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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007

 

RESENHA

 

Tédio na modernidade

 

Tediousness in modernity

 

 

Kátia Flôres Pinheiro*

Doutoranda em Psicologia Social do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do IP/UERJ

 

 

FILOSOFIA DO TÉDIO (190 p.)
Lars Svendsen
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006

 

 

A recente edição brasileira de Filosofia do tédio, de Lars Svendsen, obra originalmente publicada em 1999 (Kjedsomhetens filosofi), na Noruega, tem o atributo de ser instigante, principalmente por levantar questões inquietantes acerca da subjetividade humana na modernidade. A tese central do autor versa sobre o entendimento do tédio moderno a partir do Romantismo, seu alicerce ideativo e marco histórico. Como vivência existencial fundamental, o tédio faz parte da vida humana ocidental, representando uma marca intersubjetiva diante da realidade esvaziada de significações sensíveis. É como estar num mundo desprovido da mínima emoção humana. Relações estereotipadas e estáticas frente aos objetos sem qualidades caracterizam o tédio, na medida em que os objetos perdem as significações e ganham valor de mercadoria.

Ao longo da leitura, fica evidente que o tédio é um fenômeno característico da modernidade e pertinente à realidade subjetiva de todos nós. O autor deixa claro que o tédio é um problema do qual ninguém fica de fora, ninguém é poupado. Um fenômeno tipicamente humano, multiforme e vago e que demanda uma abordagem interdisciplinar. Por meio de uma abordagem dessa natureza, o autor percorrerá pelos capítulos do livro em busca de elucidações e embasamentos para as suas inquietações, destacando o fato de não podemos dar conta sozinhos desse estado de humor. Isso mesmo, o tédio não é simplesmente um estado emocional, mas, sobretudo, um estado de humor que não se deixa capturar tão facilmente.

Raiz das angústias do homem moderno, o tédio exala o tempo vagaroso que nos arrasta para um mundo desprovido de significações e esvaziado de sentidos. Em contrapartida, esse mesmo mundo moderno está repleto de novidades e estímulos talvez tão entediantes quanto a perda de sentido humano experimentada como fragilização das vivências subjetivas. Apesar da produção incessante dessas novidades, “remédios” para as frustrações advindas do tédio, o tédio veio para ficar, salienta Svendsen. No entanto, é prudente aprender a conviver com ele. Afinal, na contramão do tédio, o que está em curso são mecanismos de escape a movimentar o homem a driblar o tédio na busca de ilusões de felicidade.

Desde o início do livro, Svendsen parece querer alcançar desde o mais simplório dos homens até o mais erudito, desenhando um panorama que afeta a todos. Numa linguagem ora poética e coloquial, ora densa e filosófica, nos faz ver o quanto somos literalmente dependentes daquilo que não temos, do quanto somos viciados na busca de conteúdos que possam dar sentido à vida. Além disso, estabelece uma reflexão arrojada sobre o tédio, considerando diferentes pontos de vista. Seja através da filosofia, da literatura, da psicanálise e da arte em geral, o autor está interessado nas origens e nos dissabores do tédio, como tentativa de reviravolta favorável à ressignificação da existência. Na investigação para essa reviravolta está o grande mérito do texto, uma vez que torna viável a perspectiva de que o problema do tédio possa ser apreendido de diferentes pontos de vista.

No decorrer de suas reflexões, o autor se debruça sobre o tédio existencial, um tipo de tédio profundo, desconhecido e angustiante, que se refere à perda de significado humano diante da vida, do mundo e da realidade. O tédio também incorpora a noção de subjetividade enquanto manifestação da consciência de si, quando implica demanda pelo que faz sentido, ou seja, por significação. Em contrapartida, esta própria noção de subjetividade pode ser insuficiente para dar conta do problema do tédio. No geral, o tédio representa a realidade subjetiva que desordena o mundo e coloca o homem frente a um tipo de morte, a morte da significação. Significação esta necessária à vida humana e à qual corremos em direção, na contramão do tempo, por meio das novidades da modernidade como via de solução.

Ao considerar tais idéias, Svendsen convoca, ou melhor, convida diversas disciplinas a discutirem sobre o tema do tédio e garante ser preciso mais que uma abordagem formalizada ou vontade própria para sua compreensão. É fundamental entender no tédio a ausência de significado, ao mesmo tempo a presença em potencial da própria significação. A idéia pode ser assim enunciada: o tédio é ele mesmo o problema e a solução.

A cada página percorrida, temos a sólida impressão da inesgotabilidade do tema. Como fenômeno da modernidade, o tédio está além da angústia humana, um vazio pela falta de experiências significativas acumuladas. Já como dimensão subjetiva, carece da consciência de si ou reclama por significações que são no geral consumidas, a bem dizer, naquilo que a modernidade foi construindo como caminho para as realizações. De tal modo acabamos por encontrar na modernidade uma infinidade de significações substitutas para ocupar o lugar das significações humanas.

Organizado de forma a tornar o assunto do tédio um tema mais próximo, sem comprometer sua densidade intelectual, o livro é composto de quatro capítulos: O problema do tédio, Histórias do tédio, A fenomenologia do tédio e A ética do tédio, apresentando um prefácio e um posfácio, que têm a função de deflagrar e costurar as idéias centrais do texto. No primeiro capítulo, Svendsen propõe situar a questão do tédio como fenômeno cultural da modernidade. O problema do tédio, ao mesmo tempo em que encarna aspectos inerentes à subjetividade e à expansão do individualismo a partir do Romantismo, se articula aos dispositivos sociais do mundo ocidental. Ao repensar o tédio, tendo em vista filósofos clássicos e modernos, poetas como Fernando Pessoa, dentre tantos outros, o autor nos ampara frente às possibilidades de compreensão do assunto, porém nos deixa desamparados quando mostra a inexistência de uma única natureza do tédio ou algo concreto que dê conta de esclarecê-lo definitivamente.

Examinando criticamente escritos literários e filosóficos, torna evidente ser o tédio uma noção complexa e inabordável numa única perspectiva. Um tema que envolve perda de significados pessoais, esgotamento de sentidos, desconforto diante da vida, a relação com o mundo, repetição e usos e abusos de formas substitutas. Portanto, o autor coloca em cena uma densa discussão para tentar orientar-nos frente ao tédio, quando, por exemplo, desejamos fazer algo e não podemos ou quando fazemos sem ao menos querermos. É o tédio existencial. Ao mesmo tempo, ausência de sentido no esvaziamento das significações, contribuindo para a indiferença diante vida, e componente crítico no desejo por significações, implicando o contato do sujeito compromissado com o mundo.

Já o segundo capítulo apresenta uma elaborada discussão crítica, tomando como base histórias que possibilitam o entendimento do tédio, um fenômeno inesgotável. Percorrendo reflexões de diversos pensadores, Svendsen demonstra como o tema é pertinente quando se trata da vida na ociosidade, da morte desconsiderada, da monotonia, da diversão como ilusão, do tempo aprisionado e da cultura da máquina. Do tédio romântico à incapacidade de agir, o tédio é a mais pura expressão do desencanto.

E assim o homem moderno tem diante de si um grande problema: como preencher a vacuidade de significações deixadas pelos recursos religiosos e tradicionais? Além disso, temos a impressão que as argumentações do autor caminham no sentido dramático do tédio, na fatalidade com que o homem sem autonomia é incapaz de reconhecer a si mesmo, almejando alcançar a felicidade pessoal inatingível. O autor constantemente ilustra seus pensamentos como no romance Crash, que virou filme, ao retratar a realidade entediante do mundo em que vivemos e que se configura cada vez mais na frustração de tentativas de se libertar do tédio. De certo modo, ele coloca o tédio como centro ou causa das problemáticas humanas, a exemplo do fenômeno da violência. Uma violência também direcionada para o próprio corpo, que não mais satisfeito consigo mesmo, busca na tecnologia a fonte do prazer e o distanciamento do tédio.

No terceiro capítulo, Svendsen se debruça sobre a fenomenologia do tédio em Heidegger. Entre algumas proposições iniciais, o tédio é abordado como uma forma de humor, uma atitude de ser e estar no mundo. Humor como o que abriga, simultaneamente, internalidade e externalidade, o estar no mundo como um todo. “Um mal” que se manifesta de diferentes maneiras, sem causas ou determinações delimitadas. Não se localiza no homem ou no mundo, mas está na confluência de ambos. Um tipo de humor diferente, no qual se dissipam as possibilidades e cuja presença independe da nossa consciência sobre ele. Logo, existiria algo no tédio que escapa à nossa percepção e apreensão e, para aprofundar este ponto de vista, o autor lança mão do conceito de Dasein, de Heidegger. Neste, o tédio como humor também é fundamental para se alcançar a própria significação do ser, bem como refletir acerca do problema do tempo, questões básicas do Dasein e do filosofar. No entanto, isto não é tão simples assim, como considera o autor ao desnudar essa posição filosófica.

O quarto capítulo trata da ética do tédio e o autor de imediato declara que para o tédio não há saída. Apesar do problema do tédio ser insolúvel, desvenda em parte como nos posicionamos diante da vida, o modo como vivemos. Este momento do texto compreende um dos aspectos mais relevantes da obra. É quando nos aponta não soluções, mas meios de reconstrução das próprias significações que levem em conta conviver com o tédio como possibilidade de enfrentamento da solidão, da vida, da finitude, da dor e do sofrimento. Isto é o que representa amadurecer, reconhecendo o tédio como uma presença não necessariamente insuportável, mas possibilidade de modificação da natureza do problema do tédio.

Ainda neste capítulo, o autor explora, por trilhas interrogativas, o lugar do humano no mundo, em que o fazer torna-o eu-no-mundo. Inclusive suspeita que estejamos ultrapassando o tédio, face à aceleração do tempo nos dias de hoje. Entretanto, isso não passa de uma suspeita, visto que, mesmo não sendo percebido, o tédio se faz presente. Na satisfação ou frustração, o tédio sempre aparece para nos mostrar que tudo é insuficiente para matar a sede que o homem moderno tem de realização e felicidade.

Svendsen, neste cuidadoso livro, aborda o problema do tédio numa perspectiva filosófica crítica e reflexiva, não se atendo exclusivamente à filosofia, mas consultando outras fontes de saber e a cultura da arte, esclarecendo que todos, de alguma maneira, contribuem significativamente para o tema. Com competente maestria rege argumentos e tece concepções diante de realidades diversas, quando o assunto é o tédio. Assim sendo, segue livro adentro, dando ênfase à perspectiva de conscientização do tédio, forma pela qual é possível extrair significações.

Em praticamente todo o livro, o autor nos instiga a permitir a presença do tédio como meio de alcançar significações para a existência. Nesse cenário, arrisco-me a dizer que nos faz o seguinte pedido: que enfrentemos a existência com o tédio, o transformemos em fonte de sentido para a vida e não o aprisionemos, caso contrário estaremos em risco. O risco de uma existência insignificante. Por fim, algumas recomendações. Vale a pena ler o livro para aqueles que aspiram enveredar pelos aspectos da subjetividade do homem moderno, no entanto estejamos preparados também para mergulhar no tédio que reside em cada um nós.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: katiafp39@yahoo.com.br


Aceito para publicação em: 13/06/2007
Recebido em: 11/06/2007

 

 

Notas

* Psicóloga Clínica e Educacional. Mestre em Psicologia Social.

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