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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008

 

ARTIGOS

 

Perdas e danos: reflexões sobre as emoções estéticas do homem moderno através da fenomenologia, existencialismo e imaginário

 

Damages: reflections on the aesthetic emotions of the modern man through the phenomenology, existentialism and imaginary

 

 

Josenildo Campos Brussio

Doutorando em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Aborda-se o olhar do autor diante das sensações e percepções de sua esposa, após a mesma ter perdido a avó. Discute-se sobre a memória, sentimentos, imagens e a felicidade que são resgatadas a partir de uma caixa com alguns pertences da avó. Reflete-se sobre a forma como nos identificamos com a matéria e como procuramos diante da perda de um ente querido buscar um sentido para a nossa própria existência.

Palavras-Chave: Perdas, Sensações, Percepções, Imagens, Ser-Nada.


ABSTRACT

Approach the look of the author in front of the sensations and perceptions of his wife, after she lost her grandmother. It is discussed on the memory, feelings, images and happiness that are rescued from a box with some belongings of the grandmother. Reflects about the way  that we identify us with the matter and forward looking as the loss of a loved one seek direction for our very existence.

Keywords: Losses, Feelings, Perceptions, Images, Being-Nothing.


 

 

Introdução

Agora podemos conceber o que é uma emoção. É uma transformação do mundo. Quando os caminhos traçados se tornam muito difíceis ou quando não vemos caminho algum, não podemos mais permanecer num mundo tão urgente e tão difícil. Todos os caminhos estão barrados, no entanto é preciso agir. Então tentemos mudar o mundo, isto é, vivê-lo como se as relações das coisas com suas potencialidades não estivessem regulados por processos deterministas, mas pela magia.
SARTRE, J.-P. Esboço de uma teoria das emoções

Era uma quinta-feira, penúltimo dia de aula da disciplina Existencialismo e Modernidade, quando comecei a refletir como escrever um trabalho científico sobre os diálogos que estabelecemos com a Profª Drª Ariane Ewald1, durante as nossas interlocuções. Uma frase da professora havia me marcado muito: “O sentido, somos nós que damos às coisas” (EWALD, 2008).

Ao tentar digitar as primeiras letras no teclado do computador, comecei a pensar sobre que “coisa” escolheria como ponto de partida, foi quando observei a minha esposa revendo as fotos de sua avó que falecera há três meses.

Perguntava-me o que ela estaria sentido naquele instante. Um instante que parecia ser eterno, tanto quanto efêmero. Um olhar que vacilava entre a troca de uma foto e outra.

Imediatamente, pus-me a refletir sobre o texto de Peter Stallybrass “O casaco de Marx: roupas, memória, dor” (2000). Em seguida, ouvi suspiros e vi lágrimas escorrendo sobre a sua face. Pensei em acalentá-la mais uma vez. Não consegui. Dessa vez era diferente. As impressões, percepções e sensações do narrador agora faziam parte de mim e permitiam-me ver a minha própria realidade com outros olhos. A minha esposa queria estar com a avó dela.

 

A percepção e a sensação das coisas: do “Casaco de Marx” à caixa da avó

Na obra “O casaco de Marx: roupas, memória, dor”, Stallybrass (2000) demonstra o quanto Allon foi importante na sua vida, o quanto a ausência deste transformaria a sua forma de ser e perceber o mundo. Com a morte de Allon, ele se apega a uma jaqueta do velho amigo, “essa era a jaqueta que eu estava vestindo quando apresentava o meu trabalho sobre indivíduo, um trabalho que, sob muitos aspectos, era uma tentativa de relembrar Allon” (STALLYBRASS, 2000, p. 12).

Minutos depois, notei que minha esposa se dirigia a uma caixa de papelão, média, do tamanho de uma televisão de 21 polegadas. Sua tez estava triste. Abriu a caixa, soltou um suspiro, sentiu arrepios. Por um instante parecia que sua avó estava ali.

Merleau-Ponty (2004) estava certo. Tudo muda, “forma e conteúdos estão como que baralhados e mesclados”. A caixa era tudo.

Quão fortes podem ser as relações que construímos com alguns objetos ao longo de nossas vidas.

A ausência de Allon atrapalhou os trabalhos de Stallybrass. Este não conseguia mais produzir, todavia quando vestido no casaco de Allon, as percepções e sensações do mundo à sua volta pareciam-lhe dobrar as curvas do tempo e do espaço:

Se eu vestia a jaqueta, Allon me vestia. Ele estava lá nos puimentos do cotovelo, puimentos que no jargão técnico da costura são chamados de “memória”. Ele estava lá nas manchas que estavam na parte inferior da jaqueta; ele estava lá no cheiro das axilas. Acima de tudo, ele estava lá no cheiro (STALLYBRASS, 2000, p. 13).

A roupa causou-lhe uma sensação mágica que posteriormente levou-o a pensar sobre roupas, “comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma” (STALLYBRASS, 2000, p. 13). Percebi também que aquela caixa desprendia algo de mágico sobre a minha esposa. As mesmas sensações lhe eram sentidas sempre que mexia na caixa.

Será que a minha esposa ouvia aquela caixa? Será que o que havia dentro daquela caixa conversava com ela? Na verdade, eu é que nunca conversei com a caixa e só agora percebo que a mesma estabelece diálogos diferentes comigo e com ela. Tratava-se da percepção.

[...], quando defino uma mesa de acordo com o dicionário [...] posso ter o sentimento de atingir como que a essência da mesa, e me desinteresso de todos os atributos que podem acompanhá-la, forma dos pés, estilo das molduras etc., mas isto não é perceber, é definir (MERLEAU-PONTY, 204, p. 56).

Sartre estava correto quanto a sua teoria da “psicologia fenomenológica”, ao afirmar que “não se pode compreender a emoção se não lhe buscamos uma significação” (SARTRE, 2006, p.48). Para Sartre, a psicologia perde muito quando se utiliza basicamente de dois tipos de experiência bem definidos: “a que nos fornece a percepção espaço-temporal dos corpos organizados, e o conhecimento intuitivo de nós mesmos que chamamos experiência reflexiva” (SARTRE, 2006, p. 13). Como explicar o que representaria aquela caixa para a minha esposa?

Certa vez, ela encontrou uma bolsa escolar sobre a caixa. Houve uma explosão de raiva. Ninguém podia mexer naquela caixa. Era pessoal. O que existiu de material de sua avó neste planeta se resume àquela caixa. O subjetivo (o íntimo, as memórias, a existência) da relação da minha esposa com sua avó estava lá, nos objetos daquela caixa.

A caixa era simples. Logo acima, havia os sapatos que sua avó usava, todos enrolados em jornais. Num cantinho, alguns pertences pessoais e, ao fundo, o que minha esposa considerava de mais sagrado: as roupas.

Lembro-me do dia em que essas roupas chegaram à minha casa. A potência de valores, emoções, sensações que proporcionaram a ela. Naquele instante, mais uma vez, concordei com Bachelard (2006):

Quanto mais mergulhamos no passado, mais aparece como indissolúvel o misto psicológico memória-imaginação. Se quisermos participar do existencialismo do poético, devemos reforçar a união da imaginação com a memória (BACHELARD, 2006, p. 114).

Cada objeto daquela caixa continha uma significação inestimável para a minha esposa. Principalmente as roupas. Lembro-me de seu medo quando mandou que a empregada as lavasse, queria saber se o cheiro de sua avó desapareceria. No entanto, mesmo lavadas, as roupas mantinham a sua fragrância.

 

A fenomenologia poética: memórias e imagens do homem moderno

As memórias retornam com força a cada suspiro. O cheiro das roupas irrompe a própria noção de tempo e espaço, tudo se consubstancia naquela essência, ao cheirá-las sentia a sua avó presente, no tempo presente, no local presente.

As lembranças tinham cheiro, cheiro de mingau de milho, cheiro do suco de limão espremido e feito na lata de óleo, na cozinha da pequena casinha em que passara bons momentos com a avó.

Era uma casinha humilde, de uma sala, um quarto, uma cozinha e um quintal, onde se criavam as galinhas e patos. Na frente da casa, só tinha uma porta e uma janela (com grades) onde minha esposa costumava ficar a brincar e espreitar o mundo lá fora. Quantos de nós já brincamos às janelas de nossas casas! Que dialética maravilhosa do interior e do exterior!

Vinicius de Moraes (1991) retoma de maneira bem simples a primitividade da casa na imaginação humana: “Era uma casa muito engraçada/ Não tinha teto, não tinha nada/ Ninguém podia entrar nela, não/ por que na casa não tinha chão/ [...] Mas era feita com muito esmero/ Na Rua dos Bobos, número zero” (MORAES, 1991). Nestes versos, vemos uma casa onírica, uma casa dos sonhos, que está presente no inconsciente de cada um de nós. Vejam como os devaneios da infância estreitam os laços entre memória e imaginação. Como a imagem de um poeta pode nos reavivar lembranças da infância? Como já nos mostrava Casimiro de Abreu (2001), em seus versos fugidios de Meus Oito Anos: “Oh! Que saudades que tenho/Da aurora da minha vida/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!” (ABREU, 2001), a infância é o reduto das nossas grandes experiências de felicidade. Essa era a sensação que aquelas roupas lhe traziam de volta! Ao cheirá-las, vinham-lhe imediatamente as lembranças marcantes da infância na pequena casa em que viveram juntas por um tempo. Sua avó era a sua Grande-Mãe.

Bachelard (2006), em A poética do devaneio, situa-nos diante das imagens dos devaneios da infância, infância que nos faz reabrir a porta dos sonhos através das lembranças e reencontrar os arquétipos que “nos ajudam a acreditar no mundo, a amar o mundo, a criar nosso mundo” (BACHELARD, 2006, p. 119).

A casa reúne todos essas memórias, pois nos remete ao arquétipo da “intimidade, do profundo, do calmo”, conforme classificação de Gilbert Durand (1997) em As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Durante os nossos devaneios, vamos sempre buscar a tranqüilidade e a paz de nossa infância nas lembranças do repouso, da casa mãe.

Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard (1998) denomina a casa primitiva de “concha inicial”, imagem que representa o aconchego, o conforto, a proteção e a intimidade. Dessa forma, cada casa que habitamos ao longo da vida representa um retorno à concha inicial, uma busca do conforto materno, o ventre da mãe, que minha esposa encontrava com maior intensidade no colo da avó.

Gilbert Durand (1997) já dizia que “as imagens constelam” e vemos, neste texto, as imagens da casa e da caixa constelarem entre si. Quantas caixas funcionam como casas na literatura universal! É na caixa que se resguardam as imagens da avó, mas é na casa que se resguardam as imagens mais fortes da caixa. Se é difícil para a minha esposa abrir a caixa da avó, mas difícil ainda é transitar pela pequena casinha onde sua avó morava, lá onde as imagens se tornam mais vivas tais quais eram em dimensões normais.

Mas, assim como as roupas lhe traziam essas memórias que naquele instante eram reconfortantes, havia ao mesmo tempo uma sensação de perda que causava uma dor inconsolável, cujo remédio só o tempo era capaz de providenciar.

A caixa trazia uma felicidade tão efêmera quanto o sofrimento que se abrandava ao abri-la. Abrir a caixa era uma constante “procura da felicidade”, mas sempre momentânea. O que existia mesmo era um grande vazio, uma grande sensação de perda, que se amenizava com os objetos que havia na caixa.  

Robert Darnton (1996), no texto A procura da felicidade, demonstra claramente o sentido que a palavra “felicidade” adquire nas civilizações modernas:

A procura da felicidade nos EUA transbordou da ciência e da tecnologia para a cultura popular &– assunto caro aos historiadores das mentalidades. As variedades mais exóticas florescem no sul da Califórnia: banheiras aquecidas, ondas “perfeitas”, massagem “em profundidade”, SPA’s, clínicas sentimentais e terapias dos tipos mais inconcebíveis, para não falar dos finais felizes que predominam em Hollywood. Essa espécie de cultura popular é alvo fácil para a caricatura, mas não pode ser deixada de lado com igual facilidade, agora que se espalhou por todo o país e o mundo. O rosto de “Joe Happy” &– um círculo amarelo com um sorriso no meio &– está em toda parte: colado a janelas e broches ou mesmo fazendo as vezes de pingos nos “is” dos meus alunos (DARNTON, 1996, p. 8-9).

A procura da felicidade americana associa-se à aparente satisfação do consumo. Basta comprar o carro, a casa, ou um hambúrguer do McDonald’s e pronto: “sou feliz”. Complicado é quando estamos utilizando, na mesma relação de consumo de felicidade, os nossos sentimentos. Como afirma Darton (1996), com a chegada do séc. XX,

a tecnologia parecia ter posto a felicidade ao alcance de qualquer um, ao mostrar-se capaz de controlar o meio-ambiente, de proporcionar mais prazer e de mitigar a dor [...] Até mesmo o envelhecimento tornou-se uma grande indústria, a tal ponto que o “american way of life” vai se convertendo num “american way of death” &– é o que se vê na subcultura de “lares” funéreos e cemitérios bucólicos que revestem a morte de forma tão aprazível a ponto de negá-la (DARTON, 1996, p. 8-9).

E espera-se que, no dia seguinte, o ser humano nem se lembre de que alguém que amava partiu, de que existe um vazio, uma perda, pois tudo isso pode ser substituído pela felicidade momentânea que o consumo lhe proporciona. Abaixo a saudade, sinta algo novo e compre o seu desejo!

Ainda bem que ela ainda tem a caixa!

 

Considerações crepusculares: entre o ser e o nada, quem (não) sou ou o que (não) sou (mais)?

Quão imprescindível é a arte na vida do homem! A inevitável necessidade de aprender a ver, a olhar, a compreender, a interrogar, a questionar e, sobretudo, a necessidade de ser. Shakespeare (1997) já dizia “ser ou não ser, eis questão”. Mas para a minha esposa não importava mais ser, pois existia o nada, o vazio, o indizível, o inexprimível, o inexplicável. Como diferenciar o Ser do Nada? É impossível.

Ao sentir o cheiro das roupas de sua avó, sentia uma vontade incrível de partir, de não mais existir materialmente, de finalmente poder sublimar como a Ismália, “As asas que Deus lhe deu / Ruflaram de par em par [...] / Sua alma, subiu ao céu, / Seu corpo desceu ao mar”, de Alphonsus de Guimaraens (NICOLA, 2005), ou a incomparável clareza do devir de Cecília Meireles em Motivo, “Eu canto porque o instante existe/ E a minha vida está completa/[...]/E um dia eu sei que estarei mudo/ mais nada”. Ambas parecem buscar a essência do Ser na dialética entre a vida e a morte, entre o Ser e o Nada.

Para Nietzsche (2006), na obra Crepúsculo dos Ídolos, durante muitos anos, os filósofos distorceram o entendimento do ser:

o que é não se torna; o que se torna não é [...] Agora todos acreditam, até mesmo com desespero, no ser. Mas como não podem se apoderar dele, procuram razões para saber porque isso lhes é vetado (NIETZSCHE, 2006, p. 29).

É interessante a observação de Nietzsche porque corresponde ao momento de complexidade epistemológica que se instaura nas diversas áreas do conhecimento a partir do séc. XX, principalmente nas ciências sociais. Talvez porque os avanços das ciências, mais do que buscar o progresso e desenvolvimento do homem, estejam ainda, no inconsciente ou no subconsciente do homem, à procura da fonte da vida ou da juventude, ou, quem sabe, clamando por uma nova chance, ou tentando corrigir os erros do passado, ou ainda, quem sabe, insistindo nos mesmos erros.

Boaventura de Sousa Santos, em Um Discurso sobre as Ciências (2003), demonstra uma crise epistemológica que se instaurou no paradigma científico da modernidade, com a mudança de olhares sobre a ciência e o surgimento de um possível paradigma emergente. Conforme Santos (2003),

nenhum de nós pode neste momento visualizar projectos concretos de investigação que correspondem inteiramente ao paradigma emergente que aqui delineei. E isso é assim precisamente por estarmos numa fase de transição. Duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos, fragmentados. Sabemo-nos a caminho, mas não exactamente onde estamos na jornada. A condição epistemológica da ciência repercute-se na condição existencial dos cientistas. Afinal, se todo o conhecimento é autoconhecimento, também todo o desconhecimento é autodesconhecimento (SANTOS, 2003, p. 92).

Nesta passagem, ele ratifica que o paradigma científico da modernidade está em crise, que vivemos em um momento de transição, um momento de complexidade, um momento de reflexão epistemológica e que, simultaneamente, vivemos aturdidos com a ambigüidade que essa mesma ciência nos condiciona a todo instante.

O homem sempre quis descobrir a “verdade” das coisas do mundo e, quanto mais mergulha nesta busca, mais tem certeza de que o único real que existe é o “mundo das aparências”. No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche (2006) demonstra como o conceito de verdade para o homem moderno foi construído sob os postulados da razão: “o mundo das aparências é o único real, o mundo-verdade foi somente acrescentado pela mentira [...]” (NIETZSCHE, 2006, p. 30) e apresenta em uma de suas proposições:

Os sinais distintivos que foram atribuídos à verdadeira “essência das coisas” são os sinais característicos do não-ser, do nada; dessa contradição se edifica o “mundo-verdade” como mundo verdadeiro: e é com efeito o mundo das aparências enquanto ilusão ótica moral (NIETZSCHE, 2006, p. 33).

Já se percebe, nestes pensamentos de Nietzsche, uma reflexão sobre a própria condição do Ser na modernidade, ao tentar definir o que é “verdade” ou “aparência” neste mundo em que vivemos.

Entender a “verdadeira essência das coisas” é um exercício fenomenológico, é a consciência de que o mundo está em constante movimento, vivendo a eterna luta entre os contrários, aguçando a imaginação humana em busca de um devir que sempre está por vir.

Scarlett Marton (2004), na obra A Irrecusável Busca de Sentido: autobiografia intelectual, teceu comparações entre os pensamentos de Nietzsche e Sartre a respeito do dualismo entre “o mundo das essências” e “o mundo das aparências”, atestando que “tanto Nietzsche quanto Sartre se distanciam do cogito cartesiano e do sujeito fundador da analítica da finitude” (MARTON, 2004, p. 216).

Sartre (1997), em O Ser e o Nada, afirma que “a consciência é consciência de alguma coisa [...] quer dizer que a consciência nasce voltada para um ser que não é ela” (SARTRE, p. 34). No pensamento sartriano, as concepções de “mundo das essências” e “mundo das aparências”, ora aparecem opostas, ora representam o mesmo universo.  

Marton (2004) faz uma excelente reflexão sobre a concepção de Sartre sobre o em si e o para si, ao definir o primeiro como “plenitude de ser, identidade perfeita, realidade maciça e opaca” (MARTON, 2004, p. 217), e o segundo como consciência que não existe em estado puro e “precisa lançar-se no mundo para produzir-se. Por aparecer a si mesma nesse projetar-se, é para-si” (MARTON, 2004, p. 217), de forma que “[...] É em face do em-si que se define o para-si” (MARTON, 2004, p. 217). Como lembra Merleau-Ponty (2005):

A perspectiva dentro da qual o Ser e o Nada são absolutamente opostos e a perspectiva dentro da qual o próprio Ser, dando-se por definição como idêntico a si, contém eminentemente um contato com ele, tomado, rompido e retomado, seu ser-reconhecido, sua negação negada &– essas duas perspectivas são apenas uma; enquanto absolutamente opostos o Ser e o Nada são indiscerníveis (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 71).

Não importam as sensações, as percepções ou as tentações que a caixa causa em minha esposa, mas, sobretudo, o sentido que há nas relações emergentes desta caixa com o seu presente, com a sua existência, com a procura de sua essência. Sobre isto Merleau-Ponty (2005) observa:

Das essências que encontramos, não temos o direito de dizer que revelam o sentido primitivo do Ser, que são o possível em si, todo o possível, reputando impossível tudo o que não obedece a suas leis, nem tratar o Ser e o mundo como conseqüências suas: elas são apenas a maneira ou o estilo, são o Sosein mas não o Sein (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 109).

Encontrar um sentido para essa busca de essência diante da perda talvez seja um dos maiores dilemas emocionais que o homem enfrente ao longo de sua existência.

Que vazio se criou com a morte de sua avó? A casinha, sem ninguém, tornou-se um objeto doloroso, os almoços aos domingos, em que geralmente dedicava-se mais a ela, não eram mais os mesmos, as festas, em que sua avó brilhava com charme e alegria, não eram mais as mesmas. Havia somente as roupas.

De todas as questões que a afligiam, as mais torturantes eram: “Porque minha avó partiu? - Por que Deus a levou? &– Por que eu não pude fazer nada? &– Por que Ele não me levou no lugar dela?” Parece regra geral que nós, seres humanos, sempre nos questionemos sobre o sentido da nossa existência nos momentos de maior angústia, solidão, tristeza e melancolia. Há algo de primitivo nisso.

Já vimos isso na literatura com os sofrimentos do jovem Werther de Goethe, com o Lord Byron no romantismo inglês e os poetas do Mal-do-Século ou Byronismo brasileiro como Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Fagundes Varela e o maior exemplo de todos Álvares de Azevedo: “Quando as harpas do peito a morte estala, / Um trenó de vapor soluça e voa, / E a nota divinal que rompe as fibras / Nas dulias angélicas ecoa!” (AZEVEDO, 1998, p. 78).

A melancolia, a dor e o sofrimento destes poetas os aproximava mais ainda da morte. Na procura do Ser (da existência), buscavam o Não-Ser, o Nada, o Não-Existir.

Peter Stallybrass (2000) expressa muito bem esta sensação ao afirmar:

[...] E quando nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos (STALLYBRASS, 2000, p. 13).

Como afirma Ariane Ewald (2005),

A Fenomenologia procura mostrar a relação existente entre homem e mundo e o papel da consciência enquanto constituinte desse mundo. O homem em situação, como evidencia Sartre, está totalmente "inundado" por seu mundo e não há como escapar dele na constituição da subjetividade (EWALD, 2005, p. 4).

Após guardar as roupas na caixa e fechá-la, minha esposa fechou os olhos por alguns instantes, enxugou suas últimas lágrimas e convidou-me para irmos dormir. Afinal, “Amanhã será um novo dia!”.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Josenildo Campos Brussio
E-mail: jbrussio@ufma.br

Recebido em: 27/06/2008
Aceito para publicação em: 05/08/2008
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald

 

 

Notas

1 Ariane Patrícia Ewald é Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUC-RS) e Doutora em Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ). Seu principal interesse se deriva das temáticas associadas à relação entre cultura e subjetividade, em especial as estabelecidas no projeto da modernidade do século XIX e na primeira metade do século XX. Tendo o pensamento de Jean-Paul Sartre como norteador de suas reflexões, vem fazendo aproximações teóricas com autores do campo da Filosofia, História, Literatura, Antropologia e Sociologia.

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