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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Perspectivas da pesquisa comunitária: comunidade como práxis e seus diálogos com as histórias orais de vida.

 

Community research perspectives : community as praxis and its dialogues with life histories

 

 

Lúcia Ozório*

Professora; pesquisadora: convênio Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, (FAPERJ); associada ao laboratório Experice (Centre de recherche en éducation habilité, Paris 8 – Paris 13) das Universidades Paris 8 e Paris 13, França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Discutimos comunidade como práxis. As histórias orais de vida em comum contribuem para a compreensão e realização desta práxis. Interessamo-nos pelas narrações dos irredutíveis ao capital, moradores da comunidade da Mangueira. Conectando saberes e práticas, usamos um dispositivo, o Papo de Roda, no qual pessoas idosas e jovens são convidadas pela Mangueira a dele participar. Neste a força de um comum, experencial com suas histórias dá condições da transmissão acontecer, favorecendo um entendimento do trabalho intergeracional como práxis de comunidade. A pesquisa-ação e muitos momentos de observação participante são nossos modos de pesquisar comunidade, baseados numa compreensão de trabalho em comum. Tratamos da minoritária história, descontínua, que se faz em outros lugares que nao os oficiais. Com as histórias orais de vida narradas em comum temos outro instrumento para a práxis política, com pistas que respondem a demandas contemporâneas de comunidade.

Palavras-chave: Comunidade, Práxis, Histórias orais de vida narradas em comum.


ABSTRACT

We discuss community as praxis. The orally narrated life histories in common contribute to the comprehension and achievement of this praxis. We interest for people who are irreducible to capital and their narrations, the Mangueira community&#';s inhabitants. Connecting knowledge and practice, we use an instrument “Papo de Roda” (the life histories narrated in a circle) where old and young people are invited by Mangueira to take part of it. In this one, the force of a common, of experiences with their histories allow this transmission to happen, being in favour of an understanding of a work between generations as a community praxis. The action-research and many moments of a participating observation are our ways of researching community that are based on a comprehension established on a work in common. We approach the minority history, non-continued, which is done in other places, but not the official ones. With oral life histories, we have another instrument to the political praxis, using traces that answer the community&#';s contemporary demands.

Keywords: Community, Praxis, The orally narrated life histories in common.


 

 

Perspectivas da pesquisa comunitária: Comunidade como práxis e seus diálogos com as histórias orais de vida

 

Introdução

Celso, morador da comunidade da Mangueira diz que “[...] para viver em comunidade é preciso gostar... Já estou nesta comunidade há cinqüenta anos [...]” (OZÓRIO, 2004a, p. 35). O pensamento de Agah (2001) faz alianças com os de Celso, quando pensa comunidade como “[...] práxis, o processo que está sempre em vias de se compreender, de constituir seu conceito, mas que procura, se esforça ao mesmo tempo para ultrapassar todo conceito dado ou fixado já nele mesmo, de seu real e de sua realidade. [...]” (AGAH, 2001, p.1). Se Celso alia experiência de vida à comunidade, marcando uma especial aliança desta com o desejo, Agah dá pistas para se escapar ao substancialismo e às reificações ideológicas que atravessam seu entendimento. Os dois autores, pensadores-atores irredutíveis ao controle capitalista, contribuem para se compreender a problemática comunitária na sua complexidade histórica. Celso, habitante das consideradas zonas de exclusão, as comunidades também conhecidas como favelas, no Rio de Janeiro, e Agah, filósofo, do Oriente, do Iraque, país que tem provado a violência da exclusão do Império (NEGRI, 2003), abrem vias de comunidade entre os povos.

Pensamos comunidade como um conceito político. Buscamos assim ter acesso às demandas contemporâneas de comunidade apontadas pelos autores, que querem intervir numa fronteira com traços do inconciliável, entre a recusa e o reconhecimento do em comum destes tempos produtores da desigualdade. Acreditamos, no entanto, ser possível provocar contra-poderes desestabilizadores na moral neoliberal. E a práxis é fundamental para a construção de um conhecimento mais rico e a promoção de uma transformação socio-política mais profunda (KONDER, 1992).

As histórias orais de vida aprofundam esta problemática através das experimentações de vidas, narradas (BENJAMIN, 2000), dando visibilidade à diversidade de modos de ser, estar e agir. Vamos colhendo elementos para a compreensão da comunidade enquanto práxis. Há um ritmo peculiar do trabalho: as narrações em presença, num coletivo, desenham uma memória possível, na qual um em comum dá condições para que uma transmissão aconteça.

Nossas reflexões se inspiram nas pesquisas que realizamos nas periferias do município do Rio de Janeiro, notadamente na comunidade da Mangueira, Papo de Roda. O Idoso conta sua história para o jovem para que este conte a sua (OZÓRIO, 2004a). Interessamo-nos por lugares onde se vive e se expõe a problemática comunitária.

A problemática da comunidade como práxis supõe um modo de pesquisar, a pesquisa-ação, na qual o pesquisador é um ator social e inter-age com os outros participantes, atores sociais, todos sujeitos do processo (ALTHABE, 2002). Muitas interferências, quotidianas, contribuem neste entendimento de pesquisa - processo que quer construir um convívio singular entre teoria e prática. A pesquisa-ação considera as análises das implicações dos envolvidos no campo de trabalho. A análise das implicações para a análise institucional (LOURAU, 1997; OZÓRIO, 2004) se conecta com a problemática da comunidade, nas suas proposições ética e política. Na análise do que somos e fazemos damos, pois, importância às conseqüências das nossas ações, em comum. Por outro lado, mais que interferir, implicar-se é, em muitos momentos, ter em conta um cuidado, o de exercer uma sensibilidade digamos, etnológica, ao modo de uma observação participante. Nestes momentos, o pesquisador interessado em comunidade, deixa-a acontecer, falar, se expressar. Assim, reforça o compromisso afetivo indispensável numa situação de pesquisa com comunidade, baseada numa compreensão sedimentada na convivência, no trabalho em comum (BOSI, 2003).

O Papo de Roda é nosso dispositivo utilizado para contar histórias de vida, instaurado pela comunidade da Mangueira, que se vive como práxis. O dispositivo é ferramenta, que mostra a implicação entre trabalhador social/pesquisador com os outros participantes no campo de trabalho. Lourau (1997) marca uma diferença na inflação semântica, capitalista, do termo dispositivo. Para o autor, há dois princípios fundamentais na teoria da implicação : um ético e outro instrumental, algo que se acrescenta à produção de conhecimento. Na análise das implicações, a escolha de dispositivos, o modo como são usados, ajudam num entendimento dos interesses com os quais o pesquisador/trabalhador está envolvido.

No Papo de Roda o narrador compartilha suas histórias (orais) de vida com um coletivo. Uma hermenêutica acontece então, que supõe implicações no sentido de se com-preender junto, em que são levadas em conta tanto as histórias de vida do narrador como aquelas dos que participam do processo (OZÓRIO, 2005).

No Papo de Roda contamos com a presença, nos reportando à H. Lefebvre (2001), dos irredutíveis ao controle capitalista. Estes, como resíduos, contra-forças deste sistema, potências constituídas no mundo, buscam se reunir, se fortalecer, forjar caminhos que não os das coerções neoliberais, de dominação informe mas com força. O pesquisador, com sua diferença, estabelece um vínculo de confiança e amizade com os participantes do Papo de Roda, que se traduz tanto nas aberturas de um bom encontro como num amadurecimento seu a partir das análises de suas implicações neste processo. Deste amadurecimento faz parte um compartilhar tanto a alegria da potência destas vidas, como também um sofrimento indizível quando convivemos com vidas marcadas pelas violentas desigualdades sociais.

O Papo de Roda se interessa por um processo, a comunidade, e pelo quotidiano de um lugar, o Morro dos Telégrafos, da Mangueira, no Rio de Janeiro. Trata-se de um lugar que se chama comunidade e que também é conhecido como favela (OZÓRIO, 2004a). Os moradores deste lugar compartilham histórias de vidas no Papo de Roda e dão pistas para um trabalho com comunidade. Na Mangueira o lugar é compreendido como produção histórica que tenta superar na dialética local-global um globalitarismo indiferente à diferença (SANTOS, 1998). O lugar, diferença, produz um tempo histórico na diversidade da escala global, dando a esta, com seus modos e formas de existir, uma forma empírica, concreta. Esta dialética dá pistas para que se conheçam modos de partilhar a diversidade.

Sabe-se de muitas teorizações e práticas nas ciências sociais que se interessam pelas tensões entre as diferenças. Em muitas, há um certo universalismo fundamentalista que recusa justo a diversidade de formas e modos de existência no mundo (NOUDELMANN, 2003). Há outras, como na política dita “multiculturalista” que apresenta um outro descaso pela diferença, atribuindo-lhe uma “natureza” essencialista (BAUMAN, 2003), que quer forjar uma reconciliação com a desigualdade. Considerar o lugar com sua diversidade é intervir em propostas tanto localistas como globalitárias, que não respondem às demandas políticas contemporâneas de comunidade. O lugar dá elementos para a construção de um global que se constrói processualmente na história a partir de um convívio entre diferentes.

Os habitantes do lugar contam suas experimentações de vida e a vida do lugar, em roda, num Papo, estabelecendo diálogos entre a história oral, notadamente as biografias e o campo social. Com isto buscam certas intervenções, subversões no que se convencionou como o que a história pode contar (THOMPSON, 2002). As histórias dos irredutíveis reforçam uma cultura que tanto dá importância à eternidade, à durabilidade e às conseqüências das ações humanas, como cria espaços-tempos heterobiográficos, com vidas se encontrando, se potencializando, convivendo com as diferenças e inventando outras histórias-vidas.

Cabe-nos então uma pergunta: quais os limites da restituição das histórias de vida? Ao intervir na suposta neutralidade do pesquisador, nosso dispositivo implica-o numa certa produção de verdades, múltiplas e não últimas, na qual o narrador colabora com o pesquisador na escrita e publicação destas histórias. Daí podermos dizer que os narradores têm autoridade sobre o registro de suas histórias e consciência de sua obra.

Nosso trabalho tenta afirmar um campo de não-pertencimento, o exercício de uma interdisciplinaridade que quer criar um novo objeto, que não pertença a ninguém. Utilizo mais um pré-método que um método, no sentido que lhe dá Barthes (2002). Trata-se de um modo de viajar entre blocos de saber, no qual a preparação dos materiais, em vista de um tratamento metodológico, é expansiva, aberta às possibilidades. Damos luminosidade à prática e ao discurso, privilegiando mais as fronteiras onde habitam os híbridos.

Para compreender os relatos, recorro às análises de Benjamim (2000) sobre o processo narrativo. A etnografia, a análise institucional, o movimento de educação popular, contribuições da psicanálise freudiana, os estudos culturais, as contribuições da historiografia, principalmente das histórias (orais) de vida e o saber local enriquecem um exercício da psicologia, funcionando como ferramentas cuja operacionalidade se relaciona com o campo de pesquisa no qual o quotidiano do lugar tem um papel fundamental.

A psicologia tem produzido muitos “guardiães da ordem” (COIMBRA, 1995). Apesar de Figueiredo (1992) entender que as concepções da psicologia emergem das ruínas da modernidade, esta tem apresentado resistências ao des-centramento. Muitas concepções e práticas psicológicas reproduzem centralismos, tipo de certezas alicerçadas pela razão iluminista, que quer promover o expurgo do caos. Interessamo-nos pelo exercício de uma psicologia mais comprometida com as mutações que com as preocupações identitárias-subjetivas. A subjetividade contemporânea pode ser problematizada com a práxis do comum. Nesta, ao invés da restauração da possível centralidade perdida, há a compreensão da subjetividade na comunidade que, como práxis, é, pois, processo de des-centramento.

Em vez de se preocupar com o contraponto clássico, indivíduo versus sociedade, a psicologia que se quer comunitária, busca as interferências neste/deste encontro, contribuindo para a concepção de um sujeito que processualmente se funda na história, faz a história, em comum. Os preocupados com os riscos da especialocracia questionam a, se assim podemos chamar, psicologia comunitária. Há os que preferem falar em psicologia social nas comunidades ou psicologia social comunitária. Há outros que problematizam a denominação comunitária, com a polissemia do termo comunidade, denunciando usos, abusos e seus atrelamentos à histórias da dominação e reprodução social (HOBSBAWM, 1994). Interessamo-nos pelo encontro psicologia-comunidade. A denominação psicologia comunitária é complexizada, posto que se situa na proposição de um regime interdisciplinar de saberes-práticas que quer intervir em disciplinas e/ou denominações com atrelamentos que dificultam intervenções nos instituídos sociais. Tudo é perigoso, principalmente quando se quer estabelecer conexões de idéias e práticas generosas a serviço do mundo.

A psicologia comunitária, ao transitar pelos caminhos da interdisciplinaridade, afirma um campo de não pertencimento (BARTHES, 2002). E aporta à psicologia social um modo singular no lidar com a diversidade na práxis, e não uma especificidade a serviço da pulverização capitalística, que quer cada vez menos a ação em comum. É preciso considerar os limites de toda produção de conhecimento, seus riscos de institucionalizações e seus utilitarismos nas práticas de formação. Mas podemos buscar modos de fazer alianças com a singularidade do devir. São tentativas, no sentido de experimentar a força da comunidade. Trata-se mais de uma estratégia política do que de erigir um campo de saber, estratégia que aposta na transitoriedade histórica que no momento, parece, demanda comunidade.

 

Comunidade como práxis aberta da existência

Sobre a união dos resíduos do capital numa práxis que problematiza a comunidade, é importante lembrar Amelinha, pensadora-atora da Mangueira: “[...] Aqui tem união, mas tem muita coisa diferente... Dá pra entender?[...]” (OZÓRIO, 2004a, p. 15).

Estes resíduos, como diz Amelinha, como potências a partilhar no mundo, com suas diferenças, provocam efeitos, convocam manifestações em espaços-tempos diversos, “[...] em movimento vital comum que tende, pelo fato de viver junto, a ampliar os domínios das atividades (interesses) que são partilhados ou que são capazes de o ser. [...]” (AGAH, 2001, p.2). Para este autor, como para Amelinha, a comunidade se processa, se manifesta ou promove aberturas às manifestações e assim afirma a importância da práxis no campo social. Ela é um real que tem sua verdade, transitória certamente, mas que uma realidade pretensamente dada quer negar. Comunidade é alguma coisa que resta em aberto. É então a luta de um povo que afirma seu querer comum que é “ [...] o fazer vir, justamente, o comum de uma reivindicação e declará-la num espaço aberto, sem qualidade particular, comum. Manifestá-la ou deixá-la se manifestar. [...] mas realizar esta reivindicação. Realizar o querer comum [...]” (AGAH, 2001, p.1).

O pensamento de Agah não relaciona comunidade a proposições identitárias, substanciais e permite que se pense um comum como práxis, como potência existencial a partilhar, que coloca em comum o que não é comum. A compreensão de um em comum que se faz, que vem, implica na compreensão da existência, ela mesma como um compartilhar, comumente. Se se trata de um compartilhar o que não é comum, ou melhor, do que é em comum, o autor se refere a um tecido dissensual do comum que leva a se pensar na articulação da diferença, desde os irredutíveis, como uma articulação complexa feita de “[...] procedimentos de inclusão do excluído e de por em comum o não comum.[...] ” (RANCIÈRE, 2003, p. 87). Pode-se dizer que a comunidade tem uma chance comum de se superar, não se constituindo numa estrutura fechada, como identificação, como fusão. O em comum, nas suas manifestações, não hipertrofia a diferença como nas proposições essencialistas. E suas tensões, seus conflitos evitam que se caia na mítica da boa comunidade. A co-existência não é unificação.

A importância da práxis no campo social nos remete a resistências quotidianas, residuais, aos sistemas constituídos. Tais resistências, com seu quê de irredutibilidade, podem fazer insurreições, ser elementos de anti-poder que podem contribuir para uma outra formação social, alternativa.

Nas nossas experiências de pesquisa com as periferias do Rio de Janeiro constatamos que seus moradores se apropriam do termo comunidade para denominar o lugar em que habitam. A denominação favela é empregada por estes em momentos particulares. Em geral, não gostam desta denominação empregada na maioria das vezes para reproduzir a segregação a que estão expostos, mas contra a qual se rebelam, não aceitando serem então chamados de favelados. Esta apropriação contribui para a compreensão da problemática da comunidade enquanto produção histórica (OZÓRIO, 2004; 2004a; 2005).

Segundo Doimo (1995, p. 88), a “comunidade cai na boca do povo” a partir de 1975, quando o movimento social fazia frente ao período ditatorial da história brasileira, que perseguia diversas formas organizativas da sociedade. Os movimentos sociais se apropriaram da comunidade, buscando a transformação social. Os que estavam acostumados a entender os conflitos sociais em termos de lutas de classe em relação à apropriação do trabalho pelo capital, começaram a ter uma compreensão da comunidade como lugar das relações de reprodução da existência (consumo), dada a precariedade das condições de vida. Sader (1988) ressalta uma pluralidade de movimentos associativos que colocam personagens novos em cena, no panorama nacional. A comunidade entendida pelo socialismo científico como o lugar do consenso, da homogeneidade, passa a ser um lugar das tensões do processo histórico.

Porém, é importante aqui retomar uma compreensão marxista do comum. “O comum diferencia” lembra Negri, (2003, p. 226), revisitando Marx. Pode-se falar de uma ruptura prática, uma ruptura com eventuais confusões e indiferenciações ambíguas. No comum há as forças e formas hegemônicas, mas também as forças e formas da não-conformidade, que buscam mais visibilidade no processo.

Negri (2003 p. 226) diz que “[...] a cooperação lingüística é o modelo da produção pós-moderna...”, afirmando que através da linguagem surgem novas forças e formas de cooperação. A denominação comunidade escolhida por estes “novos personagens em cena” explicita um modo de cooperação, um processo comunitário que se faz e identifica assim a recuperação da denominação favela pela discriminação do capital (OZÓRIO, 2004). Um em comum afirma a comunidade na favela, intensificando sentidos ligados a processos de liberdade e compartilhamento. Além disso, denuncia a violência do capital que quer criminalizar a pobreza e esvaziar toda a história de lutas, resistências e insurgências da favela. Esta apropriação da comunidade pelo movimento social nos remete a Nancy (2001), quando afirma que comunidade serve a múltiplos sentidos, mas a apropriação deste sentido só pode acontecer na comunidade e como comunidade.

Este comum que diferencia porta uma dimensão crítica que se constrói com a práxis real da existência, que se faz desde dentro dos fluxos de produção do capital. Por um lado, aporta à favela a denominação de comunidade. Por outro, busca a superação da velha dicotomia asfalto-favela, que hipertrofia a diferença e ratifica a desigualdade. Nesta superação, a força do comum explicita o precário das condições de vida, as desigualdades sociais, a violência institucionalizada e híbrida e revira os confins e limites políticos.

A centralidade da práxis de comunidade abre uma via de acesso à vida quotidiana em seus diferentes momentos. O quotidiano assume sua importância na prática social e sua potência de micro-revolucionar. Nele estão presentes resistências e saídas face à dominação, a instauração de espaços-tempos criadores. No entanto, nele há também a presença de formas e forças hegemônicas que querem a reprodução das desigualdades sociais.

O conceito de momento (LEFEBVRE, 1962) favorece o entendimento dos diferentes momentos de comunidade, no quotidiano, abrindo uma perspectiva da superação do sujeito e da história. O momento inscreve o homem num espaço e num tempo; tem uma forma que cria um tempo e um espaço objetivo (socialmente regulado) como também subjetivo (do sujeito e entre sujeitos) e comunitário. O conteúdo do momento vem da vida quotidiana. Ele marca a relação do homem com o real, a reabilitação do sensível e ao mesmo tempo revela as mediações que realiza. As circunstâncias da conjuntura, o contingente e o acidental são integrados no momento. A urgência do momento e seus aleatórios, os acasos circunstanciais fazem parte deste enquanto duração. A diversidade dos momentos é imanente ao aqui e agora da vida quotidiana na qual a comunidade acontece. Através destes a história se faz, a comunidade se atualiza e se potencializa, constrói um infinito na plural poliritmia do socius. O infinito? Ele é a banalidade de toda situação e não o predicado de uma transcendência. Na vida quotidiana há lugar para toda situação, para diferentes modos de expressão do comum.

 

As histórias orais de vida e seus diálogos com a comunidade

Tratamos de uma singularidade na historiografia: a minoritária história (FOUCAULT, 1982), que funciona como uma contra-memória que quer “[...] fazer da história um uso que a liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo metafísico e antropológico da memória. Trata-se de [...] descobrir conseqüentemente toda uma outra forma de tempo [...]” (FOUCAULT,1982, p.33).

Interessamo-nos pelas transmissoes possíveis pela via do compartilhamento. A problemática das histórias orais de vida de diversos grupos e comunidades, como uma exigência de produçao da memória coletiva tem sido pensada por Jo Coulon e Le Grand (2000); Pineau e Le Grand (1993). O interesse dos autores por relatos das minorias que falam do quotidiano, das suas lutas, de “[...] um social profundo [...]” (JO COULON; LE GRAND, 2000, p. 10) mostram sua preocupaçao com a transformaçao social. No entanto, a análise de modos de produçao que eles chamam de co-produçao, através das histórias de vida, apresenta limites e desafios, denotando um processo teórico ainda em construçao.

Na nossa temática, as histórias (orais) de vida, compartilhadas, são narradas num coletivo. Benjamin (2000) faz uma interessante distinção entre vivência e experiência. Como ele diz, a vivência (erlebnis) oferece um contato singular com o que se vive, com o que se sente, com o que se pensa. Porém é preciso que se criem condições de transmitir e de narrar o que se vive para que estas vivências se constituam numa erfahrung (experiência). Narrar é, pois, um modo de legitimar a vivência que se transforma em experiência. É a vivência que se abre ao mundo, buscando um processo de compartilhamento.

Contar histórias de vida é uma arte. Narrar experiências de vida é um modo de fazer frente ao declínio da arte da narração. Benjamim (2000) adverte para o poder da informação, decisivamente responsável por esse declínio. Como diz, as “histórias surpreendentes” estão escassas. Já no seu tempo, Benjamin atentava paro o que Santos (1998) chama de o autoritarismo da informação.

A narração como experiência subjetiva dá acesso a sentidos múltiplos da vida. Narra-se o que faz sentido ou não, mas busca-se um sentido, no momento da narração (BOSI, 2003). Pode-se falar de uma etnografia histórica destes sentidos, que podem pro-vocar (pro-vocare) invenções de si mesmo e do outro. Daí a dimensão heterobiográfica das histórias de vida, notadamente as biografias e seus diálogos com o campo social (OZÓRIO, 2004a). A atividade biográfica apresenta-se então não só como processualidade psico-sociohistórica, mas também como dispositivo importante de construção da realidade social (DELORY-MOMBERGER, 2003). Esta compreensão é trabalhada também por Thompson (2002), quando analisa os efeitos cumulativos da pressão do sujeito pela mudança social.

Tratamos de histórias de vida contadas num coletivo, de histórias de vidas compartilhadas. A narração para o outro ajuda a experimentarmos nossa construção biográfica e o ajuda a construir a sua. Esta implicação mútua na narração aponta para uma hermenêutica das histórias de vidas que intervém nas egolatrias da sociedade de mercado. As múltiplas interpretações deste com-preender (no sentido de compreender junto) favorecem a diversidade de sentidos, dos não- sentidos e abrem para o fragmentado da vida com suas verdades e coerências transitórias.

As experiências narradas, as significações dadas, podem ter relação com uma ordem da comunidade (Gemeinsamkeit), entendida como um compartilhar que é exteriorizado sob a forma de signos comuns (DELORY-MOMBERGER, 2003). Podem exprimir momentos de solidariedade única, um entendimento tácito (BAUMAN, 2003) muito diferente de um consenso que justo implica num acordo no qual as diferenças são subsumidas. A narração em presença supõe uma comunicação possível que Levi (1997) denomina comunidade de comunicação, enfatizando o ato dialógico na interpretação do material biográfico.

Por outro lado, a narração em presença do outro é um momento das histórias de vidas, supondo a diversidade em jogo, da vida que é contada em comum. Um quotidiano e seus momentos, vividos e contados, tecem linhas de fuga. Narrar histórias de vida em presença são transmissões possíveis pela via do compartilhamento, na diversidade. A comunidade que aí acontece denota um trabalho de reflexão e localização em presença com o outro. Pode-se falar de práxis, compartilhando narrações de histórias de vida? Narrar é mais do que recordar, ou é um recordar singular. Narrar em comum é mais uma singularidade neste recordar. Há aí um re-fazer a vida, em comum, um re-fazer em comum muitas histórias de vida. Narrar histórias de vida em comum é então práxis na/da diversidade, com a tensão entre os modos de agir-lembrar em presença.

Nestas narrações não há reconciliações, impossível não constatar a opressão e sua gênese. Impossível de nelas não se perceber as resistências quotidianas, irredutíveis, em diferentes momentos de vida. Nas narrações compartilhadas há os resíduos, forças que buscam se re-juntar, ocupar espaços-tempos, criar momentos possíveis de alianças para afirmar na práxis “[...] um mundo mais real e mais verdadeiro que o das potências especializadas.[...]” (LEFEBVRE, 2001, p. 31). Aliás, um compartilhamento de existências forja espaços-tempos heterobiográficos trabalhados pela comunidade que se faz.

 

O Papo de Roda e a riqueza de um dispositivo: um comum experiencial que se faz

Como dar condições para que uma vivência (erlebnis) de comunidade possa se constituir numa experiência (erfahrung)? É preciso que haja condições de transmitir e de narrar o que se vive (BENJAMIN, 1985). De que dispositivos dispomos?

O Papo de Roda é um dispositivo inventado pela Mangueira para compartilhar experiências de vida. Como tal, explicita uma característica da pesquisa-ação que considera significativo para a produção do conhecimento a imanência e a contingência das práticas no campo social. Temos então no campo de pesquisa uma articulação peculiar entre saberes e práticas, pois, à medida que se constitui como espaço-tempo para a narração de histórias de vida em comum, atualiza e potencializa modos de fazer comunidade, dando portanto elementos, para que se a compreenda como práxis (AGAH, 2001). Acompanhamos a comunidade como processo nos seus momentos (LEFEBVRE, 1962). Nesta problemática, o lugar é o ator privilegiado. Se Amelinha fala da riqueza dos conteúdos das diferenças que se potencializam e se intensificam na práxis da comunidade, Silvina, outra moradora da Mangueira, mostra uma singularidade destas vidas em comum: “[...] então é essa cumplicidade que eu tô te falando, entendeu? [...] Essa cumplicidade é que fortalece; nós seríamos dizimados com certeza sem isso aí. O poder público não está nem aí pra gente, não fazem nada, nada, nada.[...]” (OZÓRIO, 2004a, p. 15).

Silvina e Amelinha falam da comunidade nas comunidades, numa práxis insistente em partilhar histórias, existências irredutíveis e fornecem elementos para que se possa compreender a aliança das histórias de vida com o campo social. Reforçam a idéia de que toda memória é antes de tudo memória social.

Celso, nosso mestre-aprendiz do Morro dos Telégrafos, quando propõe o “Papo de Roda. O Idoso conta sua história para o jovem para que este conte a sua”, quer dar visibilidade às histórias destes espaços do aproximativo (SANTOS, 1998). Com isto, pretende provocar agenciamentos, subversões, no que se convencionou como o que a história pode contar. Ele propõe que as pessoas idosas e os jovens do lugar contem em comum suas histórias de vida. E, se possível, acrescenta, as publiquem. Esta demanda dá nome à nossa pesquisa (OZÓRIO, 2004a). A demanda, para a análise institucional, supõe uma vontade de potência daquele que a faz (OZÓRIO, 2004).

Aliás, é oportuno marcar que o Papo de Roda é demandado num momento difícil do lugar, em que seus moradores enfrentavam uma conjuntura político-social local e no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2003, complexa, violenta (DUTRA, 2003; ARAÚJO, 2003). O número de pessoas mortas em confronto com a polícia neste ano aumentou em cerca de 50%, assim como o número de cadáveres encontrados foi 40% maior (THEOPHILO, 2003). A comunidade da Mangueira foi várias vezes invadida pela polícia, que desenvolvia o programa de intervenção nas comunidades, da então Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, contra o tráfico. No meio de tudo isso, a instabilidade do momento, com várias nuances, ora de ameaça, ora de medo, de angústia, ora de revolta, tomou conta de muitos moradores do Morro dos Telégrafos.

O Papo de Roda é marca deste momento da resistência comunitária que atravessa o processo da pesquisa. Mostra um movimento de uma comunidade que vive a comunidade e é espaço – tempo aberto onde se faz comunidade. Como tal, é um modo de enfrentar a discriminação e a criminalização da pobreza que atravessam o quotidiano da Mangueira. Nele há a manifestação de um querer comum : as histórias dos moradores da Mangueira serão contadas por eles mesmos, para o lugar, para a cidade, para o mundo. Celso esclarece mais esta demanda: “[...] A gente vai contar as histórias das rezadeiras, das criadoras de porco, das verdureiras (....). A gente vai contar as histórias da gente daqui. A Mangueira está precisando disso. Pessoal pensa que Mangueira é escola de samba ou marginalidade. Tem no meio disso aí toda a comunidade, que ninguém conhece [...]” (OZÓRIO, 2004a, p. 24).

Esta demanda do lugar define um dos fundamentos antropológicos da história de vida coletiva: a necessidade de reconhecimento (LE GRAND, 2000). Neste momento difícil de sua história, o lugar quer um devir em que a durabilidade, as conseqüências de suas ações, a eternidade, sejam consideradas. Por outro lado, o Papo de Roda como obra local explora outros possíveis, outros caminhos heterobiográficos. E abre a pesquisa para momentos ímpares de observação participante que, atenta à contigüidade como critério de observação fina, sensível aos movimentos comunitários, opta por uma visão metonímica do conhecimento, não só nos seus primeiros e indispensáveis estágios, mas em outros também.

Ocorre-me enquanto escrevo, dois testemunhos deste processo. Um do Celso que dizia : “... para trabalhar em comunidade é preciso gostar” (OZÓRIO, 2004-a, p. 45). E outro feito por mim, justamente quando enfrentava as grandes dificuldades conjunturais para desenvolver a pesquisa, no momento que resultou no Papo de Roda. Dizia para meus pares, analisando minhas implicações, que o trabalho de pesquisa em comunidade é extremamente complexo, difícil, um campo singular que exige da pesquisadora uma resistência similar ao das comunidades quando enfrentam tantas exclusões.

Celso costuma dizer que o Papo de Roda guarda analogia com a Roda de Samba, cultura do lugar. A Mangueira é uma comunidade antiga no Rio de Janeiro, cuja história começou em 1862. Seus primeiros habitantes, sofrendo muitas exclusões, vieram da Mãe África, trazendo a cultura do jongo, dos tambores, como conta D. Maria de Lurdes nas suas histórias (OZÓRIO, 2004a). E a Roda de Samba é tradição que vem destes tempos. Um dos berços do samba no Rio de Janeiro, a Mangueira tem mostrado modos desta tradição se fazer presente na vida dos seus habitantes, na cidade e no mundo. A participação dos presentes, o ir e vir nas lembranças das experiências de vida, os comentários e associações que estas suscitam, a abertura para as interferências do/no lugar, mostram que o Papo de Roda tem a liberdade de um tempo próprio para acontecer, cadenciado pelo tempo do lugar, lento e poético, instaurador de muitas histórias em comum. Dá um pouco de eternidade às lutas comunitárias, sem se separar da história geral e da vida social. Sua “lentidão” através de histórias-vidas que insistem, é algo que resiste à velocidade global, que quer postergar a vida dos pobres e deixá-los numa zona de exclusão favorável à circulação do capital. Este tempo lento intervém no tempo veloz capitalista e mostra um modo peculiar do mundo se movimentar no local (SANTOS, 1998; OZÓRIO, 2004; 2004a). Pode-se dizer que no Papo de Roda o lugar dá pistas para a comunidade no mundo. Lentamente. Se ali as histórias de vida contam o horror e o alívio da tragicidade das vidas vividas em zonas de exclusão, mostram também a liberdade e a alegria como ato insurgente da manifestação comunitária.

Temos acesso a uma memória possível, à criação de condições para que uma transmissão aconteça. As histórias seguem o ritmo da vida possível construída nos relatos, re-inventando o indivíduo, abrindo-o ao outro, mas também re-inventando subjetividades sensíveis à praxis de um comum experencial. Se há uma dimensão subjetiva da experiência que escapa à pura objetividade, há também a práxis de sua hibridização pelo comum, que se faz no quotidiano da experiência em comum, sem preocupação em produzir a unidade dos antagonismos e das contradições. O comum como experiência pode funcionar como designação liberadora, não substancial.

Para tal, denota um convívio peculiar com as diferenças em jogo no processo. Mas isto de modo singular. Na demanda de uma relação dialógica entre as pessoas presentes no papo, notadamente entre as pessoas idosas e os jovens, trazia-se para a discussão uma condiçao fronteiriça do ato comunitário: o lidar com as fronteiras entre as diferenças. No quotidiano da Mangueira, com o Papo de Roda, propõe-se o diálogo peculiar entre geraçoes (OZÓRIO, 2004-a): trata-se de um diálogo através das narrações. Um certo entendimento de trabalho intergeracional vai-se então explicitando no processo, sendo cada vez mais compreendido como um trabalho em comum. A comunidade como campo da diversidade se interessa pela trama nos insterstícios. Há um trabalho complexo de inclusão do não comum no comum. A articulaçao complexa da diferença impede o consenso, tentativa de desfazer o tecido dissensual do comum (BHABHA, 2003; RANCIÈRE, 2003). Assim, desfaz-se a mítica da boa comunidade. Busca-se sua desconstruçao na sua versao teleológica, substancial. Afirmamos a diversidade, cuidando para que as diferenças nao sejam hierarquizadas e mostrem os percursos, passagens e paradoxos dos modos do comum se fazer.

Na pesquisa, as claras passagens geracionais e suas faixas etárias foram se diluindo cada vez mais. Se houve uma preocupaçao com o ser jovem e as intensidades que provoca no tecido social (CANEVACCI, 2005), houve também uma preocupaçao com a sobrevivência das obras comunitárias e a conseqüência da açoes humanas contadas pelos idosos, mas não só por eles, que intervêm na modernidade líquida que pouco dá chances para as açoes em comum (BAUMAN, 2001; 2003). Este entendimento intervém na segregaçao do capital, que reforça o conflito entre geraçoes. Velhice é mais uma conseqüência da luta de classes que do conflito entre geraçoes (BOSI, 2003 ; OZÓRIO, 2004-a; 2005).

Há dois momentos na pesquisa que podem ser considerados analisadores desta intimidade intersticial de que tratamos: quando o Comandante, de 92 anos, testemunha no seu relato: “Eu sou como o vento, eu não volto, eu vou sempre em frente” (OZÓRIO, 2004a, p. 40) e quando da criação do Grupo Renascer pelos jovens.

No Papo de Roda o Comandante relata momento de diferença entre ele e seus pais, que o levou a sair de casa e como disse, não mais voltar. Vitor, um jovenzinho de 12 anos, que chupava ainda o polegar, vivendo claramente as fronteiras entre ser jovem e ser criança, pergunta-lhe se não se arrependeu do que fez. Foi quando o Comandante lhe dá esta resposta, afirmando para os jovens a condição heterobiográfica da vida e seus embates entre diferenças que mostram momentos nada tranquilos na construção de um em comum.

A criação do Grupo Renascer afirma outra maneira de fazer o dissenso, através de modos inovadores de colaboração e contestação. A demanda de espaço-tempo próprio por parte dos jovens não impede que continuem em comum com as pessoas idosas no Papo de Roda. É demanda que explicita a riqueza e as vias possíveis de um diálogo entre diferentes, entre gerações. Se o dissenso cria o Grupo Renascer, afirma também uma vontade de comunidade: a ampliação da práxis (OZÓRIO, 2005). Os jovens do Renascer querem alçar devires, querem dar um estatuto de experiência às suas vivências, querem libertá-las da discriminação e criminalização da dominação capitalista (BENJAMIN, 2000). Com isto mostram laços entre experiência e imaginação, laços que tramam pelo desejo, convocando sua realização. Por outro lado, este grupo é analisador dos inúmeros re-nascimentos da comunidade da Mangueira. A re-encenação do passado, nas histórias de vidas em comum, cria outros espaços-tempos, infinitos, de comunidade. O passado se afirma como diferença no presente, para o combate (FOUCAULT, 1982).

Como analisadores de um processo de comunidade, o Papo de Roda como o Grupo Renascer abrem-se a múltiplos sentidos, aportando elementos para a compreensão da operação de subjetivação comunitária, que encoraja a uma espécie de desconstrução da comunidade substancialista, identitária. As vicissitudes desta práxis no mundo contemporâneo faz pensar no que diz Foucault (1982) sobre a historicidade de nossos dias, muito beligerante. Se comunidade está esvaziada de seu sentido como diz Hobsbamw (1994), dada a inflação semântica do termo, acho-a por outro lado palavra bastante provocante no mundo atual. Ela afirma o paradoxo, a contradição, os impasses da relação entre, mas também a presença de um calor vivo da práxis na/da diversidade que um em comum provoca. Estamos num campo onde habitam os híbridos. É um processo de produção ou criação de si e do outro, que possui elementos heterogêneos, matérias diversas e múltiplos vetores de existencialização. A comunidade coloca em questão o paradoxo de viver junto, que supõe uma ética do em comum, colocando-nos mais um problema que uma solução. Mas não deixa de ser tentador pensá-la como dispositivo da política, tendo as histórias orais de vida em comum como aliadas desta práxis.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: lucozorio@gmail.com

Recebido em: 02/05/2006
Aceito para publicação em: 02/02/2007

 

 

Notas

* Psicóloga, Socianalista. Doutora em Psicologia Social pela Universidade Paris 8, França – revalidação Universidade Estado do Rio de Janeiro.

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