SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 issue2Hypercities, consumption and habitation: from inhabit need to desire of dwellingUsing public space: some concepts author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.7 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Patrimônio-paisagem: função social da cidade

 

Landscape as patrimony: urban social function

 

 

Paulo José Lisboa Nobre*

Professor de Paisagismo do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN

Endereço para corresponência

 

 


RESUMO

Entende-se que paisagens singulares se constituem em patrimônios culturais das cidades, na medida em que fazem parte do cotidiano dos cidadãos e estão presentes nas representações sociais. Natal, Rio Grande do Norte, é uma cidade com qualidades ambientais marcantes e se destaca pela beleza do sítio onde está assentada. A legislação urbanística procurou preservar as características da paisagem local, instituindo Áreas de Controle de Gabarito, destinadas a proteger o valor cênico-paisagístico de alguns trechos da cidade. Em contrapartida, o setor da construção civil tem exercido constante pressão, no sentido de abolir ou modificar esse instrumento legal. Este trabalho tenta levantar elementos sobre o tema no âmbito local, no sentido de que a experiência de Natal e seu estudo de caso possam contribuir para formular indicativos capazes de questionar a não mensuração de valores subjetivos, como, por exemplo, o valor cultural e afetivo da paisagem.

Palavras-chave: Paisagem, Patrimônio, Legislação urbanística.


ABSTRACT

It is understood that singular landscapes constitute the cultural patrimonies of the cities, once they are part of the daily life of the citizens and are present in their social representations. Natal, Rio Grande do Norte, is a city where the ambient qualities are well defined and known by the beauty of the area where it is located. The urban legislation tried to preserve the features of the local landscape delimiting “Areas for Controlling Building High”, destined to protect the scenic value of some parts of the city. On the other hand, the civil construction sector has made constant pressure in sense to abolish or to modify this legal instrument. This work tries to raise elements about the subject at local level, in sense to use Natal City experience to contribute for the formulation of indicators to raise the question about the lack of measure for subjective values, for example the cultural and affective value of the landscape.

Keywords: Landscape, Patrimony, Urban legislation.


 

 

Introdução

Estudos recentes acerca da paisagem investigam as atividades impactantes que contribuem para a sua modificação e buscam melhor compreender a sociedade através das marcas do cotidiano nela impressas. Paisagens singulares se constituem em patrimônios culturais, na medida em que fazem parte do cotidiano e estão presentes nas representações sociais. Alguns autores contemporâneos defendem a preservação da paisagem natural e urbana, buscando sua importância na construção da identidade cultural dos habitantes do lugar. No Brasil, desde os anos 1930, a paisagem se constitui em patrimônio histórico e artístico nacional, caracterizada como um bem sujeito a tombamento quando considerada monumento natural ou agenciado pela indústria humana. O Estatuto da Cidade ratifica o entendimento da paisagem como um patrimônio, na medida em que a cita em dois de seus artigos, relacionando sua preservação e proteção à qualidade de vida da população. Por sua vez, o Plano Diretor de Natal, em vigor desde 1994, objetiva o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade e assegura a preservação, proteção e recuperação do meio-ambiente e da paisagem urbana.

Natal é uma cidade com qualidades ambientais marcantes e se destaca pela beleza do sítio onde está assentada. As características do seu suporte físico possibilitaram a configuração de uma paisagem marcada pela dialética entre os elementos naturais e os construtos humanos. Porém, essa relação começou a mudar com a intensificação do processo de verticalização, em curso na cidade desde os anos 1960. A legislação urbanística procurou preservar as características da paisagem local, instituindo Áreas de Controle de Gabarito, destinadas a proteger o valor cênico-paisagístico de alguns trechos da cidade. Em contrapartida, o setor da construção civil tem exercido constante pressão, no sentido de abolir ou modificar esse instrumento legal, visando lucros que foram potencializados, nos anos 1990, pelo consumo e qualificação do espaço urbano para as atividades turísticas.

Os elementos naturais, hoje inseridos na malha urbana de Natal, representam fortes referências visuais, fornecem identidade ao tecido urbano, fazem parte do imaginário coletivo e se destacam no contexto social da cidade. É preciso que surjam novos elementos para reforçar a discussão sobre a preservação da paisagem no processo de produção do espaço urbano para que esse patrimônio seja assegurado para as gerações futuras. A contribuição deste trabalho ao avaliar o Estatuto da Cidade se constitui em apresentar a experiência de Natal, questionar as formas de implementar e garantir as intenções previstas na legislação urbanística, bem como discutir seus limites enquanto meio de alcançar o equilíbrio ambiental e social das cidades brasileiras.

O presente trabalho está estruturado de forma a apresentar inicialmente um breve quadro teórico acerca do conceito “paisagem”, relacionando a evolução do pensamento científico no campo da conservação ambiental às ações legais no sentido de preservar sítios notáveis enquanto patrimônios paisagísticos. A seguir, são traçadas considerações sobre o entendimento da função social da cidade e, numa perspectiva histórica, sobre a preservação da paisagem na legislação urbanística brasileira e, mais recentemente, no Estatuto da Cidade. Finalmente, é apresentado o caso de Natal, enfocando a preocupação constante com a manutenção da singularidade da paisagem local no debate urbanístico, que permeia os conceitos e as diretrizes do seu atual Plano Diretor.

 

A paisagem e as relações entre o homem e a natureza

A expressão “paisagem” normalmente corresponde à imagem do cartão-postal e está associada a paragens bucólicas, recantos aprazíveis ou sítios notáveis com visuais grandiosos. Trechos do litoral, florestas, desertos, lagos e montanhas são frações da natureza que, por si sós, correspondem ao ideal de paisagem presente no imaginário social. No entanto, está implícita na paisagem a dialética entre as características físicas do planeta e o próprio homem, cujos artefatos construídos dialogam com o cenário natural. Os arranjos resultantes dessa dialética são o ponto de partida para a concepção das idéias ou representações das diversas frações da superfície terrestre. As pesquisas e discussões acerca da paisagem, bem como a preocupação em preservar o seu caráter singular, situam-se tradicionalmente no campo da geografia e têm origem na investigação das relações entre o homem e a natureza e das suas representações em distintos grupos sociais. Esses estudos apontam para a necessidade de se preservarem determinados atributos da paisagem como um bem coletivo e enquanto marca do trabalho humano acumulado ao longo do tempo.

O interesse científico acerca das relações de troca entre o homem e a natureza e das suas representações em forma de paisagens remonta ao século XVIII, como conseqüência das viagens de colonização (DEMANGEON, 1952, p. 01). Tais viagens atraíram naturalistas e exploradores animados pela curiosidade científica, possibilitaram a comparação entre as sociedades humanas situadas em diferentes graus de civilização e geraram estudos que culminaram com o surgimento da geografia humana, definida como o estudo dos grupamentos humanos em suas relações com o meio geográfico. Portanto, preservar determinados atributos da paisagem significa proteger o legado cultural de uma certa comunidade para as gerações futuras. É importante acrescentar que, até o século XVI, a palavra paisagem não estava incluída em nenhum idioma europeu (BERQUE, apud LOPES JÚNIOR, 2000, p. 50).

Segundo Milton Santos (1997, p. 63), até o fim do século XIX, persistiu entre os geógrafos europeus a idéia de que a geografia correspondente a cada grupo social seria explicada pela sua própria ação sobre o meio, de forma que a paisagem e a região estariam diretamente associadas. Para o autor, no início da história do homem – pela dificuldade de comunicação entre os grupos sociais – e, na Europa, pela personalidade de cada região, construída com fortes traços do passado, era possível afirmar que se geravam paisagens únicas para cada região, de acordo com os meios de trabalho e as condições físicas de cada região do planeta. Atualmente, no entanto, tal associação direta não é mais possível. Com a velocidade das evoluções tecnológicas e a facilidade das trocas de informações, os aspectos das construções humanas em muitos casos se assemelham, independente da região em que se localizam. Hoje, a paisagem não pode ser mais associada à região, resultando, freqüentemente, unificada e impessoal, composta por vezes de espaços sem identidade, definidos como não-lugares1. Essa questão reforça ainda mais a necessidade de se preservarem os aspectos culturais e as representações sociais, lugares que configuram paisagens diferenciadas, hoje raras num mundo “globalizado”.

A introdução de variáveis como a cultura e, posteriormente, o tempo, representa um grande avanço no entendimento da paisagem, na medida em que toda mudança reflete o momento vivenciado por um determinado grupo social. Nessa perspectiva, foi possível investigar a composição da paisagem a partir de marcos históricos, reconhecer a importância dos processos que a consolidaram e fazer a ligação entre o espaço e o tempo. Embora, sob o ponto de vista do recorte histórico, a análise da paisagem possa gerar pontos de vista diferentes e, por vezes, antagônicos, esses estudos contribuíram para despertar o interesse em preservar na paisagem o seu caráter singular. Tornou-se possível reconhecer a importância das marcas do tempo e da história como um produto resultante das trocas entre o homem e a natureza, impresso na paisagem.

A paisagem é composta por frações de formas naturais e artificiais, que se constituem num conjunto heterogêneo em que se torna difícil distinguir o que é natural do que é artificial. Pesquisas que objetivam entender as forças de encaixe de que se compõe a paisagem são importantes meios para justificar a sua preservação, principalmente em sítios que se urbanizam ou se transformam rapidamente, para que não se percam as características locais, presentes nas representações sociais. A importância dos estudos que consideram o individual e o singular impressos na paisagem, em oposição ao caráter uniformizante das transformações espaciais próprias da sociedade contemporânea, reside no fato de que estes se constituem no aporte teórico necessário a qualquer ação legal que vise à defesa ou à preservação desses aspectos.

De forma abrangente, Santos (1997, p. 61) define que

Tudo aquilo que vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons, etc.

Essa definição deixa clara a característica de dinamicidade conferida à paisagem pelo autor. Sua transformação não está relacionada apenas ao trabalho humano, pois a natureza possui ciclos que se expressam de forma espontânea, numa linguagem sazonal composta de cores e formas. Além disso, o autor associa a percepção da paisagem a alguns sentidos humanos: a visão, que divisa e diferencia o entorno; o olfato, que identifica os odores; e a audição, que percebe os sons. Ressalta, assim, as funções psicofisiológicas pelas quais os seres humanos recebem as informações sobre o meio externo, sejam de natureza física ou química.

Se a realidade é apenas uma, cada pessoa a vê de forma diferenciada; dessa forma, a visão pelo homem das coisas materiais é sempre deformada. Nossa tarefa é a de ultrapassar a paisagem como aspecto, para chegar ao seu significado (SANTOS, 1997, p. 62).

Observa-se, portanto, que a percepção da paisagem é apresentada por Santos como um processo seletivo e individual.

Ana Fani Carlos (1994, p. 43), cujos estudos contribuem para essa discussão, afirma que a paisagem, enquanto manifestação do urbano, tende a revelar uma dimensão necessária da produção espacial, o que significa ir além da aparência. A autora aborda a importância de se considerar o processo de produção do espaço ao longo do tempo: “A paisagem de hoje guarda momentos diversos do processo de produção espacial, remetendo-nos ao modo pelo qual foi produzida” (p. 43). Tal qual Santos, citado anteriormente, Carlos defende uma análise da paisagem que ultrapasse o mero aspecto fisionômico, bem como ressalta a importância de se considerar no processo analítico a variável tempo. Para a autora, a paisagem possui dois movimentos: aquele que decompõe a paisagem geográfica a partir da consideração do sítio urbano e o que recompõe os elementos da paisagem. “A paisagem urbana é a expressão da ordem e do caos, manifestação formal do processo de produção do espaço urbano, colocando-se no nível do aparente e do imediato” (CARLOS, 1994, p. 44). Os movimentos da paisagem urbana, mencionados acima, decorrem do fato de que é impossível construir cidades sem modificar os elementos naturais pré-existentes. A paisagem é recomposta da forma possível pelo trabalho humano, através da adequação dos elementos construídos, meios necessários à reprodução da força de trabalho, ao suporte físico.

No Brasil, diante da efeméridade das formas arquitetônicas, dificilmente percebemos a convivência de momentos históricos distintos materializados na paisagem urbana, ao contrário de outras cidades nos países desenvolvidos. Desapareceram da maioria das nossas cidades o casario colonial e os palacetes ecléticos. Nem mesmo foram poupados os edifícios remanescentes da festejada arquitetura modernista brasileira, disfarçados sob reformas de gosto duvidoso ou substituídos por novas formas e escalas altamente verticalizadas. Diante dessa realidade, que transforma a paisagem com grande rapidez, tornou-se necessário disciplinar a produção do espaço urbano através da legislação, originando medidas que impõem limites ao processo de uso e ocupação do espaço urbano.

Os signos contidos na paisagem são de grande importância no cotidiano das cidades. Vale destacar que a paisagem possui a importante função de alimentar a memória social, além de se caracterizar no cenário em permanente transformação, em que se desenvolve a vida. Essa renovação constante, característica própria da paisagem, reforça a necessidade da sua preservação, na medida em que nela estão impressas as trocas entre o homem e a natureza, próprias de um determinado lugar.

Paralelamente ao desenvolvimento da geografia, outros campos da ciência buscavam compreender as ações humanas sobre a natureza, como a história natural e a ecologia. Tais estudos se disseminaram entre os cientistas e intelectuais do século XIX e se configuraram no contexto necessário para o surgimento da conservação ambiental. De acordo com Maria Assunção Franco (2000, p. 89), a conservação ambiental pode ser entendida como o convívio e harmonia do homem com a natureza com o mínimo de impacto possível, sem esgotar os recursos ambientais, permitindo a vida das gerações futuras. Tal entendimento está inserido no conceito de desenvolvimento sustentável, que é aquele capaz de suprir as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade de atender às necessidades das futuras gerações, ou seja, é o modelo de desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro. Segundo a autora:

A conservação ambiental só tomou forma a partir de obras literárias memoráveis produzidas por pensadores e filósofos americanos do século XIX. Em meados do século XIX, a abertura de ferrovias e o desenvolvimento davam acesso a regiões selvagens, o que acelerou a devastação de suas paisagens, antes ilesas. (FRANCO, 2000, p. 90).

As primeiras preocupações em torno da necessidade de preservar a paisagem se desenvolveram simultaneamente à idéia da conservação da natureza. No século XIX, foi concebida nos Estados Unidos a criação de parques e reservas naturais, visando proteger a vida selvagem (wilderness) ameaçada pela civilização urbano-industrial, destruidora da natureza (DIEGUES, 2000, p. 13). A concepção de áreas naturais protegidas foi influenciada pelo desenvolvimento da história natural e do naturalismo, corrente que entendia que a natureza só poderia ser preservada afastando-se dela o homem. Foram então criadas naquele país as primeiras unidades de conservação, onde não deveriam existir moradores, como os parques de Yellowstone (1872) e Yosemite (1890), pensados como ilhas em que o homem pudesse apreciar e reverenciar a natureza, refazendo-se da vida estressante das cidades (DIEGUES, 2000, p. 24). Para os idealizadores desses parques, pedaços do mundo natural em estado primitivo seriam preservados, mesmo que a biosfera fosse totalmente transformada. Portanto, esses pensadores estavam imbuídos de um sentimento de preservação da paisagem, na medida em que as áreas protegidas se constituiriam numa forma de representação das características físicas do país, caso a paisagem natural fosse completamente modificada pelo homem.

Tais pensamentos foram fundamentais para a conscientização do esgotamento dos recursos naturais, possibilitando o desenvolvimento de diversas investigações científicas no campo da ecologia. Nesse contexto, as conseqüências nefastas do desenvolvimento industrial possibilitaram ações concretas no sentido de preservar espaços com atributos ecológicos de riqueza natural e estética. O mundo natural foi valorizado, iniciando-se os movimentos que culminaram nas primeiras tentativas de proteger o meio-ambiente, e conseqüentemente a paisagem, a partir da criação de reservas naturais regulamentadas por uma legislação específica.

Essas idéias surgiram antes, na Europa, onde a vida nas cidades havia se tornado insustentável após a Revolução Industrial. De acordo com Franco (2000, p. 89), pensadores europeus como Viollet-le-Duc, John Ruskin e William Morris vinham buscando os valores de pureza e simplicidade como opositores dos avanços tecnológicos. Houve então uma idealização da vida no campo, também influenciada pelo movimento romântico, que possibilitou a compreensão do mundo natural num sentido oposto da visão racionalista, que só apreciava a regularidade e a simetria da natureza subjugada pelo homem. Como exemplo dessa mudança de atitude, a autora cita que os jardins bem aparados foram substituídos pelos jardins de estilo inglês, com formas irregulares e assimétricas inspiradas nas paisagens silvestres naturais.

O interesse pela conservação ambiental no Brasil surgiu a partir da presença de naturalistas europeus no início do século XIX2. Os estudos e coletâneas de espécies aqui desenvolvidas retornaram à Europa e ajudaram a inspirar a idealização da paisagem natural brasileira, que passou a ser valorizada no mundo inteiro. A criação de áreas naturais protegidas seguiu o modelo conservacionista americano, sendo criado em 1937 o primeiro parque nacional em Itatiaia, Rio de Janeiro. O código Florestal Brasileiro foi criado em 1934, no governo de Vargas, e hoje o Brasil conta com 35 parques nacionais (FRANCO, 2000, p. 141). No entanto, desde 1817, haviam sido editadas as principais normas conservacionistas, que orientaram a política de defesa dos mananciais durante mais de um século no Brasil. Naquela época, a cidade do Rio de Janeiro já enfrentava problemas de abastecimento de água, atribuídos ao desmatamento.

A acelerada destruição das florestas brasileiras levou diversos autores a protestarem contra a destruição da natureza, justificando a preservação com o propósito de incentivar a pesquisa e oferecer lazer às populações urbanas (DIEGUES, 2000, p. 127-131). Na Segunda metade do século XX, destaca-se o trabalho de Roberto Burle Marx, que, na visão de Franco (2000, p. 147), humanizou a ecologia ao trabalhar com a natureza sem procurar imitá-la. O pensamento desse arquiteto-paisagista, expresso em sua obra escrita e divulgado em várias conferências por ele realizadas, influenciou a criação de áreas de proteção ambiental no Brasil, na medida em que chamou a atenção para a devastação dos nossos recursos ambientais.

A paisagem e suas representações sociais revelam as interações entre a natureza e os seres humanos. Portanto, a paisagem resulta da intervenção humana sobre a natureza, num processo constante de transformação fruto do trabalho. Atualmente, embora atingidos elevados níveis de socialização da informação e conscientização acerca do meio ambiente, a humanidade ainda se ressente de estudos e políticas que assegurem a preservação dos recursos ambientais. Assim, evidencia-se a necessidade de proteger a paisagem, na medida em que esta se constitui no resultado de adaptações constantes do meio físico aos interesses e necessidades das comunidades humanas. A importância dos estudos atuais sobre a paisagem reside no fato de que eles podem vir a ser o aporte teórico necessário para a legislação urbanística.

 

A função social da cidade e a paisagem

Desde os anos 1930 a paisagem brasileira é considerada Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, passível de tombamento enquanto monumento natural ou construído. O Decreto-Lei nº 25/1937, ainda em vigor, decreta a organização e a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. No seu artigo 1º estabelece o seguinte:

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu valor excepcional, valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (MACHADO, 1991, p. 526).

A data de implementação do referido decreto coincide com a criação do primeiro parque nacional brasileiro, anteriormente referido, atestando que naquele período se intensificou no país a preocupação com a preservação e a conservação ambiental. A paisagem é então elevada à categoria de monumento, o que lhe confere o caráter indiscutível de patrimônio, como está mencionado no artigo 2º do Decreto-Lei, transcrito abaixo:

Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens [grifo nosso] que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana (MACHADO, 1991, p. 526).

Em seu estudo sobre a legislação urbana na cidade de São Paulo, Raquel Rolnik (1999, p. 26) mostra que a preocupação em preservar a paisagem não é recente. A autora cita a obra de Manuel Álvares Ferreyra, Tractatus de novorum operum aedificationibus eorumque nuntiationibus, et adversus construere volentes in alterius praejudicium [em latim no original], de 1750, como a mais importante interpretação das ordenações urbanas da legislação portuguesa, desde o período colonial até a proclamação da República. De acordo com Rolnik, dois aspectos são relevantes para a construção da legalidade urbanística no Brasil: a definição de espaço público e o das servidões. Um dos conjuntos de servidão, denominado de “direito à vista”3, atesta que, do ponto de vista da legislação urbanística brasileira, o embate entre produção imobiliária e preservação remonta ao século XVIII.

A abertura de portas e janelas não poderia obstaculizar o trânsito nos espaços públicos, principalmente quando se tratava de portais, alpendres, varandas e sacadas. Tampouco poderiam atentar contra a privacidade de igrejas, seminários e conventos, ou olhar para dependência ou quintal alheio sem consentimento do vizinho. Finalmente, ninguém poderia fazer parede tão alta diante de alguma janela vizinha que impedisse sua vista. O resguardo do direito de vista referente ao mar, praias, montanhas e campos deveria ser de cem pés ou 22 metros (ROLNIK, 1999, p. 27).

Somente com o advento da República a legislação urbanística brasileira veio a interferir drasticamente no planejamento das residências, assegurando, assim, condições de habitabilidade às velhas construções do império (LEMOS, 1999, p. 11). Os Códigos Sanitários regulamentaram exigências relacionadas com a salubridade das habitações, muitas delas já presentes anteriormente nos Códigos de Postura. Dentro da visão higienista, encontramos nesses Códigos as primeiras menções à questão ambiental. De acordo com Rolnik (1999, p. 37):

O tema da higiene dominou grande parte do debate urbanístico internacional no final do século XIX. Foi fruto do surgimento da grande cidade, marcada em seus primórdios por precaríssimas condições de saneamento e assolada sistematicamente por epidemias.

As palavras de ordem eram desadensar e iluminar o alojamento dos pobres, para livrá-los da ameaça moral e da morte, entretanto essas ações contribuíram para aprofundar a distinção entre ricos e pobres. As casas e vilas operárias “higiênicas”, construídas para os pobres, eram sempre localizadas fora dos limites urbanos, enquanto bairros residenciais exclusivos eram criados para a elite nos locais mais aprazíveis da cidade. Dessa forma, foram criados e mantidos setores exclusivos para cada classe social, marcando ainda mais as diferenças entre elas. Os novos bairros contavam com uma legislação restritiva que assegurava os recuos, isolando a casa dentro do lote, e garantia o espaço para os jardins, configurando assim uma paisagem bucólica que lembrava o campo. Rolnik (1999, p. 111) afirma que, por volta de 1898, tal legislação se converteu em chamariz mercadológico para os novos bairros destinados à elite paulistana. A legislação visava garantir a presença da paisagem enquanto uma “reminiscência senhorial da fazenda no interior do bairro”. Os jardins eram então muito valorizados e procuravam recriar o aspecto pitoresco das pinturas paisagísticas. Portanto, o uso da paisagem como fator de valorização imobiliária não é recente. Como mencionado anteriormente, naquela época, os pensadores europeus cultuavam e idealizavam a natureza e a vida no campo. Essas idéias repercutiram em todo o mundo e influenciaram o traçado das cidades, que passaram a contar com os primeiros parques públicos, como o Central Park de Nova York, construído em 1858.

Por volta da metade do século XVIII, a pintura de paisagens tornou-se um sucesso tão grande na Europa que o cenário do norte europeu rural passou a ser visto como se estivesse em um quadro. Fosse o interior feudal dos cercamentos ingleses e aldeias correspondentes ou as planícies da Holanda, a paisagem era cada vez mais vista por meio de suas formas. A paisagem material era mediada por um processo de apropriação cultural e a história de sua criação era submetida pelo consumo visual (ROLNIK, 1999, p. 110).

Em 1963, a partir das reformas pretendidas pelo Presidente João Goulart, surgiu o termo Reforma Urbana. No entanto, a partir de 1964, a ditadura militar mudou as relações de poder no país, impondo um retrocesso democrático através da implantação da censura e da perseguição política aos partidos, sindicatos e meios de comunicação. Segundo Brasileiro (1981, p. 29), esses processos vão se refletir no espaço, tanto em termos de território nacional, quanto nas cidades. No Brasil dos anos 1960 e 70, expressões como o direito à cidade e à cidadania, o direito à moradia, à diminuição da desigualdade e da exclusão social, ao acesso ao solo urbanizado, à infra-estrutura e aos equipamentos públicos seriam consideradas pelos militares como subversivas e impronunciáveis. Assim, os problemas urbanos se intensificaram na década de 70, comprometendo a qualidade de vida nas cidades e contribuindo para a degradação ambiental. O ideário da Reforma Urbana só seria retomado na década de 80, conduzido por movimentos populares, sindicatos, ONGs e pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana – FNRU, uma articulação que reúne diversas entidades (FEDERAÇÃO NACIONAL DOS ARQUITETOS E URBANISTAS, 1998, p.103).

O Movimento Nacional para a Reforma Urbana (MNRU), fundado em 1987, por ocasião da instalação da Assembléia Nacional Constituinte, e originado das lutas desenvolvidas pelos movimentos sociais em prol de melhores condições de vida nas cidades e pela defesa do meio ambiente, buscou definir parâmetros para um uso socialmente justo do espaço urbano, a fim de que os cidadãos se apropriassem do território, democratizando seus espaços de poder, de produção e de cultura dentro de parâmetros de justiça social e da criação de condições ambientalmente sustentáveis. A função social da cidade e da propriedade é entendida como a prevalência dos interesses comuns sobre os particulares, conceitos incorporados pela Constituição Federal de 1988 – que procurou responder aos anseios da população, inclusive com relação à política urbana – enquanto princípios do planejamento urbano e do desenvolvimento, passíveis de serem atendidos através dos Planos Diretores.

Tais princípios foram posteriormente reafirmados nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais, que previram a preservação do patrimônio paisagístico e cultural, a proteção dos recursos naturais do meio ambiente e a valorização do trabalho do homem. Elaborado à luz desses conceitos, o Plano Diretor de Natal buscou evitar usos do solo inadequados à infra-estrutura urbana, instituiu a operação urbana, a outorga onerosa e o zoneamento ambiental. Tendo em vista que Natal é uma cidade que se destaca pelas características peculiares do sítio onde está assentada, a legislação urbanística procurou preservar as características da paisagem local, instituindo Áreas de Controle de Gabarito, destinadas a proteger o valor cênico-paisagístico, ameaçado em alguns trechos da cidade pelo processo de verticalização. No entanto, a efetivação desses princípios está subordinada a questões de cidadania, como a conscientização ambiental e a capacidade de organização da população no sentido de reivindicar seus direitos civis.

É importante salientar que o MNRU trouxe à tona essas questões, mas não esgotou as discussões no sentido de redirecionar o planejamento urbano, visto que, passados treze anos, os princípios fundamentais previstos na Constituição ainda não foram garantidos, mesmo aqueles já existentes desde 1948. Avançando nesse sentido, o Estatuto da Cidade4 regulamentou o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. Em seu artigo 2º (inciso XII), se refere ao patrimônio paisagístico, estabelecendo que o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana seja ordenado mediante a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico. Mais especificamente com relação à paisagem, determina, em seu artigo 37 (inciso VII), que o Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) inclua a análise da paisagem urbana e do patrimônio natural e cultural quanto à qualidade de vida da população (BRASIL, 2001).

Rolnik (1999, p.13) observou que, nas cidades brasileiras, a lei aparentemente funciona enquanto modelo da cidade ideal ou desejável. No entanto, contraditoriamente, os próprios instrumentos jurídicos favorecem a existência de uma cidade ilegal. Para a autora, a legislação urbanística determina apenas uma pequena parte do espaço construído, uma vez que a cidade é fruto da relação estabelecida entre a lei e as formas concretas de produção imobiliária. Essa relação pode ser mais ou menos voltada para o bem-estar da comunidade, de acordo com a ideologia do grupo dominante. A autora afirma que

ao estabelecer formas permitidas e proibidas, [a legislação] acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada (ROLNIK, 1999, p. 13-14).

O embate entre territórios legais e ilegais está no cerne das contradições presentes no espaço urbano. Estas podem ser facilmente observadas em nossas cidades de maioria clandestina, como chama Rolnik. Nesse sentido, Carlos (1994, p. 42) explica que, diante de interesses e necessidades contraditórias, a ocupação do espaço urbano não se faz sem contradição, disparidade e desigualdade. Para a autora:

A disparidade expressa-se nas construções, na existência e/ou qualidade da infra-estrutura, na roupa e nos rostos [...] A paisagem urbana metropolitana refletirá assim a segregação espacial fruto de uma distribuição de renda estabelecida no processo de produção. Tal segregação aparece no acesso a determinados serviços, à infra-estrutura, enfim aos meios de consumo coletivo. O choque é maior quando se observa as áreas da cidade destinadas à moradia. É aqui que a paisagem urbana mostra as maiores diferenciações, evidenciando as contradições de classe (CARLOS, 1994, p. 42).

Não há dúvida de que o espaço urbano revela contradições. Mesmo a partir de uma análise superficial, é possível identificar as profundas desigualdades que resultam na exclusão de parte da população aos espaços salubres e dignos da vida humana. Esse contexto, tão presente nas cidades brasileiras, é permeado pela legislação urbanística, que buscou em momentos diversos, como foi visto, assegurar a boa forma urbana, a salubridade das habitações, a privacidade dos cidadãos, além de proteger o meio ambiente e a singularidade da paisagem brasileira. No entanto, algumas leis com esse caráter, e portanto restritivas, são facilmente revogadas, mesmo se tratando de instrumentos “politicamente corretos”, capazes de promover o equilíbrio ambiental em determinadas regiões. Enquanto que outras leis, permissivas no sentido da degradação dos ecossistemas naturais ou artificiais, dificilmente são modificadas. A paisagem urbana reflete o resultado do equacionamento possível entre os interesses dos agentes produtores do espaço e as restrições ou flexibilizações norteadoras dessa produção.

 

O Plano Diretor de Natal e as áreas de controle de gabarito

O Plano Diretor do município de Natal, atualmente em processo de revisão, foi implementado pela Lei Complementar nº 07, aprovada e sancionada pela Câmara Municipal em 05 de agosto de 1994. Segundo Lima (2001, p.135), “A lei que criou o Plano Diretor 94 também concluiu o processo de institucionalização do sistema de planejamento e gestão urbana”. Assim sendo, a implementação desse Plano se reveste de importância na medida em que concretiza, em seu texto, a transição democrática no âmbito do municipal, fundamentada num novo modelo de gestão urbana, e procura garantir o uso social da cidade e da propriedade. A gestão democrática da cidade, entendida como a forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades, submetida ao controle social e à participação da sociedade civil, está implícita nos objetivos do Plano:

O Plano Diretor tem como objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, garantindo um uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado do seu território, de forma a assegurar a todos os seus habitantes condições de bem-estar e segurança, conforme dispõem os artigos 118 e 119 da Lei Orgânica do Município de Natal. (NATAL, Lei Complementar nº 07/1994, art. 2º).

No seu artigo 3º, a referida lei procura assegurar o cumprimento desse objetivo por meio de critérios como a preservação, a proteção e a recuperação do meio ambiente e da paisagem urbana, visando garantir a qualidade de vida dos habitantes do município e incentivar a atividade turística. Ao contrário das leis anteriores, o atual Plano Diretor de Natal estabelece a dissociação entre a conservação dos recursos naturais e a preservação das qualidades da paisagem, esclarecendo que os objetivos de preservar, proteger e recuperar não se referem apenas aos aspectos paisagísticos. Assim, a paisagem urbana é tratada com maior propriedade, podendo-se supor o entendimento do espaço enquanto síntese do trabalho humano sobre o suporte natural, acrescido da própria sociedade que nele se reproduz. Nesse sentido, Lima (2001, p. 136) afirma:

Este Plano Diretor abandona o ideal de construção da cidade harmônica preconizada pelo urbanismo racionalista [...] e se dirige à cidade real – lugar de conflitos, contradições e interesses antagônicos, mas também lugar de interesses convergentes, da participação social e da solidariedade.

Dessa forma, o Plano demonstra o entendimento, por parte dos seus idealizadores, da cidade como o resultado do equacionamento possível entre interesses diversos e do papel da legislação urbanística enquanto mediadora dessas relações. No entanto, é forçoso reconhecer que esse papel encontra limitações nas estratégias do mercado imobiliário, principalmente quando a conscientização da população acerca dessas questões é incipiente. É necessário que sejam discutidos os limites da legislação, levando em consideração que, mesmo com todos os avanços teóricos possibilitados pelo MNRU e da incorporação de parte do seu ideário no texto de leis federais, estaduais e municipais, ainda não foi garantida a aplicação correta e imparcial dos instrumentos legais disponíveis.

O Plano Diretor de Natal define todo o território do município como zona urbana, o que de fato já era realidade, e estabelece, no seu artigo 13, um macrozoneamento, segundo o qual a cidade está dividida em três zonas: de Adensamento Básico, Adensável e de Proteção Ambiental. Esta última é definida, no artigo 20, como “a área na qual as características do meio físico restringem o uso e a ocupação, visando à proteção, manutenção e recuperação dos aspectos paisagísticos, históricos, arqueológicos e científicos”. Além do macrozoneamento citado, foram criadas Áreas Especiais, denominadas Área de Controle de Gabarito, Área de Operação Urbana e Área de Interesse Social. Essas Áreas Especiais são definidas como “zonas urbanas com destinação específica ou normas próprias de uso e ocupação do solo” (NATAL, Lei Complementar nº 07/1994, art. 22).

De vital importância para a preservação das qualidades da paisagem, as Áreas de Controle de Gabarito são definidas no artigo 23 da referida lei, entendidas como “aquelas que, mesmo passíveis de adensamento, visam proteger o valor cênico-paisagístico de trechos da cidade” (NATAL, Lei Complementar nº 07/1994, art. 23). Compreendem a orla marítima, do forte dos Reis Magos ao Morro do Careca, incluindo o bairro da Redinha e o entorno do Parque das Dunas. Com relação à orla marítima, foi incorporada a regulamentação do Plano Diretor anterior (NATAL, Lei nº 3175/1984), no que se refere à Zona Especial de Interesse Turístico (ZET). Merece destaque a justificativa utilizada para a criação dessas áreas, pois o uso do termo “cênico” se constitui numa inovação. É fundamental o entendimento de que a presença de elementos naturais inseridos no meio urbano, como as dunas, constitui-se um cenário digno de preservação pela função de prover identidade e orientabilidade ao tecido urbano. O Plano busca, assim, democratizar o acesso aos marcos visuais da paisagem, na medida em que limita a verticalização nas suas proximidades.

Tais argumentos dificilmente são aceitos pelo mercado imobiliário. No caso da orla marítima, a justificativa da limitação do gabarito para a preservação do valor cênico-paisagístico é pouco questionada, ao contrário do que ocorre com relação ao entorno do Parque das Dunas. Lima (2001, p. 139) esclarece que, quando o Plano Diretor ainda estava sendo elaborado, a Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte (FIERN) e o Sindicato da Indústria da Construção do Rio Grande do Norte (SINDUSCON) firmaram um documento a respeito, no qual, entre outras considerações, protestavam contra as Áreas de Controle de Gabarito:

Segundo o documento, ‘as áreas propostas para controle de gabarito, na sua maior parte, não têm nenhum sentido, principalmente as de Petrópolis e Tirol, entre as dunas e as avendias Hermes da Fonseca e Salgado Filho, estendendo-se para o sul pela av. Eng. Roberto Freire, até Ponta Negra (...) porque não está explicitado o que se pretende preservar, nem como, por tratar-se de área de melhor potencialidade, principalmente para habitações multifamiliares, já consolidada com a existência de vários prédios de gabaritos altos. Por outro lado, suas características paisagísticas já se encontram em parte afetadas pela presença de favelas, lixo a céu aberto, desmatamento, torres de transmissão etc.’ [...] (LIMA, 2001, p.139).

Como está explícito no documento citado acima, as Áreas de Controle de Gabarito localizam-se em bairros que proporcionam altos lucros ao setor imobiliário, preferenciais para a construção de edifícios residenciais verticalizados. Não obstante esses protestos e a acirrada discussão que se seguiu na Câmara dos Vereadores, o controle de gabarito foi implementado na sua totalidade. No momento da revisão do Plano Diretor, descrito a seguir, esses argumentos voltaram à tona através de uma forte campanha, da qual participaram diversos segmentos sociais. Amplamente veiculada nos jornais locais, a discussão teve o mérito de tornar público o debate em torno da legislação urbanística.

O caráter inovador e democrático do Plano Diretor de Natal está explicitado no texto da Lei, na medida em que prevê sua atualização mediante uma revisão anual:

Este plano e sua execução ficam sujeitos a contínuo acompanhamento, revisão e adaptação às circunstâncias emergentes e será revisto anualmente, mobilizados para tanto os mecanismos de participação previstos na legislação municipal (NATAL, Lei Complementar nº 07/1994, art. 67).

No entanto, faz-se necessário lembrar que a legislação urbanística somente alcançará seus objetivos, principalmente no que se refere aos limites do uso e ocupação do solo urbano, se houver a participação da sociedade e o empenho neste sentido por parte do grupo político que estiver no poder. Sendo assim, Ruth Ataíde (1993, p. 09) afirma:

[...] impõe-se como condicionante básico a implantação do sistema de planejamento, conforme prevê o plano, e o funcionamento eficaz dos canais de participação que o estruturam. O novo zoneamento, embora busque minimizar os efeitos da lógica perversa e desigual do processo de ocupação do solo presente na cidade, não será capaz de operar “milagres” se a sociedade não estiver preparada e se não for capaz de compreender seu papel no processo.

A elaboração do atual Plano Diretor de Natal foi iniciada na primeira gestão de Wilma de Faria (1989-1992) e aprovada na administração Aldo Tinôco (1993-1996). No entanto, a revisão somente ocorreu na segunda gestão da referida prefeita (1997-2000). A proposta de revisão da lei, apresentada inicialmente pelo então Instituto de Planejamento Urbano e Meio Ambiente de Natal (IPLANAT), se constituía num retrocesso em termos de conquistas sociais, pois previa modificações justamente nos artigos referentes à preservação ambiental (taxa de impermeabilização), preservação dos atributos da paisagem (controle de gabarito) e ocupação do solo (taxa de ocupação, densidade, recuos, etc.). A divulgação dessa proposta se deu a partir dos jornais locais e resultou na mobilização dos setores progressistas da política local, entidades de classe e representantes comunitários, entre outros, que se posicionaram contra as intenções do IPLANAT e dos empresários do setor imobiliário. Buscou-se, então, esclarecer a população sobre as implicações da referida proposta por meio da publicação de diversas entrevistas com os técnicos responsáveis pela elaboração do Plano, urbanistas e professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Ao longo do processo de revisão do Plano Diretor de Natal, ocorrido entre 1997 e 2001, ficou clara a determinação da Prefeitura de Natal em abolir da legislação urbanística qualquer instrumento capaz de diminuir o potencial construtivo na cidade. O agravante é que nesse momento não se esboçou nenhuma reação popular, somente ocorrem tentativas isoladas contra tais arbitrariedades. Assim, foram sendo deformados, aos poucos, os conceitos e fundamentos que orientaram a elaboração do Plano Diretor de Natal, o qual atualmente se assemelha a uma “colcha de retalhos”, na medida em que as Leis Complementares ao Plano se referem às alterações ao texto da Lei Complementar nº 07/1994 pelo simples acréscimo de parágrafos e incisos aos artigos originais ou pela informação de que determinados artigos passaram a ter uma nova redação. Dessa forma, o Plano Diretor de Natal perdeu seu sentido e sua coerência globais.

Segundo os técnicos envolvidos na elaboração do Plano Diretor de Natal, o processo se deu com ampla participação popular. A esse respeito, comenta Rosa de Fátima Souza (1993, p. 30): “[...] Foram então, com as discussões nos bairros, escolas municipais, sindicatos, fóruns organizados por profissionais liberais e na mídia, que se buscou formar par na elaboração do novo Plano Diretor”.

Constata-se, assim, que uma legislação urbanística elaborada a partir de um encaminhamento democrático foi modificada ao fim de um processo marcado pela intransigência e pelo totalitarismo, com o objetivo de priorizar os interesses particulares em detrimento do bem-estar social.

Praticamente restrito aos meios político e acadêmico, o debate em torno do processo de revisão do Plano Diretor de Natal teve o mérito de evidenciar diversos problemas urbanos, tais como a carência de infra-estrutura, o comprometimento dos recursos naturais e ambientais e a ocupação desordenada do solo urbano. A discussão foi pautada na necessidade de manter ou não alguns instrumentos urbanísticos, dentre eles os que se referem à preservação de atributos cênicos-paisagísticos. Limitações como o controle de gabarito e as taxas de ocupação e impermeabilização foram alguns dos pontos mais criticados pelos empresários da construção civil, interessados em abolir todas as restrições à ocupação do solo.

Embora estejam mantidas as áreas de controle de gabarito, o Plano Diretor de Natal continua sendo alvo de críticas, muitas vezes provenientes da própria Prefeitura Municipal, o que gera preocupações inquietantes com relação à preservação dos atributos da paisagem e dos aspectos cênicos-paisagísticos. Diante da clara disposição demonstrada pela atual Prefeitura Municipal em implementar contínuas modificações no Plano Diretor de Natal, visando eliminar as áreas de controle de gabarito, tornou-se imprescindível uma redobrada atenção e atuação por parte dos profissionais e entidades defensores da função social da cidade e da propriedade. A atual Prefeitura Municipal reconhecidamente legaliza a cidade ilegal. Dessa forma, tais constatações geram preocupações inquietantes, pois as modificações propostas à legislação urbanística vão de encontro à função social da cidade e da propriedade, ao mesmo tempo em que incentivam o desrespeito à legislação e atentam contra a preservação da singularidade da paisagem natalense, tão prezada na construção do debate urbanístico local e presente nas representações sociais.

 

Considerações finais

O trabalho fornece uma contribuição teórica no sentido de apontar elementos para a discussão do alcance e eficácia da legislação urbanística, no que se refere à preservação da paisagem, na medida em que possibilita formular novos argumentos a favor da manutenção do controle de gabarito existente em Natal. Procura-se contribuir, principalmente, no entendimento da singularidade dos atributos da paisagem local como um patrimônio cultural e afetivo, cuja preservação se justifica pela sua importância, enquanto depositária das marcas do tempo e resultado do trabalho humano realizado em função das adaptações constantes do meio físico aos interesses e necessidades das comunidades humanas. Tendo em vista que no meio urbano essas adaptações modificam continuamente a paisagem, pois resultam da demanda sempre crescente por novas formas consumidas no ritmo acelerado da produção dos lugares comuns, se faz necessário preservar alguns de seus atributos para que os cidadãos do futuro não se ressintam do sentido do lugar.

Os argumentos acima são pertinentes no momento em que a paisagem da orla marítima de Natal está sendo transformada através de intervenções urbanísticas e pelo adensamento de construções verticalizadas, que podem comprometer as representações sociais e a função social do litoral, inclusive esmaecendo o motivo que lhe dá especificidade nas suas potencialidades e que levou ao desenvolvimento da atividade turística: a proximidade com a natureza e a possibilidade do desfrute dessa paisagem.

A legislação urbanística permeia esses processos e se apresenta como a alternativa possível para se tentar garantir o direito à paisagem das gerações futuras, mas ainda carece, diante do afã dos ganhos do capital imobiliário, dos meios necessários para de fato assegurar os objetivos traçados no texto que a define. Como foi dito, a legislação buscou, em momentos diversos, assegurar a preservação da singularidade da paisagem brasileira. No caso de Natal, bem ou mal aplicados, os instrumentos legais contribuíram, em grande parte, para construir a identidade do lugar e manter os atributos que hoje são responsáveis pela conformação da paisagem local.

É imprescindível que sejam equacionados os interesses divergentes e contraditórios dos agentes produtores do espaço urbano, sejam públicos ou privados, para que sejam mantidas as Áreas de Controle de Gabarito, tal qual previstas no Plano Diretor de Natal, e ainda que todas as áreas contidas na Zona Especial de Interesse Turístico sejam regulamentadas, para que os habitantes de Natal não continuem a correr o risco de perder referências visuais incorporadas ao seu cotidiano, à exemplo do que aconteceu na praia de Areia Preta, onde a visão do Farol de Mãe Luiza somente sobrevive na memória dos natalenses. Quando a ação precederá a indignação diante da paisagem irremediavelmente perdida? Como diminuir a distância entre a cidade idealizada nos instrumentos legais e a cidade real, onde os direitos comunitários são tão desrespeitados? No cenário brasileiro atual, o Estatuto da Cidade surge como uma esperança de que os direitos democráticos dos cidadãos e a tão almejada função social da cidade e da propriedade sejam garantidos, a despeito do grupo político que se encontre no poder. Resta saber como assegurar sua concretização.

 

Referências Bibliográficas

ATAÍDE, R. M. C. Plano Diretor de Natal: um zoneamento para a cidade real. In: MINEIRO, Fernando (Org.). Ensaios sobre política urbana e plano diretor. Natal: UFRN, 1993. p. 5-9.        [ Links ]

BENKO, G. Geografia de lugar nenhum ou hiperglobalização: breve exame do mundo pós-moderno. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A. de; SILVEIRA, M. L. (org.). Território: globalização e fragmentação. São Paulo: HUCITEC; ANPUR, 1998. p. 247-250.        [ Links ]

BRASIL. Lei 10.257/2001. SOARES FILHO, J. G. (Org.). Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

BRASILEIRO, A. M. Política urbana: quem decide? In: PESSOA, A. Direito do urbanismo: uma visão sócio-jurídica. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; IBAM, 1981, p.25-39.        [ Links ]

CARLOS, A. F. A. A (re)produção do espaço urbano. São Paulo: EDUSP, 1994.

DEMANGEON, A. Problèmes de geogrephie humaine. Tradução de Jaci Silva Fonseca. Paris: Librairie Armand Colin, 1952. Disponível em <file:http://sites.uol.br/ivairr/demageon.htm.>. Acesso em: 25/06/2001.

DIEGUES, A. C. S. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: HUCITEC, 2000.

FEDERAÇÃO NACIONAL DOS ARQUITETOS E URBANISTAS. Almanarq: dicas e informações para o arquiteto e urbanísta. Rio de Janeiro: FNA, 1998.

FRANCO, M. A. R. Planejamento ambiental para a cidade sustentável. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2000.

LEMOS, C. A C. A república ensina a morar (melhor). São Paulo: HUCITEC, 1999.

LIMA, P. Natal século XX: do urbanismo ao planejamento urbano. Natal: EDUFRN, 2001.

LOPES Jr., E. A construção social da cidade do prazer: Natal. Natal: EDUFRN, 2000.

MACHADO, P. A. L. Tombamento: instrumento jurídco de proteção do patrimônio natural e cultural. In:______. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 465-531.

NATAL. Lei 3.175/1984. Dispõe sobre o Plano Diretor de Organização físico-territorial do município de Natal e dá outras providências. Diário Oficial. Natal, 29 de fevereiro de 1984. Suplemento. 55 p.

NATAL. Lei Complementar nº 07, de 05 de agosto de 1994. Dispõe sobre o Plano Diretor de Natal e dá outras providências. Diário Oficial, Natal, 07 de setembro de 1994. Caderno Especial. Lei do Plano Diretor de Natal e coletânea de leis dos limites dos bairros de Natal. 43 p.

NOBRE, P. J. L. Entre o Cartão-Postal e a Cidade Real: um estudo sobre paisagem e produção imobiliária em Natal/RN. 2001. 145 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

ROLNIK, R. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 1999.

SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1997.

SOUZA, R. F. Participação popular no processo de elaboração do Plano Diretor. In: MINEIRO, Fernando (Org.). Ensaios sobre política e Plano Diretor. Natal: UFRN, 1993.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: paulonobre@ufrnet.br

Recebido em: 28/02/2007
Aceito para publicação em: 26/06/2007

 

 

Notas

*Arquiteto, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/ UFRN.
1 Para Benko (1998, p. 247) não-lugar se constitui num “Espaço no qual não estão simbolizadas nem identidade, nem relação, nem história: os aeroportos, as rodovias, os quartos de hotel intercambiáveis, os meios de transporte [...] a mundialização das trocas, da circulação e do consumo engendraram a fabricação de lugares intercambiáveis, idênticos em todo o mundo, por onde passamos sem nos deter, sem encontrar ninguém”.
2 Celebridades das ciências naturais, como Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich von Martius, visitaram o Brasil no tempo da Imperatriz Leopoldina, Arquiduquesa d’Áustria. (FRANCO, 2000, p. 131).
3 A servidão de vista buscava garantir a aeração aos cômodos da casa e resguardar o desfrute da vista do céu, da atmosfera e das paisagens terrestres, marítimas, montanhas e matas.
4 A Lei nº 10.257/2001 regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição, estabelece diretrizes gerais da política urbana e fixa princípios, objetivos e instrumentos de gestão. O Plano Diretor de Natal já contempla algumas dessas diretrizes – como evitar usos do solo inadequados à infra-estrutura urbana, instituição da operação urbana, outorga onerosa e zoneamento ambiental – o que confirma o caráter inovador da legislação urbanística aprovada em 1994, pois o Estatuto da Cidade somente foi aprovado em 10 de julho de 2001.

Creative Commons License