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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.1 Rio de Janeiro abr. 2008

 

ARTIGOS

 

As resistências do psicanalista (e outras) na saúde mental

 

The psychoanalyst's resistance in the mental health field

 

 

Sonia Leite

Psicanalista membro do Corpo Freudiano – Seção Rio de Janeiro
Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica-Rio
Coordenadora do Estágio em Psicanálise e Saúde Mental do Instituto de Assistência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro – Ambulatório Maracanã
Professora e Supervisora da Universidade Estácio de Sá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo destaca que a construção do trabalho do psicanalista na saúde mental envolve uma repetição simbólica da experiência freudiana originária. Considera-se a função de Outro, que o campo médico representou para o percurso freudiano, viabilizando a construção do campo psicanalítico. Afirma-se que o contexto da saúde mental propicia a emergência das identificações com os ideais do campo médico e, conseqüentemente, das resistências do psicanalista. Destaca-se que é a formação permanente do psicanalista, a referência capaz de viabilizar a sustentação do desejo do analista e a presença do discurso do analista nas instituições de saúde mental. Conclui-se que a função do analista é favorecer a emergência da falta a partir do encontro com as diferenças aí presentes.

Palavras chaves: Resistências, Formação do psicanalista, Desejo do analista, Saúde mental.


ABSTRACT

This article points out that the construction of the work regarding mental health evolves a symbolical repetition of the originary Freudian experience. It is considered the Other’s function, which the medical field represented for the freudian path, making the construction of the Psychoanalytic field feasible. It has been said that the mental health context provides the emergency of the identifications with the ideals of the medical field and, eventually, the psychoanalyst's resistance. It is emphasized that the psychoanalyst´s permanent formation is the reference capable of providing the supporting of the analyst’s desire and the presence of the analyst’s discourse in mental health institutions. It is concluded that the analyst’s role is providing the emergency of the lack from the meeting with the existing differences.

Keywords: Resistances, Psychoanalyst's formation, Psychoanalyst's desire, Mental health.


 

 

O psicanalista tem, assim, uma batalha tríplice a travar — em sua própria mente, contra as forças que procuram arrastá-lo para abaixo do nível analítico; fora da análise, contra os adversários que contestam a importância das pulsões sexuais e querem impedi-lo de fazer uso delas em sua técnica científica; e, no tratamento, contra os pacientes, que a princípio comportam-se como os inimigos da análise [...] (FREUD,[1915,1914], 1999).

Ao indicar nesse texto as três vertentes das resistências à psicanálise, Freud revela o quão complexo é o assunto, situando-o como fator constituinte do próprio campo psicanalítico. Lacan ([1954-1955], 1997), por sua vez, ao lançar o aforisma: a resistência é sempre do analista, radicalizará essa problemática localizando-a no próprio cerne da formação do psicanalista. Ou seja, mesmo que as resistências se expressem através dos adversários da psicanálise, ou ainda através dos pacientes, no âmbito da clínica, o fator determinante será, sempre, a habilidade do analista em manejar as forças que procuram arrastá-lo para abaixo do nível analítico.

No presente trabalho, parto da hipótese de que a saúde mental é um campo privilegiado para a análise dessa questão visto que, em última instância, o percurso de cada psicanalista, em tais contextos, se caracterizará por uma repetição simbólica da trajetória freudiana em suas relações com o campo médico. Trata-se, portanto, de uma espécie de retomada dos impasses aí presentes, pois a trajetória freudiana e a invenção do campo psicanalítico se constituíram tendo como contraponto a clínica médico-psiquiátrica.

Essa constatação sugere que cada psicanalista, em sua singular trajetória é levado a reeditar a experiência freudiana originária (LEITE, 2003), indicando-se que a permanência do campo psicanalítico, sua reafirmação, depende do encontro e análise das resistências aí presentes.

Tendo-se em vista que a saúde mental implica a idéia de uma reforma do campo médico-psiquiátrico — reforma que se constituiu, em parte, pelas contribuições da própria psicanálise — questões mais sutis se colocam em torno do tema das resistências.

Considero, aqui, a existência de um paradoxo: se, por um lado, a Reforma e seus ideais, no campo psiquiátrico, tem representado uma possibilidade de avanço no que diz respeito aos cuidados e ao acolhimento do sujeito louco (AMARANTE, 1994), por outro, do ponto de vista da práxis do psicanalista, esses ideais, ao se constituírem como pólos de identificação, podem funcionar como formas de resistência à efetivação da ética psicanalítica.

Com isso privilegio, como ponto de referência fundamental, a idéia de formação permanente do psicanalista, para pensar a presença da psicanálise na saúde mental.

 

A experiência freudiana: o discurso médico como Outro

Lacan, em seu retorno a Freud, convida os analistas a uma retomada contínua da experiência freudiana. Tratar-se-ia de ter, nessa experiência, um paradigma fundamental para a insistência da ética psicanalítica na clínica e nos diferentes espaços sociais aonde ela venha a se inserir.

Ao longo da trajetória freudiana é notória a presença do modelo médico, tanto nas origens desse percurso, ou seja, como ponto de partida, tendo-se em vista sua formação médica e os ideais de cientificidade aí presentes, quanto como ponto de diferença de que Freud lança mão, continuamente, para reafirmar sua criação.

Pode-se, então, afirmar com Lacan ([1966], 1993), que não há relação de extraterritorialidade entre a psicanálise e a medicina. De fato, é o surgimento do campo médico-científico que delineia as condições de possibilidade para a invenção da psicanálise. Porém, a psicanálise não se constituiu como um saber a mais, entre outros, que comporia o campo das ciências da cultura em oposição às ciências da natureza. Na realidade, “[...] a psicanálise se constitui como um saber inteiramente derivado, porém não integrante do campo científico, porquanto resulta de uma operação de subversão desse campo pelo viés do sujeito [...]”(ELIA, 2000, p.21).

Essa subversão, necessária à efetivação da psicanálise, sustenta-se na idéia de que a psicanálise não é um ramo especializado da medicina, como já havia afirmado Freud ([1927], 1977-d) mas antes, o seu avesso.

A palavra avesso, presente no título do Seminário 17 – O avesso da psicanálise, desdobrando-se em outros significantes, tais como: o (o)posto, o outro lado, o que está oculto, o envesso, isto é, o que muda a ordem de algo, indica caminhos frutíferos para se considerar as relações da psicanálise com o campo médico. O avesso é aquilo que ressurge, por estar inscrito num mesmo solo arqueológico, pois, como constatou Foucault (1990;1995), os saberes sobre o homem, constituídos na era moderna, teriam a mesma proveniência ou tronco comum.

Dessa forma, se a psicanálise constituiu-se a partir do mesmo solo da medicina, tal marca, presente em suas origens, estará, inexoravelmente, fadada a um retorno. A idéia de um retorno ao modelo médico significa, aqui, o risco de uma retomada das práticas clínicas, pautadas na lógica sugestivo-hipnótica, inscritas nas origens da psicanálise. Isto significa considerar que a efetivação da ética psicanalítica, capaz de subverter a lógica instituída no campo médico, articula-se, diretamente, ao trabalho com as resistências e à sustentação do desejo do analista (LEITE, 2006). Tais resistências seriam oriundas, fundamentalmente, da identificação do analista com os ideais do campo da medicina, cujo efeito seria o surgimento de práticas pautadas nas demandas sócio-institucionais, em detrimento da experiência do sujeito.

Podemos considerar que as instituições médicas, sendo um espaço de atualização do saber-poder médico (FOUCAULT, 1990), apontam para a predominância do discurso médico, sua lógica e suas leis, norteando as relações institucionais. Isto não significa desconsiderar o aparecimento, nas décadas mais recentes, de outros discursos e de outras práticas institucionais, a partir dos efeitos, tanto da chamada humanização dos hospitais, quanto dos movimentos reformistas que, efetivamente, relativizaram a hierarquia médica. Trata-se, porém, de reconhecer a hegemonia, historicamente determinada, a partir do fim do século XVIII, do saber-poder médico no campo social, isto é, da presença de uma forma discursiva que se desdobrou em práticas institucionais de controle e disciplina dos sujeitos. Na atualidade, estas estratégias de controle social não desapareceram, mas, ao contrário, renovaram-se, atuando de uma forma mais ínfima e sutil (FOUCAULT, [1970-1982], 1994).

Ao introduzir, no Seminário 17, a teoria dos quatro discursos, Lacan fornece um importante instrumento para se considerar a presença da psicanálise nas instituições de saúde mental afirmando, outrossim, a possibilidade da introdução do discurso do analista, junto a outras formas de discursos, viabilizando, dessa forma, a constituição do laço social.

 

 

São quatro discursos, que se constituem por quatro letras, que se repetem em cada um deles, mas que, ao mudarem de lugar, promovem a passagem de um discurso a outro, tendo como efeito uma subversão subjetiva. Lacan ([1969-1970], 1994) destaca a interdependência dos discursos, ou seja, o fato de que nenhum deles pode se manter sem a existência dos outros. Os discursos não se confundem com as pessoas que os proferem, mas indicam posições a partir das quais a fala se ordena.

Apesar de alguns recentes trabalhos (ALBERTI, 2000; RINALDI, 2002) destacarem a importância do discurso capitalista (LACAN, [1971], [1972], 1996) para se pensar os atuais desdobramentos da medicina na contemporaneidade, para o objetivo aqui proposto, considero oportuna a retomada de um dos trabalhos pioneiros nesse campo. Trata-se do livro de Clavreul ([1978], 1983), cujo título, A ordem médica, coloca em destaque a hegemonia do discurso médico no campo social, afirmando que, muitas vezes, a ideologia médica se confunde com a ideologia dominante e que a medicina é a imagem mesma que a sociedade quer dar de si própria (CLAVREUL, [1978], 1983, p.32).

Considera a aproximação entre o discurso médico e o discurso do mestre, por se tratar aí da instauração de uma ordem discursiva (S1), com suas leis próprias, cujo efeito é a tentativa de exclusão de uma posição subjetiva (S/) em prol de um sentido que objetiva a sustentação do próprio campo médico discursivo (S2). O que o médico visa em sua clínica, em linhas gerais, é ordenar os signos numa cadeia significante originando, assim, uma significação: a nomeação da doença e o diagnóstico. O produto (a) que daí advém é um objeto, designado como doença. Esse ato de mestria ameniza a angústia indicadora da divisão do sujeito e do encontro do Real.

Nessa tentativa de aproximação entre os dois discursos pode-se afirmar que, assim como o discurso do mestre funda o discurso do inconsciente, é a presença do discurso médico que funda o discurso da doença, ou ainda, como indica Foucault (1999), é a emergência do saber médico-psiquiátrico que funda a doença mental.

Obviamente, o discurso do mestre (e o do médico), tem uma função e uma importância, não se tratando de pretender eliminá-lo em prol de um outro (por exemplo, o do analista). A questão é a tendência histórica, já sublinhada, à hegemonia do discurso médico em detrimento dos demais e o risco da não circulação dos mesmos no campo social. O movimento de passagem de um discurso ao outro revela, em última instância, o objeto a (falta), sustentáculo do próprio matema tetraédrico. Conclui-se que, na impossibilidade de circularem os discursos, o que se inviabiliza é a instauração da castração e, conseqüentemente, a emergência do desejo inconsciente.

No lado oposto do tetraédrico encontra-se o discurso do analista. Ao situar no lugar de agente, o objeto a, tal discurso tem como efeito o aparecimento do sujeito no lugar do outro (S/). Longe de ser uma objetivação, o discurso do analista tem efeito de subjetivação, mostrando a função estruturante da fantasia na relação entre o sujeito e a falta do objeto. Ao contrário do discurso do mestre, que mantêm a fantasia sob a barra ( / ), o discurso do analista possibilita a emergência do sujeito do inconsciente, dividido pela linguagem, capaz de produzir novos significantes (S1).

Destaco, a partir dessa perspectiva, a idéia de passagem, de um discurso ao outro, como uma tarefa fundamental para o analista inserido nas instituições médicas, por outro lado, sublinha-se aí o risco sempre recorrente, de o analista acabar por sucumbir à lógica institucional, abrindo mão do essencial à práxis psicanalítica.

Considera-se, assim, que é a constituição do desejo do analista, a partir da análise das resistências, o fator capaz de possibilitar a introdução e sustentação do discurso do analista na instituição de saúde mental. No entanto, como os discursos relacionam-se a posições subjetivas que são mutantes e que não pertencem a uma pessoa específica, a presença do analista, nesses contextos, viabiliza uma transmissão capaz de permitir que outros “personagens” venham ocupar, transitoriamente, esta posição subjetiva.

Estas questões indicam que o campo psicanalítico se constitui numa dialética de distanciamento e reencontro com a clínica médica e seus discursos, delineando as instituições de saúde mental como espaço propício ao exercício da formação permanente do analista.

Pode-se considerar que o campo médico, suas instituições e seu saber-poder ocuparam, na experiência freudiana, a função de Outro, ou seja, de um avesso a quem Freud se dirige, inicialmente, numa busca de reconhecimento, momento coincidente com uma clínica voltada para o desejo de curar, para, a seguir, ter neste Outro uma via para a constituição do desejo de saber. Este último se delineará como desejo sem Outro (LACAN, [1967], 2001), à medida que não se tratará mais de uma busca de reconhecimento e sim da presença de uma alteridade viabilizadora da afirmação da própria psicanálise (LEITE, 2005).

O que o trajeto freudiano ensina é que o lugar e a ética do analista revela uma tensão permanente em relação às instituições e seus ideais sociais, na medida em que o nível instituído é sempre correlato de uma repetição que aponta para a exclusão do sujeito desejante.

Tensão, entretanto, não significa, antinomia, apontando, outrossim, para a presença dos impasses e seus limites. Um impasse diz respeito a situações de difícil contorno, cuja solução parece impossível e, é por isso, que Lacan ([1972-1973], 1995) se refere à questão do impasse como um indício da ordem do Real, isto é, daquilo que não cessa de não se inscrever, exigindo do analista uma tentativa de formalização teórica, momento crucial para a manutenção da formação permanente.

 

Os ideais da Reforma e a questão das resistências

A proposta de uma Reforma no campo da psiquiatria não é algo novo, muito menos atual. De fato, reforma e psiquiatria andam juntas, desde o nascimento da psiquiatria. Na atualidade brasileira, o que se verifica são duas tendências principais no campo psiquiátrico. A primeira aponta para a presença da psiquiatria biológica, que ganha status de ciência, baseada nos avanços das pesquisas bioquímicas e genéticas. Essa tendência tem ocupado, na atualidade, a mesma função das chamadas instituições totais (GOFFMAN, 2001) ao promover o que denomino um fechamento do fora, isto é, da alteridade, da Outra cena, através de um discurso totalitário que pretende responder a todas as questões da existência humana (LEITE, 2003).

A segunda tendência desenha o amadurecimento de um movimento reformista cuja marca é a crítica ao asilo, isto é, às instituições totais e aos seus efeitos de controle e normalização. O valor fundamental desse movimento é a idéia de cidadania, em sua crítica radical à concepção que associava cidadania à razão e que justificou a retirada dos direitos do cidadão louco (TENÓRIO, 2001).

A perspectiva reformista representa, sem dúvida, um avanço dentro do campo médico-psiquiátrico, caminhando da chamada tutela à idéia de cuidado, abrindo novas propostas institucionais para o trato da loucura. O eixo é a idéia de acolhimento a partir do reconhecimento de que a psicose, mais do que uma doença é uma questão que diz respeito à existência do sujeito.

Nesse contexto reformista como, então, pensar a questão das resistências à psicanálise nas diferentes vertentes apontadas por Freud?

Nunca é demais lembrar que a expressão resistências à psicanálise aponta, fundamentalmente, para a presença de algo de ordem estrutural na forma de uma ação psíquica que, sustentada pelas verdades do eu, impede o aparecimento do não-saber, isto é, da experiência do inconsciente. Em 1917, Freud (1996) já havia destacado que aquilo que sustenta as resistências à psicanálise é a preservação de um certo narcisismo e, que pode se expressar tanto em confrontos ostensivos (por exemplo, aqueles que, na atualidade, acusam a psicanálise de uma falta de cientificidade), como por outros, mais sutis, que acabam por privá-la do seu veneno, (FREUD, [1933], 1995, p.237), ao misturá-la a técnicas psicoterápicas variadas, diluindo os efeitos de uma práxis.

Num outro trabalho sobre o assunto, Freud ([1925], 1977-b), considera a questão da resistência, tratando-a a partir de uma certa necessidade humana do mesmo, isto é, daquilo que, através de uma imagem ou de um signo, possibilite ao homem, uma dada familiaridade produtora de reconforto e de reasseguramento e que, simultaneamente, recusa o estranho, isto é, aquilo que causa desprazer. O que causa desprazer exige do psiquismo um certo dispêndio de trabalho, devido às condições de incerteza que a situação acarreta. Freud referia-se, aqui, à psicanálise, como aquele campo que, abalando as certezas das ciências instituídas, isto é, especialmente, do campo médico, atraía para si todas as formas de oposições e mesmo de reações, as mais violentas.

Se, como diz o poeta, narciso acha feio o que não é espelho, podemos considerar, então, que serão os efeitos imaginários de grupo, em torno dos ideais da Reforma, aquilo que delineará as novas resistências à psicanálise.

A partir de uma pesquisa (LEITE, 2004), em andamento, no âmbito dos CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial), foi possível identificar a predominância do significante clínica ampliada no discurso dos profissionais que atuam nessas instituições.

O que significaria aqui a ampliação da clínica? E de que clínica se trata? Afirmar que tudo é a clínica não é caminhar na direção da perda da especificidade tão fundamental à clínica? Se, por um lado, esse significante destaca a necessidade de acolhimento institucional irrestrito à psicose, por outro, aponta os riscos da predominância do institucional em detrimento do sujeito, cuja experiência clínica se constrói no institucional. Em contrapartida, considero que será a manutenção das diferentes atitudes clínicas no encontro com a psicose, aquilo que poderá firmar o campo da saúde mental, e suas instituições, como referência simbólica capaz de acolher o não-saber presente na clínica, tornando esses espaços lócus de formação permanente, tanto para o analista, quanto para os demais profissionais envolvidos nesse processo .

Num ensaio publicado em 1916, Freud (1977-a) nos convoca a considerar a questão da finitude, das coisas materiais e dos seus valores constitutivos, como o fundamento da existência. Destaca que o apego às ilusões e aos ideais promovem a (de)negação da transitoriedade apontando para as dificuldades inerentes ao encontro com a falta do objeto, que impõe ao sujeito um trabalho de luto necessariamente renovável. A magnitude dessa dificuldade é proporcional à predominância das identificações imaginárias nos laços sociais que podem funcionar como barreira ao acolhimento institucional irrestrito da loucura e ao inusitado que emerge da experiência clínica.

Proponho a introdução dessa idéia de transitoriedade e a relativização dos ideais instituídos, como aquilo que possibilitará que as instituições, no campo da saúde mental, assumam uma função predominantemente simbólica, viabilizando a construção das passagens necessárias à experiência do inconsciente.

 

Finalizando

Retornar a Freud e a seu percurso no contexto da saúde mental indica a necessidade de cada analista tomar as instituições médicas e seus discursos como referência de alteridade. Trata-se de pensar esse campo como propício para a colocação à prova do desejo de insistir com a psicanálise.

Pensar a questão das resistências no campo da saúde mental revela o fato de que a construção do lugar do analista e seu discurso é uma tarefa necessariamente renovável e homóloga à idéia de formação permanente do analista.

Como Freud indica:

A atividade psicanalítica é árdua e exigente; não pode ser manejada como um par de óculos que se põe para ler e se tira para sair a caminhar. Via de regra, a psicanálise possui o analista inteiramente, ou não o possui em absoluto. Aqueles que empregam a psicanálise ocasionalmente entre outros métodos, não se situam em chão analítico firme (FREUD,[1933], 1995, p.237).

Essa perspectiva não significa, entretanto, a impossibilidade de colaboração entre os psicanalistas e os demais profissionais da saúde mental, mas alerta para os riscos de homogeneização das práticas clínicas, sua não distinção como um possível indicativo do fortalecimento dos ideais sócio-institucionais em detrimento da experiência do inconsciente. Com isso destaco a importância da sustentação das diferenças, concernentes aos distintos discursos e práticas clínicas, tanto como caminho fecundo para o campo da saúde mental, quanto como eixo para a formação permanente do psicanalista.

 

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Endereço para correspondência
Sonia Leite
E-mail: soniacleite@uol.com.br

Recebido em: 25 de novembro de 2006
Aceito para publicação em: 6 de novembro de 2007

Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo e Sonia Alberti

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