que podem pagar? Ou todas as pessoas, como única linha de procedimento justo, ao preço de um enorme custo social? Ele se pergunta e nos questiona (JONAS, 1994, p. 50). Talvez a Ciência, a deusa onipotente de todos os saberes, possa ser invocada em nosso auxílio. Mas, ao lembrarmos da frase do poeta Manoel de Barros - “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá. Mas não pode medir seus encantos” –, somos levados a pensar que outros caminhos deverão ser cartografados, se desejarmos resolver o dilema. Em função disto, sinto-me inclinado a transgredir as fronteiras do tema específico para além de uma circunscrição técnica e legal do conceito de eutanásia e tecer algumas considerações sobre certas conseqüências psicossociais, que se pode derivar de uma afirmativa do próprio Hans Jonas em seu texto seminal, Ética, medicina e técnica:

mas do alívio do paciente, um objetivo inteiramente dentro da tradição médica, facilmente se passa ao alívio da sociedade, do transtorno que lhe traz um comportamento individual difícil entre os seus membros; ou seja, facilmente se passa da aplicação médica à aplicação social, fato que abre um ilimitado campo de graves possibilidades” (JONAS, 1994, p. 53).

Porque uma vez decidido socialmente este direito, nada mais impede que ele se torne uma decisão política. Saímos assim, com relativa facilidade, do âmbito restrito, pessoal, familiar, institucional, para um campo social muito mais amplo, de onde emanam diretrizes “lógicas” para uma tomada de decisões.

Precisamos então pensar aqui como são estabelecidos os parâmetros para o surgimento destas diretrizes.Partamos então de três premissas que estabeleço como fundamentais:

1ª) A realidade social comporta, em princípio, o mundo material e humano que nos rodeia, mas não há em nada um sentido a priori, salvo o que nos é dado pelos instrumentos simbólicos que utilizamos para criar sentido. Valores e significados não são determinados pelas propriedades físicas e biológicas das pessoas, mas por estruturas simbólicas que herdamos socialmente e ajudamos a elaborar e modificar ao longo de nossa existência. Por meio delas lemos o mundo, nos posicionamos frente a ele, organizando estruturas classificatórias e, estabelecemos prioridades, configuramos nossos rituais de passagem para a vida adulta, para a velhice, rituais de casamento e de morte2.

Pensar, portanto, é sempre interpretar e o local de onde parte o olhar que interpreta “é um espaço antropológico. Aquele que olha o faz a partir de uma determinada perspectiva e de um imaginário social” (TEVES, 1992, p. 13). Imaginário tomado aqui como “um conjunto coordenado de representações, uma estrutura de sentidos, de significados que circulam entre os membros de um grupo social mediante formas de linguagem” (TEVES, 1992, p.17).

2ª) Em cada momento histórico dado, este quadro cultural que matricia a produção imaginativa de um grupo, regulando o comportamento dos indivíduos, se altera e novos “imaginários sociais” assumem o lugar e papel de realidade. Conhecer, portanto, “uma realidade”, é reconhecê-la como historicamente ancorada, constituída por sujeitos que a representam e simbolizam.

3ª) O projeto da modernidade em curso faz emergir um conjunto de características que determinam formas específicas e únicas do ponto de vista histórico, de ser, de sentir e estar no mundo.

No momento histórico atual configura-se mais uma mutação no projeto da modernidade, cujos sinais nos fazem pensar que entramos na era do hiper, a qual se caracteriza pelo hiperconsumo e hipernarcisismo, pela hipermodernidade que nos propõe uma nova ética entre a responsabilidade e irresponsabilidade, individualmente e coletivamente. Nessa nova lógica, tentamos estabelecer um sentido para nossa existência; nela também estamos construindo nossos imaginários sobre as coisas da vida e da morte.

Lancemos, então, este nosso olhar crítico sobre a hipermodernidade, exercitando uma autonomia de pensamento que a modernidade nos legou e em busca de pistas para a construção desses novos imaginários.

 

Hipermodernidade: Os Tempos Hipermodernos e o Indivíduo Hipermoderno

 

O indivíduo hipercontemporâneo, mais
autônomo, é também mais frágil do que
nunca, na medida em que as obrigações
e as exigências que o definem são mais
vastas e mais pesadas. A liberdade, o
conforto, a qualidade e a expectativa
de vida não eliminam o trágico da
existência; pelo contrário, tornam
mais cruel a contradição (TAVOILLOT,
In:LIPOVETSKY; CHARLES, 2004, p.8-9).

 

A primeira formulação do conceito de hipermodernidade, como idéia de exacerbação da modernidade, surgiu em 1979, ocasião em que um grupo de pesquisadores dirigidos por Max Pagès realizou um estudo consagrado a uma célebre multinacional de origem americana, sobre a modernidade em termos de técnicas gerenciais. O estudo visava recolher informações sobre a correspondência entre as transformações técnico-econômicas, as estruturas políticas de poder que se estabeleciam a partir de tais transformações e, particularmente, as mutações que elas induziram na psicologia inconsciente coletiva.

Mais tarde, seguindo a mesma perspectiva de excesso e de uma exacerbação da modernidade, alguns antropólogos, como Marc Augé (1992), propuseram um conceito semelhante: sobremodernidade, para compreender as principais características do mundo contemporâneo.

Mais tarde, o sociólogo francês Gilles Lipovetksy (2004), em seu livro Os Tempos Hipermodernos, define hipermodernidade - ou segunda revolução moderna - como período contemporâneo que surge no cenário mundial a partir dos anos 90 do século XX e que parece marcado pela ascensão irresistível do reino do excesso e do imediatismo, pelo individualismo paradoxal, pela instabilidade e pela dualidade, onde a frivolidade parece mascarar uma profunda emotividade angustiada.

Desde os anos 80, inúmeros indícios nos conduzem a pensar que entramos na era onde tudo se tornou “hiper”, hipercidades, hipermercados, hiperpotências, hiperterrorismo, hipercapitalismo, uma cultura do excesso, cujos pilares se assentam na hipermodernidade, no hiperconsumo e no hipernarcisismo. Após a transição cultural proporcionada pela pós-modernidade, surge a hipermodernidade, uma sociedade marcada pela hiperfuncionalidade, pelo movimento, pela fluidez e pelo declínio das tradicionais estruturas de sentido, onde os grandes sistemas de representação de mundo são tomados como objeto de consumo, sendo cambiáveis de modo tão efêmero como um automóvel ou um apartamento, num processo de permanente reciclagem do passado:

Chegamos ao ponto em que a comercialização dos modos de vida não encontra mais resistências estruturais, culturais ou ideológicas, e onde as esferas da vida social e individual são reorganizadas em função da lógica do consumo (LIPOVETSKY, 2004, p.41).

Hiperconsumo, isto é, um consumo que absorve cada vez mais partes da vida social, que se ampara em critérios e funções individuais, segundo uma lógica emotiva e hedonista, e que dita a especificidade das relações que estabelecemos com nossos afetos, com os objetos, com os outros, com a vida. O império do princípio do hiperconsumo se evidencia na busca de emoções e de prazer, no cálculo utilitarista das relações sociais e de trabalho, na superficialidade e frivolidade da expressão dos afetos.

Hipernarcisismo, época de um Narciso que se toma por maduro, responsável, organizado, eficaz e flexível, rompendo com o modelo de Narciso dos anos pós-modernos. Mas, como pensarmos em Narciso maduro, se o indivíduo hipermoderno insiste em permanecer como um eterno adolescente, os “adultescentes”, como que se recusando assumir a idade adulta?

E o que dizer de Narciso responsável, se a cada dia observamos a consolidação e multiplicação de comportamentos irresponsáveis, evidenciados pelo fato de as declarações de intenção não serem mais seguidas de qualquer efeito.

Narciso organizado e eficaz? E o que dizer da ascensão de comportamentos disfuncionais, expressos nas formas de compulsões e adições, de sintomas psicossomáticos, de quadros depressivos, engendrados paradoxalmente particularmente no universo funcional da técnica?

Em entrevista publicada em 14 de março de 2004, ao “Caderno Mais”, da Folha de São Paulo, Lipovetsky afirma ser a sociedade hipermoderna uma sociedade esquizofrênica em que convivem, de um lado, uma sociedade hiperfuncional, funcionalidade da técnica, da ciência, que trabalha cada vez mais critérios mensuráveis, de eficácia e operacionalidade. Paralelamente, assiste-se à ascensão de comportamentos disfuncionais e os dois existem juntos. Logo, tem-se de um lado uma sociedade em que cada vez mais impera a ordem e, de outro, a desordem – no fundo, um quadro de patologia e de caos.

A situação paradoxal da sociedade hipermoderna, dividida entre a apologia do excesso e o elogio à moderação, traz como conseqüência uma inquietante desestabilização emocional e fragilização do indivíduo. Face à desestruturação das formas de controle social, tem-se o direito de decidir e fazer escolhas no âmbito de um contexto cada vez mais plural e liberal, mas também nos cabe a capacidade para o exercício do autocontrole e do comportamento individual responsável. Desta forma, o indivíduo hipermoderno revela-se inquieto e amedrontado diante de um futuro incerto e ambivalente: por um lado é estimulado à valorização de princípios como a saúde, o equilíbrio e a prevenção; por outro, levado pela lógica do excesso, revela comportamentos extremamente excessivos, como por exemplo, no âmbito da alimentação, em que podemos observar a proliferação de comportamentos anoréxicos, indicadores de uma patologia no nível do excesso de controle e de comportamentos bulímicos, reveladores de uma patologia do excesso do consumo.

Tudo parece indicar que realmente estamos passando de uma era “pós” à era “hiper”, na qual uma das questões mais importantes aponta para a necessidade de se repensar a socialização no contexto hipermoderno, isto é, quais são os desdobramentos éticos engendrados por uma mutação desta natureza?

Se a pós-modernidade representa o momento histórico onde as amarras institucionais se flexibilizam, dando lugar a manifestações cada vez mais esfuziantes de desejos subjetivos, da realização individual e do amor-próprio, a passagem da pós-modernidade à hipermodernidade seria o momento histórico onde o consumo de massa e os valores que ele veicula ditariam a própria sociedade liberal, cada vez mais caracterizada pela fluidez, pela flexibilidade, pelo aumento considerável de comportamentos irresponsáveis e pela lógica da reciclagem permanente.

A hipermodernidade nos revela, segundo Lipovetsky, mais uma vez um paradoxo: por um lado, numerosos são aqueles que denunciam o aumento da violência e da barbárie em nossa sociedade. O hedonismo individual, ao minar as instâncias tradicionais de controle social, indica favorecer o relativismo desenfreado de valores, permitindo o livre curso de toda sorte de elucubrações e de ações possíveis. Reveladas por uma ética e por um espírito de irresponsabilidade incapaz de resistir tanto aos apelos externos como aos impulsos internos, faz surgir comportamentos e modos de vida irresponsáveis, tais como cinismo generalizado, recusa de empreendimento de esforço e de sacrifício frente às adversidades da existência, comportamentos compulsivos, violência gratuita, tráfico de drogas e toxicomanias. Por outro lado, como efeito da ética da responsabilidade, temos de admitir que os direitos do homem jamais foram vividos de modo tão consensual como hoje e que valores como a tolerância e o respeito às diferenças jamais foram tão vividamente manifestados e defendidos como atualmente.

Ao se repensar a futuro da hipermodernidade, devemos analisar sua capacidade em fazer triunfar a ética da responsabilidade sobre os comportamentos irresponsáveis, e o fato de nossa sociedade ser capaz de produzir tal ou qual efeito depende obviamente da consciência de cada indivíduo sobre a importância de sua responsabilidade neste processo: “Jamais uma sociedade favoreceu uma autonomia e uma liberdade individuais tão amplas em seu exercício, jamais seu destino se encontrou tão estritamente ligado aos comportamentos daqueles que a compõem” (CHARLES, 2004, p.65)

Em Os Tempos Hipermodernos, Lipovetsky nos aponta a lógica contraditória da sociedade hipermoderna, acentuando o fato desta contradição ter sido introjetada pelos indivíduos, que revelam-na através de seus conflitos e de seu medo diante da incerteza, da complexidade e da imprevisibilidade do presente. Neste sentido, o que mudou principalmente foi o ambiente social e a relação que os indivíduos estabelecem com o presente. Com isso, é o medo que impera e que domina diante de um futuro incerto, onde tudo inquieta e assusta.

Longe de decretar a morte da modernidade, a hipermodernidade concretiza-se no liberalismo globalizado, na mercantilização generalizada de estilos de vida, e na exploração radical da razão instrumental:

O pós de pós-moderno ainda dirigia o olhar para um passado que se decretara morto; fazia pensar numa extinção sem determinar o que nos tornávamos, como se tratasse de preservar uma liberdade nova, conquistada no rastro da dissolução dos enquadramentos sociais, políticos e ideológicos. Donde seu sucesso. Essa época terminou. Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper? O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superlativa? (CHARLES, 2004, p.53)

Desenvolver-se-ia, segundo essa perspectiva, uma segunda modernidade, globalizada, tardia, consumada, desregulamentadora e assentada sob os três pilares constitutivos da própria modernidade: o mercado, a eficiência técnica e o indivíduo. Este, cada vez mais apresentando os sinais do signo do excesso em seus próprios comportamentos: bulimias, anorexias, compulsões e adições.

Nicole Aubert, socióloga e psicóloga francesa, em seu livro Le Culte de l´Urgence: La Société Malade du Temps (2003), afirma que o modo de ação em urgência tornou-se o imperativo de nossa época, provavelmente se configurando como uma construção mental através da qual os indivíduos hipermodernos representam e expressam suas maneiras de ser, de sentir e de viver.

Etimologicamente, urgência vem do latim urgere, que significa apressar, fazer pesar sobre, fazer agir, incitar, fazer suportar uma carga excessiva, imprimir uma força sobre, implicando a necessidade de agir rapidamente.

Para muitos, a vida pode parecer uma espécie de louca corrida individual em busca do bem-estar, da felicidade, do sucesso, do desenvolvimento pessoal, da novidade, da exigência de performance e da excelência, na qual a medida de bem-estar parece proporcional à medida de urgência, de excessos, de polivalências, de mobilidades, de capacidade a fornecer sempre mais rapidamente as respostas apropriadas.

A urgência se constitui como o sintoma mais evidente da relação que o indivíduo hipermoderno estabelece com o tempo, revelando sua ambivalência em relação à vivência da temporalidade, afetando profundamente sua maneira de se pensar, de pensar os outros, de conceber e de praticar a política, isto é, de se inscrever como indivíduos na trama de um tempo coletivo.

São as modalidades e os desdobramentos da lógica da urgência e das novas relações que os sujeitos estabelecem com o tempo, seja no plano individual, seja no plano coletivo, que contribuem ao redefinir a identidade do indivíduo contemporâneo, produto e produtor da sociedade hipermoderna: qual é o sentido, quais são as implicações da “tirania do tempo real” e quais os custos físicos e psíquicos da aceleração desenfreada do ritmo a partir do qual os indivíduos vivenciam suas experiências?

Para compreender o significado da ilusão de controle do tempo, é necessário evocar a maneira como o indivíduo hipermoderno introjeta o tempo e se projeta em relação a sua finitude, pois este tempo, cuja inexorável irreversibilidade parece constituir para o homem uma constante fonte de angústia e sofrimento, não é senão uma metáfora que nos remete à consciência de que são os seres que passam e não o tempo.

O culto à urgência aparece assim como uma manifestação frenética da tensão desesperada do tempo em relação à inexorabilidade e à tragicidade da morte. A urgência da sociedade contemporânea repousa, então, na vontade de triunfar diante da morte, mediante a ilusão de que se pode possuir, submeter e dominar o tempo segundo nossos desejos. Nesta concepção, o tempo surge como um objeto, um bem que o homem busca adquirir, e os termos usados em relação à ilusão do domínio do tempo são correlatos à identificação deste com o dinheiro, próprio do imaginário capitalista.

Com efeito, uma das características da hipermodernidade revela-se nas mutações engendradas nos registros da temporalidade e das relações humanas, uma vez que o tempo se constitui como um elemento fundamental das interações, estabelecendo uma relação de poder, ao postular os lugares a partir dos quais se estabelecem as trocas sociais: quem tem o poder, controla o tempo. Neste sentido, viver num tempo orientado pelos outros parece implicar uma relação de subordinação, de dominação.

Neste contexto, observamos a emergência de novas modalidades de organização da vida individual e coletiva a partir do registro da temporalidade, em que cada aspecto da existência parece indicar a incidência do mal-estar - e ao mesmo tempo o imperativo - hipermoderno: a ideologia do excesso e da urgência, produzida pela lógica do sempre mais e sempre mais rápido, ao se configurar como o modo privilegiado de regulação social e a modalidade dominante de organização da vida coletiva, afetando profundamente nossa maneira de sentir, representar e de nos expressar nas diversas esferas de nosso modo de viver.

O indivíduo hipermoderno pode ser definido como um toxicômano da ação, inserido na lógica do aproveitamento instantâneo, centrado no imediato, hipercompetitivo, um homem apressado, desejante de viver sobre o máximo de registros ao mesmo tempo, desejante de triunfar sobre o vazio, sobre o tempo, sobre a angústia da transitoriedade da vida, sobre a morte.

Para responder às exigências de uma sociedade cada vez mais escravizada pelas metáforas concernentes ao tempo: “tempo é dinheiro”, “a ditadura do tempo real”, “não temos tempo”, “falta de tempo”, “urgente”, “estados de urgência” -, o indivíduo hipermoderno desesperadamente acelera seu ritmo, na tentativa de se adaptar à imediatez e à instantaneidade de um cotidiano marcado pela “compressão do tempo”, pelo imperativo da urgência e pelo culto ao perfeccionismo e à excelência.

Mas, quais as implicações físicas e psíquicas engendradas pelo “culto à urgência” e pela “exigência de performance e de excelência”? Para compreender o impacto do novo paradigma em relação ao tempo que se instaurou em nossa sociedade, nos apoiamos em alguns autores contemporâneos que se debruçam sobre esta questão.

Mais uma vez recorrendo à socióloga e psicóloga francesa Nicole Aubert, em seu artigo “Um individu paradoxal” (2004a), publicado no livro do qual é a organizadora L´Individu Hypermoderne (2004), a autora traça interessantes considerações sobre o papel que as mutações econômicas, tecnológicas, sociais e culturais, que vêm ocorrendo a partir das últimas duas décadas do século XX, produziram em termos de um redimensionamento dos contornos da identidade contemporânea, particularmente no que concerne às novas formas de patologia que afetam o indivíduo atualmente. Estas mutações produziram uma nova sensibilidade e, conseqüentemente, um novo tipo de indivíduo, cuja personalidade seria caracterizada por contornos pouco visíveis em relação à estruturação de pertencimento, e que apresentaria uma desconexão simbólica e cognitiva do ponto de vista de seus vínculos sociais.

Ainda em relação à questão sobre “quem é o indivíduo hipermoderno”, a autora defende a tese da existência de duas faces do individualismo contemporâneo: de um lado, observam-se indivíduos que vivem uma espécie de excesso permanente – excesso de consumo, mas também excesso de stress, excesso de solicitações e pressões, e que, na busca de padrões de desempenho cada vez melhores, se lançam numa hiperatividade, visando realizar tudo a que se propõem no menor tempo possível, assim como este tipo de individualismo pode caracterizar-se também por um “sempre mais”, que se expressa através de um modo agudo de desintrincação pulsional, revelando que, nesse domínio, só há uma lei possível: a de seu desejo; no pólo oposto, encontram-se aqueles que jamais foram beneficiados com os suportes econômicos (ou mesmo os perderam) e que, desde então, passam a vivenciar um percurso de exclusão e de fracassos.

O tipo de excesso característico do primeiro tipo de indivíduos pode se revelar sob diferentes modalidades de investimentos e de condutas pessoais de superação de si mesmo como, por exemplo, as consideradas de risco, nas quais a busca de superação dos limites máximos de resistência corporal na busca de sentido traduz o próprio valor da sociedade, esta também se encontrando precisamente sem limites.

Assim, as patologias que afetam o indivíduo hipermoderno não seriam senão a imagem de seus investimentos. Nas palavras da autora:

Patologias toxicomaníacas ou, mais simplesmente, da adição a substâncias destinadas a dar suporte ao ritmo de performance constantemente acelerado. Patologias alimentares, as da obesidade ou da anorexia, através das quais se traduziria, seja o transbordamento alimentar, ou o seu inverso, a restrição extrema, outra forma de experimentação dos limites corporais. Patologias profissionais igualmente, ligadas ao hiperfuncionamento aos quais os indivíduos se vêem obrigados a aderir e a partir dos quais se desconectam brutalmente como máquinas ou circuitos elétricos quando de uma sobrecarga excessiva. Enfim, mais globalmente, patologias sociais do esgotamento, como a depressão ou a do “curto circuito” que atingem aqueles que, sempre mais performáticos sobre um ritmo sempre mais acelerado, ultrapassaram todos os limites (AUBERT, 2004a, p. 18).

A dimensão de excesso também se encontra presente no segundo tipo de indivíduos já anteriormente citados. Contudo, nestes, trata-se de uma espécie de “excesso de inexistência”, pois por não disporem de suportes econômicos e sociais face às exigências de desempenho, dinamismo e de adaptabilidade, eles se encontram à margem de toda visibilidade e legitimação. À ausência ou perda de suportes, corresponde um sentimento de não-existência, uma perda de sua singularidade e de sua capacidade de individuação, uma ferida em seu narcisismo, donde, em alguns, advém a passagem ao ato na tentativa de romper o insuportável sentimento de vacuidade em sua existência.

Robert Castel, em seu artigo “La Face Cachée de l`Individu Hypermoderne: l´Individu par Défaut” (2004) nos convida à reflexão sobre o que denomina individu par défaut: o indivíduo que não pode ascender à autonomia, porque nunca pode se beneficiar de um conjunto de recursos econômicos e sociais suficientes e que, portanto, encontra-se numa situação de exclusão e fracasso e que constituem, para o autor, a face negativa da hipermodernidade. À vacuidade de sua existência se oporia assim a intensidade vivenciada pelos indivíduos analisados no primeiro modelo.

É preciso constatar que, na sociedade que proclama a soberania do indivíduo, existem indivíduos que não são propriamente indivíduos no sentido positivo do termo, isto é, que possam ser qualificados positivamente pelo sentido das responsabilidades e a capacidade de independência que lhes dariam um valor intrínseco. E por quê? Porque lhes faltam recursos, suportes para edificar esses atributos positivos da individualidade (CASTEL, 2004, p. 122).

No mesmo artigo, Castel constata o fato de que se vive atualmente uma intensificação crescente de uma “sociedade de indivíduos”, fazendo referência à noção proposta por Norbert Elias. Dispositivos que engendram dinâmicas de individualização poderosas atravessam o conjunto do corpo social, afetando diferentes campos da experiência social e conferindo à noção de indivíduo uma concepção diferente da noção moderna. Ao indivíduo moderno eram atribuídos valores como senso de responsabilidade e vontade de independência. Para existir como indivíduo, ele deveria adquirir certa independência em relação aos mecanismos de regulação coletiva; inversamente, o indivíduo hipermoderno se crê desconectado, desengajado, hiper-independente, a ponto de se tomar liberado de qualquer sentido de responsabilidade, apontando dificuldades em conciliar com o fato de levar uma vida comum, levando em consideração os mecanismos de regulação coletiva que são próprios da vida em sociedade.

O indivíduo não é uma substância pronta ao nascer, como uma entidade psicológica que dispõe de todos os atributos que lhe conferem um mínimo de iniciativa e uma capacidade de conduzir-se de forma responsável em seus atos, levando uma vida própria e autônoma. É preciso dispor de suportes e recursos objetivos para tornar-se positivamente um indivíduo. Aos individus par dé;faut lhe faltam tais suportes objetivos para que possam atingir um mínimo de independência, autonomia social, que são os atributos positivos que conferem a um indivíduo o reconhecimento social.

Com o propósito de analisar a natureza de tais suportes objetivos, Castel afirma serem estes diferentes, podendo variar historicamente; entretanto, a história social demonstra haver dois suportes principais em relação ao indivíduo moderno.

Primeiramente, a propriedade privada constituiu – e pode constituir ainda – uma base necessária de recursos a partir dos quais o indivíduo pode escapar à dependência e assegurar sua seguridade. A propriedade assegura. Ela dá o suporte necessário para fazer face em casos de doença, de acidente, do envelhecimento, à decadência social. Sobre esta base, o indivíduo pode construir uma certa independência e gozar de um mínimo de consideração (CASTEL, 2004, p. 123).

Um outro suporte que assegura a propriedade social do indivíduo moderno é o trabalho, pois, a partir dele, é edificado todo um conjunto de recursos e de direitos adquiridos e conquistados e que dão suporte ao direito e à condição de cidadania social garantido pela lei. Desta forma, a propriedade privada e a propriedade social do trabalho seriam, na análise de Castel, os dois suportes que balizaram e asseguram a construção da noção de indivíduo moderno.

E de que maneira essas considerações podem esclarecer a problemática do indivíduo hipermoderno? Para tentar compreender esta questão, Castel empreende uma genealogia do indivíduo, em que analisa o papel dos suportes sociais e de suas transformações ao longo desse processo. Para o autor, o apogeu da propriedade social se situa entre o fim da Segunda Guerra mundial e os anos 70, época em que se consolidam duas condições fundamentais à propriedade social: uma base salarial forte e um Estado providência, cujo papel social é cada vez mais presente. Contudo, a partir dos anos 70, essas duas condições começam a entrar em declínio, produzindo uma transformação importante na economia do indivíduo, que será a base objetiva para o aparecimento de um novo perfil de indivíduo hipermoderno. Em outras palavras, com a emergência da sociedade dos indivíduos, assiste-se, como lógica da contrapartida, à flexibilização, fragilização e precariedade do direito à proteção social conferido pelo Estado. O pertencimento ao mundo do trabalho, logo à proteção social, é ameaçado de degradação pela fragilização do próprio trabalho que, como concepção, encontra-se em processo de transformação face à sua concepção moderna.

A partir dos anos 70, foi produzida uma transformação importante no nível dos suportes necessários à existência de indivíduos no sentido integral do termo. Para dizer em breves palavras: para muitos indivíduos e, dentre eles, para aqueles cujo suporte social era o que chamei de propriedade social, esses recursos foram tornando-se escassos ou mesmo desaparecendo. Os efeitos do que se começou a chamar “a crise” não são somente o aumento do desemprego em massa e a precarização das relações de trabalho. Trata-se de uma transformação em relação ao conjunto de suportes sobre os quais esses indivíduos construíam sua independência. Conseqüentemente, trata-se de algo bem diferente do que uma crise passageira. Poderíamos falar de uma bifurcação na trajetória do indivíduo hipermoderno. A dinâmica que produz o hiperindividualismo se estende a um programa de analisar e destacar, nesse processo, novas figuras (CASTEL, 2004, p. 127).

Castel refere-se a um número crescente de indivíduos que se encontram alijados dos suportes da propriedade social e que não conseguem se afiliar ao sistema. O indivíduo que se encontra desempregado há muito tempo, o jovem em busca de um emprego ou ainda todos aqueles que revelam uma trajetória caótica profissional e social e que experimentam períodos de atividade profissional alternados por períodos de desemprego, constituindo a face negativa da hipermodernidade, os “individus par défaut”; e que, para além do desamparo social, vivenciam o sofrimento psíquico.

Alain Ehrenberg, em seu livro La Fatigue d´Être Soi: Dépression et Société (2000), nos mostra como a angústia neurótica passou a ser, a partir do final do séc. XX, a patologia dominante. Este autor aponta uma nova contextualização para a etiologia da neurose: ao invés de um conflito entre um desejo e uma ordem objetiva que o interdita, ele propõe a idéia de um “homem insuficiente”, que sofre por uma impossibilidade de se sentir à altura, por uma incapacidade a fazer face às exigências internas e externas cada vez mais extremas. Desta forma, em relação ao primeiro, que sofre por uma forte pressão de proibições, o segundo sofreria por um excesso de possibilidades.

Em face de tantas possibilidades e tantas competências que necessita atingir e apresentar, o indivíduo se vê diante do impossível, o que engendra o sofrimento psíquico, o qual expressa a patologia da insuficiência, isto é, o sentimento de nunca ser capaz de acompanhar e atender às exigências cada vez mais intensas e urgentes da sociedade hipermoderna.

Como conseqüência, segundo Ehrenberg (2000), o indivíduo sob pressão desencadearia a “implosão depressiva”, uma síndrome que revela sua incapacidade de fazer face à demanda e que haverá sempre algo que manca, e que se expressa através da fadiga, da inibição, da insônia, da angústia, cuja representação contemporânea por excelência é a depressão, “doença” inerente a uma sociedade onde a norma não é mais fundada sobre a culpabilidade e a disciplina, mas sobre a responsabilidade e a iniciativa.

Nas formas extremas de individualismo, as capacidades de sentir declinaram? A ininteligibilidade induzida por sensações contínuas teria, ao mesmo tempo, descaracterizado a expressão de sentimentos em relação aos outros e a si mesmo, a capacidade de experimentar sentimentos? Atualmente, sentir tenderá a ser confundido com a sensação, o fluxo? (HAROCHE, 2004, p. 38)

Eis assim configurado um novo quadro de mal-estar hipermoderno: a uma perda gradual de sentido, soma-se um apagamento de horizontes morais e um gradual eclipse dos fins últimos de sua vida, em função de uma razão instrumental que a tudo preside e pela sensação de viver em um mundo administrado, onde resta pouquíssimo espaço para exercitar sua autonomia e liberdade (TAYLOR, 1992, p. 18), em direção ao que Kant (1974) denominava de “maioridade”, o saber ousar e ousar saber e pensar por si mesmo.

Como se comporta então este indivíduo hipermoderno diante da morte, de si e dos outros? Dos muitos possíveis imaginários construídos sobre a morte que podemos arrolar, qual deles será a escolha lógica deste homem hipermoderno:

1) Morte como destino certo?

2) Morte como libertação de uma vida de sofrimentos?

3) Morte como fim épico para a existência?

4) Morte como consumação de uma vida plena cujo sentido se perde na própria vida já vivida?

5) Morte como lugar de nadificação de si mesmo?

6) Morte como lugar de puro horror?

7) Morte como possibilidade de redenção de pecados?

8) Morte como última penitência, na qual o purgatório criaria uma nova chance de redenção?3

9) Morte como eterno retorno?

10) Morte como algo reversível pela ilusão fomentada pelas novas virtualidades eletrônicas ou pela negação de seus efeitos?4

Podemos supor que todas estas expressões de imaginários sobre a morte possam co-existir e certamente ainda co-existem, mas creio que o homem hipermoderno tende a ver a morte como uma traição, cometida pela tecnociência, que se apresentou a ele como onisciente e onipotente, que lhe prometeu eterna juventude e imortalidade.

Por outro lado, diante da morte iminente de si e dos que estão sob sua responsabilidade econômica e/ou afetiva, o homem hipermoderno descobre que precisa se confrontar com o que Jean Ziegler chamou de “canibalismo mercantil”. Não é mais a Deus que ele precisa apelar, mas ao Deus “capital”, a uma lógica de mercado em que tudo parece ter um preço e poder ser comprado, inclusive as formas mais modernas e recentes para minorar o sofrimento. Modelar, para compreensão deste fenômeno econômico e social, é o recente filme Invasões Bárbaras, em que o personagem principal, professor universitário no Canadá, passa a depender do filho, envolvido no mercado de capitais, para ter seu sofrimento reduzido até o momento de sua morte. Este homem se vê então reduzido à sua simples funcionalidade mercantil, que

priva-o da experiência reflexiva da fase mais importante de sua vida e o impede de tomar, nos seus termos, a medida de sua existência. E mais: esvaziando a morte de todo o seu sentido existencial que ela veicula, o sistema capitalista priva a existência humana de sua liberdade, de seu significado escatológico e portanto sua qualidade de destino. O homem é escondido de si mesmo (ZIEGLER, 1977, p. 307).

Despojado assim de sua dignidade de ser humano, resta um produto a ser negociado, um corpo a ser tirado de cena, visto agora como obsceno.

Quando as esperanças se rompem definitivamente e a negação não produz mais seus efeitos, resta pôr em prática o que poderíamos denominar de “rituais de urgência”, já que a impaciência e ligeireza de sentimentos são tonalidades afetivas dominantes. Tal como Nietzsche nos advertia, o homem moderno tomado aqui em sua lógica hipermoderna, é uma corda estendida sobre um abismo e ele precisa enfrentar vários perigos: “o perigo de atravessar, o perigo de se por a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e ficar no lugar” (NIETZSCHE, 2001, p. 53).

Decidir por “rituais de urgência” não é, porém, uma forma de atravessar o abismo, mas simplesmente uma maneira de negá-lo ou acreditar tê-lo contornado. Eis de onde surgem o espaço para cerimônias fúnebres que negam a morte e o morto, onde mortos são maquiados e enquanto uma trilha musical previamente escolhida pelos parentes toca ao fundo, o caixão é empurrado para a cremação. Cerimônias nas quais se cria um “clima emocional externo” e sob controle, que sensibiliza e provoca lágrimas como num filme de Hollywood. Executa-se também, ao mesmo tempo, a lógica de poder social com a escolha do melhor e mais caro caixão, o melhor lugar no cemitério. Mergulhado, desde sempre, no reinado de uma “vida Mcdonalizada”5 ela se estende naturalmente aos domínios dos rituais fúnebres. Rapidez, racionalidade, eficácia a serviço da lógica do consumo dos outros e de si mesmo.

O importante é não entrar em luto, posto que o mesmo envolve defrontar-se com o grande sofrimento da perda e uma longa e penosa elaboração, que não afasta em definitivo o ser perdido (FREUD, 1974, p. 275 e seguintes) e acreditar também que a melancolia não vai se instalar e ir logo que possível na direção de uma movimentação frenética que anule o pensar.

Não é, portanto, numa era de vazio em que vivemos, como alguns teóricos já o disseram, mas um momento de fuga desesperada deste vazio. Aceitar este vazio é perceber que as coisas acabam, mas os seres humanos morrem. Que as coisas acabam porque já cumpriram seu papel e podem ser descartadas ou trocadas por novas. Se é possível avaliar interiormente uma “coisa” e decidir que ela está suficientemente gasta, ultrapassada por novas tecnologias, como decidir, porém, e com quais critérios, se e quando devemos nos “descartar” de um “ser humano”, por exaustão de seus componentes ou pela aparente inutilidade de descobrir um papel social para ele?

Quem senão o próprio Freud poderia dizer, no dia 23 de setembro de 1939, ao seu médico, Max Schurr, que seu sofrimento era insuportável e deveria aliviar de vez seu sofrimento? Quem poderia decidir em nome de Laura Marx e Paul Lafargue, que 70 anos era o limite de suas vidas “antes que a impiedosa velhice (...) acabe por paralisar minhas energias (...) fazendo de mim um peso para outros e para mim mesmo”, como escreveu Lafargue em sua carta-testemunho? Quem senão a própria Arminda Aberastury, brilhante psicanalista argentina, considerada a mais bela de sua geração, poderia, aos 62 anos, se olhar no espelho e, diante de uma doença de pele grave e deformante, tomar sua decisão final, como realmente o fez? De onde, nos alertava Medard Boss, médico analista existencial, que os médicos, ou “qualquer homem em geral, tiraria os critérios para avaliar qualquer vida humana sem se expor à grave censura de ser arrogante e petulante”? (BOSS, 1975, p. 76)6.

Talvez a resposta esteja no refazer desde cedo um longo caminho de aprendizagem social e existencial para lidarmos com a morte, o que implicará um novo lidar com a vida e nos conduzirá certamente – já que agora sabemos um peso possível para a alma – a estabelecermos o valor que cada alma pode ter. Caminhar da

mitologização do final da vida humana”, do evitar o pensamento sobre a morte em direção a um “olhar de frente a morte como um dado da própria existência: acomodar nossa vida, sobretudo nosso comportamento para com as outras pessoas ao limitado espaço de tempo que dispomos (ELIAS, 1989, p. 07).

Será preferível também cultivarmos uma saudável angústia diante do que não se decide facilmente,daquilo que será sempre uma “escolha de Sofia”7 e ficarmos com os nossos fragmentos de verdade a serem compartilhados, fragmentos insones, que nos impedirão de decidir pela lógica de uma urgência banalizadora ou, como Clarice Lispector nos alertava, nos impedir de encalharmos numa palavra ou conceito e perdermos anos de nossas vidas. O mundo tem pressa, a vida se acelera, mas na corrida do pensamento, Wittgenstein nos lembrou certa vez, ganha aquele que for mais lento.

Isto nos levará, sem dúvida, a cultivar o que Pascal denominava de “espírito de finura”, em oposição ao “espírito de geômetras”, dos quais os cientistas modernos seriam herdeiros. O “espírito de finura” lidaria com princípios que

são apenas entrevistos; mais pressentidos do que vistos; é preciso um esforço infinito para torná-los sensíveis a quem não os sente por si próprio: são coisas de tal maneira delicadas e tão numerosas que é necessário um sentido muito delicado e preciso para senti-las (PASCAL, 1957, p. 48).

Ao lidar com a morte, escapando do “espírito de geômetras”, escaparíamos também de uma razão instrumental que tudo mede e quantifica, que termina por estabelecer critérios classificatórios à feição de uma “cama de Procusto”.

Talvez, neste momento, venhamos a alcançar alguma paz interior para decidirmos o valor da alma de cada um de nós e nos prepararmos para participar de decisões tão sérias quanto manter ou suspender em definitivo a nossa vida ou a vida de alguém sob nossa responsabilidade. Com esta releitura da vida, certamente nos veremos compelidos a fazer uma releitura da morte. Neste momento, certamente o poema de Sophia de Mello Breyner-Andresen, ganhará um novo e iluminador sentido:

Sinto os Mortos
Sinto os mortos no frio das violetas
E nesse grande vago que há na lua.
A terra fatalmente é um fantasma,
Ela que toda a morte em si embala.
Sei que canto à beira de um silêncio,
Sei que bailo em redor da suspensão
E possuo em redor da impossessão.
Sei que passo em redor dos mortos mudos
E sei que trago em mim a minha morte.
Mas perdi o meu ser em tantos seres,
Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes não soube dos meus atos,
Que a morte será simples como ir
Do interior da casa para a rua.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Jorge Coelho Soares
E-mail: jorge.coelho.soares@terra.com.br

Marília Antunes Dantas
E-mail: mariliad@compuland.com.br

Recebido em: 01/08/2006
Aceito para publicação em: 18/08/2006

 

 

Notas

* Psicóloga Clínica, Doutoranda em Psicologia Social/UERJ.
1 Este texto teve como base palestra proferida na Jornada Eutanásia e Bioética, ocorrida em 10 de maio de 2006, organizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UERJ na Faculdade de Enfermagem/UERJ.
2 Vale a pena citar como exemplo paradigmático o livro de Zola (1999) - Como se casa, como se morre - em que, num mesmo momento histórico, quatro diferentes cerimônias de casamento e de morte podem ser descritas e onde, apesar de acontecerem em condições sociais bem diferentes, estão submetidas a um sentido prático, objetivo de uma mesma lógica econômica.
3 A propósito, consultar o livro de Jacques Le Goff (1981), La naissance du purgatoire, em que ele narra a gênese histórica do nascimento desta instância intermediária entre o Céu e o Inferno, abrindo possibilidades de redenção.
4 Ofilme Solaris de Andrei Tarkovsky, explora esta possibilidade. Reencontrar um ser humano que foi definitivamente perdido é, ao mesmo tempo, um desejo acalentado por todos os seres humanos, mas é algo carregado de ansiedade e culpa.
5 Seria oportuno consultar o livro de Georges Ritzer (1999), La McDonalización de la Sociedad, que deflagrou o debate sobre a lógica McDonalizada de viver.
6 O mesmo Medard Boss, porém, não se furtou a apontar situações em que esta decisão deveria ser colocada em cena, com todos os riscos que ela comporta: “quando a vida está definitivamente reduzida às manifestações privativas de um vegetar meramente físico e sem-mundo (...) prematuros malformados (...) ou velhos esgotados, constantemente em coma e que somente estertoram, sabendo-se que todos já teriam morrido há muito sem estes cuidados artificiais técnicos” (1975, p. 77).
7 A Escolha de Sofia, filme dirigido por Alan Pakula em 1982, cujo personagem principal se vê diante de um dilema moral que implica numa escolha, a qual, qualquer que seja sua decisão, provocará um grande sofrimento.

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