SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número3A abertura ao trabalho psicanalítico em uma instituição pública: Márcia e a dúvida identificatóriaA importância das experiências táteis na organização psíquica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.3 Rio de Janeiro dez. 2007

 

ARTIGOS

 

A expressão e a elaboração do luto por adolescentes e adultos jovens através da internet1

 

The expression and elaboration of mourning by adolescents and young adults through the internet

 

 

Alice Schwanke PeruzzoI, *; Bruna Maria Gil Jung II, **; Tárcio SoaresIII, ***; Helena Beatriz Kochenborger ScarparoIV, ****

I, II, III Bolsistas do Programa de Educação Tutorial (PET) da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
IV Professora do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Psicologia e Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET) e Professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo examina como o luto é expresso na Internet, mais especificamente no site de relacionamentos Orkut. Foram analisados quatorze depoimentos expostos em comunidades virtuais criadas para “homenagear” pessoas mortas. Tais depoimentos foram escritos por jovens que sofreram uma perda repentina recentemente. Foi utilizada análise de conteúdo (BARDIN, 1991), com dois enfoques: a forma da comunicação e o sentido do que foi comunicado. Quanto ao primeiro, evidenciou-se que os jovens não se dirigiam somente a outros internautas, mas também ao falecido e o conteúdo no geral tratou sobre memórias, expressões de carinho e saudade por parte dos depoentes. Também houve relatos sobre como estava sendo o período pós-perda. Os depoimentos caracterizaram-se pela riqueza de sentimentos e sensações, além de conter descrições de estratégias de enfrentamento da perda. Este estudo evidencia que estas redes constituem-se em um campo de estudos importante, especialmente no âmbito da psicologia.

Palavras-chave: Luto, Jovem, Internet.


ABSTRACT

The present study examines the expression of mourning in the Internet, more specifically in the site of relationships Orkut. Fourteen testimonies displayed in virtual communities that were created in honor of deceased people were analyzed. These testimonies were written by teenagers who had recently suffered a sudden loss. It was used two different approaches in the content analysis (BARDIN, 1991): the form of communication and the meaning of its content. It has been evidenced in the first one that the young did not only communicate directly to other members of the community but also to the dead person. Memories and expressions of affection were the main contents expressed by the deponents. There were also reports of how they were facing the period after-loss. These testimonies were characterized by the richness of feelings and sensations, beyond containing descriptions of the loss confrontation strategies. The study shows that this virtual nets consists an important field of study, especially in the psychology scope.

Keywords: Mourn, Youth, Internet.


 

 

Introdução

Os significativos avanços tecnológicos, especialmente aqueles relacionados à comunicação, tal como a Internet, têm gerado importantes transformações nas relações contemporâneas (GOLDBERG, 1998). Tais transformações também parecem evidenciar-se nos processos de luto e enfrentamento de perdas. Uma visita ao site de relacionamentos Orkut revela a existência de espaços dedicados a expressar e compartilhar a dor e a perplexidade causada pela perda de amigos, familiares, ídolos, entre outros.

Para se ter uma idéia da dimensão e da importância que a Internet possui no Brasil, pode-se conferir os dados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos-Opinion, entre os meses de agosto e setembro de 2005, a pedido do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o intuito de verificar o uso da tecnologia de informação e comunicação (TIC) no Brasil. A pesquisa apontou que cerca de 9,6% da população brasileira acessa a Internet diariamente e 24% acessou durante o período pesquisado. Estima-se, então, que mais de 17 milhões de brasileiros utilizam diariamente a Internet, sendo que esse número aumenta continuamente. A mais recente pesquisa do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação do Brasil mostrou que a maior parcela dos usuários é composta por jovens de 16 a 24 anos (CETIC, 2006). Desde abril de 2000, o Ibope, em conjunto com a NetRatings, mede o quanto o brasileiro usa a Internet no mês. Os dados registrados indicam que a população brasileira tem feito, progressivamente, maior uso da Internet, liderando mundialmente as horas de utilização mensal entre os que têm acesso, superando países como Japão e Estados Unidos (IBGE, 2005).

Dentre as mudanças verificadas com os avanços tecnológicos dos tempos atuais, a Internet ocupa um papel muito relevante, pois exerce influência nos modos das pessoas relacionarem-se e, consequentemente, interfere em suas vidas cotidianas (LEITÃO; NICOLACI-DA-COSTA, 2001). É uma das formas de mídia que vem gradativamente “ocupando [...] o lugar do “outro” no processo dialógico que funda as relações de sociabilidade e de formação de identidade” (SILVA, 2002, p.7); questões fundamentais para a nossa constituição como seres humanos. Neste contexto, os jovens, além de serem os maiores usuários da Internet, muitas vezes têm crescido em contato estreito e direto com essa tecnologia.

Na perspectiva do desenvolvimento fisiológico, Papalia e Olds (2000) definem adolescência como um momento que tem seu início por volta dos 12 anos, quando o indivíduo atinge a puberdade, e finaliza próximo aos 20 anos. Associada às mudanças físicas, se evidencia a busca por autonomia, o que resulta numa fase intensa, caracterizada por situações conflitantes e ansiogênicas, que terão influência significativa nas formas como a pessoa enfrentará os desafios futuros. Calligaris (2000) postula que o adolescente, no seu contexto familiar, geralmente perde o olhar de amor incondicional que lhe era dado quando criança e não ganha os direitos e o reconhecimento de um adulto. Tal fato distancia o adolescente de sua família e o aproxima de grupos nos quais pode ser reconhecido como igual. Trata-se de uma época caracterizada pela vulnerabilidade, o que se traduz muitas vezes em sofrimento psíquico e em episódios de depressão, por exemplo.

Segundo Bee (1997), o final da adolescência ocorre por volta dos 20 anos, dando início ao período compreendido como “adultez jovem”. Essa etapa é descrita pela autora como o ápice do desenvolvimento físico e cognitivo. As expectativas prescritas para essa etapa giram em torno de definições profissionais, da conquista da autonomia e de relacionamentos mais estáveis, no que tange à sexualidade e à constituição da família (PAPALIA; OLDS, 2000; ERICKSON, 1976). Cabe ressaltar que essas expectativas demandam estabilidade e não consideram as descontinuidades que povoam a vida na contemporaneidade, o que exige uma ressignificação dos parâmetros para definir e descrever o desenvolvimento humano.

No que se refere às expectativas de vida de jovens, significativas transformações têm ocorrido, de modo que a morte deixa de ter um significado social e cultural distante do cotidiano. Cada vez mais, devido a fatores como a violência em diferentes âmbitos e a doenças infecto-contagiosas, os jovens têm se deparado com a morte. Domingos e Maluf (2003) consideram que a perda ocasionada pela morte da pessoa próxima, na maioria das vezes, provoca uma desorientação profunda na vida dos adolescentes. Assim, dependendo do vínculo criado com o falecido e da própria personalidade do jovem, pode ocorrer choque e desespero, fazendo com que este se sinta perdido. Além disso, a perda de uma pessoa próxima pode gerar no adolescente a consciência da própria mortalidade, contrapondo-se com o sentimento de invulnerabilidade comum a este período da vida.

No período de pós-perda, são vivenciados processos de elaboração do luto no qual ocorrem fenômenos de enfrentamento de perdas significativas e de elaboração da dor derivada das mesmas (KAPLAN; SADOCK; GREBB, 2003). O período de vivência do luto costuma ser caracterizado por diversas mudanças. Além de ter que lidar com o pesar da perda, a pessoa pode ter que passar por rupturas na sua condição e no papel exercido como, por exemplo, uma pessoa que passa de filho a órfão (PAPALIA; OLDS, 2000).

Pesquisas epidemiológicas evidenciam que os enlutados, em geral, apresentam maiores níveis de doença, morte e depressão nos meses seguintes à perda (BEE, 1997). A despeito de a grande maioria das pessoas retomarem suas vidas rotineiras no período de até um ou dois anos após a morte do ente querido, existem casos nos quais o sofrimento pela perda se estende por mais tempo (KAPLAN; SADOCK; GREBB, 2003). O prolongamento ou não desse período deve-se a diversos fatores, dentre os quais os enlutados encontram os recursos pessoais e as redes de apoio com as quais pode contar. Wortman e Silver (1989) demonstram em seu estudo que o principal fator é o tipo de vínculo associado ao tipo de causa da morte. Por exemplo, mães que perdem filhos em acidentes de carro têm este período em média muito mais longo.

Apesar de haver importantes estudos sobre a estruturação do luto em determinadas fases (PARKES,1998; BOWLBY, 1982; 1985) e situações (WALSH; MCGOLDRICK, 1998), não se pode generalizar os diferentes modos de expressão e elaboração desse sentimento. Em um estudo sobre o tema, Wortman e Silver (1989) mostraram que os processos de elaboração do luto são variados. As publicações sobre o tema atribuem essa variação a diferentes fatores como, por exemplo, o tipo de óbito, a faixa etária do enlutado (BEE, 1997; WORDEN, 1998), e a cultura em que o sujeito está inserido.

Com relação aos aspectos culturais, Oliveira (2001) destaca que, desde o século XIX, o sujeito tem gradativamente se tornado passivo e alienado diante da situação da morte, ao contrário do que acontecia na Idade Média, quando tal situação era utilizada para festas e comércio, misturando a vida e a morte. Domingos e Maluf (2003) acreditam que, mesmo que a morte seja algo certo, ela é um dos maiores temores do homem ocidental. Dessa forma, Ariès (1977) sugere que o ato de abreviar ou encurtar os sentimentos decorrentes da perda é algo que a sociedade ocidental herdou do século XIX. Há uma tendência cada vez maior de negar a morte e de torná-la menos ritualizada. O mesmo autor defende que, em uma sociedade moderna regida pelo individualismo, a morte não é mais consolável pela idéia de continuação da comunidade como um todo, adquirindo o sentido trágico do fim solitário de uma existência, tornando-se muito mais difícil de ser enfrentada e encarada.

É importante que as vivências relativas à morte sejam elaboradas e que permitam ao sujeito processos de ressignificação da vida e, conseqüentemente, rearticulação de projetos. Para tanto, faz-se necessário questionar os ritmos impostos pelos modos de vida contemporâneos, nos quais a pressa de resultados eficientes, previsíveis e imediatos delimita expectativas e comportamentos. Para Bowlby (1985), a tristeza é sinal de saúde frente à infelicidade e a não-vivência desta tristeza têm conseqüências variáveis, quase sempre prejudiciais e geralmente de grande alcance na vida do sujeito. O autor caracteriza tal atitude como sendo “mal-adaptativa” na grande maioria dos casos.

Sendo a Internet um importante veículo nas relações interpessoais da atualidade, adquirindo, cada vez mais, certa relevância no contexto de seus usuários, buscou-se compreender aspectos da expressão do luto por adolescentes e adultos jovens nesse meio. A associação dos aspectos teóricos pesquisados com a análise dos dados coletados permitiu refletir sobre algumas questões relativas ao tema proposto.

 

As circunstâncias do processo de investigação

Para a realização do estudo, foram coletados quatorze relatos de internautas, participantes da rede virtual de relacionamentos Orkut. Com a finalidade de criar uma unidade entre os depoimentos selecionados, utilizaram-se alguns critérios para a escolha dos mesmos: deveriam estar expostos em comunidades que tratavam sobre a morte de alguém e expressar de modo claro os sentidos atribuídos pelos sujeitos à situação de perda recente. Os depoentes precisavam ter idades entre dezoito e vinte cinco anos e não podiam ter parentesco de primeiro grau com o falecido. Além disso, foram coletados os relatos escritos até um ano da morte da pessoa, período considerado normal para o processo de luto (KAPLAN; SADOCK; GREBB, 2003).

É importante ressaltar que, apesar dos depoimentos estarem expostos em um endereço de domínio público na Internet, os princípios éticos de anonimato e sigilo de informações foram seguidos. Como decorrência, o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em 10 de Julho de 2006.

Para examinar os dados coletados, utilizou-se como método a Análise de Conteúdo (BARDIN, 1991). Esta implica uma leitura detalhada dos relatos, seguida da discussão e formulação de categorias pertinentes aos objetivos da pesquisa, que se delimitem na medida do aprofundamento do exame dos dados coletados, “introduzindo uma ordem suplementar reveladora de uma estrutura interna” (BARDIN 1991, p.55), “de modo a chegarmos a representações condensadas e explicativas” (BARDIN 1991, p.53).

Após esse momento inicial, todo o texto dos depoimentos é classificado conforme as categorias destacadas. Durante o processo, evidenciou-se a relevância de contemplar dois enfoques conforme sugerido por Moraes (1999): como ocorre a comunicação e qual o conteúdo do que é comunicado. Esses enfoques se justificam pela necessidade de explicitar novas formas de expressão e favorecer o entendimento das perspectivas dos sujeitos sobre a morte, tendo em vista a influência da Internet nos processos que envolvem a elaboração do luto.

 

Temas e categorias observados nos relatos

Os resultados foram analisados segundo duas perspectivas. A primeira teve como objetivo verificar como ocorre a comunicação no meio virtual. Para isso, foram elencadas quatro categorias básicas que abrangessem o tema: relato dirigido aos internautas; relato aos internautas explicitando uma comunicação direta com o falecido; comunicação direta com o falecido desejando felicidades ou manifestando carinho e comunicação direta com o falecido, com o objetivo de atualizá-lo.

A categoria “Relato dirigido aos internautas” teve como objetivo salientar o que era falado e atualizado aos internautas, a respeito da pessoa que havia falecido e de como estava sendo seu período de pós-perda. Notou-se que, nesses relatos, a lembrança de momentos passados com a pessoa eram recordados, na tentativa de compartilhá-los com outros internautas que também a conheciam. Outro ponto que merece ser destacado é o fato de que as pessoas contam aos membros da comunidade virtual que dificilmente conseguirão esquecer os momentos vividos com o falecido como, por exemplo, no trecho seguinte: “[...] pode passar o passar o tempo que for ele sempre estará no meu coração e nas minhas lembranças[...]”. Ao mesmo tempo em que se sentem tristes com a perda, algumas pessoas tentam, de alguma maneira, confortar aos outros e a si mesmos, como destacado nesse relato “[...] no lugar das lágrimas tentem sorrir, lembrando do seu lindo sorriso e das risadas gostosas que ela dava”.

A segunda categoria, “Relatos aos internautas expressando uma comunicação direta com o falecido”, procurou verificar se as pessoas relatam se comunicar com a pessoa falecida e de que forma isso acontece. Em alguns dos relatos analisados, pôde-se observar que diversas pessoas contam aos internautas que falam com a pessoa morta, que acreditam que ela pode escutar e que por isso deixam recados para ela na comunidade.

Na terceira categoria analisada, “Comunicação direta com o falecido, desejando felicidades ou manifestando carinho”, procurou-se verificar nos relatos o que é dito diretamente para quem morreu. Foi verificado que os relatantes deixam recados não só para os internautas participantes da comunidade, mas também para a pessoa falecida. O conteúdo expresso varia muito. Os internautas manifestam saudade, afeto, lembranças do aniversário, lembranças de fatos ocorridos previamente e idéias sobre onde e como está a pessoa que morreu.

A última categoria, “Comunicação direta com o falecido, com objetivo de atualizá-lo”, diz respeito aos depoimentos que são escritos diretamente para a pessoa morta e que objetiva contar fatos recentes que ocorreram após a sua morte. Nos relatos foi observada a importância que a mesma tem na vida dos relatantes, já que eles ainda investem na busca de alívio e elaboração do sofrimento desencadeado pela perda (BOWLBY, 1985).

Na segunda etapa da análise, foram delineados três grandes temas utilizados como base para a discussão dos resultados. O primeiro tema refere-se às memórias relacionadas à pessoa falecida. Essas lembranças foram destacadas em vários relatos, sendo que a maioria delas era positiva e tratava de fatos acontecidos quando a pessoa estava viva como, por exemplo: “o niver foi no sítio dela [...] nos encontramos no jangadeiros e fomos...” ou de como era a pessoa no que diz respeito às suas características como, em “posso dizer o quanto ela era maravilhosa”.

O segundo tema faz menção às estratégias de elaboração e dificuldades relacionadas ao luto. Os relatos são ricos em sentimentos e sensações, havendo manifestações diretas do luto. Tais manifestações ficam claras quando os relatantes falam de possíveis sensações somáticas, como no seguinte trecho: “[...] minha cabeça e meu coração doem e a vontade de chorar é inevitável”. Também aparecem dificuldades na aceitação da perda e as estratégias utilizadas para enfrentá-la (levar flores ao cemitério, olhar fotos, etc).

O terceiro e último tema alude a manifestações de carinho e saudade. Um dado ilustrativo da importância dessa temática foi que a simples palavra “saudade” apareceu 15 (quinze) vezes ao longo dos relatos analisados, sendo que, em outras situações ela aparecia implícita, como em “Sinto falta de seu sorriso, das suas brincadeiras, do seu jeito especial de ser”. Além disso, o carinho foi expresso em todos os relatos e de diferentes maneiras, seja desejando felicidades, demonstrando amor ou na esperança de que a pessoa que morreu esteja em um lugar melhor.

 

Processos de elaboração do luto e redes virtuais

A análise dos resultados deste estudo possibilitou abranger diferentes aspectos da relação entre as novas tecnologias de comunicação e os processos de enfrentamento das situações de perda.

Primeiramente, observou-se a relevância que as redes virtuais vêm adquirindo nos processos de luto, especialmente no que se refere à consecução de espaços de expressão das circunstâncias em que este se efetiva. Além de deixar recados para pessoas que já faleceram, conversar e partilhar com outros internautas recordações de momentos vividos na companhia da pessoa que morreu, os jovens expressam claramente os sentimentos que a referida perda tem causado em suas vidas.

Também foi constatado que os internautas comunicavam e explicitavam como estavam lidando com o período pós-perda. Citações de rituais como ir ao cemitério, lembranças da pessoa morta e dificuldades de enfrentar o processo de perda estavam evidenciados na maioria dos relatos. Nos depoimentos contidos nestas comunidades foram relevantes as expressões que revelavam sentimentos de falta e “saudade”, tendo em vista que os mesmos apareceram em quase todos os relatos. Esse dado aponta para a necessidade de expressar a falta que a pessoa que partiu ainda provoca. Kovács (1992) afirma que a expressão dos sentimentos é de extrema importância para o desenvolvimento do processo de luto. No entanto, a autora sugere que um trabalho psicoterápico, mesmo não sendo obrigatório, auxiliaria e facilitaria bastante esse processo. Nesse caso, Silva (2003) sugere que o terapeuta deve realizar um trabalho de prevenção, para que o processo de luto não se torne patológico ou cause sérias conseqüências.

É de extrema relevância ressaltar a importância que as crenças sobre o pós-morte exercem nos relatos. Idéias de que a pessoa esteja em um lugar belo, de que esteja bem e feliz, de que pode entender ou ler os relatos, de que exerce alguma influência na vida dos amigos e familiares são alguns exemplos de como é forte e presente a noção que cada relatante possui sobre a morte. Essas crenças estão muito ligadas com a forma pela qual o luto será elaborado, uma vez que podem incutir esperança de que o falecido estaria em um lugar melhor e confortar quem sofreu com a perda. Tais crenças encontram na Internet um importante espaço para sua expressão.

A partir disso, surge uma questão intrigante: por que manifestar esses sentimentos na Internet? Devem existir várias respostas para essa pergunta, não havendo, portanto, uma que seja única para todos os indivíduos, já que, como afirma Kovács (1992), a perda de uma pessoa é manifestada de maneira diferente e supõe um sentimento e tempo único para cada um.

Uma dessas respostas pode estar relacionada ao processo inerente ao crescimento da Internet,demonstrado por Nicolaci-da-Costa (2005), na qual a mesma ocupa cada vez mais espaço na vida das pessoas, o que interfere nas relações interpessoais e exerce marcante influência sobre a maneira do indivíduo ver o mundo e inserir-se nele. Complementar a isto, Leitão e Nicolaci-da-Costa (2001) apontam que, na Internet, a falta de limites, a possibilidade de diferentes relações e formas de exposição trazem uma nova realidade ao sujeito. Assim, é possível que ela assuma papéis diversificados, conforme o contexto de seus usuários. Talvez isso possa explicar por que algo tão pessoal e subjetivo seja tratado abertamente, sem os impedimentos normais de um contexto não virtual. Deste modo, pode-se pensar mais uma vez que o relatar, visitar e criar comunidades que homenageiam as pessoas mortas são formas de dar conta da dor e da tristeza sentidas por parte do enlutado.

Outro achado interessante e instigante foi a presença de uma comunicação direta com o falecido na maioria dos depoimentos. Esse dado peculiar foi encontrado em 13 dos 14 relatos analisados, o que torna de suma importância tentar entender por que isso acontece e qual o conteúdo que as mensagens revelam.

Em relação ao conteúdo do que é comunicado ao falecido, cabe ressaltar algumas observações. A forma como as lembranças são recordadas e como as palavras são dirigidas traduzem com freqüência um sentimento de carinho e saudade. A pessoa falecida freqüentemente é idealizada, fazendo com que somente os seus pontos positivos sejam recordados. Expressões de como a pessoa era linda, amável e amiga são exemplos da idealização feita pelos internautas, o que corrobora com a afirmação de Rosa (1995) segundo a qual, geralmente, a pessoa se torna “boa”, “amiga” e “generosa” depois de morta. Finge-se que o falecido era assim para que o enlutado absolva suas falhas.

Algumas reflexões poderiam contribuir para a compreensão do porquê dessa forma direta de comunicação. A primeira é a de que os inúmeros usuários da Internet podem ter crenças religiosas distintas, o que torna possível que algumas delas acreditem que a pessoa morta consiga ler e compreender os seus relatos, tornando pertinente este tipo de comunicação. Outra hipótese nesse sentido relaciona-se com a possível exibição dos relatantes frente aos outros internautas. Neste caso, mostrar para os outros o quanto a pessoa morta era sua amiga e de como ela era importante para o falecido, pode ter o simples objetivo da exibição ou de explicitar uma necessidade de ter o seu sofrimento reconhecido pelos outros.

Outras reflexões realizadas dizem respeito mais diretamente ao próprio processo de luto, como a idéia de que o vínculo afetivo passa por uma grande transformação com a perda, e o adolescente pode entender que o luto é uma ruptura dessa relação, resultando em sentimentos de desamparo, pânico e ansiedade (BOWLBY, 1982). Assim, a necessidade de manter uma comunicação direta com a pessoa que faleceu pode ser uma tentativa de manter o vínculo tão forte quanto existia quando a pessoa estava viva, ou até mesmo de aprofundar a relação com um personagem idealizado, já que não é mais possível o acesso real. Além disso, ainda pode representar a negação que faz parte do luto. Kovács (1992) afirma que o sujeito pode negar os sentimentos decorrentes da morte para não sofrer, encarando a perda como fatalidade, ocultando seus sentimentos, eliminando sua dor, apontando seu possível crescimento frente a esse sofrimento. Os processos de defesa são decorrentes de qualquer luto e se tornam patológicos no momento que se tornam irreversíveis, constituindo parte da vida do enlutado. Bowlby (1985) corrobora a opinião do autor acima, ao afirmar que as defesas são relativas aos processos mentais e aos comportamentos que buscam alívio do sofrimento causado pelo luto.

Também cabe ressaltar que, ao experimentar o espaço virtual, o sujeito vivencia relações que não estão definidas pela presença concreta. Esse fato pode favorecer o estabelecimento de relações mais etéreas e resultantes do imaginário do internauta.

Para melhor compreender o fenômeno estudado é necessário refleti-lo também em relação aos fenômenos contemporâneos. Papalia e Olds (2000) postulam que, antes dos tempos modernos, era comum, pela escassez de recursos, conviver mais proximamente com a morte de parentes e amigos. A morte era considerada um evento “natural” e muitas vezes desejada, devido ao sofrimento que as pestes causavam. No entanto, nas sociedades atuais, os avanços da ciência e do saneamento no século XX proporcionaram a redução na mortalidade, fazendo com que fosse mais comum na terceira idade, tornando-se de certa forma “invisível e abstrata” para o restante da população.

Em uma tentativa de compreender a fase histórica em que vivemos, Bauman (2001) utiliza a metáfora da “liquidez” para explicar uma característica que estaria presente em praticamente todas as suas relações. Esta indica uma noção de tempo e espaço já não mais tão rígida e passa uma idéia de extrema mobilidade em praticamente todos os setores da vida do indivíduo contemporâneo. Sob esta perspectiva, o autor contempla diversos fatos atuais, entre eles a idéia de “comunidade”, se tornando praticamente utópica, os empregos não sendo mais vitalícios e as relações interpessoais sendo gradativamente mais curtas e instantâneas.

Nesta sociedade, em que tudo é instantâneo, a falta de tempo pode ser um dos fatores pelo qual a manifestação dos sentimentos envolvidos na perda tenha aparecido com tanta força na Internet. Deixar um recado on-line para a família do falecido ou para seus amigos é mais rápido do que ir ao encontro destes para prestar as condolências. Tocar no assunto da morte com os pais e familiares de quem morreu pode se tornar mais fácil e menos doloroso quando feito virtualmente, já que, dessa forma, não se tem um contato direto, no qual sentimentos podem emergir sem controle e não se saber como lidar. As comunidades que homenageiam pessoas mortas, além de serem dotadas de uma temporalidade a princípio infindável, são espaços nos quais os relatantes tentam recuperar e manter as memórias relacionadas ao falecido. Assim, essas comunidades parecem servir para os indivíduos como um espaço de fuga desta tendência pós-moderna de “liquidez” defendida por Bauman (2001), que pode fazer com que as pessoas atropelem os estágios necessários à elaboração do luto, prejudicando o processo como um todo.

Atualmente, a Internet tornou-se uma ferramenta, na qual a liberdade de expressão é possível, fazendo com que as barreiras da defesa e da autocrítica diminuam. Talvez seja essa uma das razões pelas quais as pessoas conseguem manifestar os sentimentos tão particulares decorrentes do luto nesse meio.

Assim, a ambigüidade pode caracterizar as relações, pois, como este meio de comunicação propicia uma aproximação das pessoas, também pode ocorrer um distanciamento das relações, isto é, as pessoas podem comunicar-se com qualquer lugar do mundo, mas não têm um contato físico, obstaculizando essa faceta da relação. O que se percebe é que, nos dias atuais, tudo acontece de uma forma muito rápida e superficial (BAUMAN, 2001). Como decorrência, o luto também acaba sendo tratado na perspectiva da cultura da urgência, o que faz com que o processo necessário para a elaboração das perdas não aconteça de modo a favorecer a construção de novos projetos que engendrem qualidade de vida.

Na Idade Média, era comum manifestarem-se os sentimentos decorrentes de uma morte, no entanto, no século XX, pelo fato da morte ser considerada como um fracasso da humanidade, existe essa supressão do aparecimento do luto. A vivência e a expressão da dor são condenadas pela sociedade, que as qualifica como fraqueza e exige um domínio e controle (ARIÈS, 1977). Em função disso, as pessoas buscam outros modos de expressão dos sentimentos socialmente legitimados, dentre eles o uso da Internet.

Em suma, a expressão virtual da perda é mais uma das possibilidades que os avanços da tecnologia da comunicação oferece. Uma comunidade virtual destinada a uma pessoa que faleceu reúne pessoas que depõem sobre o morrer, sobre como estão se sentindo frente à morte de seu amigo ou parente, sobre os momentos que viveram juntos e mesmo sobre idéias sobre o que se passa onde o falecido pode estar. Parte da bibliografia consultada (BOWLBY, 1985; KOVÁCS, 1992) afirma que a vivência da tristeza e a expressão de sentimentos e sensações experimentados no período do luto são etapas necessárias e importantes para uma elaboração saudável da perda. Tal afirmação atribui novamente um caráter positivo a este novo meio de expressão das perdas, que surge então como uma forma de escapar à exigência da sociedade atual, apontada por Ariès (1977) como sendo de supressão e não de vivência do luto.

 

Considerações finais

Com a realização deste estudo foi possível discutir a importância do espaço virtual nas relações de luto e perda. Tentar compreender as peculiaridades dessa comunicação e como o adolescente e adulto jovem vivenciam o processo de luto foram algumas das propostas que a presente análise visou abordar.

A partir da pesquisa bibliográfica, da coleta de dados e da posterior interpretação dos relatos, tornou-se possível uma reflexão acerca do assunto em questão. Observou-se que, de fato, a Internet possui um papel importante na elaboração do luto por esses jovens, embora não tenha ficado explícito se essa estratégia de elaboração é positiva ou negativa para eles. Essa última afirmação consiste na idéia implícita de que cada pessoa é única e vive seus contextos de forma bastante particular, não sendo possível generalizar que a Internet seja eficiente ou não para a superação do luto.

Outro ponto, talvez o mais instigante desse trabalho, foi a presença, evidenciada nos relatos analisados, da comunicação direta com a pessoa falecida por parte dos internautas.

O fato de a análise de conteúdo se restringir aos relatos contidos nas comunidades virtuais pode ter contribuído para que não houvesse um contato mais profundo, contato esse que seria possível caso tivesse sido realizada uma entrevista dirigida aos participantes. Esse contato direto com os internautas não foi realizado no presente trabalho como forma de garantir a manutenção de certos princípios éticos. Dessa forma, é possível que algumas das interpretações, inferências e hipóteses que surgiram no decorrer da análise dos depoimentos não aparecessem com tanta intensidade, como no caso da realização de entrevistas dirigidas aos membros dessas comunidades, ao mesmo tempo em que outras poderiam surgir com maior força. Sendo assim, a realização de futuros trabalhos que envolvam entrevistas e contatos mais diretos com os participantes dessas comunidades virtuais podem corroborar as hipóteses aqui apresentadas.

Pode-se considerar que, a partir do presente trabalho, evidenciou-se a relevância que as redes virtuais exercem nas relações interpessoais. Verificou-se que há uma grande riqueza e diversidade de sentimentos expressos através delas, além de uma transformação de limites evidente, o que permite aos seus usuários tratarem de assuntos muito particulares. Isso demonstra o fato de que estas redes constituem-se em um campo de estudos importante, especialmente no âmbito da psicologia.

Sob esse aspecto, trabalhos interessantes podem ser sugeridos, principalmente aqueles com temas considerados tabus e que dificilmente são tratados abertamente, como distúrbios alimentares e parafilias em geral, também temáticas que aparecem com freqüência no meio virtual.

 

Referências Bibliográficas

ARIÉS, P. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.        [ Links ]

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1991.         [ Links ]

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.        [ Links ]

BEE, H. O Ciclo Vital. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.         [ Links ]

BOWLBY, J. Apego e Perda. V.3. São Paulo: Martins Fontes, 1985.        [ Links ]

BOWLBY, J. Formação e rompimento de laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 1982.        [ Links ]

CALLIGARIS, C. A Adolescência. São Paulo: Pubifolha, 2000.        [ Links ]

CETIC. Freqüência do acesso individual à Internet. Disponível em: <http://www.cetic.br/usuarios/tic/2006/index.htm>. Acesso em: 2 mar. 2007.        [ Links ]

DOMINGOS, B.; MALUF, M. R. Experiências de perda e de luto em escolares de 13 a 18 anos. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 16, n. 3, 577-589, 2003.         [ Links ]

ERICKSON, E. H. Identidade: juventude e crise. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.        [ Links ]

GOLDBERG, B. High-tech anxiety. Management Review, 87, 1998.         [ Links ]

IBGE. Censo 2005. Disponível em: <http://www1.ibge.gov.br/censo>. Acesso em: 5 jan. 2006.        [ Links ]

KAPLAN, H. I.; SADOCK, B. J.; GREB, J. A. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. 7 ed. Traduzido por Dayse Batista. Porto Alegre : Artmed, 2003.        [ Links ]

KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.        [ Links ]

LEITÃO, C. F.; NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Psicologia clínica e informática: por que essa inusitada aproximação? Psicologia Clínica Pós-Graduação e Pesquisa (PUC/RJ), Rio de Janeiro, 421-430, 2001.         [ Links ]

MORAES, R. Análise de conteúdo. Educação, Porto Alegre, v.22, n.37, p.07-31, 1999.        [ Links ]

NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Primeiros contornos de uma nova “configuração psíquica”. Cadernos Cedes, Campinas, v. 25, n.65, p.71-85, 2005.         [ Links ]

OLIVEIRA, T. M. O Psicanalista diante da Morte. São Paulo: Mackenzie, 2001.         [ Links ]

PARKES, C. M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.        [ Links ]

PAPALIA, D.; OLDS, S. Desenvolvimento Humano. 7 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.         [ Links ]

ROSA, R. O. Amadurecendo com o luto. São Leopoldo: Sinodal, 1995.         [ Links ]

SILVA, A. L. P. O acompanhamento psicológico a familiares de pacientes oncológicos terminais no cotidiano hospitalar. Interação, Curitiba, v. 7, n. 1, p. 27-35, 2003.        [ Links ]

SILVA, Jacqueline de Oliveira (Org.). Saúde na Mídia. Porto Alegre: Dacasa, 2002.         [ Links ]

WALSH, F.; MCGOLDRICK, M. Morte na família: sobrevivendo às perdas. Porto Alegre: Artmed, 1998.         [ Links ]

WORDEN, J. W. Terapia do Luto. 2 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.         [ Links ]

WORTMAN, C. B.; SILVER, R. C. The Myths of Coping With Loss. Journal of Consulting and Clinical Psychology, v.57, n.3, p. 349-357, 1989.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alice Peruzzo
E-mail: alice.peruzzo@gmail.com
Bruna Jung
E-mail: brujung@hotmail.com

Tárcio Soares
E-mail: tarciots@hotmail.com
Helena Scarparo
E-mail: scarparo@pucrs.br

Recebido em: 03/04/2007
Aceito para publicação em: 31/08/2007

 

 

Notas

* Graduanda em Psicologia.
** Graduanda em Psicologia.
*** Graduando em Psicologia.
**** Psicóloga, Doutora em Psicologia.
1 Agradecemos à Profª Cibele Schwanke pela disponibilidade em criticar e sugerir mudanças que contribuíram para o aprimoramento do texto apresentado.

Creative Commons License