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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Perls leitor de Freud, Goldstein e Friedlaender e os primeiros ensaios em direção a uma psicoterapia gestáltica

 

First essays towards a new Gestalt psychotherapy – Perls&#';s readings of Freud, Goldstein and Friedlaender

 

 

Marcos José Müller-Granzotto*, I; Rosane Lorena Müller-Granzotto **, II

I Professor Doutor do Departamento de Filosofia e dos Programas de pós-graduação em Filosofia e em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
II Coordenadora do curso de Especialização em Gestalt-terapia no Instituto Gestalten – Florianópolis,SC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo investiga o modo como, nos anos 30 e 40, Frederick Perls procurou estabelecer uma releitura da prática e da metapsicologia freudiana, partindo das contribuições que, por meio de Goldstein, reconheceu nas obras dos psicólogos da Gestalt e do filósofo Salomon Friedlaender. Tal releitura ensejou a primeira formulação daquilo que, mais tarde, Perls viria a chamar de Gestalt-terapia.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicologia da gestalt, Holismo, Indiferença criativa.


ABSTRACT

This article investigates the way, between 1936 and 1946, Frederick Perls tried to establish a re-reading of the practice and of the freudian meta-psychology, starting of the contributions which, by means of Goldstein, recognized in the works of Gestalt Psychologists and of the Philosopher Salomon Friedlaender. Such reading enabled the first formulation of what, later, Perls would call the Gestalt-Therapy.

Keywords: Psycoanalisis, Gestalt psychology, Holism, Creative indiference.


 

 

1. Introdução: as intenções programáticas de Perls nos anos 30 e 40

No Brasil, a obra Ego, Fome e Agressão (PERLS, 1942) começou a circular em língua portuguesa muito recentemente, com a ótima tradução estabelecida por Georges Boris, em 2002. Outros textos, principalmente o livro de fundação da abordagem que leva o mesmo título, a saber, Gestalt-terapia (1951), já eram conhecidos pelos leitores em nosso vernáculo. O que explica a ilusão retrospectiva, compartilhada por muitos desavisados, de que a obra de 1942 é um texto de Gestalt-terapia. É certo que nela podemos encontrar, distribuídos pelas suas três partes (Holismo e Psicanálise, Metabolismo Mental, Terapia da Concentração), os mesmos conceitos que podemos ler em obras posteriores. O elogio a Goldstein, a incorporação crítica de alguns termos advindos da Psicologia da Gestalt, algumas críticas endereçadas às duas tópicas freudianas estão já ali presentes; sem a envergadura fenomenológica da obra de 1951, mas, ainda assim, em afinidade com ela. Entretanto, nenhum formador em Gestalt-terapia consegue disfarçar o mal-estar ante a ostensiva referência de Perls a Freud, a começar pelo subtítulo do livro: “(u)ma revisão da teoria e do método de Freud”. Ou, então, ante as referências a autores acerca dos quais, nas obras a seguir, Perls se cala: J. C. Smuts e Salomon Friedlaender, especialmente. O que afinal, eles têm a ver com a Gestalt-terapia? Conforme nossa interpretação, se é difícil compreender algumas passagens da obra Ego, Fome e Agressão a partir do que seu autor veio a produzir tempos depois, pelo mínimo, a compreensão dessa obra a partir do que se apresenta nela mesma pode acrescentar algo àquilo que, nas obras a seguir, não está assim tão explicitado: o que levou Perls a conceber, mais além da psicanálise – o que também significa dizer, a partir dela – uma psicoterapia gestáltica? Quais aspectos, precisamente, põem em comunicação a obra de Freud e a de Goldstein?

Como sabemos, o contato de Frederick Perls com noções advindas da Psicologia da Gestalt deu-se muito cedo, já em 1926, bem antes da fundação da Gestalt-terapia. Naquele ano, o então psiquiatra Friedrich Salomon Perls foi admitido como assistente no Hospital Geral de Soldados Lesionados em Frankfurt, quando passou a usufruir a parceria estabelecida entre seu superior - o neurofisiologista Kurt Goldstein - e o psicólogo da Gestalt Adhémar Gelb. Este era assistente de Wölfgang Köhler e especialista na investigação de distúrbios da fala, como as afasias; nestas, Goldstein, por sua vez, também estava interessado. É verdade que, em 1926, Perls encontrava-se muito empenhado em sua formação como analista. Mas, nem por isso, deixou de participar dos cursos ministrados por Gelb e seus alunos, dentre eles Lore Posner, com quem mais tarde Perls veio a se casar. Também participava dos seminários, nos quais pôde assistir às tentativas de Goldstein para importar, da Psicologia da Gestalt, categorias que ajudassem a pensar a “patologia” de um modo holístico, como uma forma especial de integração entre o organismo e o meio. O que, ainda assim, não foi motivo para Perls se empenhar em um projeto de psicoterapia gestáltica, tal como aquele concebido, anos mais tarde, juntamente com Lore Posner (então Laura Perls), Paul Goodman, Ralph Hefferline dentre outros.

Antes de 1951, as reflexões de Perls (1942) visavam outra finalidade: elas projetavam a consecução de uma profunda reforma na metapsicologia freudiana, haja visto o fato de esta permanecer presa a um modelo - senão ontológico ao menos epistemológico -, que desconsiderava aquilo que, na avaliação de Perls, era a principal descoberta clínica de Freud, precisamente: a inalienabilidade das pulsões1, entendidas como “essa orientação ambígua”, que se manifesta a partir de meu passado, como minha paradoxal forma de ligação com o mundo presente; mas que a metapsicologia descrevia como se fosse o efeito conflituoso de uma ausência, da ausência de um objeto de satisfação originário, o qual não teria ligação alguma com a atualidade da situação, com a atualidade de minha existência organísmica. Por conta disso, Perls (1942, p.44) vai afirmar que a psicanálise é censurável:

a) no tratamento dos fatos psicológicos como se eles existissem isolados do organismo;
b) no uso da psicologia linear de associação, como base para um sistema quadridimensional [formado por id, ego, ideal de ego e superego];
c) na negligência do fenômeno da diferenciação [acerca do qual dissertaremos logo a seguir].

A seu modo, Perls reconhecia, nos esforços de Goldstein para assimilar alguns conceitos advindos da Psicologia da Gestalt (destacadamente os conceitos de ‘campo&#'; e a dinâmica ‘figura X fundo&#';), o interesse por aquilo que ele próprio, por outros meios, especialmente a partir dos cursos ministrados pelo amigo e filósofo Salomon Friedlaender na Escola Bauhaus, havia compreendido a respeito do funcionamento psíquico, a saber: que os comportamentos não são o efeito quase mecânico do passado sobre o presente, mas a “expressão” de uma dialética espontânea que, a seu modo, Friedlaender denominou de “indiferença criativa”. Perls, em algum sentido, achou que a noção de indiferença criativa poderia esclarecer o esforço de Goldstein para pensar, a partir dos conceitos gestálticos, uma sorte de intencionalidade organísmica e mundana, que faria de meu corpo e de minha participação na natureza, de minhas pulsões e de minha participação na história, uma espécie de comunidade holística – o que não significa dizer ‘harmoniosa&#';, como bem atestam as patologias. Eis em que sentido, na obra Ego, Fome e Agressão (1942, p. 44), Perls pode propor, não ainda como uma clínica gestáltica, mas uma espécie de “terceira tópica”, uma psicanálise reformada:

a) substituir um conceito psicológico por um organísmico;
b) substituir a psicologia da associação pela Psicologia da Gestalt; e
c) aplicar o pensamento diferencial, baseado na ‘Indiferença criativa&#'; de S. Friedlaender.

O presente artigo é uma tentativa de articulação entre esses referenciais aparentemente incomunicáveis e que se prestaram como base teórica para o futuro surgimento da Gestalt-terapia.

 

2. Da crítica à metapsicologia freudiana à “terapia da concentração” na “awareness

Em rigor, Perls (1942) considerava que a compreensão de Freud a respeito das doenças psicogênicas estava correta. “Uma neurose faz sentido” e “(o) papel dos instintos e do inconsciente é enorme”2 (p. 133), não obstante sua discordância sobre o significado desses termos. Ademais, Perls consentia que a neurose fosse o resultado do “conflito entre organismo e ambiente”. Mas, “Freud superestimou a causalidade, o passado e os instintos sexuais e negligenciou a importância da intencionalidade, do presente e do instinto de fome” (p. 133). Conforme Perls, Freud não conseguiu se desvencilhar do ideal de ciência, segundo o qual todas as ocorrências fenomênicas exprimiriam, de forma parcial, uma objetividade remota, que as causaria, e que o trabalho científico haveria de resgatar.

No caso dos sintomas psicopatológicos, ocorrências lacunares da linguagem e do comportamento - para as quais não se pode determinar uma causa orgânica específica -, elas não seriam, conforme a leitura que Perls faz de Freud, mais do que o efeito de um conflito, que estruturaria a personalidade desde o passado: a saber, o conflito entre as pulsões de vida e de morte. Por um lado, haveria as pulsões de vida, as quais compreenderiam as pulsões de objeto (que são os representantes de uma experiência de satisfação e que retornariam da camada mais arcaica da personalidade, a saber, o “id”, em busca de um novo objeto de satisfação); e as pulsões de autoconservação (que são as mesmas pulsões de objeto, mas sublimadas em ideais sociais governantes desse desdobramento tardio do “id”, que é o ego). Por outro, haveria as pulsões de morte (que compreenderiam uma tendência do psiquismo para “repetir” não a experiência de satisfação, mas o objeto primitivo perdido, o que forçaria o psiquismo a ir sempre além dos objetos de prazer e dos ideais, sempre além das pulsões de vida). A sua vez, os sintomas não seriam mais que os esforços do ego para evitar, no presente, a reedição do conflito advindo da dupla orientação assumida pelo psiquismo desde o passado, ora em busca de um novo objeto (ou ideal) de satisfação, ora em busca de um objeto perdido: pulsão de vida e pulsão de morte, respectivamente. Caberia ao ego suprimir uma pulsão em proveito da outra, de modo a viabilizar, no presente, uma dentre as tendências às quais o psiquismo como um todo estaria submetido desde o passado. O que significa que, para Freud, conforme a leitura de Perls, nosso presente estaria totalmente determinado por aquilo que aconteceu no passado (a perda ou recalque de um conteúdo primitivo, que deveria ser substituído ou reencontrado). Não apenas isso, o ego – essa função central de nossa inserção organísmica no meio – não teria mais o que fazer, senão censurar conteúdos (alguns deles da ordem da realidade, outros da ordem do que é ideal e outros da ordem daquilo que se perdeu para sempre).

Para Perls (1942), a consideração freudiana do funcionamento psíquico confunde o que é da ordem do ato e o que é da ordem dos conteúdos. Na linguagem de Perls, Freud confunde as “mercadorias” a serem pesadas e a “balança” enquanto tal (1942, p. 161). É certo que, em todos os processos psíquicos, se pode observar, em graus variados, uma orientação de unificação (ou incorporação de uma novidade) e outra de destruição das partes envolvidas (talvez em proveito, mas não como conseqüência daquilo que se perdeu). Tais orientações corresponderiam aos “pratos da balança”. Tal não significa que a unificação e a destruição sejam os conteúdos desses processos (as “mercadorias” que estão sendo pesadas). Menos ainda, que os conteúdos envolvidos tenham necessariamente relação com um objeto de satisfação perdido ou com um objeto que o venha substituir. Conforme Perls (1942, p. 56), na autodefesa, por exemplo, minhas dinâmicas são eminentemente destrutivas, mas a destruição não é o conteúdo da minha vivência, tampouco o conteúdo envolvido nessa experiência corresponde a uma tentativa de resgatar algo já aniquilado. O conteúdo envolvido se relaciona com a configuração de uma ameaça material ao meu equilíbrio organísmico atual (homeostase), ameaça esta à qual, portanto, procuro vencer, destruindo-a. Na afeição, por sua vez, minhas dinâmicas são exclusivamente unificadoras. O conteúdo dessa unificação se refere à presença de algo ou de alguém em quem vislumbro uma possibilidade de expansão de minha própria homeostase, e não a substituição de um objeto de satisfação perdido. Já na atividade sexual, as dinâmicas de unificação admitem algo de destruidor. Tal como nas outras experiências, há um conteúdo específico, nesse caso, a presença de um corpo outro, impessoal, em que vislumbro não apenas a possibilidade de expansão daquilo que já me pertence, mas, principalmente, por meio desse corpo outro, a possibilidade de transcendência de mim em direção àquilo que para mim é outro. Mas não se trata de um outro que retorna do passado. O corpo erótico em direção ao qual eu me transcendo é atual, mesmo se imaginário. O que vem do passado são as orientações de unificação e destruição, sem as quais aquele corpo outro não teria efeito algum em minha vida. Por essa razão, Perls acredita que o que Freud chama de pulsão de vida e pulsão de morte diz respeito, apenas, às duas dinâmicas de organização de conteúdos, mas não aos conteúdos propriamente ditos, que podem ser os mais variados, sejam estes situações vividas no passado e que permanecem no presente como situações inacabadas, sejam eles situações atuais como a sede, a fome, o sono, a curiosidade, a atração ou a raiva, para citar apenas alguns.

Na avaliação de Perls, a atenção de Freud aos conteúdos arcaicos supostamente ligados a experiências de satisfação foi de grande importância para que pudesse compreender as dinâmicas de unificação e destruição. Mas daí não se segue que essas dinâmicas existam exclusivamente em função de conteúdos arcaicos. A organização (seja de unificação ou de destruição) dos conteúdos envolvidos numa experiência qualquer não é o desdobramento tardio de um conflito em torno de algo que se perdeu e que deva ser recuperado ou substituído. Se é verdade que, em algumas situações, como nas repetições compulsivas, os pacientes se ocupam de conteúdos inatuais, originados no passado e remanescentes como situações inacabadas, não são os conteúdos, eles próprios, aquilo que os pacientes estão a repetir. Em verdade, o que eles repetem é a inibição das formas pelas quais poderiam solucionar (assimilar ou ultrapassar) o conteúdo passado. Tanto é verdade que, tão logo encontrem, para aquele conteúdo, uma destinação atual, eles cessam de repetir os rituais de evitação de antes. A própria repetição, ademais, é uma forma criativa de apropriação daquilo que, antes, não se podia realizar. Nesse sentido, afirma Perls,

(r)epetir uma ação até conseguir dominá-la é a essência do desenvolvimento. (...) Uma vez terminada, o interesse desaparece até que uma nova tarefa desperte (...). Conseqüentemente, a compulsão a repetição não é nada mecânica, nada morta, mas muitíssimo viva (1942, p. 160).

E eis por que, na obra Ego, fome e agressão, Perls (1942, p. 141) decide suspender o modelo “arqueológico” de Freud, em proveito da noção de criação intencional de Goldstein, o que implica uma valorização do presente e de sua integração com nossas formas de agir adquiridas no passado. Perls não quer pensar o psiquismo “abstraindo” de nosso fluxo no tempo, de nosso passado e do nosso futuro. Segundo Perls (1942, p. 145), as orientações de unificação e destruição são a própria presença do tempo junto à materialidade de nossas vivências atuais, especialmente junto à nossa sensomotricidade. Nossa sensibilidade e nossa motricidade estão constantemente exprimindo uma orientação herdada, ora voltada para a autopreservação de um estado (unificação), ora voltada para o aprendizado de novas condutas (destruição), em que experimentamos uma “sensação de nós mesmos” sempre em mutação. Por exemplo: o desequilíbrio hídrico, a que chamamos de sede, não é precedido de um ato voluntário que verifica a descompensação vivida pelas células. Tampouco é algo que independe de nossa sensomotricidade. A constatação de que estamos sedentos, nas mais das vezes, só advém depois que “sentimos” uma aderência nos lábios e, não raramente, depois que nosso olhar ou nossa audição “encontraram” na paisagem a solução para o problema. Só a partir de então a sede passa a ser compreendida “conscientemente”. É como se o meio e nossa sensomotricidade tivessem orientado nossa percepção voluntária; é como se dispuséssemos de uma sabedoria que só se deixa saber depois que já foi exercida, como uma fortuna que nos surpreende vinda do passado. Ou, num sentido inverso, que é o sentido da destruição: o aprendizado de um novo passo em um exercício de dança de salão só acontece a partir do momento que nos “deixamos tomar” por um movimento que ainda não conhecemos, venha ele do nosso parceiro, venha tal movimento da musicalidade que emana do salão por inteiro. A aprendizagem é correlativa à desconstrução das formas de controle que voluntariamente tentávamos exercer, numerando os passos: um, dois, um, dois... E também aqui somos atravessados por uma sabedoria que nos arrebata, apenas que vinda do futuro. Em ambos os casos, estamos às voltas com uma orientação íntima e ambígua, à qual Perls denomina de “awareness sensomotora” (1942, p. 69), uma espécie de tino impessoal (eminentemente sensomotor), nascido do encontro sempre renovado e inesperado do passado, do presente e do futuro junto à materialidade da experiência atual.

A compreensão da organização (unificadora ou destruidora) dos conteúdos como uma forma de awareness, permitiu a Perls repensar a noção freudiana de sintoma. Esse não seria mais a manifestação, no presente e malgrado as forças de censura do ego, de um conflito em torno de um conteúdo que, desde o passado, continuaria a se manifestar (ou como aquilo que deve ser substituído ou como aquilo que deve ser recuperado). O sintoma psicopatológico seria sim a “indicação” de uma “interrupção” na awareness. Por outras palavras, seria sim a indicação de que, no momento presente, o paciente não conseguiria destruir ou unificar, estando impedido de criar e, conseqüentemente, de fluir desde o passado em direção ao futuro. Ainda que tivesse como fundo um conteúdo que, num momento passado, por força de um agente de coerção (por exemplo, uma ameaça do meio), tivesse de ser abandonado, o impedimento vivido pelo paciente não se confundiria com a manifestação desse fundo de conteúdo. Tal impedimento seria, antes, a recriação habitual, no presente, daquele ato passado de abandono de um conteúdo. Ou, então, o impedimento seria a reedição não deliberada (e, nesse sentido, “inconsciente”, como se fosse uma “fisiologia secundária”) de um ato passado de inibição de uma necessidade organísmica. Por essa razão, o sintoma não teria relação – como para Freud – com um conteúdo (supostamente perdido) que retornaria (como motivação ou como falta), mas, sim, com a retomada criativa do ato inibitório articulado no passado. O sintoma seria da ordem dos atos, correspondendo mais com uma divisão do ego (que, segundo Perls, estaria preso a formas paulatinamente sedimentadas como hábitos inibitórios) e menos com conteúdo (muito embora Perls admitisse que a persistência de uma forma habitual de inibição estivesse a serviço de um conteúdo vivido no passado).

Inferiu-se daí que o trabalho clínico não se deveria ocupar de encontrar, para as formas habituais de inibição da awareness (as quais são, então, denominadas de sintoma), uma causa ou motivo, um “conteúdo” reprimido. Mais recomendável seria a proposição de experimentos e desafios que incrementassem a concentração do paciente na sua awareness (ou, o que é a mesma coisa, no fluir de suas experiências atuais: tivessem elas um sentido de unificação ou de destruição), de modo que fosse possível identificar no “que” e “como” tal paciente se interromperia. Diferentemente da psicanálise, que tenta suspender as formas de resistência do paciente (por exemplo, neutralizando sua sensomotricidade, fazendo-o deitar-se no divã) em proveito de conteúdos supostamente reprimidos (que, na livre associação, revelar-se-iam), Perls incentiva a sensomotricidade do paciente, fazendo-o “trabalhar” com a musculatura, assim como com a linguagem. Afinal, é somente na ação (seja ela motora ou lingüística) que as recriações inibitórias, acerca das quais o paciente não tem consciência, podem aparecer. Perls denomina essa forma de intervenção de “terapia da concentração” no continuum de awareness e em proveito da identificação desse “inconsciente”, que só existe enquanto é produzido no presente, a saber, o ato inibitório.

 

3. Fundamentação teórica da terapia da concentração: releitura gestáltica da psicanálise clássica

Em que sentido posso reconhecer, para o meu presente, uma capacidade espontânea de recriação daquilo que advém do passado? Em que sentido um ato de inibição desempenhado no passado pode ser espontaneamente recriado no presente? Perls não pode responder essas questões a partir da metapsicologia freudiana. Não obstante os avanços que tal metapsicologia estabelecera, ela ainda refletia em termos associacionistas. Mesmo tendo assumido a noção brentaniana de “fenômeno psíquico” – a qual preferiu chamar de “pulsão” – Freud não declinou de tentar “explicá-la”, o que o levou a considerá-la efeito da associação psíquica das muitas estimulações sofridas pelas mucosas de nosso corpo físico. Todavia, a vivência daquela orientação ambígua e espontânea – que é a awareness imanente às nossas experiências materiais atuais – não se deixa dividir em partes, menos ainda ser explicada a partir de uma delas. Ela é um fenômeno global, do qual o ato inibitório - seja ele deliberado ou habitual - é uma das configurações possíveis. Dessa idéia, Perls inferiu que uma metapsicologia coerente com a vivência da awareness (ou de sua interrupção) deveria se estabelecer com formato diferenciado, por meio de outro modelo teórico. E foi novamente Goldstein quem sinalizou para Perls a fonte desse possível outro modelo, a saber, a teoria de campo da segunda geração da Psicologia da Gestalt. A partir dela, Perls poderia não apenas descrever a novidade introduzida pela noção de intencionalidade organísmica (que Perls denominava de awareness), como também poderia justificar a aplicação dessa noção ao campo da psicoterapia.

Malgrado as críticas dirigidas à psicanálise ortodoxa, Perls reconheceu que Freud foi um pouco além da psicologia de sua época. Apesar de ainda descrever o homem como um ente formado por duas esferas (uma física e outra psíquica), e movido por estímulos particulares que se deixam articular na interioridade de cada qual, Freud compreendeu a vigência de relações de campo. Por exemplo, em sua primeira tópica, ele sabia que o valor de uma livre-associação não residia nela mesma, mas na configuração de um todo que excedia a própria associação e do qual ela seria parte, a saber, o sistema inconsciente/pré-consciente. Sob esse ponto de vista, Freud rompeu com a perspectiva isolacionista, muito embora não tivesse sido capaz de reconhecer, nessa configuração, mais do que um sentido patológico. Afinal, tanto as associações quanto o sistema a que elas pertenceriam não exprimiriam mais que pulsões (entendidas enquanto representantes de um objeto de satisfação primordial) em conflito (pela substituição ou pelo restabelecimento daquele objeto).

Para Perls, se Freud tivesse prestado atenção ao caráter global de um sintoma ou de uma interpretação, ele teria podido ultrapassar a maneira compartimentada segundo a qual – em sua metapsicologia - descreveu o homem e suas relações no mundo. No lugar do associacionismo freudiano, Perls propõe – a partir da sugestão de Goldstein - a utilização da Psicologia da Gestalt. Afinal, os psicólogos da Gestalt assumem integralmente essa constatação simples de nossa experiência, a saber, que os fenômenos sempre estão implicados em um contexto, sem o qual carecem de sentido próprio. Ou, conforme a formulação dos psicólogos da Gestalt, as coisas adquirem significação, dependendo do campo ao qual pertencem. O interesse pela teoria de campo conduziu Perls aos trabalhos de Köhler (1938). Era ele quem se ocupava de caracterizar as “gestalten” como configurações de campo a integrar, por um lado, a existência física e, por outro, as condutas. Köhler, ademais, propunha a tese de que, em uma relação de campo, os elementos organizar-se-iam como figuras a partir de um fundo. O fundo seria aquilo que forneceria às figuras o lastro necessário para adquirirem sentido próprio. Por outras palavras, o fundo seria aquilo que ofereceria às figuras a orientação por cujo meio poderiam se destacar como manifestações singulares. Tal proposição permitiu a Perls conceber a awareness (entendida como a dupla orientação de unificação e destruição inerente à situação concreta da experiência) como uma espécie de campo em funcionamento. Para Perls, a awareness seria essa dinâmica, pela qual as vivências passadas do organismo constituir-se-iam como fundo (de orientação formal) para os dados materiais da experiência que, dessa forma, adquiririam um “valor” organísmico, um sentido ou orientação. Tanto as vivências passadas (de onde se depreenderiam as orientações de unificação e destruição), quanto os dados materiais presentes (e os possíveis valores assumidos por eles) seriam imanentes à experiência concreta, entendida como atualidade de um mesmo processo, como atualidade de um mesmo campo.

No caso de um sintoma psicopatológico, em que a awareness estaria interrompida, ela se caracterizaria por um campo no qual o organismo teria dificuldades para visar, nos múltiplos dados do meio, a uma figura, a um “valor”. O “motivo” dessa dificuldade estaria relacionado com a “co-presença” de uma vivência passada de auto-inibição, que, de uma forma sempre inédita, privaria os dados da experiência atual de um fundo de outras vivências. Não obstante se tratar de uma inibição articulada no passado, ela só surtiria efeito à medida que estivesse integrada como fundo de um dado atual. Em decorrência disso, Perls adverte que, ainda que o sintoma implique a estranha presença de um passado que impede o organismo de se conectar com os dados presentes, tal impedimento não é uma conseqüência do passado, mas da atualidade da co-presença desse passado. Nesse sentido, ainda que o ato passado e o conteúdo que esse inibe resguardem uma orientação formulada noutro lugar e noutro tempo, não é desse lugar e desse tempo que eles herdam sua não-funcionalidade atual. Esta se refere à configuração global do campo presente. Junto a esse campo, o ato inibitório e respectivo conteúdo são recriações.

 

4. Leitura holística da Psicologia da Gestalt

Para Perls, entretanto, a Psicologia da Gestalt – tal como a metapsicologia freudiana no tratamento do funcionamento psíquico – não resistiu à tentação de encontrar, para essa anterioridade do todo em relação às partes, uma espécie de princípio ou lei estrutural, o que grassou, no coração desta escola, uma contradição letal: afinal, que leis poderiam explicar uma configuração da qual elas próprias participariam?

Perls censura os gestaltistas pelo estilo eminentemente genético, explicativo e, especialmente, pela crença objetivista segundo a qual o monitoramento científico dos experimentos seria condição suficiente para desvelar o campo total desse mesmo experimento. Essa crença é contraditória com a percepção das “gestalten”, pois, não obstante o todo não existir sem suas partes, nenhuma parte é suficientemente capaz de substituir o todo. Deduzir uma “gestalt” de seus aspectos quantificáveis, por conseguinte, é um procedimento, no mínimo, arbitrário. Em vez disso, Perls propõe que as descrições visem não à lei estrutural das “gestalten”, mas a cada “gestalt” em particular e que, relativamente a essa “gestalt”, possam ser apurados todos os dados possíveis, independentemente da natureza quantitativa ou qualitativa. Isso implica, segundo Perls, a adoção de uma postura holística, tal como aquela assumida por Goldstein, quando de seu trabalho de descrição dos traços clínicos dos soldados acometidos de lesão cerebral. Goldstein (1934) não pesquisava características comuns a vários pacientes. Ao contrário, ele preferia as várias características intervenientes nas configurações individuais de cada um deles: cada paciente era, não apenas um campo, mas um campo singular, razão porque nenhum dado revelado era desprezado. Goldstein os inseria, todos, no panorama global das manifestações fisiológicas e comportamentais do paciente. O fundamento dessa postura metodológica, Goldstein o atribuía ao marechal de campo inglês e primeiro-ministro sul-africano J. C. Smuts. Na sua obra Holism and evolution, Smuts (1926) propusera um programa de investigação denominado “holismo”. Segundo tal programa, a ciência deveria interessar-se não tanto pelas características atômicas dos fenômenos estudados, mas pela configuração global formada por elas. Tal configuração, todavia, não corresponderia ao resultado do somatório das partes envolvidas. Tratar-se-ia, antes, de uma organização autônoma que, nem por isso, seria indiferente àquelas partes. Se uma delas se alterasse, todas as demais se alteravam, até que uma nova estrutura unificada se restabelecesse. Por tal motivo, Smuts advogava em favor de uma metodologia integrativa, que não discriminasse entre aspectos mais relevantes e aspectos menos relevantes para a consecução de uma pesquisa. Todos os dados – fossem eles quantitativos ou qualitativos -, de alguma maneira, contribuiriam para a análise do sentido de totalidade que formavam. Goldstein, por sua vez, empregou esse princípio na consideração da noção gestaltista de campo. Isso significou que, mais do que as “estruturas” em função das quais se poderia explicar o funcionamento de um organismo no meio, o que verdadeiramente se deveria estudar era o “efeito das contingências no desenvolvimento daquelas estruturas”. Nesse sentido, Goldstein descobriu que, não obstante ser verdadeiro que a regressão dos soldados a comportamentos infantis não era conseqüência direta, por exemplo, de uma lesão na região occipital (ligada à percepção), o comprometimento causado pela lesão (a saber, perda da capacidade para distinguir cores) refletia-se em todos os outros comportamentos. A regressão comportamental – por exemplo, da sexualidade adulta - a formas de expressão infantil era coerente com a regressão patológica da visão do paciente.

Perls adota esse aspecto do holismo em sua leitura da noção de campo – o que não quer dizer que assumisse integralmente o holismo de Smuts. As inferências metafísicas, pelas quais Smuts transformou a noção holística de totalidade em uma teleologia a ser aplicada nas mais diversas áreas do saber, configuravam mais uma profissão de fé do que uma fundamentação teórica da noção de totalidade. Por esse motivo, seguindo o exemplo de Goldstein, Perls restringiu-se àquelas formulações de Smuts, que descreviam a dinâmica integrativa do campo. Por meio dessas formulações - e em substituição à metapsicologia freudiana – Perls propôs, não um gestaltismo estruturalista que faria da awareness a lei ou a regularidade de uma combinatória de partes. Em vez disso, Perls propôs a tese de que a awareness seria a vivência de um processo de auto-regulação contínuo, sempre em mutação, dependendo dos fatores ou das contingências que viessem a aparecer – e para os quais não haveria uma solução de antemão. Aplicada à psicoterapia, essa tese permitiu a Perls inferir que, se é verdade que os sintomas neuróticos têm relação com a retomada de atos inibitórios esquecidos, essa retomada não é determinada por um conteúdo passado, tampouco está condicionada por uma forma a priori. Trata-se de um ajustamento criativo, do qual fazem parte ocorrências atuais, ocorrências passadas (como o próprio ato de inibição) e possibilidades futuras, todas elas relacionadas entre si, de modo a se exprimirem mutuamente. O sintoma é apenas uma dessas configurações globais, cuja nota característica é justamente a presença de uma auto-inibição, muito embora o sentido dessa auto-inibição só possa ser compreendido tendo-se em vista o conjunto dos elementos envolvidos.

Ora, se num campo holístico a mútua relação entre as partes envolvidas não é determinada por uma combinatória universal, por uma lei estrutural, em que sentido ela se diferenciaria da pura contingência? O que nos permitiria reconhecer, para ela, uma forma de intencionalidade organísmica (conforme os termos de Goldstein) ou uma unidade de awareness (conforme a terminologia de Perls)? As respostas para essas questões, Perls as tenta estabelecer a partir da aplicação do “pensamento” diferencial de Salomon Friedlaender, conforme dissertaremos a seguir.

 

5. Aplicação do “pensamento diferencial” de Salomon Friedlaender

Perls começou sua obra de 1942 apresentando duas teses de Friedlaender, filósofo neokantiano, vinculado à escola Bauhaus, e autor da obra Schöpferische Indifferenz (1918)3. Além de reconhecer em Friedlaender um exemplo de integridade humana, Perls (1969) atribuía a ele a autoria de uma das mais importantes releituras do emprego romântico da noção de dialética – emprego esse, conforme Perls, encontrado em Hegel e Schelling4. Por meio dessa releitura, acreditava Perls, Friedlaender teria suspendido o sentido metafísico veiculado por tais pensadores, em proveito da descrição do “modo” como os fenômenos efetivamente acontecem em nossa experiência cotidiana. Conforme Perls, Friedlaender não se interessava em discutir se os fenômenos forneciam ou não um fundamento material para as leis psicológicas ou se eles eram ou não o correlativo transcendente de princípios teleológicos universais. Friedlaender queria apenas descrever as operações envolvidas na vivência de um fenômeno. Isso o teria levado a reconhecer, para nossa materialidade e para a materialidade do mundo, uma espontaneidade criativa, cujo sentido não seria outro senão equilibrar tensões opostas, em proveito dessas unidades provisórias no tempo, que são os fenômenos. Friedlaender chamava de “indiferença criativa” essa criatividade espontânea, situada a meio caminho entre orientações materiais opostas, por ele denominadas de “formas” ou “pensamento diferencial” da realidade. Perls vislumbrou, nas noções de “indiferença criativa” e “pensamento diferencial da realidade”, os elementos funcionais, por meio dos quais ele poderia não só descrever a dinâmica dos “todos” holísticos, como distinguir esses “todos” de episódios contingentes. Se fosse possível identificar, em um conjunto de partes, não apenas uma tensão, mas uma tendência para estabelecer o equilíbrio, eis, então, um todo holístico e não apenas um conglomerado acidental5. Ademais, as teses de Friedlaender permitiam uma descrição de nossas vivências de campo sem que, para tal, tivéssemos de admitir um agente exterior (causa primeira), uma teleologia (causa final, distinta dos próprios meios) ou uma forma rígida ou linear (causa formal). Eis porque, em “Ego, Fome e Agressão”, Perls (1942) faz uma tentativa de aplicação das teses de Friedlaender às formulações que importara de Goldstein. Em verdade, Perls não levava em conta as intenções programáticas de Friedlaender. Essas pretendiam mostrar ao kantismo que a noção de criação - veiculada por Kant (1790) em sua “Crítica da Faculdade do Juízo” – colocava por terra a distinção que, na “Estética Transcendental” da “Crítica da Razão Pura”, o próprio Kant (1781) fizera entre “entendimento” e “sensibilidade” para efeitos de apreensão de um fenômeno. A Perls interessava apenas o fato de que, na noção de “indiferença criativa”, era possível encontrar uma apresentação da espontaneidade criadora vigente em cada campo holístico, sem que isso implicasse reinvestir o primado do sujeito ou do mundo na consecução de um sentido de totalidade. Por outro lado, a noção de “pensamento diferencial” da realidade permitia a Perls vincular aquilo que, até então, a psicanálise distinguia, a saber, o instintivo e o pulsional, o inconsciente e o pré-consciente/consciente, o id e o ego, dentre outras dicotomias. Não que Perls estivesse negando essas dicotomias. Ao contrário, elas serviam como ilustração daquilo que estaria em jogo na “indiferença criativa”, nesse trabalho de criação de uma “estrutura” provisoriamente estável. Em suma, por meio das noções de “pensamento diferencial” e de “indiferença criativa”, Perls estaria a propor uma descrição da experiência, sem antecipar conteúdos que só ela, todavia, poderia revelar. Perls apresenta a teoria de Friedlaender nos seguintes termos:

[...] todo evento está relacionado a um ponto-zero, a partir do qual ocorre uma diferenciação em opostos. Esses opostos apresentam, em seu contexto específico, uma grande afinidade entre si. Permanecendo atentos no centro, podemos adquirir uma habilidade criativa para ver ambos os lados de uma ocorrência e completar uma metade incompleta. Evitando uma perspectiva unilateral, obtemos uma compreensão muito mais profunda da estrutura e da função do organismo (PERLS, 1942, p. 45-46).

A formação de um campo, segundo Perls, dar-se-ia a partir de um contexto específico de encontro entre duas orientações contrárias. Tal encontro seria um evento contingente, mas que, uma vez estabelecido, fundaria um ponto zero, um ponto de indiferença – no que diz respeito ao conteúdo de cada força -, mas cheio de interesse, precisamente, interesse na conservação desse estado de equilíbrio. Seria a partir desse interesse que o campo propriamente ganharia autonomia, o que quer dizer espontaneidade. A partir do momento em que se estabelecesse o ponto zero, tudo se passaria como se, em função da manutenção do equilíbrio, as orientações opostas pudessem ser potencializadas ou diminuídas. A matéria ganharia vida “funcional”, ganharia um centro a partir do qual se transformaria numa totalidade, num organismo. A partir de então, ela seria capaz de se auto-regular, o que significa investir ou retirar-se de um pólo a outro, em proveito do equilíbrio.

Perls (1942) fornece um exemplo da dinâmica de articulação das polaridades a partir de um ponto zero. Segundo ele:

(...) o Sr. Brown sai para um passeio num dia muito quente. Ele transpira e perde certa quantidade de água. Se chamarmos a quantidade total de líquido requerida pelo organismo equilibrado de A e a parte perdida de X, então lhe resta a quantidade A-X, um estado que ele experiência [sic] como sede, como um desejo de restaurar o equilíbrio organísmico de água, como um desejo de incorporar ao seu sistema a quantidade de X. Esse X aparece em sua mente (que, protestando contra o “-X”, pensa em seu oposto) como a visão de um regato borbulhante, uma jarra d&#';água ou um bar. O “-X” no sistema corpo-alma aparece como X em sua mente. Em outras palavras: A-X existe no “corpo” como uma deficiência (desidratação), na “alma” como uma sensação (sede) e na “mente” como a imagem complementar. Se a quantidade X de água real é adicionada ao organismo, a sede é anulada, saciada, e o equilíbrio A restaurado, a imagem de X na mente desaparecendo junto com a chegada do X real no sistema corpo-alma (p. 70, grifo do autor).

Uma situação inversa à vivida pelo Sr. Brown seria aquela em que o corpo estaria polarizado no “mais” e a mente no “menos”. É isso o que acontece, segundo Perls, na defecação. O corpo acumula um excesso de matéria que a mente, então, tenta equilibrar abstraindo a possibilidade da defecação. Para Perls, ademais, as funções “mais” e “menos” do metabolismo são um outro bom exemplo da dinâmica de articulação das polaridades a partir de um ponto zero. Se uma célula encontra-se imersa em um meio extracelular carregado de soluto sódio, sua membrana não consegue impedir a entrada desse sal e do respectivo solvente (a saber, a água). Ela admite um “mais” que, se não for compensado, acarretará um edema. A célula, então, começa a articular um “menos”, que é a expulsão do sódio e de parte da água presentes no ambiente intracelular. Esse processo demanda a “criação” de uma estratégia específica, que consiste na utilização de reservas energéticas da célula em proveito da consecução de uma “bomba”, capaz de “empurrar” o sódio de volta para o meio extracelular. A criação dessa estratégia é o próprio ponto zero de que falava Friedlaender, ou seja, uma apresentação dinâmica da noção goldsteniana de intencionalidade organísmica, especificamente aqui retratada como poder de centragem das células.

Perls passa então a tratar do ponto zero como uma intenção e a intenção como uma forma de “indiferença criativa” entre dois pólos e em proveito do equilíbrio das partes envolvidas. Para ele, enfim, a “indiferença criativa” é o fundamento dinâmico desse campo holístico que é o organismo no meio. Ou então, a “indiferença criativa” é o fundamento dinâmico do processo de auto-regulação, que caracteriza o campo organismo-meio. Aplicada ao campo específico da subjetividade, a indiferença criativa corresponde àquilo que Perls vai chamar de “ego insubstancial”, em contrapartida à noção de ego da psicanálise, seja ela freudiana ou pós-freudiana.

6. Da “leitura diferencial” da teoria organísmica à teoria do ego insubstancial

Em 1936, Perls apresentou, na Tchecoslováquia, por ocasião do Congresso Internacional de Psicanálise daquele ano, um trabalho que tratava das resistências orais. Seu objetivo era mostrar, contra o que era cânone na teoria psicanalítica freudiana da época, que mesmo crianças muito pequenas, em fase de formação da dentição, já estavam providas de uma intencionalidade ou, nas palavras de Friedlaender (1918), de um ponto zero criativo capaz de coordenar a ação do infante no meio, independentemente daquilo que se supunha ser uma pulsão sexual tão-somente. Perls denominou essa intencionalidade de “ego”, o que, evidentemente, foi muito mal recebido pela comunidade psicanalítica freudiana. Afinal, isto significava admitir que o campo pulsional – essa maneira psicanalítica de designar o universo das funções organísmicas – já seria dotado de uma organização espontânea, ainda que totalmente indeterminada. Como se sabe, para a teoria psicanalítica, tal organização somente se configuraria a partir do momento em que a criança fosse introduzida no universo da linguagem. Perls viria a contestar o seguinte: caso se possa admitir, a partir da psicanálise freudiana, que o ego só existe a partir de um campo de pulsões, ou, numa linguagem goldsteiniana, a partir de um fundo de outras funções organísmicas, então, também se deve admitir – agora contra a psicanálise - que esse campo já é uma espontaneidade, uma espontaneidade egológica.

Em 1936, Perls ainda se intitulava psicanalista. Mas, o contato com Friedlaender, a leitura de Smuts e, sobremodo, as discussões com Goldstein, começavam a mostrar seus efeitos. Com este último, muito especialmente, Perls aprendeu a reconhecer a presença de uma intencionalidade primitiva, não-tributária das funções cognitivas superiores. Em seus experimentos com soldados vítimas de lesões sofridas em combate na I Guerrra Mundial, Goldstein (1933) observara o quanto certos pacientes, tendo suas funções intelectuais fisicamente comprometidas (em decorrência de lesões corticais), mesmo assim conseguiam estabelecer o rearranjo de seus quadros sensomotores e de expressão comunicativa, rearranjo esse que não se podia atribuir senão a uma capacidade primitiva de auto-regulação. Tal capacidade, por sua vez, não tinha relação apenas com as características individuais de cada paciente. Ela incluía a qualidade do meio ao qual cada paciente era submetido, o que levou Perls a interpretar a capacidade de auto-regulação nos termos da filosofia de Friedlaender: zona de equilíbrio entre forças divergentes e em proveito da manutenção desse equilíbrio. A vantagem da linguagem de Friedlaender residia no fato de ela não fazer apelo a qualquer subsistência, a qualquer continente ôntico dessa capacidade de auto-regulação. Tal capacidade seria mais o processo de construção de uma identidade, do que o efeito dela. Nesse sentido, ela seria, antes, a formação de um ego do que uma parte dele. Por essa razão, com o intuito de não ser confundido com o psicanalista Federn6 e sua teoria do ego, Perls (1942) viria a denominar aquela capacidade de auto-regulação – na qual se reconhece uma forma de espontaneidade criativa, intenção organísmica ou awareness - de “ego insubstancial” (p. 205).

Doravante, ao falar de ego, Perls não tem mais em vista aquele suposto “órgão de censura” concebido por Freud. Perls tem em vista uma dinâmica complexa, totalmente inserida e operada desde o meio, de reorganização da unidade desse meio como um organismo específico (tal como, por exemplo, o cego reorganiza seu meio fazendo da bengala uma extensão de seu corpo). Ou, então, conforme Perls (1942), o ego corresponde a uma função do organismo no meio, no sentido em que se considera que a respiração tem relação com uma função dos pulmões na troca de gases do organismo: “pulmões, gases e vapor são concretos, mas a função é abstrata – embora real.” Da mesma forma, “o ego é igualmente uma função do organismo” (p. 205), mas não uma parte dele.

 

7. Considerações finais

Mesmo sem a anuência das instituições psicanalíticas de seu tempo, até 1951, Perls ainda se intitulava psicanalista; muito embora já não concordasse com a forma como Freud fazia depender, de um objeto de satisfação primordial, as duas orientações fundamentais que se deixam perceber no domínio clínico e que, na linguagem de Freud, denominavam-se de pulsão de vida e pulsão de morte. Nesse sentido, diferentemente de Freud, Perls não denomina aquelas orientações de pulsões. Mais ao estilo de Goldstein, Perls prefere chamá-las de funções organísmicas. Por meio delas, acredita Perls, os elementos materiais envolvidos na experiência presente, venham eles ou não do passado, recebem uma orientação de unificação ou de destruição. Na unificação, os elementos materiais presentes são articulados como ponto de estabilização da experiência: conservação. Na destruição, são transcendidos como ponto de abertura para o inédito: crescimento. Essa orientação ambígua das funções torna a experiência uma totalidade sempre inesperada, inédita, como se nela houvesse uma espontaneidade criadora. Perls denomina essa espontaneidade de awareness. O que nos permite afirmar enfim que, na mediação da noção de função organísmica estabelecida por Goldstein, Perls compreende as pulsões descritas por Freud como um fluxo de awareness ambíguo: ora em direção à conservação da experiência, ora em direção à sua transformação. Ou, noutras palavras, para Perls, as pulsões não seriam conteúdos arcaicos que devessem ser recuperados ou substituídos. Entendidas enquanto funções organísmicas, elas seriam a “forma” ambígua de funcionamento global de nosso organismo frente à atualidade material.

Para melhor descrever essa “forma” de funcionamento, Perls recorreu, por um lado, ao holismo estrutural de Smuts, conforme recomendação de Goldstein. Afinal, a noção de que tudo está vinculado com tudo permite compreender em que sentido uma orientação ou função organísmica adquirida no passado exprime-se junto a um conteúdo material presente. Por outro lado, Perls recorre ao pensamento diferencial de Friedlaender, em cujos termos reconheceu uma elucidação possível da ambigüidade característica das funções organísmicas. Segundo Perls, a dialética da diferenciação implícita na noção de indiferença criativa apresentada por Friedlaender ilustra em que sentido, em torno de cada novo dado material, as funções organísmicas estabelecem ora a unificação ora a transformação de cada experiência, de cada fenômeno vivido.

Ademais, segundo Perls, a noção de indiferença criativa proposta por Friedlaender elucida de que maneira, em decorrência da dupla orientação das funções organísmicas, cada experiência comporta uma espécie de espontaneidade criativa, acerca da qual o próprio Goldstein já havia falado quando descreveu seus experimentos com soldados lesionados. Perls denominou essa espontaneidade de “ego”, o que de forma alguma se confunde com uma faculdade intrapsíquica, ou com uma função social cuja tarefa seria evitar o conflito (entre as diversas orientações do próprio funcionamento psíquico) por meio da censura (como postula a psicanálise freudiana). O ego que a noção de indiferença criativa elucida tem relação com a própria dialética das funções organísmicas, as quais geram, no seio da experiência, uma unidade parcial (figura) que, espontaneamente, os dados materiais envolvidos na experiência não poderiam formar, seja em favor da conservação seja em favor da destruição de algo (que pode ser o próprio organismo). O que faz do ego menos um habitante do organismo e mais uma função da experiência, uma função do campo organismo/meio. Eis por que Perls denominou essa função de “ego insubstancial” (1942, p. 205).

A neurose, por conseguinte, não seria, conforme o entendimento de Perls, uma ação de censura estabelecida pelo ego. Seria, ao contrário, o comprometimento da função de ego, a impossibilidade manifestada pelo organismo para estabelecer, para os elementos materiais envolvidos na experiência, uma orientação de unificação ou destruição. A neurose, por outras palavras, seria uma interrrupção do fluxo de awareness, e a terapia de inspiração gestáltica, um trabalho de resgate dessa função, dessa função de criação na atualidade da sessão. E eis que se lançam as bases para o futuro surgimento da Gestalt-terapia, que ainda precisará do olhar fenomenológico de Paul Goodman para se firmar como uma prática psicoterapêutica (ou analítica) exercida em nome próprio, o que, entrementes, é tema para outro artigo.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mullergranzotto@gestalten.com.br

Recebido em: 05/07/2006
Aceito para publicação em: 14/03/2007

 

 

Notas

* Doutor em Filosofia.
** Psicóloga clínica, mestre em Filosofia, gestalt-terapeuta.
1 Perls seguiu a tradução inglesa para o termo Trieb estabelecida por James Strachey em colaboração com Anna Freud, a saber, Instint, não obstante a diferença reconhecida por Freud entre os termos Trieb e Instinkt (em alemão). Georges Boris acompanhou a versão inglesa, o que é acertado; desde que tenhamos em mente a que, exatamente, Perls está se referindo, a saber, às pulsões. O que é evidente, por exemplo, quando Perls refere-se, segundo a tradução de Boris, ao Thanatos e ao Eros como Instintos de Morte e de Vida (PERLS, 1942, p. 73 e p. 161).
2 Mais uma vez salientamos nossa compreensão de que, quando fala em instintos, é das pulsões que Perls está a tratar.
3 As duas principais publicações filosóficas de Salomon Friedlaender – também conhecido pelo codinome expressionista Mynona – são Schöpferische Indifferenz (escrita em 1918, mas publicada em dois volumes, um desse mesmo ano e outro de 1926) e Das magische Ich (escrito provavelmente em 1935, em seu exílio em Paris).
4 Não é objetivo desse trabalho discutir as avaliações históricas que, a partir de Friedlaender, Perls fez, especialmente de Schelling e de Hegel, muito embora reconheça a necessidade.
5 Isso responde nossas questões arroladas no final do item 4, no presente artigo.
6 Na segunda parte do livro “Ego, Fome e Agressão” (PERLS, 1942), no capítulo sétimo (“O ego como uma função do organismo”), Perls discute, rapidamente, a noção de ego de Federn (1949), reconhecendo que ela conseguiu fazer justiça a esse fenômeno elementar ignorado por Freud, precisamente, a forma egológica de organização de nosso campo pulsional. Entretanto, Federn ainda considerava o ego uma substância, delimitada por uma fronteira. Diferentemente dele, Perls não dirá que o organismo “tem” uma fronteira, mas que ele “está” numa fronteira.

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