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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.7 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Apropriações do espaço público: alguns conceitos

 

Using public space: some concepts

 

 

Eneida Maria Souza Mendonça*

Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo refere-se a reflexões conceituais que podem auxiliar o desenvolvimento de pesquisas sobre espaços públicos na atualidade. Interessou abordar conceitos sobre espaços públicos caracterizados pela rua, pela praça e pelo parque. Além das apropriações formais, foram valorizadas as apropriações informais sobre o espaço público, reconhecidas como alternativas formuladas pela população para satisfação de necessidades e desejos. Permeiam o estudo considerações sobre nuances entre o entendimento do âmbito público e privado com relação ao uso do espaço. Aspectos relacionados ao medo, à violência e à segregação sócio-espacial, como tendência que vem modificando as relações humanas com e no espaço público, também são objetos de reflexão. A título de conclusão, o estudo debate o conceito de desenvolvimento sócio-espacial, inserindo como alternativa propositiva a promoção de interatividade envolvendo os diversos segmentos relacionados à criação, à apropriação e à manutenção do espaço público.

Palavras-chave: Espaço público, Segregação sócio-espacial, Desenvolvimento sócio-espacial.


ABSTRACT

This paper deals with some concepts concerning public spaces such as streets, squares and parks. It considers the formal and the informal uses of these public spaces while this last one assumes special meaning. They can represent the needs and the wishes of communities and offer rich contribution for urban planning. The paper also demonstrates differences between public and private spaces adopted according to the use they encompass. It deals with aspects of urban violence in affecting or not human relationships within these spaces. To derive some conclusions, the study sets a debate about the concept of social-spatial development as supporting the activities of different groups of people involved in the construction, maintenance and use of such space.

Keywords: Public space, Segregation, Development.


 

 

Considerações preliminares

Este artigo, originalmente construído para nortear estudo sobre apropriações do espaço público em Vitória (ES), apresenta argumentações conceituais válidas para abordagens mais abrangentes referentes aos espaços públicos urbanos na atualidade, no mundo ocidental e, em especial, no Brasil. A despeito deste estudo situar-se no âmbito do urbanismo, acredita-se que os conceitos expostos possam contribuir de modo mais amplo a outros campos de conhecimento relacionados às ciências sociais aplicadas.

Uma observação inicial refere-se à relação do espaço público na cidade com o próprio meio urbano, sua morfologia e apropriações. Destaca-se que esta relação se encontra fortemente vinculada a aspectos físicos, naturais e/ou construídos, caracterizados pelo desenho de formas, que, muitas vezes, além de representarem os espaços públicos a que se destinam, passam a corresponder à imagem de determinado lugar, cidade, região, ou país. No entanto, cabe reconhecer a presença de aspectos sócio-econômicos inerentes à construção destas formas. Este entendimento considera que, a forma do ambiente urbano se encontra necessariamente relacionada às articulações dos interesses e esforços sociais e econômicos, envolvendo neste sentido, as pessoas, seus desejos e intenções. Estes, por sua vez, independente das relações que estabeleceram na ocasião da definição e construção do ambiente urbano, se manifestam novamente, de maneira semelhante ou não, quando da apropriação do lugar. Deste modo, afetas às apropriações encontram-se as possibilidades de uso indicadas diretamente pelo ambiente urbano construído, mas também, as possibilidades intuídas a partir dele, adaptadas às necessidades imediatas ou aos desejos e intenções não satisfeitos na construção do ambiente.

É importante salientar que as apropriações, mesmo quando intuídas e adaptadas não implicam, necessariamente, em inadequação ou indícios de marginalidade. Podem, ao contrário, indicar criatividade, capacidade de melhor aproveitamento das infra-estruturas públicas e fornecer subsídios que alimentem o projeto e a construção futura de ambientes desta natureza. Santos e Vogel (1985) atribuem às apropriações dos espaços públicos a função de “mecanismos de defesa e superação da população aos modelos urbanísticos impostos pelos planejadores”. Aponta-se aqui, então, para um especial significado no âmbito da apropriação do espaço público, como fator propício à ampliação da compreensão dos desejos e das necessidades da população e respectivo vínculo ao ambiente urbano.

Deste modo, no trato de procedimento empírico, considera-se recomendável, não só o mapeamento e as análises das estruturas formais que caracterizam o uso do espaço público, mas considera-se de especial relevância, o mapeamento das apropriações alternativas do espaço público, independente da existência de infra-estrutura específica para tal, seja para o exercício de atividades coletivas, seja para apropriação particular. Em respaldo a esta argumentação, além dos autores já comentados, Nishikawa (1984) considera as apropriações como eventos cotidianos relacionados à própria vida urbana e devem ser reconhecidas, entre outros aspectos, como reveladoras de necessidades de reestruturações físicas, de modo a permitir flexibilidade no uso do espaço.

Estas apropriações, em muitos casos, inesperadas, constituem-se, já, de fato, em reestruturações do espaço, como elementos explícitos da possibilidade de flexibilidade de uso. Deste modo, o que Nishikawa (1984) aponta é a importância da realização de projetos urbanísticos, que atuem sobre a estrutura física, permitindo que cidadãos exerçam, sobre o espaço público, suas respectivas apropriações, de forma mais adequada e segura.

 

Espaços públicos formalmente constituídos – a rua, a praça e o parque

Feitas estas considerações acerca da importância do estudo das apropriações alternativas, além naturalmente das apropriações formais, exercidas sobre o espaço público, para compreensão abrangente de suas qualidades, cabe conferir atenção aos conceitos atribuídos aos espaços públicos formalmente constituídos. Parte-se então, inicialmente, do entendimento atribuído por vários autores à rua, à praça e ao parque.

Conforme Lamas (s/d, p. 98 e 100) a rua, considerada de fato como estruturadora do traçado, corresponde a “um dos elementos mais claramente identificáveis tanto na forma de uma cidade como no gesto de a projetar. Assenta num suporte geográfico preexistente, regula a disposição dos edifícios e quarteirões, ligas os vários espaços e partes da cidade, e confunde-se com o gesto criador”.

Apoiado em autores como Poète, Lavedan e Tricart, Lamas1 chama a atenção ainda para o “caráter de permanência do traçado, não totalmente modificável, que lhe permite resistir às transformações urbanas”. Para o autor, “o traçado estabelece a relação mais direta de assentamento entre a cidade e o território”. Calcado em Poète, Lamas indica que “a rua ou o traçado relaciona-se diretamente com a formação e crescimento da cidade de modo hierarquizado, em função da importância funcional da deslocação, do percurso e da mobilidade de bens, pessoas e idéias” (LAMAS, s/d, p. 100).

O autor atribui ainda ao traçado “importância vital na orientação”, sendo definidor do plano, “intervindo na organização da forma urbana a diferentes dimensões” (LAMAS, s/d, p. 100).

Acrescentando a esta abordagem física, morfológica, o viés antropológico necessário ao trato da rua no âmbito do espaço público e respectiva apropriação, Santos e Vogel (1985), a partir de experiência realizada no bairro de Catumbi, no Rio de Janeiro, apontam a rua como uma extensão da casa para diversas comunidades, observadas e vivenciadas por meio de atividades cotidianas, como as brincadeiras infantis e encontros de vizinhos, ou sazonais, como as festas. Observa-se, portanto, que este estudo de Santos e Vogel (1985) reafirma aspectos aqui já abordados, quanto à flexibilidade do uso dos espaços públicos, que podem sempre ser objeto de apropriações diferenciadas, mesmo que formalmente constituídos para finalidade específica.

A praça, para Lamas (s/d, p.100) “é um elemento morfológico das cidades ocidentais”, inexistentes anteriormente, distinguindo-se “de outros espaços, que são resultado acidental de alargamento ou confluência de traçados - pela organização espacial e intencionalidade de desenho. [...] A praça pressupõe a vontade e o desenho de uma forma e de um programa”. Deste modo, o autor caracteriza a rua como “lugar de circulação” e a praça como “lugar intencional do encontro, da permanência, dos acontecimentos, de práticas sociais, de manifestações de vida urbana e comunitária e de prestígio, e, conseqüentemente, de funções estruturantes e arquiteturas significativas” (LAMAS, s/d, p. 102). Lamas indica ainda que a praça na cidade tradicional, como a rua, estabelece “estreita relação do vazio (espaço de permanência) com os edifícios, os seus planos marginais e as fachadas. Estas definem os limites da praça e caracterizam-na, organizando o cenário urbano” (LAMAS, s/d, p. 102). Para o autor, este é um aspecto menos presente na praça da urbanística moderna, tendo em vista “as dificuldades de delimitação e definição provocadas pela menor incidência dos edifícios e fachadas” (LAMAS, s/d, p. 102).

Observa-se que, ao caracterizar a praça pela intencionalidade e como resultante de um programa, Lamas a diferencia, de espaços como o largo e o terreiro, caracterizados pelo autor como

espaços acidentais: vazios ou alargamentos da estrutura urbana e que, com o tempo foram apropriados e usados. ...estes espaços nunca adquirem significação igual ao da praça porque não nasceram como tal. [...] o largo do mercado, o adro fronteiro à igreja, ou outros pequenos espaços vazios da cidade medieval não são ainda verdadeiras praças (LAMAS, s/d, p. 102).

Estas teriam sua inserção definitiva na estrutura urbana destas cidades, a partir do Renascimento, passando a “fazer parte obrigatória do desenho urbano nos séculos XVIII e XIX” (LAMAS, s/d, p. 102).

Cabe destacar que tais distinções também podem ser aplicadas a determinados espaços no Brasil, como demonstrado pela pesquisa de Carneiro e Mesquita (2000). As autoras, ao tratar dos espaços livres do Recife, no estado de Pernambuco, onde são comuns ambientes como largos e adros, estabelecem as seguintes definições:

Praças são espaços livres públicos, com função de convívio social, inseridos na malha urbana como elemento organizador da circulação e de amenização pública, com área equivalente à da quadra, geralmente contendo expressiva cobertura vegetal, mobiliário lúdico, canteiros e bancos.

Pátios são espaços livres públicos definidos a partir de uma igreja ou outro elemento arquitetônico expressivo, além do casario antigo aos quais dá acesso, quase sempre pavimentados e exercendo a função de respiradouros, de propiciadores do encontro social e eventualmente destinados a atividades lúdicas temporárias.

Largos são espaços livres públicos definidos a partir de um equipamento geralmente comercial, com o fim de valorizar ou complementar alguma edificação como mercado público. Podendo também ser destinados a atividades lúdicas temporárias (CARNEIRO; MESQUITA, 2000, p.29).

Para Carneiro e Mesquita (2000, p. 27) “pátios e largos são espaços consolidados a partir das necessidades surgidas durante o processo inicial de ocupação da cidade”. Estas autoras indicam ainda que:

as praças como pequenos espaços na malha urbana deveriam ter suas funções protegidas por lei, inclusive com relação à manutenção do seu entorno com edificações de até um ou, no máximo, dois pavimentos, por questões de escala e proporção (CARNEIRO; MESQUITA, 2000, p. 27).

Ratificando o caráter de apropriação pública, cabe ainda apresentar a definição de praça formulada por Robba e Macedo (2002, p. 17) como “espaços livres públicos urbanos destinados ao lazer e ao convívio da população, acessíveis aos cidadãos e livres de veículos”.

Sobre o parque, Lamas (s/d) não atribui conceitos específicos como nos casos anteriores referentes à rua e à praça. O grande parque encontra-se inserido no bojo dos ambientes caracterizados pelas estruturas verdes, referentes, portanto, à vegetação que apresentam, como o canteiro e o jardim. Estas estruturas verdes são reconhecidas pelo autor como “elementos identificáveis na estrutura urbana. Caracterizam a imagem da cidade; têm individualidade própria; desempenham funções precisas: são elementos de composição e do desenho urbano; servem para organizar, definir e conter espaços” (LAMAS, s/d, p. 106).

Lamas (s/d, p. 194) insere ainda o parque, junto à alameda e ao jardim, na categoria denominada por “espaços verdes”, caracterizando-os “como elementos de composição da cidade”. Lamas ressalta a introdução da árvore na cidade como evolução e requinte no modo de viver, gerando novos ambientes, como “o recinto arborizado, o parque, o jardim, o passeio e a alameda, como espaços de recreio e novas práticas sociais”. O autor indica ainda a estruturação da arte de jardinaria no período clássico barroco, “como um campo específico de arquitetura da paisagem e de organização territorial”. Realizam-se então, segundo o autor “grandes composições de domínio da natureza”, a partir de elementos naturais apoiados em elementos construídos. Para ele, “esta atitude vai imprimir à natureza os mesmos atributos culturais e estéticos que à cidade, dando-lhe forma e conteúdo cultural e estético, e está na gênese da manipulação da paisagem como objeto estético”.

Para Carneiro e Mesquita (2000, p. 28)

parques são espaços livres públicos com função predominante de recreação, ocupando na malha urbana uma área em grau de equivalência superior à da quadra típica urbana, em geral apresentando componentes da paisagem natural – vegetação, topografia, elemento aquático – como também edificações destinadas a atividades recreativas, culturais e/ou administrativas.

Observa-se que referências presentes nos conceitos de parque apreendidos de Lamas e de Carneiro e Mesquita também se encontram presentes na visão de Macedo e Sakata (2002, p. 13), que consideram o parque “um espaço livre público estruturado por vegetação e dedicado ao lazer da massa urbana”.

Além dos espaços públicos caracterizados como rua, praça e parque aqui tratados, cabe ainda, ao final deste item, atentar para a franca possibilidade da presença, em uma dada realidade empírica, de gama mais ampla de ambientes, seja quanto à configuração física, seja quanto aos próprios usos.

Neste universo estaria contido, por exemplo, o pequeno canteiro, presente no ambiente urbano com a função formal de dividir as faixas de trânsito de veículos, e que pode receber pela população apropriações de lazer ou mesmo comerciais. Há também o espaço considerado residual, constituído, em geral, de pequena área, com tratamento paisagístico e por vezes, até mesmo mobiliário urbano (bancos ou brinquedos), remanescente de projeto de reestruturação urbana, envolvendo a urbanização de área mais ampla, na qual este espaço encontra-se inserido. Pode-se, igualmente, citar o “campo de pelada”, um campo de futebol improvisado, comum nos bairros de menor renda, e o mirante, que se constitui em ambiente localizado em áreas com relevo adequado à visualização de paisagens consideradas relevantes e com tratamento urbanístico que permite a permanência de um grupo de pessoas. O “calçadão” da praia é outro exemplo, e vem se configurando fisicamente, como verdadeiro parque urbano linear à beira mar, devido ao mobiliário urbano, geralmente presente, e à atratividade que desperta no público.

 

Espaços públicos sob diversos olhares conceituais

Em vertente diferenciada em relação à anteriormente tratada, porém, sempre buscando contribuições conceituais que ampliem a capacidade de compreensão acerca das apropriações conferidas aos espaços públicos, cabe destacar alguns estudos que relativizam os conceitos de espaço público e privado. Hertzberger (1999), por exemplo, defende uma diferenciação gradual entre estes pólos – público e privado -, centrando suas discussões em questões como acessibilidade, forma de uso e população usuária. DaMatta (1997) cuja abordagem centra-se nas diferenciações entre o privado e o público a partir de estudos antropológicos entre a casa e a rua, considerando a espacialidade física e moral, admite, no entanto, o estabelecimento de uma relação dinâmica e complementar entre eles.

Outra importante linha nestes estudos é a que empreende abordagem sobre o espaço público capaz de identificar elementos de permanência e de passagem ao longo do tempo e na atualidade. Milton Santos (1985) alerta para uma abordagem do espaço que considere além dos fixos nele situados, também os fluxos que o percorrem.

Valendo-se de enfoque bastante voltado à economia, Santos (1985, p.38), ao apresentar um panorama evolutivo do capitalismo, desde a fase denominada mercantil ao recente período classificado como técnico-científico, indica como dado importante deste último “a aceleração da circulação de bens e de pessoas”. Para o autor,

as empresas transnacionais, cada vez mais freqüentemente, produzem partes do seu produto final em diversos países e são, desse modo, um acelerador da circulação. Também graças a elas aumentou recentemente a necessidade de exportar e importar, tornada comum a todos os países.

Por outro lado, dentro de cada país há tendência a uma especialização cada vez maior das áreas produtivas. Isso está ligado à necessidade de maior rentabilidade do capital,...

...o movimento conduz os capitais fixos a ganhar uma importância bem maior do que antes, de forma que se dá um aumento paralelo de “fixos” e de “fluxos” (SANTOS, 1985, p. 38-39).

Deste modo, Santos afirma que:

À medida que a economia se torna espacialmente seletiva dentro de cada país, e complementar entre países, os instrumentos de trabalho são cada vez maiores e mais os fixos e os fluxos correspondentes são forçosamente mais numerosos e densos (SANTOS, 1985, p. 39).

O autor refere-se ainda ao papel de inércia dos capitais fixos, considerados como “geografizados segundo uma lógica que é a do momento de sua criação”, admitindo, neste sentido, a existência de fixos “ligados à atividade direta dos produtores individuais”, mas “também aqueles socialmente criados” (SANTOS, 1985, p.67).

Atribuindo o mencionado papel de inércia aos fixos, que “provêm de épocas passadas, [...] e cuja instalação correspondeu a uma lógica buscada na rede de relações múltiplas (políticas, econômicas, geográficas)” (SANTOS, 1985, p.67), o autor destaca, contudo, que esta relação dos capitais fixos com épocas passadas não significa, necessariamente, “perda relativa de seu valor produtivo ou de sua capacidade de participar no processo de acumulação geral e dentro do ramo respectivo. É a incidência, sobre essas formas envelhecidas, das relações sociais, que lhes assegura um lugar na hierarquia dos papei”. (SANTOS 1985, p.67). Para o autor, os fixos são “portadores [...] de um sistema de relações ligado à lógica interna de firmas ou instituições e que opõe resistências à lógica mais ampla, de natureza geral, [...]” (SANTOS, 1985, p. 67-68).

O autor indica ainda a infra-estrutura implantada pelo Estado, como “fixos [que] atraem e criam fluxos”, concluindo que “o subsetor governamental orienta os fluxos econômicos e humanos e determina a sua viabilidade e direção” (SANTOS, 1985, p. 76). Por outro lado, indica que “os fluxos também criam fixos na órbita do subsistema de mercado, sobretudo quando os fixos de origem pública são insuficientes para atender à demanda”. (SANTOS, 1985, p. 76)

Verifica-se, então a importância de examinar o alcance, o potencial e a forma de inserção destes fluxos, caso não exerçam somente função de passagem. No caso de absorção local de aspectos provenientes dos fluxos, cabe observar o grau de receptividade destes pelo meio e as interferências, as alterações de modo de vida por eles gerados. Neste sentido, é Santos (1985) quem indica o potencial intrínseco ao lugar, a partir das “rugosidades – formas remanescentes dos períodos anteriores – [que] devem ser levadas em conta quando uma sociedade procura impor novas funções” (p.55).

Essa amplitude analítica, ou seja, manter o olhar voltado à dinâmica contemporânea que permeia o espaço com fluxos nem sempre visíveis, considerando-se, por exemplo, os ambientes possibilitados pela informática, sem negligenciar a observação sobre os caracteres da dinâmica sócio-econômica pré-existente, constitui-se em princípio importante para a compreensão do papel do espaço público na atualidade e do seu potencial em contextos futuros.

Manter esta dupla visada constitui um desafio à compreensão sobre as diversas dinâmicas relacionadas ao espaço urbano, e ao espaço público em particular, sendo fundamental não perder de vista que o espaço urbano e/ou público é parte da vida cotidiana na metrópole (CARLOS, 2001), além de articular-se a dinâmicas mais amplas – metropolitana, regional, nacional e internacional. É importante, portanto, que a compreensão dessa complexa articulação, entre as diversas escalas do espaço e as dinâmicas a elas inerentes, ofereça ressonância a uma abordagem cidadã de forma ampla.

 

Espaços públicos - mudanças e permanências de papéis

Recuperando, com o apoio da história, algumas questões relacionadas à modernização dos espaços públicos, cabe retomar brevemente determinadas reflexões antes de avançar, em considerações sobre mudanças e permanências de papéis desses espaços.

Neste sentido, a modernização do ambiente urbano no século XIX contribuiu para modificar hábitos sociais em importantes cidades européias, repercutindo em seguida em âmbito internacional (BRESCIANI, 1991). Além de melhorias na infra-estrutura em geral, encontravam-se de modo especial, no rol dos projetos de modernização, intervenções nos espaços públicos, buscando entre outros aspectos, reverter, ou ao menos minimizar, o impacto que o processo de industrialização vinha impingindo sobre as cidades. Ao mesmo tempo, essas intervenções, caracterizadas também muitas vezes como melhoramentos e embelezamentos urbanos (PRADO, 2002), qualificavam o ambiente com a inserção de praça, parque e a abertura de “boulevard” favorecendo apropriações até então inéditas.

Ao amenizarem o perturbado ambiente urbano, estas intervenções modificavam o percurso cotidiano do morador citadino, propiciando de imediato, a apropriação pelas elites. Gradativamente, ao se conectarem às expectativas ou demandas trabalhistas quanto à redução de jornada de trabalho, estas mesmas intervenções passaram também a dar vazão espacial aos anseios relacionados ao tempo livre do trabalhador, permitindo ao longo do século XX a popularização das apropriações dos espaços públicos. Como conseqüência, a demanda por construção de espaços públicos vem sendo então, uma das reivindicações da população às administrações públicas, sobretudo às municipais.

Neste contexto, cabe também assinalar que o aperfeiçoamento dos meios de transporte, ao inserir na atividade diária os deslocamentos metropolitanos, amplia as possibilidades e as abrangências de utilização dos equipamentos urbanos de um modo geral, incluindo os espaços públicos, permitindo até mesmo, sua utilização em âmbito regional. Isto, sem contar com circuitos nacionais e internacionais, empreendidos a partir de rotas turísticas. Por outro lado, outros fatores contribuem para minimizar ou restringir esta apropriação, ao considerar-se a ineficiência logística e o elevado custo do transporte coletivo para a maioria da população urbana no Brasil e na América Latina.

A disseminação do meio de comunicação eletrônica incide também sobre a questão, como fator adicional, tanto no âmbito das diversões como no referente ao trabalho, minimizando, de um certo modo, a importância quanto ao deslocamento físico e a circulação sobre o espaço.

No entanto, este potencial de abrangência quanto à apropriação dos espaços públicos vem também sendo fortemente cerceado pela difusão do medo, associado à violência urbana, inicialmente vinculada às grandes cidades, apresentando na atualidade, generalizações na realidade e no imaginário também das médias e pequenas cidades. Assim, a proliferação de diversões em ambientes fechados e controlados por aparato de segurança e conseqüentemente seletos e excludentes vem alterando costumes, repercutindo em mudanças nas relações sociais relacionadas aos espaços públicos.

Neste sentido, Caldeira (2000), referindo-se às décadas de 1980 e 1990 e a cidades como São Paulo, Los Angeles, Johannesburgo, Buenos Aires, Budapeste, Cidade do México e Miami, afirma que “diferentes grupos sociais, especialmente das classes mais altas, têm usado o medo da violência e do crime para justificar tanto novas tecnologias de exclusão social quanto sua retirada dos bairros tradicionais dessas cidades” (CALDEIRA, 2000, p.9). Ao mesmo tempo, Caldeira registra, no mesmo período, a ocorrência de processos de transformação social em diversos países, como “transições democráticas na América Latina; pós-apartheid na África do Sul; pós-socialismo no leste europeu; transformações étnicas decorrentes de intensa imigração nos Estados Unidos” (CALDEIRA, 2000, p.9) e conclui que a generalização das “atuais transformações espaciais e das formas de exclusão e encerramento a elas inerentes permite associá-las à parte de uma fórmula que elites em todo o mundo vêm adotando para reconfigurar a segregação espacial de suas cidades” (p.9).

Aprofundando a questão a partir do caso brasileiro e tratando de modo específico o caso de São Paulo, Caldeira (2000, p. 10) aponta para o

desenvolvimento de dois novos modos de discriminação: a privatização da segurança e a reclusão de alguns grupos sociais em enclaves fortificados, tratados como processos que vem mudando as noções de público e de espaço público que até bem recentemente predominavam em sociedades ocidentais.

Quanto ao primeiro modo indicado, a autora destaca a crescente contratação dos serviços privados de segurança e a tolerância da população à violação dos direitos dos cidadãos relacionada a procedimentos, muitas vezes, adotados por este tipo de serviço, reconhecendo aí “limites da consolidação democrática e do estado de direito no Brasil” (CALDEIRA, 2000, p 11). Quanto ao segundo, a autora considera que, “o novo padrão de segregação urbana baseado na criação de enclaves fortificados representa o lado complementar da privatização da segurança e transformação das concepções do público”, exemplificando, “a emergência de um novo padrão de organização das diferenças sociais no espaço urbano” (CALDEIRA, 2000, p. 11-12).

[...] o novo modelo de segregação separa grupos sociais de uma forma tão explícita que transforma a qualidade do espaço público.

Os enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e monitorados, destinados a residência, lazer, trabalho e consumo. Podem ser shopping centers, conjuntos comerciais e empresariais, ou condomínios residenciais. Eles atraem aqueles que temem a heterogeneidade social dos bairros urbanos mais antigos e preferem abandoná-los para os pobres, os “marginais”, os sem-teto. Por serem espaços fechados cujo acesso é controlado privadamente, ainda que tenham um uso coletivo e semipúblico, eles transformam profundamente o caráter do espaço público. Na verdade, criam um espaço que contradiz diretamente os ideais de heterogeneidade, acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o espaço público moderno quanto as modernas democracias. ...O novo meio urbano reforça e valoriza desigualdades e separações e é, portanto, um espaço público não democrático e não-moderno (CALDEIRA, 2000, p. 11-12).

A contraditória constatação de que esse tipo de organização do espaço público prolifera concomitantemente às transformações sociais, “como democratização política, fim de regimes racistas e crescente heterogeneização resultante de fluxos migratórios” (CALDEIRA, 2000, p. 12), permite à autora duas constatações. A primeira relaciona-se à complexidade das ligações entre formas urbanas e formas políticas. A segunda indica o espaço urbano como possível “arena na qual a democratização, a equalização social e a expansão dos direitos da cidadania vêm sendo contestados nas sociedades contemporâneas” (CALDEIRA, 2000, p. 12).

Deste modo, ao mesmo tempo em que os espaços públicos permanecem ambientes desejados pela população e reivindicados por ela ao poder público, cabe reconhecer que convivem com este desejo, de certo modo reprimindo-o ou neutralizando-o, uma série de situações controversas relacionadas ao binômio medo – segurança e à difusão de “espaços públicos” de outra natureza, como os propiciados pelo uso da internet.

Cabe, no entanto, reconhecer a existência de outros aspectos que também contribuem de maneira desfavorável às reais apropriações dos espaços públicos, tais como a própria qualidade dos espaços públicos, e, portanto, as formas de planejamento e gestão sobre estes incidentes.

 

Espaços públicos e seu planejamento – considerações finais

Enquanto Caldeira (2000) demonstra a crescente segregação sócio-espacial, como conseqüência de ações privadas e ausência do poder público, Arantes (1998) chega a indicar a própria participação do poder público na construção desta segregação. Esta autora, ao tratar da atitude da administração pública em sua ação de planejamento urbano, observa a freqüência com que resultados divulgados como sendo de êxito referem-se à requalificação de espaços urbanos micro dimensionais, desarticulada, portanto, de uma programação e um planejamento mais amplos, seja no âmbito físico-territorial, seja no âmbito social.

Tratam-se de áreas rigorosamente recortadas e preparadas de modo a tornarem-se super-equipadas, produzindo uma rígida delimitação de territórios em termos sociais e econômicos. Destaca-se que a temática cultural vem norteando os discursos de ações desta natureza, cujos aparatos por vezes inserem-se em circuito turístico nacional e internacional, sendo comum o fato destes equipamentos contarem com eficiente e segura articulação de transporte e acessibilidade, em contraste com as condições de vida do ambiente, onde se encontram inseridos.

Buscando apresentar e debater alternativas a este contexto, Souza (2002) aponta, nos campos acadêmico, de planejamento e gestão, a importância da noção de “desenvolvimento sócio-espacial” em contraponto à idéia limitada de desenvolvimento econômico, desenvolvimento urbano ou de desenvolvimento social. Para o autor,

desenvolvimento é entendido como uma ‘mudança social positiva’, cujo conteúdo é tido como não devendo ser definido ‘a priori’, à revelia dos desejos e expectativas dos grupos sociais concretos, com seus valores culturais próprios e suas particularidades histórico-geográficas (SOUZA, 2002, p. 60-61).

Desenvolvimento é então associado à mudança e “mudança para melhor”. Para Souza (2002, p.61) desenvolvimento sócio-espacial corresponde a “uma melhoria da qualidade de vida e um aumento da justiça social”. O autor atribui especial importância ao espaço, como palco, arena, referencial simbólico e condicionador das atividades humanas, indicando que “a mudança social positiva, no caso, precisa contemplar não apenas as relações sociais, mas, igualmente, a espacialidade”. Vinculada à questão, emerge a noção de autonomia, visto que para o autor (SOUZA, 2002, p. 66):

Uma vez que o caminho democraticamente mais legítimo para se alcançarem mais justiça social e uma melhor qualidade de vida é quando os próprios indivíduos e grupos específicos definem os conteúdos concretos e estabelecem as prioridades com relação a isso, podem-se considerar justiça social e qualidade de vida como subordinados à autonomia individual e coletiva enquanto princípio e parâmetro.

Nesta linha de atuação, e considerando o objetivo inicial deste artigo quanto ao embasamento de investigação sobre apropriações do espaço público de Vitória (ES), cabe destacar, como parte da pesquisa, a realização do curso “Para qualificar os espaços públicos de Vitória”, que buscou estabelecer, junto aos representantes comunitários dos bairros enfocados, troca de conhecimentos ao apresentar conceitos e análises referentes aos estudos realizados pela equipe técnica e debater o entendimento e a avaliação das lideranças locais a respeito dos espaços públicos a eles relacionados. A experiência, mesmo que pontual e específica, aponta para ampliar as condições de debate e a participação da população nos processos decisórios, institucionais ou não, que envolvam o desenvolvimento sócio-espacial.2

A despeito de algumas abordagens aqui expostas indicarem crescente tendência de segmentação, segregação e mesmo desuso quanto ao espaço público, estes fatores não se apresentam na atualidade de modo totalmente abrangente e definitivo. É notória a permanência dos espaços públicos como importantes locais de embelezamento urbano e, também, como ambientes de deslocamento físico. Entretanto, mais do que isto, destaca-se a apropriação do espaço público como importante fator relacionado à cidadania. É neste sentido, que este artigo busca contribuir para qualificação do espaço público no planejamento e na ação voltados ao desenvolvimento sócio-espacial, considerando-se, sobretudo, os aspectos urbanísticos e as formas de apropriação.

 

Referências Bibliográficas:

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Endereço para correspondência
E-mail: eneidamendonca@gmail.com

Recebido em: 31/03/2007
Aceito para publicação em: 08/10/2007

 

 

Notas

*Arquiteta, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
1 POÉTE, Marcel, Introductiona à l´Urbanisme. Editions Antropos. Paris, 1967. LAVEDAN, Pierre. Histoire de l´Urbanisme. Editions Henri Laurens. Paris, 1959. TRICART. Cours de Géographie Humaine, fascicule II. Paris. 1962 (295pp.) L´Habitat Urbain. Centre de Documentation Universitaire, apud LAMAS, José M. Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Fundação Calouste Gulbenkian e Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, s/d.
2 Sobre informações mais detalhadas acerca do curso “Para qualificar os espaços públicos de Vitória”, ver: MENDONÇA, E. M. S. Análise e construção de espaços públicos em Vitória – de oeste a leste da ilha. In: Seminário de Pesquisa sobre Violência, Segurança Pública e Cidadania da Prefeitura de Vitória. Anais. Vitória: Prefeitura Municipal de Vitória, CD-ROM, abril de 2007a e MENDONÇA, E. M. S. Espaços públicos e apropriações: conceitos, metodologias e experiências. In: III Seminário de Pesquisa e Iniciação Científica do Núcleo de Estudos de Arquitetura e Urbanismo – NAU. Anais. Vitória: Núcleo de Estudos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo - NAU/UFES, CD-ROM, junho de 2007b.

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