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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007

 

ARTIGOS

 

A depressão e o desejo na psicanálise

 

The depression and the desire in psychoanalysis

 

 

Érica de Sá Earp Siqueira*

Pesquisadora do Programa de Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho discorre sobre “A depressão e o desejo na psicanálise”, em que a princípio, nos perguntamos o que a depressão tem a ver com o desejo. A partir de um caso clínico, surge a questão da importância do diagnóstico em uma análise. O que a psicanálise entende por depressão? Foi a partir desses questionamentos que lançamos mão do pai da psicanálise – Freud –, e de seus seguidores – Lacan, Melanie Klein e ainda alguns autores psicanalíticos que discorrem sobre a depressão. Seria a depressão um fenômeno ou uma estrutura clínica? E o que a psicanálise, ou melhor, o discurso do analista pode fazer com o sujeito que se diz “deprimido” na clínica nos dias de hoje? Pois nos parece que a depressão tem uma certa relação com a cultura atual, que se mostra maníaca e onipotente, tentando excluir o mal-estar e a ‘dor de existir&#';, que são inerentes ao sujeito.

Palavras-chave: Depressão, Luto, Melancolia, Desejo, Psicanálise.


ABSTRACT

The present work discourses about “The depression and the desire in psychoanalysis” and the first inquiry has to do with a possible link between desire and depression. From a clinic case, the importance of the diagnosis in an analysis arises. From there on, the works of the father of Psychoanalysis are used – Freud – and of his followers – Lacan, Melanie Klein and some other psychoanalytic authors who wrote about depression. Would the depression be a phenomena or a clinic structure? And what can psychoanalysis, or better, the speech of the analyst do with the subject who says he is “depressed” in our clinic nowadays? So, it seems that the depression has a certain link with today&#';s culture, that shows itself maniac and omnipotent, trying to exclude the ill-being and the ‘existing pain&#'; that are inherent to the subject.

Keywords: Depression, Mourning, Melancholy, Desire, Psychoanalysis.


 

 

O presente artigo é um resumo da Dissertação de Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise, pela UERJ, no ano de 2006, intitulada “A depressão e o desejo na psicanálise”.

A dissertação foi inspirada em questões derivadas do atendimento psicanalítico a uma paciente idosa, acompanhada por aproximadamente, um ano no Núcleo de Atenção ao Idoso da Universidade Aberta da Terceira Idade (NAI/UNATI), durante a Residência em Psicologia Clínico-Institucional no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ), no período de 2001 a 2003.

A paciente, que chamaremos D., tinha setenta e quatro anos e foi encaminhada pela triagem do NAI para a equipe de psicologia, apresentando uma demanda de atendimento individual. Desde as primeiras entrevistas, falava insistentemente sobre estar deprimida e, também, de suicídio, o que nos preocupou e levou a refletir sobre as possibilidades de uma intervenção psicanalítica.

No decorrer de seu percurso clínico, no entanto, a paciente começou a elaborar e questionar sua queixa inicial, demonstrando uma abertura ao trabalho analítico e, mais especificamente, ao trabalho de luto. Foi a partir da fala da analisanda – “estou deprimida” –, que começamos a esboçar algumas questões. A questão fundamental foi: o que é a depressão, ou melhor, o que a psicanálise entende por depressão?

Assim, foi o próprio trabalho clínico que nos instigou a retomar e discutir alguns conceitos psicanalíticos, afirmando o legado de Freud em sua ênfase na indicação de que, na psicanálise, a teoria e a prática são indissociáveis.

Luciano Elia (2000) enfatiza que toda e qualquer pesquisa em psicanálise é, necessariamente, uma pesquisa clínica, não apenas pelo fato de utilizar como campo um espaço terapêutico, que pode ser o consultório, o ambulatório ou o hospital. O campo de pesquisa, no contexto da psicanálise, é o inconsciente, mais propriamente, o sujeito do inconsciente. Logo, segundo Elia (2000, p.23) “a clínica psicanalítica, como forma de acesso ao sujeito do inconsciente, é sempre o campo da pesquisa”.

Inicialmente, discutimos a questão do diagnóstico em psicanálise e em psiquiatria, a fim de delimitar algumas diferenças no enfoque da depressão, termo eminentemente vinculado à psiquiatria e não à psicanálise. Entre o olhar clínico da psiquiatria e a escuta psicanalítica, procuramos destacar as contribuições da psiquiatria e da psicanálise na discussão do diagnóstico de “depressão”. Propomos aproximar a psicanálise e a psiquiatria dos discursos formalizados por Lacan, no Seminário 17, o discurso do psicanalista e o discurso do mestre, respectivamente.

A depressão revelou-se como um fenômeno clínico, que aponta para uma estrutura – neurose ou psicose. Se a psiquiatria responde, na maioria das vezes, com o medicamento que visa tamponar a dor – “um comprimido para o deprimido” –, a psicanálise abre a possibilidade do sujeito remediar o próprio sofrimento com a palavra.

Voltemos ao caso clínico, a fim de ilustrar a articulação existente entre teoria e prática clínica. O marido de D. havia morrido subitamente, devido a uma parada cardíaca, que não pôde ser revertida pelos médicos. Até os dias atuais, D. refere que a perda lhe é inaceitável e que acredita que tenha sido um erro médico. Ressente-se por não ter tido tempo de se despedir do marido e reconhece que, desde então, não conseguiu mais chorar, tendo se tornado “uma pessoa fria e congelada”.

Ao longo de seu percurso clínico, questões importantes foram emergindo no discurso de D., possibilitando a instauração do trabalho analítico. Uma de suas falas é determinante: “ou eu mato meu marido ou ele me mata”. Pela primeira vez, seus olhos se enchem de lágrimas e ela diz o quanto se sente “sufocada” por não conseguir, até hoje, chorar pela morte do seu marido.

Este dizer, inicialmente, apontava para uma identificação narcísica da paciente com o marido, já falecido, e essa identificação ocorre comumente na melancolia, levando, naquele momento, a uma hipótese diagnóstica clínica – psicose.

D. relata que, inúmeras vezes, pensou em se suicidar, acreditando que esta seria a única forma de eliminar seu sofrimento. Ao ser indagada sobre se havia pensado em como realizaria este ato, ela responde que sim – com um tiro na cabeça, pois no coração poderia errar.

O risco de um suicídio, remetendo a uma possível gravidade do caso, acarretava preocupação e instigava à reflexão. Uma pergunta começou a se impor: ao risco de suicídio, poderíamos contrapor a possibilidade de um trabalho pela palavra que viabilizasse uma mudança de posição?

Outra pergunta surgiu posteriormente: até que ponto a preocupação com a gravidade do caso, ligada ao risco de suicídio, poderia ser articulada à própria insistência da paciente em torno deste tema? D. costumava perguntar à analista se a gravidade do seu caso lhe causava preocupação.

No decorrer dos atendimentos, a paciente, ao invés de falar em “matar” passa a utilizar a palavra “enterrar” – “eu preciso enterrar o meu marido”. Este giro (matar para enterrar) nos sugere uma abertura a um trabalho de luto, e, a partir de então, a paciente começa a apresentar um outro discurso, diferente daquele trazido inicialmente, do quanto dizia sentir-se “congelada”.

O trabalho analítico possibilitou a abertura ao luto, permitindo repensarmos a hipótese diagnóstica inicial. Concluímos, portanto, que a paciente apresentava traços melancólicos em uma estrutura clínica de uma neurose, mais especificamente, histérica.

Discutimos também a questão da depressão na velhice, momento peculiar, em que as perdas aparecem de forma mais freqüente, o que requer a elaboração de um trabalho de luto. Trata-se de perdas sucessivas e variadas em relação ao corpo físico, sofrimento moral, morte de um ente querido – marido ou esposa, filhos. Nesse contexto, nem sempre o sujeito consegue elaborar lutos, razão pela qual a depressão parece ser cada vez mais comum nos idosos.

Algumas questões suscitaram nosso interesse em refletir sobre a depressão na velhice: será que existe uma particularidade na clínica psicanalítica com os idosos? O que Freud observa sobre o atendimento psicanalítico aos idosos? Existiria alguma contra-indicação ou será possível a clínica psicanalítica, visto que estamos lidando com o sujeito, que, para a psicanálise, não envelhece?

Ângela Mucida (2004) afirma que, embora seja possível encontrar na obra de Freud algumas contra-indicações da psicanálise para o idoso, devemos considerar que estas foram proferidas em um determinado contexto teórico-clínico do autor. Em vários momentos de sua obra, ao contrário, Freud convoca o analista a desenvolver o dispositivo clínico por ele criado.

Dentre as contra-indicações referentes aos idosos, encontramos a afirmação freudiana de que, não sendo aplicável em todos os casos, a terapia psicanalítica teria algumas limitações, entre elas a exigência de um certo grau de maturidade e compreensão – não seria, portanto, adequada a jovens ou adultos mentalmente débeis ou incultos. Freud (1898, p. 268) observa, ainda, que “fracassa com pessoas idosas, porque o tratamento tomaria tanto tempo, devido à acumulação de material, que ao fim elas teriam chegado a um período de vida em que nenhum valor atribui à saúde nervosa”. Freud (1898, p. 268), após arrolar outras contra-indicações, conclui “[...] finalmente, o tratamento só é possível quando o paciente tem um estado psíquico normal a partir do qual o material patológico pode ser controlado”.

Em seu texto “Sobre a psicoterapia”, Freud (1905 [1904]) afirma que a idade dos pacientes deve ser considerada quando da indicação para o tratamento psicanalítico, já que, em pessoas próximas ou acima dos cinqüenta anos, não haveria mais a plasticidade dos processos anímicos de que depende este tipo de trabalho. As pessoas idosas não seriam mais educáveis e, além disso, o material a ser elaborado prolongaria indefinidamente a duração do tratamento.

No mesmo texto, Freud afirma que as psicoses, os estados confusionais e a depressão profundamente arraigada seriam impróprios para a psicanálise. Ressalta que não considera uma impossibilidade absoluta, pois uma modificação apropriada do método poderia levar a superar a contra-indicação no caso das psicoses.

Da mesma forma que em relação ao caso da psicose, Freud mostrou-se um pouco resistente na indicação da psicanálise para os idosos, ao longo de sua obra. Porém, em alguns momentos, parece repensar o assunto, como em seu texto “Sobre a transitoriedade”, em que Freud (1916[1915], p. 317) observa que “a limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”, referindo-se a uma flor que, por durar apenas uma noite, não deixava de ser bela. Comenta que, enquanto a transitoriedade diminui a beleza da flor para uns, para outros, esta seria ainda mais apreciada.

Podemos pensar que, estando o sujeito mais em contato com a própria finitude, o suposto pouco tempo para trabalhar em uma análise seria, talvez, facilitador. É o que Freud observa, de forma poética, no texto acima referido.

Mucida (2004), a partir dessa afirmação freudiana, ressalta que, para alguns idosos, o limite do tempo para se definirem algumas posições subjetivas provoca a emergência do tempo de compreender e de concluir, ou seja, podendo usufruir ainda mais do curto período de uma análise. Nesse caso, tendem a se defender menos, resistindo menos que outros adultos ao tratamento analítico.

Se para a psicanálise há o sujeito do inconsciente e do desejo, logo, independente da idade cronológica, pode haver uma aposta em uma análise. A tese principal de Mucida (2004) está, justamente, apoiada no estatuto do sujeito para a psicanálise. Com Freud e Lacan, o sujeito, referido ao inconsciente, não envelhece, assim como o desejo se caracteriza por seu caráter indestrutível e não dependente da idade. A atemporalidade do inconsciente remete a um sujeito que não envelhece jamais.

Em “Nossa atitude para com a morte”, Freud (1915) afirma que, no inconsciente, cada um de nós está convencido de sua imortalidade, ou seja, o sujeito se comporta como se fosse imortal, não acreditando na própria morte. É somente como espectadores que podemos imaginar algo em relação à nossa própria morte. No inconsciente, onde habita nosso desejo, não há uma representação simbólica da morte, razão pela qual o sujeito crê e, muitas vezes, age como se fosse imortal.

Considerando o postulado psicanalítico do inconsciente, não há como falar em idade cronológica, da mesma forma que não há idade para o desejo, e, enquanto houver desejo, há uma aposta em uma análise. O sujeito é o desejo, tal como Lacan afirmava.

Segundo Mucida (2004, p.31), há diferentes posições subjetivas que o idoso pode ocupar frente ao próprio desejo e a velhice implicaria “um saber vestir esse desejo”. O que acontece, na maioria das vezes, é que a entrada na velhice implica uma ruptura com o desejo, uma vez que é marcada por aspectos puramente negativos. A depressão seria, então, uma possível ‘saída&#';, uma retirada estratégica para evitar o real em cena. A velhice poderia atualizar a problemática da castração a partir do luto do que já se foi e de diferentes perdas significativas. A aposentadoria, por exemplo, pode significar uma perda de poder e prestígio e de laço social, podendo até mesmo ocasionar uma ferida narcísica grave. Para a autora, não há velhice sem luto, ou seja, a velhice implica poder realizar lutos.

Ainda em “Sobre a transitoriedade”, Freud (1916[1915]) indaga por que é tão penosa a retirada da libido dos objetos perdidos. Sua observação o conduz a considerar que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que foram perdidos, mesmo quando um substituto já lhes acena. Ou seja, há uma grande dificuldade no abandono de uma posição libidinal, o que explica o tempo bastante variável para realizar um trabalho de luto.

As perdas advindas da velhice exigem, assim, um trabalho de luto, pois é um momento no qual os rearranjos que o sujeito realizou para enfrentar o real tendem a desmoronar, assim como muitos de seus ideais. Não podemos negar que, apesar da perda não ser um corolário da velhice, estas tornam-se mais freqüentes a partir de certa idade – variável para cada um –, impondo elaborações para a construção de outros ideais. Nesse sentido, a depressão aparece como uma resposta possível ao trabalho inoperante do luto, devendo ser tomada sempre como singular, ou seja, em relação ao sujeito que se diz “deprimido” e ao que seus significantes apontam.

Consideramos que o significante depressão está cada vez mais acoplado ao significante idoso, como se envelhecer ou tornar-se “velho” significasse necessariamente ficar deprimido. Com isso, o velho acaba por ser duplamente excluído socialmente. Observamos, no entanto, que a depressão não se manifesta apenas nos idosos, já que muitos sujeitos entram na velhice quando ainda jovens, ao abrirem mão de seu desejo. É inegável, entretanto, que a depressão tende a surgir, de forma mais incisiva, na velhice, devido ao acúmulo intenso de perdas, conforme abordamos anteriormente.

Tomamos, como ponto de partida, o texto de Freud (1917 [1915]), “Luto e melancolia”, a fim de percorrer, em outros de seus textos, assim como nas contribuições de Lacan e de Melanie Klein, um caminho de delimitação de cada termo, em articulação com aspectos do caso clínico apresentado.

Verificamos que tanto o luto quanto a melancolia, na maioria das vezes, são “reações” diante de uma perda significativa, que pode ser de um ideal ou mesmo de uma “abstração”, como afirmava Freud. Se o luto implica um trabalho de elaboração (Traüerarbeit) frente a uma perda significativa, não sendo, em princípio, patológico, na melancolia não há a possibilidade de simbolizar a perda, tratando-se de uma perda de natureza mais ideal.

A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda a produtividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima – “sentimento de estima de si” – a ponto de encontrar expressão em se recriminar e em se degradar, culminando ainda numa expectativa delirante de punição. No luto, “a perturbação da estima de si” está ausente, assim como a expectativa delirante de punição.

Da mesma forma, a perda que se apresenta no luto diz respeito a uma perda objetal, já na melancolia, a perda objetal transforma-se em uma perda relativa ao eu. Freud (1917[1915], p. 251) afirma que: “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu”.

O paciente melancólico representa seu eu como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível. Na melancolia, há uma identificação narcísica com o objeto, o que explicaria a tendência ao suicídio.

Abordamos algumas semelhanças e diferenças entre a melancolia e a neurose obsessiva, tecendo considerações sobre a pulsão de morte, que se manifesta em ambas as estruturas, assumindo faces diferentes, a saber: pulsão de destruição na melancolia e pulsão de dominação na neurose obsessiva.

Discutimos a relação entre depressão e melancolia a partir de autores contemporâneos, como Urania Tourinho Peres e Antonio Quinet, uma vez que, ao longo da obra de Freud, esses termos aparecem muitas vezes empregados como sinônimos ou acoplados em uma única expressão, tais como ‘depressão melancólica&#';.

Destacamos que, na época em que Freud viveu, não havia um discurso em torno da depressão, como constatamos atualmente em nossa cultura, seja porque as pessoas não viviam até os oitenta ou noventa anos como vivem hoje, seja porque a velhice em si não era uma questão na época.

Enquanto o termo melancolia marcou presença no mundo grego, em Hipócrates e Aristóteles, e entre os autores clássicos da psiquiatria, em que havia uma concepção romântica da melancolia, não sendo vista como doença, mas como própria da natureza do ser; o termo depressão surge apenas mais tarde, com a psiquiatria alemã, sendo concebida como uma doença e até mesmo como o “mal do século”. Na nosologia psiquiátrica atual, a melancolia de outrora cede lugar à depressão, diagnóstico que vem abarcando qualquer queixa de tristeza, na medida em que toda e qualquer tristeza toma ares de “depressão”, devendo ser devidamente tratada e, na melhor das hipóteses, medicada.

O ponto central de nossa dissertação foi a abordagem da depressão como “covardia moral”, formulação de Lacan (1974, p.44), a partir de Espinosa, que exigiu que retomássemos a relação do sujeito com o próprio desejo, já que o sujeito deprimido cede de seu desejo, acovardando-se diante dele:

A tristeza, por exemplo, é qualificada de depressão ao lhe conferir como suporte a alma; ou a tensão psicológica do filósofo Pierre Janet. Não se trata, porém, de um estado d&#';alma, é simplesmente uma falta moral, como se expressa Dante e até mesmo Espinosa: um pecado, o que quer dizer, covardia moral, que só se situa, em última instância, a partir do pensamento, ou seja, do dever de bem-dizer ou de orientar-se no inconsciente, na estrutura.

É justamente quando o sujeito se acovarda frente ao seu desejo, dele abrindo mão, que surge a depressão. Podemos dizer que o sujeito fica inibido, furtando-se ao próprio desejo e, conseqüentemente, a sua determinação inconsciente. A depressão é, portanto, uma reação do eu, que, ‘inchado&#';, recusa aquilo que vem do inconsciente, não querendo saber daquilo que o determina.

Alberti (1989), em “Depressão: o que o afeto tem a ver com isso”, refere que Lacan foi criticado por desconsiderar a questão do afeto, o que se justifica pelo fato deste retomar o tema para explicar não apenas a depressão como a angústia. No Seminário 10, sobre a angústia, Lacan aborda a questão do afeto, partindo do campo da filosofia – de São Tomás a Espinosa. Destaca dois tipos de afeto: a angústia e a depressão, correlacionando-a com a inibição, tratada por Freud (1926 [1925]) em “Inibições, sintomas e angústia”.

No texto mencionado, Freud afirma que a palavra inibição é utilizada quando há uma redução da função, o que ele contrapõe ao sintoma que, na verdade, acrescenta uma nova manifestação da função. A inibição seria, ainda, a expressão da restrição de uma função do eu, através da qual este evita entrar em conflito com o isso, ou seja, com algo que lhe escapa. Dessa forma, o eu empobrece funcionalmente, mantendo, no entanto, sua supremacia sobre o recalque. Na inibição, o sujeito se vê aterrorizado frente ao perigo que o antecipa – castração –, ficando ‘paralisado&#'; diante disso. Há uma tentativa de se antecipar frente ao perigo da castração.

Para Freud (1926[1925], p. 94), portanto, a depressão é uma inibição generalizada, ou seja, “limitações das funções do eu, fugas – por precaução ou por empobrecimento de energia”. Podemos, portanto, associar a depressão à inibição, já que tanto a depressão quanto a inibição são gerados pelo eu – reações do eu.

Mas, de acordo com Alberti (2002, p.156), a depressão é um afeto que aparece no momento em que o eu evita a sua determinação inconsciente, razão pela qual Lacan (1974) afirma que a depressão é basicamente uma “covardia moral”. Ou ainda, como esclarece em Televisão:

a depressão é um afeto normal porque ele reenvia ao fato de estrutura de que nos furtamos de bem dizer nossa relação ao gozo - ao inverso do sintoma, novamente, que surge para dizê-la de alguma forma.

Podemos dizer que a depressão é um afeto que aparece no momento em que o sujeito evita sua própria determinação inconsciente, cede de seu desejo, abre mão dele, “não quer saber” daquilo que o determina.

Na depressão, o eu para não correr o risco de se deparar com a castração, entristece – sendo a tristeza o afeto da depressão, qual seja, uma baixa de energia psíquica –, se deslibidiniza. Há uma perda da libido, que implica em perda de prazer, de investimento libidinal, marcado pela disjunção entre o sujeito e o prazer da libido.

Segundo Colette Soler (apud Alberti, 2002, p.223):

aquele que realmente assume esta inconsistência - ou seja, por que o sujeito precisa ficar doente para se dar conta da enorme verdade de sua inconsistência? -, como se assume a castração, o afeto decorrente não é o de tristeza, pois o encontro com a castração é um horror de tal ordem que não pode provocar como efeito senão o entusiasmo.

Devemos considerar que lidar com a castração, com a falta, ao contrário de provocar tristeza deveria ter como efeito o entusiasmo, já que o desejo pode emergir. Sem falta, não há desejo possível, e, certamente, sem desejo, não há sujeito, na medida em que, para Lacan, o sujeito é o desejo, e mais especificamente desejo do Outro.

Realizamos, ainda, uma breve incursão sobre a teoria da posição depressiva em Melanie Klein, associando o trabalho do luto a um processo que integra a constituição do sujeito, não sendo, portanto, patológico, e que influencia a maneira pela qual o sujeito poderá lidar com perdas futuras. Para a autora, a posição depressiva seria, portanto, estruturante, como formadora da constituição do eu.

Abordamos a relação existente entre o desejo, a falta e a lei, a partir do estudo do grafo do desejo, conforme proposto por Lacan nos Escritos e no Seminário 5 – As formações do inconsciente, para discutirmos a relação entre o desejo e a demanda e, por fim, entre a depressão e o desejo, já que, na depressão, o sujeito cede de seu desejo e, conseqüentemente, burla a falta.

Se a depressão se instala justamente quando o sujeito abre mão de seu desejo, como afirma Lacan, perguntamo-nos o que a análise propõe ao sujeito que se diz “deprimido”?

De acordo com Stella Jimenez (1999, p.202), o desejo constitui “a primeira e única riqueza do ser humano”. Ao operar pela via da palavra, a psicanálise propõe ao sujeito a ética de bem-dizer o seu desejo. A psicanálise, mais especialmente o discurso do analista, no qual o analista ocupa o lugar de objeto a, causa de desejo, poderia auxiliar o sujeito a resgatar seu desejo.

Em oposição à ética defendida pela psicanálise, o discurso capitalista exclui o sujeito, ao tentar renegar/foracluir a falta – o que é da ordem da impossibilidade. A depressão, então, aparece como um produto da cultura que, ao oferecer um verdadeiro arsenal de medicamentos antidepressivos, produz a oferta que cria uma demanda de sujeitos que se ‘encaixam&#'; nessa categoria, digamos assim.

Ao mesmo tempo em que aparentemente acolhe o sujeito, que se agarra a tal significante – tomado aqui mais como signo – irá excluí-lo, já que a depressão contraria os ideais de produtividade e do capitalismo da nossa cultura. Ou seja, da mesma forma que há uma exclusão pela própria cultura, o sujeito sente-se incluído, protegido através desse signo – a depressão.

Tal fato demonstra claramente como opera, de forma paradoxal, o discurso capitalista que “inclui para excluir”, propiciando uma aparente proteção, deixando o sujeito desorientado em relação a sua riqueza maior – o seu desejo.

Assim, o sujeito neurótico ‘histérico&#';, ficando deprimido, encontraria uma maneira de dizer ‘estou fora&#'; dessa cultura maníaca e onipotente, de dizer ‘eu não quero gozar assim&#';. Pode se ‘des-culpabilizar&#'; por não ter que responder aos ideais de produtividade, podendo então, não trabalhar e dormir o dia todo. Na verdade, porém, a única maneira do sujeito não se sentir culpado seria não abrindo mão do seu desejo, já que toda a vez que o sujeito cede diante do desejo, a culpa advém. Em outras palavras, sustentar o próprio desejo, tarefa essa já considerada difícil, tem se tornado quase que impossível na nossa cultura.

De acordo com Alberti (2000, p. 46), o discurso do analista pode, no entanto, vir a ser a “única saída para a ausência de saída do discurso capitalista”, no sentido de subvertê-lo ao reinstaurar a falta e permitir que advenha o desejo. Mas, para que isso aconteça, o sujeito precisa ter coragem, em oposto à covardia do deprimido e pagar um preço por ser desejante.

A psicanálise põe em cena o desejo, possibilitando ao sujeito redimensionar sua forma de lidar com a castração e assumir pagar o preço de sustentar a singularidade de seu desejo.

Partindo do legado de Freud, Lacan considera a castração como o ponto a partir do qual a estrutura se organiza e toma o complexo de Édipo como um ‘operador da estrutura&#';. A castração passou a ser vista como uma lei e o falo como um significante – da falta. A lei à qual o significante está submetido é a lei da castração simbólica, que instaura a falta estrutural, presente para cada sujeito a partir de sua entrada no mundo da linguagem.

Podemos reconhecer que a depressão não é apenas um produto da cultura, que fabrica sujeitos que se encaixem sob esse signo, mas, essencialmente, uma maneira do sujeito evitar lidar com o desejo, não respondendo à demanda do Outro social – ‘Goze!&#'; Imerso no mundo da linguagem, o sujeito se depara com a falta, a todo instante, até mesmo sob a forma de uma depressão, que diz tudo sem nada dizer.

Se a medicina tende a oferecer respostas quase que automáticas, na forma de tentar medicar o mal-estar e a ‘dor de existir&#'; que devem ser eliminados a qualquer custo – como se isso fosse possível –, a psicanálise convida o sujeito a falar, fazendo vigorar a falta. É interessante observarmos que, apesar do avanço da terapêutica antidepressiva, o sujeito continua buscando um acolhimento diverso da medicalização, que a psicanálise pode oferecer.

Acreditamos que a psicanálise ocupa, na atualidade, um lugar ímpar: acena com o caminho do desejo como o melhor remédio para tratar da angústia que é inerente ao ser humano. Pois, como já nos dizia Lacan (1962-63, p.115), “o melhor remédio para a angústia é o desejo”.

Encerramos nosso trabalho, considerando que a depressão é o oposto do desejo. Enquanto o sujeito deprimido cede de seu desejo, a psicanálise começa por ajudá-lo a sair desse estado de ‘letargia&#';, efeito de evitar a falta. Certamente, não há como falarmos em desejo sem considerar a falta, a angústia, enfim, o mal-estar, sempre presente para o ser falante, que, ao falar, reencontra continuamente a falta.

A articulação entre depressão e desejo, que buscamos trabalhar na dissertação, é uma questão que exige a atenção do psicanalista, seja pela atualidade do tema, seja pela discussão sobre o que esta pode revelar acerca do lugar do analista em sua função de instigar o desejo, função esta que consideramos não apenas fundamental, mas única na nossa cultura.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
E-mail
:ericasesiqueira@hotmail.com

Recebido em: 03/12/2006
Aceito para publicação em: 08/05/2007

 

 

Notas

* Psicóloga graduada pela PUC/RJ. Especialista em Psicologia Clínico-Institucional pelo HUPE/UERJ. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da UERJ.

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