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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008

 

ARTIGOS

 

A filosofia da existência e os fundamentos da clínica psicológica

 

The existential  philosophy and the fundamentals to the psychological clinic

 

 

Ana Maria López Calvo de Feijoo*

Sócia Fundadora, Presidente, Responsável Técnica, Professora, Supervisora e Orientadora de monografia do Curso de Especialização em Psicologia Clínica
Professor Adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo buscar nas reflexões de Kierkegaard esclarecimentos sobre a singularidade humana e a influência da multidão na perda da singularidade, bem como no seu método de comunicação indireta para realizar o resgate do homem singular perdido na multidão. A partir daí, construir os fundamentos para a clínica psicológica, cuja proposta também consiste em buscar no homem a sua singularidade que se perdeu na impessoalidade.

Palavras-chave: Clínica psicológica, Singularidade, Impessoalidade, Comunicação indireta.


ABSTRACT

This Essay has the objective to find in the reflections of Kierkegaard ways to clarify the human singularity and the influence of the crowd in the loss of singularity, as well as in his method of indirect communication to achieve the redemption of the singular man lost in the crowd. From this point, construct the fundamentals to the psychological clinic, which proposal also consists in seeking in the man his singularity that was lost in the impersonality.

Keywords: Psychological clinic, Singularity, Impersonality, Indirect communication.


 

 

Introdução

Antígona, heroína grega, cumpriu o seu dever, mesmo desobedecendo à ordem do rei, não se deixou desviar do seu objetivo como a aconselhou sua irmã Ismena. Para o geral, Antígona deveria respeitar aquilo que fora ordenado pelo rei; na decisão pautada no singular, Antígona resolve cumprir aquilo em que acreditava e sobre o qual estavam seus princípios.

A decisão de Antígona se apóia na sua condição de liberdade, consiste no seu compromisso com aquilo que é sua verdade, portanto, é singular. Kierkegaard (2003) interpreta a atitude de Antígona não apenas como uma ação livre; mas trata-se da exigência fatal daquela lei inexorável que castiga os filhos pelo delito dos pais.

Antígona, filha de Édipo, irmã de Polínice, pertencia à família dos Labdácidas, a qual havia sido amaldiçoada por Pálops, pela ingratidão de Laio, que lhe dera refúgio quando Zeto e Anfião apoderaram-se de seu trono. Laio apaixonou-se por Crisipo e ambos fugiram, despertando a ira de Pálops. Laio casou-se com Jocasta e tiveram um filho: Édipo, ao qual o pai fez desaparecer para que não se cumprisse o oráculo. De nada adiantou, Édipo matou a esfinge, liberou Tebas, assassinou seu pai e desposou a sua mãe. Da união de Édipo com Jocasta nasceram quatro filhos, dentre eles Antígona. Édipo é admirado, honrado e feliz, no entanto, o obscuro permanece oculto aos olhos dos homens. Apenas Antígona conhece a verdade, embora seja uma moça como as outras, vive penalizada, lamenta pelo seu destino e pelo de sua família. Somente a heroína grega conhece o segredo, porém mantém absoluto silêncio. 

Ao desvendar-se a verdade sobre Édipo e Jocasta, esta, não suportando o seu incesto, suicida-se. Édipo, ao desvelar-se parricida e incestuoso, cega-se, afasta-se de Tebas e sua filha Antígona, tomada pela dedicação paterna, jamais o abandona. Após a morte de seu pai, retorna a Tebas e assiste ao triste conflito entre seus dois irmãos, que acabam se matando um ao outro. Créonte, rei de Tebas, condena um dos irmãos de Antígona a não ser enterrado, como castigo por ter traído aos tebanos. A heroína não obedece à ordem do rei para cumprir um dever considerado por ela como sagrado, diz que “mais vale obedecer aos deuses do que aos homens”.

Antígona, por sua desobediência, foi condenada à morte por Creonte, morreria a míngua. Hémon, filho de Creonte, não suportando a pena que havia sido imposta a sua amada, suicida-se. Sua mãe, por não suportar o destino de seu filho, dá fim a sua vida também (BRANDÃO, 1995).

Antígona não se deixou levar pelo geral nem pela obediência cega ao poder. Decidiu, pautada em sua verdade, valendo-se de seus critérios e valores, desobedecer à ordem do rei, porém, não abandonou a sua decisão, manteve-se fiel a si mesma e a sua verdade, assumindo assim as conseqüências pela sua escolha.

Kierkegaard (1988) ilustra vários de seus escritos com figuras que não se perdem no geral por se manterem fiéis aos seus princípios. Confessa que, em diferentes momentos, também foi tentado pelas solicitações do impessoal a abandonar o seu projeto. Porém, mesmo sofrendo pelos mal entendidos, silenciou e não se tornou uma ovelha no rebanho, mantendo sua escolha singular. 

Kierkegaard elaborou toda uma trajetória de escritor, propondo-se a atingir o homem em sua singularidade, buscando na multidão o indivíduo. Escrevia acerca de diferentes modos de existência humana, fazia-o com tamanha veracidade, que acabava por confundir seus leitores. Estes não sabiam se as suas descrições tratavam-se de estórias inventadas ou vividas. No entanto, ambas as interpretações são verdadeiras, Kierkegaard descrevia situações que em parte decorriam de sua observação refinada e atenta sobre as diferentes experiências humanas, mesclando-as com situações de sua vida. Acreditava que a existência jamais poderia ser provada, portanto, só seria possível observá-la e descrevê-la, no seu caso, de forma poética. A este respeito afirma: “Assim, minha conclusão nunca termina na existência, mas sim eu tiro conclusões a partir da existência, quer eu me movimente na esfera dos fatos sensíveis e palpáveis, quer no domínio do pensamento” (1995, p.65).

Confundir, no entanto, também consistia em sua estratégia para capturar o indivíduo, na multidão. Para tanto, assinou suas obras com diversos pseudônimos. Acreditava que se identificando, logo que fosse reconhecido, desconfiariam de suas intenções. Assume manter a sua verdade no silêncio. Cada pseudônimo utilizado pelo escritor guarda o fundamento de sua obra como um todo.

Na clínica, através da fala, o psicoterapeuta também pretende desfazer os laços da ilusão daquele indivíduo que se perde no todo mundo, esquecendo de seus critérios, referenciais e valores. Perdido como um barco à deriva, segue o rumo que lhe é ditado pela publicidade, pela moda, enfim, pelo geral. Acaba, finalmente, por desconhecer-se a si mesmo, não conseguindo decidir-se, paralisa na dúvida e justifica-se no exterior.

O psicoterapeuta em sua comunicação, não utiliza pseudônimos, porém não se dá a conhecer, pois, ao se identificar, pode levar o outro a opor resistência ou então a seguir os referenciais do psicólogo e depois dizer que não foi ele quem escolheu, mas o clínico.

 

A multidão e o indivíduo

Em “A época presente” (2001), Kierkegaard compara duas gerações: a do final do século XVIII com a de 1840. Em total discordância com iminentes pensadores de sua época, que acreditavam que a hierarquia da sociedade deveria ter no topo o homem letrado e com conhecimentos em filosofia, defende que não é o homem culto que merece este lugar, mas o religioso, pelo simples motivo de que ao religioso qualquer homem do mais simples ao mais sofisticado pode chegar.

Nesta obra, critica a emergente sociedade de massa, alertando que tanto a elite quanto o homem comum estavam perdendo a sua individualidade. Preocupado com as mudanças do ocidente, com a decomposição da tradição que além de tornar o homem acomodado, afetavam a sua interioridade.

Refere-se à época presente como a época da publicidade, dos anúncios, não se constituindo como uma época de ação, nem de decisão e, sim de antecipação e de adiantamento, de superficialidade.

Época em que aquilo que é público provoca admiração, porém na privacidade é interpretado como trivial. Perdeu-se a seriedade na existência.

Época do entusiasmo e da indolência, onde o que se gosta é de não se levar a sério, todos são capazes de compreender perfeitamente em termos de reflexão e observação, porém incapazes de agir e de assumir a responsabilidade pelas suas escolhas.

Kierkegaard refere-se à época presente como carente de paixão e repleta de lógica, com isto mantém-se a ordem, no entanto, esvazia-se de sentido. Tudo se torna teoria e abstração. Quando falta paixão inexiste o ativo do sentimento, do entusiasmo, e também falta interioridade no posicionamento político e religioso. Falta o ativo do doméstico, a piedade ou a admiração no cotidiano e na vida social. Nesta época, debocha-se da graça que possui ativos e a massa ri em coro. Por fim, a época desapaixonada não possui ativos, tudo se converte em transações com papel moeda.

Nessa obra, datada de 1846, Kierkegaard preocupa-se com o desapontar da sociedade de massa e a dissolução da tradição européia. Refere-se à sociedade de massa que já se sedimentara, testemunhando o inicio da sociedade globalizada e a dissolução de qualquer tradição: européia, asiática, americana. Afirma o surgimento de uma sociedade de massa hegemônica. Observa-se, pacificamente, o total desaparecimento da tradição: dos valores, da ética, das crenças. As essências se perdem e desaponta a extrema valorização da aparência. Esta é tomada como realidade e consiste nos critérios a serem seguidos.

As modificações na cultura engendram mudanças exteriores que, pouco a pouco, vão transformando a interioridade do homem: o pensar sobre as coisas, os sentimentos, as atitudes.

Kierkegaard a todo o momento declarava a sua fé no homem, no sentido de resgatar sua individualidade, por dois motivos. Primeiro, já que a multidão é formada por indivíduos, há o poder em cada homem de chegar a ser o que é: o indivíduo singular, exceto se esse homem não desejar assim e preferir escolher excluir-se a si-mesmo e continuar mantendo-se como multidão. Segundo, por acreditar que a interioridade é possibilidade para todo homem.

O homem como indivíduo fiel à singularidade, não precisa se encaixar em nenhum enquadramento ou reduto. Não, precisa para tanto, atacar nem criticar um determinado grupo, e sim proceder a uma análise sincera e poder assumir que não se identifica.

A subjetividade se constitui, incorporando, existencialmente, as verdades objetivas na singularidade. Manter-se no singular implica em não se perder no geral, porém sem abandoná-lo. A singularidade se fortalece no geral, mantendo a verdade objetiva e assumindo as necessidades. É preciso, no entanto, não confundir a necessidade com a moda ou com o universal. No entanto, quanto mais enfraquecida a consciência, mais fácil é perder-se na multidão. Na atualidade, através da forte expressão da publicidade, a multidão se articula, de modo que o indivíduo tende a cauterizar a consciência, fortalecendo o impulso inconsciente. E, o homem, sem consciência, torna-se presa fácil da multidão.

Só na singularidade o indivíduo torna-se responsável por sua ação, compromete-se com a sua obra, assina a sua autoria. Para este, os meios não justificam nenhum fim. O indivíduo massa é a multidão, onde a verdade torna-se uma abstração, portanto ninguém é responsável, ninguém assume a autoria e, ainda, os meios justificam o fim.

A exemplo da Ilíada tem-se no político, o homem da massa, com a valorização da astúcia, da sofística, onde importa a palavra, e não a ação. Não precisa haver comprometimento, faz-se necessário o convencimento. Frente à astúcia do político, o indivíduo singular tem que estar muito preparado para posicionar-se frente aos argumentos do outro, tem que poder contra-argumentar sem recorrer à irritação ou a uma resposta inflamada.

No senso comum, costuma-se afirmar que o que diz a multidão é a verdade. Para Kierkegaard, a multidão é a mentira, pois considera o numérico como critério que decide o que é verdade. A multidão atua como instância decisiva segundo os aspectos: temporal, terrestre e mundano: “Do ponto de vista ético e/ou ético-religioso a multidão é mentira, se dela se pretende fazer a instância que julga acerca do que é a verdade”(1988, p. 97). A multidão é a verdade em relação ao finito e ao sensível. Em relação ao eterno um único atinge a meta.

 

A comunicação indireta

A fim de organizar a sua estratégia de comunicação indireta, Kierkegaard utiliza-se de pseudônimos para assinar o conteúdo de suas obras, elaboradas de acordo com critérios estéticos, éticos e religiosos da existência humana. Estabelece tais critérios de acordo com os referenciais pelos quais o homem estabelece suas escolhas, daí organiza suas obras para poder atingir a todos os leitores, estejam eles no modo estético, ético ou religioso de existir.

É importante lembrar que Kierkegaard classifica como estéticas as obras em que ele manipula o conteúdo para seduzir o leitor. Refere-se, portanto, à estratégia indireta que, como escritor, utilizou para atrair o seu leitor, no sentido de que, através do choque, este pudesse ganhar transparência e reconhecer-se no lugar em que estava, iludido por acreditar estar num lugar onde de fato não estava.

Kierkegaard é conhecido por ter utilizado em suas autorias diferentes pseudônimos. A princípio, para um leitor mais desavisado, os pseudônimos podem parecer aleatórios, algo como apenas não assumir a responsabilidade por seus escritos, ou mesmo para não ser identificado. Basta um mergulho mais profundo e atento nos seus escritos para sabermos que cada pseudônimo guarda o fundamento da obra por ele assinada (pelo pseudônimo), bem como se interliga à obra como um todo (as obras assinadas por pseudônimo e mais aquelas assinadas pelo próprio Kierkegaard).

Para seduzir o estético, apresenta um conteúdo de fascínio, curiosidade, relações amorosas. Sabe que no modo estético de existir, o homem prioriza o prazer, a diversidade, o descompromisso com o outro. Desconsidera toda e qualquer conseqüência e lida de forma indiferente com os resultados de sua ação. Autocentrado, perde-se em si mesmo ou nas solicitações diversificadas do mundo, nas ofertas disponíveis. Ilude-se pensando que pode construir uma existência onde só há lugar para o prazer. Para atingir este homem, Kierkegaard produz obras cujo protagonista atua, predominantemente, no modo estético. O protótipo do estético, Johannes o sedutor, é apresentado em “Diário de um sedutor”, parte I da obra Alternativa (1843 e a 2ª edição em 1849), tendo como editor Victor Eremita: o ermitão vitorioso.

Na conquista do ético, sua estratégia consiste em sistematizar e descrever de modo organizado para atrair os existentes que atuam no modo ético. Na parte II de alternativa, Kierkegaard apresenta o modo ético de existir, o indivíduo prioriza o justo, o certo, o bom. Reconhece as conseqüências e assume a responsabilidade por seus atos, por isto leva uma existência preocupada. Corre o risco de perder-se de si mesmo nas solicitações impostas pelas regras. Ilude-se, pensando que pode construir uma existência idealizada, sem erros e imperfeições.

No modo Religioso de existir, o indivíduo singular prioriza a humildade e a entrega a desígnios sobre os quais não se tem controle dos conseqüentes. Aceita a realidade e enxerga a si mesmo como vivendo sob o paradoxo entre aquilo em que pode interferir e legislar e aquilo que transcende ou que se coloca fora de suas possibilidades e que se constituem em seus necessários. Ilude-se ao pensar a si mesmo como tendo alcançado um estado definitivo em que não se sente mais solicitado pelo mundo. As obras religiosas são assinadas por Anti-clímacus.

 

A clínica psicológica

Atualmente, pode-se constatar a facilidade com que o homem se perde nas chamadas do estético e vivencia, muitas vezes, conflitos na esfera do estético-ético. Acaba por acreditar que esta é a única possibilidade de escolha, estreita seu mundo, limita suas escolhas e aprisiona-se à escravidão determinada pelo impessoal. Esquece-se de sua liberdade e deseja realizar aquilo que a mídia preconiza como ideal, como felicidade, como fim a ser conquistado. Ocorre a busca incessante pela felicidade, que é procurada nas sensações prazerosas, no padrão corporal a ser atingido, pela capacidade de consumo, pela busca da juventude eterna. Enfim, busca a ilusão. Ilusão de perfeição, de prazer eterno, da resolução dos paradoxos. Faz-se necessário desfazer neste homem os laços da ilusão Para tanto, é preciso ir aonde esse homem se encontra para poder, então, abrir outras possibilidades de existir, além do estético.

Na sociedade moderna, tudo se organiza de modo a que o homem dê vazão aos seus desejos, segundo a crença de que estes serão alcançados desde que o homem, com sua determinação, atue com as estratégias adequadas. Para tanto, não deve perder tempo, nem energia. Não deve aceitar que obstáculos o impeçam de atingir seus objetivos. Com isto, os princípios quaisquer que sejam da tradição, da fé ou da ética passam a ser ignorados. E assim o homem inicia a desconhecer critérios, limites, barreiras e começa a acreditar que para ele tudo vale, isto com aprovação da multidão, que reafirma que esta é a verdade. A verdade da multidão, na maioria das vezes, abafa a verdade singular. 

A psicoterapia de inspiração kierkegaardiana não pretende resolver paradoxos, pois acredita que a existência é, em sua essência, paradoxal. A felicidade como estado jamais será alcançada, pois viver implica inquietar-se, justamente porque o depois é da ordem do imprevisível e do desconhecido. É nisto que consiste a angústia e o desespero, condições das quais o homem jamais poderá escapulir.

Nesta modalidade de prática clínica não há lugar para o fortalecimento do prazer e enfraquecimento dos limites. O hedonismo perde espaço para o compromisso, o imediato perde espaço para o eterno, a novidade perde espaço para o reconhecimento do valor da repetição, compreendida como contingente à existência.

Propor uma prática clínica a partir dos pressupostos kierkegaardianos implica refletir nos modos como se produzem as subjetividades na modernidade. Sabe-se que, na época atual, a valorização do temporal, do efêmero, do passageiro conduz o homem a querer aproveitar todo o prazer que a vida oferece. Não se pode parar de buscar a satisfação imediata sob qualquer pretexto, diz a fala popular: ‘tempo é dinheiro, “pensando morreu um burro”. E, assim, o homem deixa de pensar, pois vale apenas calcular a vida para nada perder, nem tempo, nem dinheiro, nem prazer.

Partindo do pressuposto de que o homem se constitui no mundo, em um jogo de ser si-mesmo e não ser si-mesmo, fica muito fácil tornar-se presa dos ditames do público. No entanto, esse homem acredita ter total liberdade na sua escolha, quando na realidade, escraviza-se às solicitações do mundo moderno.

Nesta perspectiva, cabe ao psicólogo clínico alertar o homem da ameaça de ele se tornar um “eterno zero”, “mais uma ovelha no rebanho”. Enfim, deixar-se levar pelos ditames do social, afastando-se ou mesmo esquecendo-se de sua saída através da singularidade. E ainda, criar a possibilidade no homem de proclamar o grito de alerta, de fazer emergir sua singularidade, de viver na consciência de si mesmo e não se deixar perder na ilusão, estimulada pela publicidade.

Para atuar clinicamente, o psicólogo deve ater-se ao estudo da condição própria do existir humano: a angústia, através da qual pode o homem emergir em sua singularidade e, assim, não se perder no geral.

São diversos os modos de expressão da angústia, já que esta consiste no sentimento que ocorre frente à possibilidade, caracterizando a situação de liberdade.

Por não suportar a liberdade de escolha e a vulnerabilidade que lhe são próprias, o homem acaba por querer a qualquer preço encontrar referências e controles, que lhe permitam escapulir dessas situações. Ocorre então o que denominamos posições psicológicas da liberdade diante de sua situação, podendo se revelar de diferentes modos: hermetismo, perda somático-psíquica da liberdade, perda pneumática da liberdade.A carência de interioridade, pronunciada pela angústia, possibilita que se alcance a consciência do eu. Exercitar a consciência do eu consiste numa atividade que se dá em um processo de compreensão, em que a reflexão acerca do seu modo de ser pode levar à interioridade.

 

Conclusão

Antígona não se perdeu no geral, não correspondeu às solicitações mundanas, resistiu às demandas do impessoal. Sua escolha foi um ato singular, pautado nos seus critérios, nos seus valores e na sua verdade. Mesmo desobedecendo à ordem do soberano, que ordenara que Polínice, por ter lutado contra seu povo, tivesse seu corpo morto deixado ao relento. A heroína trágica enterra seu irmão, tal como acreditava que deveria ser, por considerar o dever sagrado, de que todo morto deveria ser enterrado.

A atitude de Antígona não deriva de uma simples rebeldia individualista, mas sim de uma consciência moral, reflexo lúcido e ativo de toda lei, que mesmo atenta às leis do estado ou da religião, mantém-se fiel aos seus próprios ideais.

A tragédia de Antígona traz a mensagem da escolha singular, com o dever de ser lúcida, da critica construtiva e de rebeldia justificada. A heroína trágica, por amor à família contraria a lei, assume a culpa inerente a sua ação, e o conseqüente sofrimento; diferentemente do herói moderno, no qual a sua coragem justifica-o, eliminando a sua culpa. Aquele sofre as conseqüências de seu ato, este, sem conseqüências, é perdoado, portanto, não sofre as conseqüências de seus atos.

Na atualidade, o homem vem perdendo sua individualidade pelo modo como a sociedade vem se organizando, cuja única finalidade a alcançar passa a ser o máximo bem-estar material. Há um total abandono do amor e das conseqüências, não há mais lugar para o sofrimento. Este deve ser amortizado, seja pelas distrações ou pelas medicações.

Kierkegaard tinha como projeto de vida alertar o homem para que este não se perdesse no geral; uma vez já imerso na multidão, corre o risco de esquecer-se de si mesmo. No entanto, acredita que a ambigüidade do geral ao mesmo tempo que , influenciado pelos costumes correntes, pela moda e pela mídia, enfraquece o singular, o fortalece . A escolha singular não significa apenas um abandono do geral, mas um fortalecimento pelo geral, ao não se deixar levar por aquilo que a publicidade ou o todo mundo estimula. A sua tarefa de escritor tem como principal proposta resgatar a singularidade humana, pela comunicação indireta que consiste em uma forma de se fazer chegar ao outro sem que este perceba que há aí uma intenção de confrontá-lo, de questioná-lo ou interceptá-lo em suas ações.

Eis a tarefa do psicoterapeuta existencial: resgatar o homem singular que se encontra perdido no geral. Para tanto, utiliza-se do diálogo, que também se dá, na maior parte do tempo, de forma indireta. Faz-se necessário que o psicoterapeuta se reconheça no seu projeto, naquilo que lhe é mais fundamental, e também que esteja atento para não se deixar perder no geral, nas demandas do mundo, Despende de todo esforço para identificar a ilusão do outro, finge compartilhar dela de forma a introduzir o elemento dialético e assim provocar no outro a reflexão. Aquele que quer ajudar deve estar atento para não se deixar seduzir pela ilusão do outro, mas para tanto deve reconhecer as chamadas do impessoal e não se deixar conduzir pelas suas próprias ilusões.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ana Maria López Calvo de Feijoo
E-mail: feijoo@ifen.com.br

Recebido em: 24/12/2007
Aceito em : 13/04/2008
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia pela UFRJ, Sócia Fundadora, Presidente, Responsável Técnica, Professora, Supervisora e Orientadora de monografia do Curso de Especialização em Psicologia Clínica e Professor Adjunto da UERJ.

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