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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.7 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2007

 

APRESENTAÇÃO

 

Estudos urbanos & Psicologia Social

 

 

Ana Lúcia Gonçalves Maiolino I; Deise Mancebo II

I Professora Visitante do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Coordenadora do Dossiê Cidades
II Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Membro da Comissão Editorial da Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia

 

 

Quando há um ano imaginamos o lançamento de um Dossiê Cidades pela Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, tínhamos em mente duas premissas: a importância dos estudos urbanos para a Psicologia Social e o fato de que estes estudos são intrinsecamente transdisciplinares.

A primeira grande premissa–motivação assentava-se sobre o fato de que o mundo, tanto na esfera pública quanto privada, se encontra, na atualidade, irrefutavelmente marcado por conformações espaciais, políticas, administrativas, sociais, subjetivas, que se produzem nas cidades.

Tínhamos como claro pano de fundo o intenso processo de urbanização mundial que ocorrera a partir da Revolução Industrial, no século XIX, transformando os aglomerados urbanos, para além de centros políticos e administrativos, em locais de produção e de consumo.

Também nos vinha à mente o alcance e os efeitos desse processo sobre os países subdesenvolvidos no Ocidente. A formação e a consolidação das grandes cidades na América Latina, e em especial no Brasil, durante as décadas de 50 e 60 do século XX, resultantes do intenso êxodo rural no período, conformavam um conjunto de evidências que se rebatiam sobre toda nossa experiência acadêmica – teórica e empírica –, mas igualmente vivida, sentida, na sujeira do chão e constantemente atualizada em nossas vidas cotidianas.

A precariedade de infra-estrutura que caracteriza nossas cidades; a distribuição desigual – quantitativa e qualitativamente – dos bens e serviços; as disputas pelo uso da cidade; o déficit habitacional, especialmente dramático para as populações de baixa renda; as políticas públicas frágeis, descontínuas e majoritariamente aderidas aos interesses econômicos hegemônicos; as diferenciações de classes – sutis ou truculentas – que desembocam na reprodução constante de estigmas e dores a parcelas consideráveis da população. Estas e outras tantas condições tipicamente urbanas nos pareciam ser vetores potentes, evidentes e inquestionáveis dos processos de subjetivação que concorrem à construção dos sujeitos contemporâneos.

Neste contexto, forças repressoras e obliterantes de expressões e vivências pessoais e sociais surgiam em nossas pesquisas, mas, igualmente, detectávamos possibilidades de reação, tentativas miúdas de encontrar modos de vida que incluíam o desejo ativo de estar vivo, buscando as soluções possíveis a cada situação. Ao lado, ou melhor, atravessando os grandes discursos e as grandes “políticas”, nos deparávamos com sabedorias insuspeitas e maleabilidades, onde parecia haver se cristalizado o abandono mais irremediável, a desesperança mais enraizada.

Lócus privilegiado de reprodução de configurações subjetivas calcadas na interioridade e na individualidade, heranças de nossa trajetória cultural ocidental dos últimos dois séculos, bem como na fluidez e instabilidade, quesitos que parecem básicos aos ideais e à prática do capitalismo avançado, o fato é que a cidade e seus homens, olhados de perto, nos pareciam tanto reprodutores de condições já dadas, quanto disruptores do hegemônico, embaralhando influências e provocando desvios em pretensas certezas.

É preciso salientar que não estamos aqui fazendo apologia de criatividades individuais, consolidado legado do romantismo e do liberalismo de um século atrás. Mais próximos a Pierre Bourdieu (1998), defendemos que toda expressão individual carrega sempre a marca da sociedade de sua época, e de Michel Foucault (1979), resgatamos as noções fundamentais de que os poderes são exercidos de diversos lugares e que, à exceção dos regimes autoritários, há sempre uma possibilidade de reação por parte dos indivíduos.

Assim, a importância que legamos aos estudos urbanos, como psicólogas sociais, diz respeito a esse conjunto de circunstâncias que conformam um complexo campo de forças, no qual se produzem os homens contemporâneos. Neste sentido, tentar entender os sujeitos, sem tratar das cidades, do que se desenrola no seu solo, do ar que circula, das contenções ou liberdades, das relações ou isolamentos que se movem ou se petrificam na sociedade e no espaço urbano, nos parece pouco, restrito, por demais incompleto e incompreensível.

Quanto à segunda premissa – o fato de os estudos urbanos serem intrinsecamente transdisciplinares – é importante que se esclareça que não é gratuita a seleção da palavra. Não cremos na cena permitida, timidamente, pela multidisciplinaridade – mera justaposição de conceitos e análises provenientes de diferentes áreas do conhecimento. Não se trata de enfileirar produções, arrumando-as em prateleiras, mas de misturar leituras, conceitos e análises, multifacetadas, perdendo-os, reencontrando-os, deixando que, incomodamente tantas vezes, penetrem em nossas carnes, mentes e afetos, formando novos sentidos e permitindo novas compreensões.

Com essas motivações em curso, nos propusemos a lançar a idéia do Dossiê Cidades, convocando pesquisadores que cruzaram nossos caminhos em variadas circunstâncias: encontros rápidos e instigantes em congressos, antigos mestres, colegas e alunos que compartilhavam nossas inquietações e interesses. Contamos com muitos aliados na divulgação e, sem nos preocuparmos com as formações acadêmicas, “aliciamos” psicólogos, sociólogos, antropólogos, historiadores, geógrafos e comunicólogos, dentre outros, a escrever para uma Revista de Psicologia.

O resultado compõe o Dossiê que ora apresentamos!

Ele inicia com três textos que articulam e analisam a cidade, seus sujeitos e manifestações artísticas. Heloisa Guimarães Peixoto Nogueira (UFRRJ) e Giovanna Ferreira Dealtry (PUC-Rio), com a literatura, e Walcler de Lima Mendes Junior (IPPUR/UFRJ), com a música popular, buscam através de diferentes trajetórias teóricas e momentos históricos diferenciados investigar as configurações humanas na cidade, sua busca por segurança no espaço público, a fixação de sentidos de urbanidade que a arte pode promover no imaginário social difundindo condutas e códigos de como viver e sobreviver à cidade, bem como o seu contrário, a transgressão sempre possível de se realizar.

Seguem quatro artigos que, apesar de se embasarem em aportes teóricos distintos e pesquisas empíricas realizadas em espaços diversos, tentam problematizar a trama urbana sob o prisma da problemática social, dos mais pobres ou dos que mais sofrem com as adversidades das cidades. O texto de Juliana Michaello M. Dias (IPPUR/UFRJ), a partir do discurso situacionista e de sua proposta de atuação no espaço urbano, procura dar visibilidade à perda de um certo “caráter lúdico” nas cidades; o de Luciana Vanzan da Silva (IPPUR/UFRJ) aborda a experiência de ocupação de um prédio abandonado na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2004, analisa a experiência/vivência no cotidiano da ocupação, destacando o que escapa ao hegemonicamente preconizado para a vivência do espaço urbano; o artigo de André Ricardo Salata (UERJ) discute mudanças contemporâneas em tradicionais bairros operários, sua transmutação em “novas” localidades da pobreza urbana e explora a maneira como indivíduos e suas trajetórias de vida interagem com esse tipo contemporâneo de bairro popular e o de Ana Lúcia Gonçalves Maiolino e seu grupo de pesquisa (UERJ) que aborda a interpelação exercida pelo espaço urbano nos processos de subjetivação do homem contemporâneo, mas com especial atenção a situações relacionadas ao direito e ao uso social do solo.

Os dois textos seguintes discorrem sobre as complexas relações entre cidade, consumo, sociabilidade e indiferença: o de Isleide Arruda Fontenelle (FGV/SP) parte do projeto arquitetônico das lanchonetes que se desenvolveram à beira das rodovias americanas, demonstra como a cidade integra o ideal capitalista e como essa integração ocorre a partir do “ideal de segurança” e o de Jorge Coelho Soares e Gisela Verri de Santana (UERJ) que se apóia na análise da indústria imobiliária, para abordar o sujeito urbano como consumidor, que tem a moradia como sonho, ideal e meta de vida, como um símbolo de seu sucesso e distinção social.

Os próximos quatro artigos debatem a cidade a partir das “fixações” físicas e subjetivas que podem ocorrer a partir de dispositivos variados, bem como das criações e apropriações que podem (e são) construídas, permanentemente, pelos que a habitam. Paulo José Lisboa Nobre (UFRN) aborda a legislação urbanística da cidade de Natal que procura preservar as características da paisagem local e a constante pressão exercida pelo setor da construção civil, no sentido de abolir ou modificar esse instrumento legal, destacando a necessidade de se considerar valores subjetivos (culturais e afetivos) da paisagem nesta discussão. Eneida Maria Souza Mendonça (UFES) apresenta o conceito de desenvolvimento sócio-espacial, inserindo como alternativa propositiva a promoção de interatividade, que envolva os diversos segmentos relacionados à criação, à apropriação e à manutenção do espaço público. Kleber Jean Matos Lopes (UFS) analisa a produção de não-lugares no mundo contemporâneo e a urgência em se produzir na vida urbana, outras possibilidades existenciais distintas do egoísmo consumista, espaços de convivência entre as diferenças que emergem na vida urbana. Aristóteles de Paula Berino (UFRRJ) e Luis Antonio dos Santos Baptista (UFF) debatem a política curricular do município do Rio de Janeiro, analisando como a essencialização do sujeito e da diferença fabricam identidades acomodadas a uma determinada noção de ordem pública e paz na cidade.

O último artigo do Dossiê é de Stefan Gandler, Professor Titular da Universidad Autónoma de Querétaro (México) que, na contra-corrente do que domina em boa parte dos escritos acadêmicos, analisa a íntima relação existente entre igualdade, por um lado, e diferença e identidade, por outro, a partir de uma densa discussão baseada no contexto filosófico onde esses conceitos se inserem e na realidade histórico-política que os forjaram.

Fechando o dossiê são apresentadas três comunicações de pesquisa – “A representação social da moradia”, de Mauro César de Oliveira Santos (FAU/UFRJ); “A campanha contra o ‘caveirão’ no Rio de Janeiro” de Alexandre Almeida de Magalhães (UERJ) e “Cultura e cidade em faixa de risco” de Cléia Schiavo Weyrauch (UERJ) – e a resenha de Stefania Chiarelli (UFF) sobre o livro “Deserdados: dimensões das desigualdades sociais”, resultado de discussões desenvolvidas pelo Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais - LEDDES-UERJ.

Como organizadoras desta edição da Revista, agradecemos a colaboração de todos – produtores dos textos advindos de diversas áreas, consultores ad hocs, comissão editorial e secretaria da Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia – que com seu trabalho contribuíram para a realização desse Dossiê.

Aos leitores, apresentamos essa produção coletiva, com os votos de uma instigante leitura!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, P. (Org.) A miséria do mundo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 587-593.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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