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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.3 Rio de Janeiro dez. 2008

 

ARTIGOS

 

A espinha partida. considerações acerca da violência no filme Tsotsi & infância roubada

 

Fractured spine. notes about the violence in the film Tsotsi - a stolen childhood

 

 

Junia de Vilhena I, *; Maria Inês G. de Freitas Bittencourt II, **

I Professora do Dept. de Psicologia da PUC-Rio - RJ, Brasil
Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social &LIPIS da PUC-Rio
Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.
II Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio - RJ, Brasil
Coordenadora do Serviço de Psicologia Aplicada da PUC-Rio
Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social & LIPIS da PUC-Rio.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O filme sul-africano “Tsotsi”, dirigido por Gavin Hood (2005) e exibido no Brasil sob o título “Infância roubada”, é tomado como base para uma reflexão sobre os modos de subjetivação marcados pela agressividade, que surgem como conseqüência do desamparo e da ameaça de aniquilação vivenciados por crianças vivendo em condições ambientais desfavoráveis. A destruição da capacidade de simbolizar, como resultado de traumas precoces, é destacada como um fator de especial importância na gênese desses quadros, em que condutas anti-sociais podem conter paradoxalmente um pedido de socorro.

Palavras-chave: Ambiente, Simbolização, Agressividade.


ABSTRACT

The South African film "Tsotsi", directed by Gavin Hood (2005) and exhibited in Brazil under the title "Stolen Childhood",  is taken as an example for a reflection on the processes of construction of subjectivities  marked by  aggressiveness, derived by the abandonment and by the annihilation threat experienced by children living in unfavorable environmental conditions. The destruction of the capacity of symbolization, as a result of precocious traumas, is an outstanding  factor  and of special importance in the genesis of such children's development,  in which antisocial conducts can contain a cry for help.  

Keywords: Environment, Symbolization, Aggressiveness.


 

 

Introdução

Em diferentes pontos do planeta, submetidos à violência dos conflitos políticos, das desigualdades econômicas e sociais, ou ainda, ao esvaziamento de sentido decorrente da hegemonia dos valores do mercado nas sociedades contemporâneas, inúmeras crianças têm enfrentado precocemente e sem possibilidade de defesa experiências que, afetando os espaços externos, destroçam também as possibilidades de construção de um mundo interno pautado em alguma forma de esperança. Ficam assim impedidos de se desenvolver, ou são precocemente mutilados, os espaços simbólicos, onde poderiam ser controlados os medos, sonhados os projetos e elaboradas as condições de um crescimento saudável. Trata-se de vivências muitas vezes determinadas pelas condições de vida em lugares precários e submetidos a ameaças constantes, ocasionando a destruição dos laços familiares e a substituição dos vínculos com pais afetuosos e firmes por maus tratos e  abandono. Mas, se por um lado os fenômenos de “colapso simbólico” são freqüentemente relacionados aos confinamentos decorrentes da miséria, é importante lembrar que eles podem ocorrer sempre que os valores de solidariedade e respeito desaparecem, independentemente das condições sócio-econômicas. Notícias assustadoras vêm sendo divulgadas com freqüência crescente, envolvendo tanto jovens oriundos de comunidades carentes como das classes economicamente mais abastadas, denotando a existência de algo em comum entre eles: um grande vazio interior povoado de “ameaças impensáveis”, tal como as descreve Winnicott (1963), e o recurso à violência como forma de atuação frente ao desespero.

Evocando lembranças e sentimentos que nos são estranhamente familiares, o filme sul-africano “Tsotsi”, dirigido por Gavin Hood (2005) e exibido no Brasil sob o título “Infância roubada”, é tomado aqui como ponto de partida para uma reflexão, com base em conceitos winnicottianos, sobre a experiência do desamparo e da ameaça de aniquilação do self e suas conseqüências.

 

Apresentando Tsotsi

Inspirado em romance do autor sul-africano Athol Fugard, o filme tem como protagonista um personagem cujo apelido, “Tsotsi", significa "desordeiro" na linguagem de Soweto, gueto negro dos subúrbios da cidade de Joannesburgo. Tsotsi, recém-saído da adolescência, é líder de um pequeno grupo de jovens delinqüentes, Boston, Butcher e Aap. Sobrevivendo conforme as oportunidades, driblando os perigos, os quatro rapazes parecem reduzir suas vidas à satisfação imediata de impulsos, num mundo sem maiores perspectivas. Aos sentimentos de solidão, raiva e alienação que ameaçam acometê-lo, Tsotsi costuma contrapor atos de imensa crueldade, transformando sem necessidade um roubo banal no metrô em brutal assassinato, e espancando Boston até desfigurá-lo, quando este, enojado com a violência cometida, defende o valor da decência.

Num dia de forte chuva, num bairro de classe média alta, Tsotsi atira numa mulher para roubar seu carro, com o qual sai em alta velocidade, logo batendo num barranco. Tsotsi então repara que há um pequeno bebê no banco traseiro. Tomado por um sentimento paradoxal, ele opta por levar o bebê para sua casa na favela, cuidando dele como pode, trocando sua fralda suja por um jornal velho, alimentando-o com uma lata de leite condensado.

No dia seguinte, Tsotsi, ao esbarrar num mendigo sentado numa cadeira de rodas, o insulta grosseiramente. O velho reage perguntando sobre quem poderia ser o pai de alguém que age daquele modo. Cheio de ódio, Tsotsi segue o homem no final do dia, disposto a se vingar. Entre ameaças, Tsotsi conta que certa vez chutou um cachorro, quebrando sua espinha e fazendo-o rastejar e uivar de dor, ameaçando repetir o ato. O mendigo então, depois de afirmar que já não pode mesmo usar suas pernas, pergunta: “que tipo de homem faz isso com um cachorro?” Tsotsi, perplexo, passa a conversar com sua vítima, que conta sobre um acidente nas minas em que teve as pernas esmagadas. Tsotsi pergunta como é que se poderia querer continuar vivendo daquele modo, ao que o mendigo responde que “ainda gosta de sentir no corpo o calor e a luz do sol”. Tsotsi desiste de matar o mendigo, mas pega as moedas que ele ganhou e as joga fora raivosamente. Mais tarde, no bar onde todos estão revoltados com a surra sofrida por Boston, Tsotsi é questionado sobre seu verdadeiro nome, que ninguém conhece, e permanece calado.

Chegando em casa, Tsotsi encontra o bebê em péssimas condições e se convence de que não poderá cuidar sozinho dele. Ele invade a casa de uma mulher que tem um bebê pequeno, ameaçando-a se ela o denunciar ou não concordar em alimentar também o “seu” bebê. Enquanto a mulher amamenta e brinca com o bebê, o bandido furtivamente emociona-se, e (advertindo que o bebê é dele) acaba por concordar em deixar o menino para ser cuidado pela mulher, cujo marido foi assassinado em um assalto antes do filho nascer. A mulher, costureira e artesã, faz móbiles coloridos que Tsotsi acha caros, considerando-os como  “cacos de vidro”. A mulher responde que “são pedaços de luz” que estão, naquele momento, iluminando o rosto do rapaz.

A infância de Tsotsi surge em flashbacks cada vez mais precisos, que aos poucos esclarecem sobre as origens tanto do seu ódio quanto do crescente afeto que passa a sentir pelo bebê. Ficamos sabendo que ainda pequeno perdeu a mãe, que o amava, e que foi maltratado por um pai alcoolizado e violento, o verdadeiro autor da agressão ao cachorro de estimação do menino, então chamado David. Após sofrer esta agressão do pai enquanto ele se aproximava da mãe agonizante, David, tomado pelo pavor, fugiu de casa e se juntou a um grupo de crianças abrigadas em manilhas num terreno baldio. Na memória de Tsotsi perdura a imagem de David, um menino frágil, assustado, encolhido na manilha para se proteger de uma forte chuva.

Porém, na preocupação em arranjar dinheiro para cuidar do bebê, que foi por ele nomeado “David”, Tsotsi resolve assaltar a casa dos pais da criança, provocando uma nova tragédia. Desta vez, porém, após contemplar longamente os brinquedos no quarto vazio do pequeno “David” e escolher um bicho de pelúcia, é um de seus próprios companheiros que Tsotsi mata para salvar a vida do pai do bebê. Ao levar a pelúcia para o pequeno “David”, Tsotsi é convencido pela cuidadora do bebê a devolver a criança aos pais. Sua decisão é dolorosa, pois vai entregar algo que considera como sendo “dele”. No caminho, após ter passado pelas manilhas da sua infância, ele procura o mendigo, a quem entrega dinheiro, compensando o que havia roubado. Tsotsi chega à casa da família do bebê, mas sua relutância em se separar dele acaba resultando na sua prisão. Na última cena do filme, Tsotsi-David (que entregou o bebê ao pai) deixa cair sua arma e levanta as mãos, rendendo-se aos policiais.

 

Agressividade e tendência anti-social & Do grito de apelo à quase desesperança

Freqüentemente associamos o ato delinqüente à pobreza e a criminalidade à carência material. Ainda que estejamos muitas vezes bem intencionados, redunda, deste tipo de raciocínio, uma ligação da pobreza com a ilegalidade, quando não com a barbárie. Falar da agressividade da infância, de crianças cada vez menores, assusta, mas é preciso indagar: qual é o lugar da trama social nesta criança que agride? Qual o endereçamento desta violência?  Aonde buscar uma compreensão do comportamento cada vez mais violento de tantas crianças e jovens?

Estamos falando de uma patologia da cultura? De jovens psiquicamente comprometidos? Como entender o ato agressivo, violento, delinqüente e anti-social, em uma perspectiva sócio-psicanalítica? Como não psicologizar o social, retirando de nós a responsabilidade pela sociedade que estamos construindo e, paralelamente, não reduzir o psíquico a uma patologia social? Restringir nossa compreensão apenas a uma perspectiva significa empobrecê-la, uma vez que a compreensão do outro remete-nos sempre a diferentes registros.

Como em qualquer produção, uma escolha se faz necessária. No presente trabalho, optamos por um aprofundamento da relação entre agressividade e delinqüência enquanto respostas a um meio que fracassou, tomando como referência a teoria winnicottiana.

Se em trabalhos anteriores priorizamos a dimensão sócio política enquanto agenciadora da subjetividade, no presente artigo buscamos explorar uma outra vertente, deixando claro, desde já, que ambas não são excludentes, mas sim complementares. É sempre preciso lembrar que a mãe suficientemente boa, a mãe ambiente, está ancorada em uma cultura, e não podemos deixar de lado suas inscrições simbólicas no sujeito.

Segundo Cyrulnik,

nas culturas em que a família está diluída ou onde a escola não é devidamente valorizada, é a delinqüência, assim como as relações, que se tornam os tutores do desenvolvimento. A criança resiliente, com esse nível de estrutura psíquica, neste contexto cultural preciso, será um excelente pequeno infrator, bagunceiro, ladrão e dotado para as relações conflitantes. A criança não delinqüente, em determinados contextos sociais, será eliminada (1999, p.21).

A questão da agressividade no ser humano suscita, desde Freud, uma situação paradoxal: todos admitem que a agressividade - tomada aqui em seu sentido mais lato, quase que sinônimo de destrutividade e violência -  existe no ser humano, mas custam a admiti-lo e a estudá-la como algo inerente ao mesmo. Freud (1929) propõe esta questão de forma estilisticamente irônica, ao dizer:

que outros tenham demonstrado, e ainda demonstram a mesma atitude de rejeição, surpreende-me menos, porque “as criancinhas não gostam ” quando se fala na inata inclinação humana para a “ruindade”, a agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade. (p.124)

Falando a respeito das relações entre privação e delinqüência, Winnicott (1987) nos diz que “de todas as tendências humanas, a agressividade em especial, é escondida, disfarçada, desviada, atribuída a agentes externos e quando se manifesta é sempre tarefa difícil identificar suas origens” (p.89).

Mas qual a relação da agressividade com a violência? Uma das primeiras questões que surge ao falarmos de violência, é a sua freqüente equiparação à agressividade e a atribuição de um caráter naturalista, inerente a todo ser humano, em sua “violência instintiva”.  É de Jurandir Freire Costa (1984) um dos trabalhos mais pertinentes no tocante a esta distinção. Relendo o texto freudiano, ao mesmo tempo em que traz as concepções de Hanna Arendt sobre a relação da violência com o poder, Costa vai nos conduzindo ao caminho da violência como desejo, jamais como algo “irracional” ou da “natureza humana”..

Para o autor, violência é, então, o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. A irracionalidade do comportamento violento deve-se ao fato de que a razão desconhece os móveis verdadeiros de suas intenções e finalidades. Isto fica extremamente claro no filme em pauta. Não há nada de “impulsivo” na violência de Tsotsi - há sim uma repetição de uma situação vivida, porém não elaborada, porque não simbolizada & Tsotsi repete a violência sofrida sem, contudo, se dar conta do quanto seus atos estão inscritos em sua infância.

È neste sentido que percebemos os atos de Tsotsi, em um primeiro momento, como violentos e não como agressivos, do lado da delinqüência, como aponta Winnicott e não da agressividade que cria.

Segundo Edson de Souza (apud VILHENA, 2002) a agressividade deve ser percebida dentro de um sistema dialógico amparado amplamente pelo registro simbólico. Isso significa que a agressividade opera quando há reconhecimento pelo sujeito do objeto a quem endereça sua reivindicação agressiva.

Um ato agressivo, que pode ter muitas faces e disfarces, seria simultaneamente uma resistência do Eu tentando marcar seus contornos identitários justamente quando o objeto (o outro) ameaça o seu lugar, mas também um pedido de reconhecimento e endereçamento de uma mensagem a este outro (p. 187).

Neste momento, é possível fazer uma aproximação com a tendência anti-social, tal qual postulada por Winnicott (2000). Para o autor, esta pode ser a expressão da esperança que algumas crianças ainda mantêm dentro de si. Winnicott vê neste tipo de ato, (distinto da delinqüência), a busca de um limite, demonstrando neste endereçamento, a crença da criança no meio.

Para Souza,

o que dificulta nossas análise se deve ao fato de que estas mensagens de tom nitidamente especular endereçadas ao mundo precisam ser interpretadas. Não se revelam ao nosso entendimento de forma aparente (p.189).

Pensar a constituição do eu a partir do outro (base do pensamento psicanalítico) mostra que a agressividade é de certa forma o ruído desta operação, pois indica nossa dívida com esses objetos.

Souza enfatiza que a distinção entre violência e agressividade se dará menos pelo ato do que pelo endereçamento do mesmo, sendo a violência um efeito do contexto que a circunscreve. A fala agressiva do adolescente, que busca um reconhecimento paterno, o ato de indisciplina com o professor, que interroga o lugar e a legitimidade da autoridade, podem servir de exemplos para pensarmos a sutileza da distinção.

Winnicott (1987), que sempre enfatizou a importância da provisão ambiental satisfatória, apontava dois riscos possíveis, e não excludentes, para as crianças que sofriam privações precoces. Uma direção era representada pelo roubo e a outra pela destrutividade. Durante um certo tempo estas manifestações podem surgir e representar uma forma de solicitar uma mudança no ambiente.

Contudo, elas só acontecem se e enquanto a criança tiver esperança. Esperança não só de ver suas necessidades atendidas, mas, também, de poder contar com o outro, de poder ser amada, de poder construir projetos de vida. Depois de um tempo, se não há respostas favoráveis, a esperança desaparece e a situação se cronifica, tornando o seu manejo muito mais difícil.

O fato da agressividade ser constitutiva não significa, porém, a validade ou legitimidade de todos os seus movimentos. Este é um dos pontos essenciais em uma diferenciação nem sempre evidente. Enquanto a agressividade institui o outro em um lugar de autoridade e investido de um certo valor, a violência promove a desqualificação deste valor, anulando este outro.  Os vários textos de Freud sobre o narcisismo e os processos de identificação corroboraram este pensamento. No eixo da relação entre o sujeito e o outro, ao aumento do narcisismo parece corresponder a exacerbação da violência.

Em sua teorização sobre o Narcisismo, Freud (1914) sublinha a necessidade de que condições mínimas de investimento libidinal sejam feitas sobre o corpo da criança para que ela crie um projeto de vida possível e se reconheça como parte da cultura. Contudo, permanece também o risco (que todos continuamos mantendo pela vida afora) de que os sujeitos se encurralem no sofrimento atroz daquilo que Freud, mais tarde, em 1929, enunciou como sendo o narcisismo das pequenas diferenças

Qualquer sinal de diferença, de risco de não satisfação, de não reconhecimento, pode reconduzir à experiência do desamparo primordial e aos becos sombrios e tenebrosos da violência contra o outro que nos ameaça. Em outras palavras, a ampliação dos mecanismos narcísicos potencializa os mecanismos de impotência e desamparo constitutivos do sujeito, dificultando as práticas de solidariedade social. Seus efeitos acentuam as reações de segregação, o antagonismo e o ódio em relação ao diferente, tornando maiores e insuportáveis as pequenas diferenças entre o sujeito e o outro. Neste sentido o caso de Tsotsi é “clássico”: menino negro, que se criou na rua, num país onde o apartheid foi durante décadas a política oficial -, e que, extra-oficialmente, conserva todos os traços de uma sociedade racista, colonizadora e com profundas desigualdades sociais.

Para Winnicott a inquietude que gera um gesto espontâneo, que leva o bebê a acreditar que criou seu mundo ou o próprio mundo porque está envolto em um círculo de confiança, previsibilidade e limite, é a mesma agressividade que, ao destruir o que encontra pela frente, gera uma comunicação e um apelo. Este círculo da confiança, previsibilidade e limite é construído na relação com a mãe e seu ambiente. É neste espaço da ilusão, possibilitado pelo olhar da mãe, que a criança emerge com a possibilidade de construção de um próprio Eu &, mãe e bebê, constroi seu mundo, no primeiro momento, para que haja a possibilidade de separação posterior calcada na confiança e na possibilidade de desilusão (VILHENA; MAIA, 2003)

Mas e quando este círculo materno-infantil se desenvolve de forma precária, ou mesmo ausente? Antes de voltarmos à história de Tsotsi, façamos ainda algumas considerações teóricas.

 

Navegando contra a maré & um ambiente nada facilitador

Segundo Winnicott, o destino de um sujeito que se constitui pode ser referido à interação de dois aspectos fundamentais: a herança biológica (o corpo) e a presença, desde o mais remoto início da vida, de um ambiente facilitador, onde as técnicas maternas de handling e holding permitem que o bebê (que "não existe") vá podendo gradativamente se transformar em "um ser que experimenta a si mesmo", o que implica uma progressiva integração dos aspectos corpo, psique e mente. A presença de uma figura segura e viva (mãe), inspirando ao bebê a “fé em si mesmo", é condição necessária e essencial para que se desenvolvam os mecanismos mentais. Neste processo a mãe gradativamente apresenta o mundo ao bebê, por meio das técnicas da alimentação e outros cuidados. Embora o bebê esteja pronto para criar uma fonte de satisfação a partir da necessidade (fome), é somente a partir da experiência que ele descobre o que tem que esperar. Winnicott (1971, p. 99-103) resume em alguns pontos as características essenciais do ambiente facilitador: é somente quando acolhido, reconhecido e cuidado em sua relação constitutiva com o mundo externo que o bebê humano adquire o sentido de realidade e continuidade da existência. Em condições favoráveis, vivendo inicialmente a ilusão de que o mundo pode ser criado a partir da necessidade e da imaginação, ele irá posteriormente ingressar no princípio de realidade.

O ambiente facilitador pode ser resumido nas palavras de Winnicott:

O mais adequado que pode ser oferecido a uma criança é o desejo adulto de tornar os imperativos da realidade suportáveis até que se possa suportar o impacto total da desilusão, e até que a capacidade criadora possa desenvolver-se, através de um talento amadurecido, e converter-se em contribuição para a sociedade (1971, p. 102).

Na sofrida transição para a maturidade, que envolve aceitação e relação com o mundo do não-eu, haverá a necessidade de estabelecer-se uma ponte entre a  realidade e a fantasia, de modo que o indivíduo possa lidar, segundo as palavras de Winnicott,  com o "insulto" do princípio de realidade, com seus limites, sua lei.

Winnicott (1975) defende em função disto a necessidade de uma afirmação da natureza humana em termos de um triplo enunciado, inserindo entre a realidade interna e a externa uma "terceira parte da vida", que constitui uma área intermediária, de experimentação, lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa de manter  as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas. “O lugar da experiência cultural, assim como do brincar, é o espaço transicional” (1975, p.133).

O espaço potencial se encontra, diz ainda Winnicott (1975, p. 139), “na interação entre nada - haver- senão - eu e a existência de objetos e fenômenos fora do meu controle onipotente”.

O que é vital no caminho em direção à independência não é uma continuação da experiência de onipotência, mas uma continuidade da capacidade criativa. A experiência da criatividade é definida por Winnicott (1975, p. 95) como uma sensação de que "a vida é digna de ser vivida". Em contraste, existe um relacionamento de “submissão à realidade externa”em que o mundo é reconhecido apenas como algo a exigir adaptação.

O fracasso da aquisição do sentido de realidade, que confere consistência ao existir, ocorre quando o ambiente falha no desempenho da função de apoio e proteção. Abre-se então espaço para uma imposição vinda da realidade externa,de tal maneira violenta que o bebê é obrigado a reagir. Na visão winnicottiana, o trauma se refere a essa imposição do ambiente e a uma reação do indivíduo à imposição, antes que haja um desenvolvimento dos mecanismos que possam tornar “previsível” o imprevisível, ou suportável o que seria antes insuportável. Winnicott marca a antítese entre os termos ser e reagir, afirmando que o reagir aniquila o ser, originando ansiedades impensáveis: despedaçar-se, cair para sempre, desorientar-se, isolar-se completamente por não existirem meios de comunicação (WINNICOTT, 1963).

Quando o ambiente, por alguma razão, fracassa em dar força ao ego incipiente, surgem as condições impositivas que possibilitam uma submissão à realidade externa, em vez do desenvolvimento da capacidade de uma abordagem criativa dos fatos. Esta é a origem de modos de ser marcados pela agressividade patológica, como as condutas anti-sociais e a delinqüência. Não há, nestes casos, a possibilidade de uso de um espaço simbólico (o espaço transicional, nos termos de Winnicott), pois este só pode ser construído com base num sentimento de confiança relacionada à fidedignidade da figura materna.

Quanto à delinqüência , Winnicott (1987) é enfático quanto à importância do lar na constituição do sujeito:

Uma criança normal, se tem confiança no pai e na mãe, provoca constantes sobressaltos. No decorrer do tempo, procura exercer o seu poder desunião, de destruição, tenta amedrontar, cansar, desperdiçar, seduzir e apropriar-se das coisas. Tudo o que leva as pessoas aos tribunais (ou aos hospícios, tanto importa para o caso) tem o seu equivalente normal na infância, na relação entre a criança e o seu próprio lar. Se o lar pode suportar com êxito tudo o que a criança fizer para desuni-lo, ela acaba por acalmar-se através de brincadeiras (p. 256, 257).

Ao contrário da agressividade, onde a palavra pode encontrar-se potencialmente aprisionada, mas que pode ser legitimada como um discurso pelo outro, o ato violento, como aponta Souza,

traz em sua estrutura algo de arbitrário e, mesmo que possamos deduzir alguma mensagem, algum sentido em seus movimentos, é importante destacar que se trata, desde o início de um” diálogo “rompido, de um diálogo fracassado (apud VILHENA, 2002, p.187).

A tendência anti-social não seria, segundo Winnicott, uma defesa organizada, e sim uma patologia da transicionalidade, porque está relacionada a uma falha ambiental na fase de dependência relativa, fase esta em que a transicionalidade já está se efetuando. O que acontece é que a mãe falha e não volta ao padrão anterior de “benignidade”, e, como não volta, há o esvaecimento de sua lembrança, assim como há o esvaecimento do objeto transicional quando este perde seu vínculo com a mãe pelo abandono desta. Segundo Winnicott, “as crianças incluídas na categoria de desajustadas ou não tiveram objeto transicional, ou o perderam” (apud VILHENA; MAIA 2003, p. 45); o que haveria, no caso dessas crianças, seria a existência do objeto interno confrontado, aquele objeto que representa a colagem de aspectos dissociados do indivíduo, em que o que junta os pedaços seria exatamente o sintoma da tendência anti-social.

A tendência anti-social é um sinal de SOS (esperança) ao meio que se encontra em débito para com a criança. Ela não é um diagnóstico, podendo ser encontrada tanto em indivíduos normais quanto em neuróticos ou psicóticos. Na tendência anti-social há uma necessidade que se exprime em uma externalidade, a culpa é do ambiente. Caracteriza-se por um elemento que compele o ambiente a tornar-se importante.

Para Winnicott (2000), a agressividade pode tomar vários caminhos, e estes caminhos estarão em estreita relação com a resposta ambiental: o desenvolvimento normal da capacidade de inquietude e duas alternativas patológicas, que seriam a não-capacidade para a inquietude e a questão da formação do falso-self, ligado à questão da tendência anti-social.

Na explosão de raiva, de agressividade, muitas vezes, reside um apelo de socorro e uma esperança de que essa explosão comunique algo para além do incômodo que causa.

Certamente podemos afirmar que o meio ambiente onde Tsotsi se desenvolveu nada tinha de facilitador conforme nos é mostrado. Fica, contudo, uma indagação acerca de um possível olhar, um provável cuidado, por mais incipiente que tenha sido, que resgata em Tsotsi a resiliência ali presente, permitindo a revivência de um cuidado materno muito primitivo, ao mesmo tempo em que o preenchimento imaginário da vacância paterna, simbolizado na figura do mendigo. Lembremo-nos que, se o roubo está associado à figura da mãe, a destrutividade, para Winnicott remete ao pai.

Por isto propomos a hipótese de que em Tsotsi ainda perdura um fio dessa esperança e que algumas experiências como o encontro com a mulher-mãe, que ao cuidar do bebê cuida, vicariamente, do bebê David, que ele foi um dia.  Ressaltamos ainda a importância do encontro com o velho mendigo, representando uma figura paterna que o confronta com os limites da sua destrutividade.

Para Winnicott a agressividade

é uma pulsão chamada de destruição, mas que poderia ser  chamada de pulsão combinada, numa unidade primária de amor-conflito: a pulsão é potencialmente destrutiva mas ser destrutiva ou não depende do caráter do objeto: o objeto sobrevive, isto é, mantém seu caráter ou reage? (1994, p.190).

O conceito de uso de um objeto, proposto por Winnicott ([1969], 1975, p. 121), em sua última contribuição teórica, é de fundamental importância para a compreensão do fenômeno da agressividade nas relações da criança com o ambiente. A capacidade de uso de um objeto só pode ser alcançada nas condições ambientais de provisões e limites favoráveis ao desenvolvimento do self já mencionadas. É uma forma de relação que vai além do conceito  tradicional de relação primitiva de objeto, de ordem puramente subjetiva. A noção de uso do objeto é fundamental para a compreensão da agressividade, na diferenciação entre a destruição na fantasia e aquela que é concretamente atuada.

Nas relações objetais primitivas, a fantasia é meio de acesso à realidade, e muitas vezes a demanda que vai de encontro à realidade é violenta, voraz, potencialmente destrutiva se não for acolhida de modo adequado.

A capacidade de alguém colocar o outro fora da área dos fenômenos subjetivos é umprocesso considerado por Winnicott como “a coisa mais difícil, talvez, do desenvolvimento humano”, já que implica o reconhecimento de um outro como simultaneamente semelhante e separado do sujeito. O outro pode tornar-se, desta forma, um objeto com novas características que envolvem sua natureza e comportamento, um objeto que, fazendo parte da realidade compartilhada, deixa de ser apenas um feixe de projeções e adquire capacidade própria de resistir aos ataques. Pode ocorrer assim o paradoxo do objeto subjetivo que sobrevive à sua destruição pelo sujeito, permitindo que o sujeito possa começar a viver uma vida no mundo dos objetos e usufruir das suas contribuições. De acordo com Winnicott, enquanto o objeto permanece apenas subjetivo, a raiva suscita fantasias de destruição, e a agressividade se torna característica central, extremamente ameaçadora.

A descoberta da externalidade do objeto, de sua capacidade autônoma de sobreviver aos ataques onipotentes do sujeito, marca a passagem do relacionamento aniquilador, que exclui qualquer esperança, para a experiência de uma destruição simbólica, pano de fundo para a relação de uso (implicando todo o jogo das perdas e ganhos de uma relação) com um objeto situado na realidade externa.

Quando o ambiente não dá condições para a aquisição de vivências definidas de individualidade, vitalidade e continuidade, resta um saldo crônico de angústias de aniquilamento, desvitalização e auto-estima reduzida. A perda do objeto, capaz de alimentar a ilusão narcísica primária de plenitude, produz um esvaziamento do eu que deixará marcas tão mais profundas quanto mais precoces e radicais tiverem sido as perturbações nos vínculos com o objeto.

Se nas primeiras relações ocorrem entraves ao processo de significação, pela mãe, da onipotência infantil, seguida da progressiva desilusão da criança para introduzi-la na realidade, torna-se impossível a construção de uma "abordagem criativa dos fatos". Pois não há, neste caso, possibilidade de uso de um espaço simbólico intermediando as relações com o mundo real, já que esse espaço só pode ser construído com base num sentimento de confiança relacionada à fidedignidade da figura materna. No texto O lugar em que vivemos,  Winnicott afirma que, “com os seres humanos, não pode haver separação, apenas uma ameaça dela, e essa ameaça é máxima ou minimamente traumática, conforme a experiência das primeiras separações” (1975, p. 145-152).

Na gênese dos comportamentos anti-sociais, ocorre uma falha no desempenho das funções da mãe, do pai ou da sociedade, ocasionando uma falha na construção do sentimento de confiança e uma ruptura na continuidade da vida. Como conseqüências de uma separação insuportável, surgem o ódio e o desejo de destruição.

Podemos agora compreender melhor como, frente à violência da imposição da realidade, o frágil David se transformou no temível Tsotsi, passando a atuar com crueldade a violência sofrida, usando-a como um escudo protetor que o aliena da sua existência anterior. Quando o pai de David impede que ele se aproxime da mãe agonizante e chuta violentamente o cachorro de estimação do menino, ele dá na criança o golpe que “quebra sua espinha”, pois nesse momento ocorre uma brutal intrusão da realidade na experiência da criança, que perde não só a mãe, mas sua possibilidade de transitar por um espaço simbólico, destroçado pela bárbara invasão do real. Ao encontrar o velho mendigo capaz de sobreviver ao seu ataque, um eixo parece começar a se reconstruir.

 

Olhando e sendo olhado

A memória de uma existência esquecida, para ser reativada, demanda o esforço de criar e sustentar condições facilitadoras, seja no setting analítico, seja na vida cotidiana. Destaca-se nos dois casos, além das funções de holding e da construção de limites, a importância da função especular como um importante fator de resgate. 

Este conceito implica um aspecto primário, a serviço da integração somato-psíquica e do narcisismo normal, quando o bebê, inicialmente, se identifica e aprende a se reconhecer na sua imagem projetada na mãe e refletida por ela; de forma lenta e oscilante, a criança desenvolve  a auto-percepção e auto-estima, autenticando o que é "eu" num processo de relação objetal em que ambos são ativos (WINNICOTT, [1967],1975). 

Freud (1914) referiu-se a este processo quando, introduzindo o conceito de narcisismo, afirmou que não existe, no início da vida, uma unidade comparável ao ego; o desenvolvimento desta instância implica a necessidade de que algo seja acionado no auto-erotismo já existente: uma nova ação psíquica "para que seja provocado o narcisismo" (1974, p. 93). É no encontro do narcisismo nascente do bebê e do narcisismo revivido dos pais que se cria um espaço, em torno do berço de Sua Majestade o Bebê. Ao longo da vida, a função integradora, conforme Doin (1985, p.14), "exige condições de afeto, compreensão e autenticidade, para que possa cumprir-se o preceito délfico: conhece-te a ti mesmo".

Winnicott marca as repercussões da função especular na vida do indivíduo:

Quando olho, sou visto; logo existo. Posso agora me permitir olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a minha apercepção e também percebo. Na verdade, protejo-me de não ver o que ali não está para ser visto (1975, p.155).

Segundo Winnicott, na fase da dependência absoluta, uma mãe suficientemente boa perceberia o gesto espontâneo do bebê como um gesto intencional e, portanto, violento a ela. E, se a mãe não percebe esse ato como tal, o bebê não se perceberá como agente violentador. Nesse primeiro momento não há como associar agressividade primária com violência, por não haver intencionalidade no gesto do bebê, este é pura motilidade, pura manifestação do instinto:

É a mãe quem devolverá ao bebê o sentido de “maldade” ou “inocuidade” de sua agressividade puramente instintiva. É a mãe, e o ambiente humano, quem qualifica humanamente o instinto, tornando-o uma manifestação pulsional, ou seja, um desejo dirigido a um objeto (bom ou mau) e portador de um afeto (bom ou mau) (COSTA, 1986, p. 31).

Quando Tsotsi se aproxima da mulher que alimenta “seu” bebê, emociona-se ao observar que a mulher, olhando carinhosamente o bebê, fala e brinca com ele. A memória da relação com sua própria mãe começa a despertar. Ele parece nesse momento adquirir (embora ainda precariamente) condições de se identificar com a pessoa que poderia ter sido se a continuidade da sua existência não tivesse sido abruptamente cortada com a perda da mãe. Ele pode então lembrar-se da cena do pai quebrando a espinha do cachorro, enquanto sua própria “espinha” começa a se regenerar, eixo da possibilidade de resgate da função simbólica e de relações mais construtivas com o mundo. Vários percalços ainda surgirão no seu caminho na direção da redenção: após colocar-se numa situação de violência sem saída, ao invadir a casa do bebê roubado, ele ainda precisará matar um dos seus companheiros para salvar o pai do menino. Mais tarde, porém, conseguirá devolver ao velho mendigo o dinheiro roubado, e finalmente, devolve o bebê aos pais.

A agressividade que cria o mundo, e também cria a destrutividade, não pode ser categorizada como saúde e doença e, sim, como um deslizar entre saúde e doença. A agressividade que destrói, destrói dependendo dos olhos de quem a vê. Assim como a agressividade que cria, cria também dependendo do olhar de quem vê criação naquilo que seria somente um movimento a esmo de um bebê. De um descobrir e não descobrir o mundo surge o bebê-sujeito, rumo à individuação, desde que o objeto sobreviva a seus ataques. Do contrário, a história deste bebê não será por este caminho e sim por outro, no qual a agressividade se tornará, sim, destrutividade; um testar constante à sua existência e à existência do mundo, ameaça ao seu sentimento de ser e existir como “pessoa total” no mundo.

A criança, o bebê, o ser humano, enfim, possuem em si mesmos a saúde e, até na mais profunda patologia, o que temos são estratégias de sobrevivência, táticas possíveis de lidar com o mundo ou consigo mesmo. O que o ser humano busca é um modo de vida que o faça se “sentir vivo” e “estar bem”. É isto que ele tenta construir ao longo de sua existência. Seja uma resposta a um ambiente suficientemente bom, ou a um não tão suficientemente bom, ou até mesmo a um ambiente muito ruim, a agressividade da criança será, ao nosso olhar, uma estratégia de sobrevivência possível e viável para ela falar de si mesma.

Winnicott (2000) alerta-nos que os comportamentos anti-sociais começam muito cedo a aparecer. São sinais comuns, que passam por normais, e que são os primeiros sinais de (de)privação, como a sofreguidão, com seu correlato oposto, a inibição do apetite. Para ele há sempre duas vertentes da tendência anti-social: aquela representada tipicamente pelo roubo, e a outra representada pela destrutividade, mesmo que a ênfase recaia por vezes mais sobre uma do que sobre a outra. Devemos entender que a falha ambiental aconteceu no período em que o bebê saiu da dependência absoluta e está na dependência relativa, mas que o comportamento anti-social, representado aqui pelo roubo e pela destrutividade, somente aparece quando a criança sente que há esperança em reviver a situação traumática de (de)privação, logo, aparece muito tempo depois de a falha ter acontecido. Acreditamos que podemos compreender essas falhas como um trauma acumulativo, no sentido postulado por Masud Khan, porque, normalmente, as falhas ambientais não acontecem somente uma vez, são falhas pequenas que desilusionam o bebê quanto à constância do meio que o supre.

No roubo, dentro do entendimento winnicottiano, há a procura de algo, em algum lugar, por parte da criança & o que importa não é o objeto que é roubado e sim o que esta criança procura quando rouba, e ela procura sua mãe, sobre a qual ela se sente no direito de usar. Se há o fracasso em achar o objeto (e normalmente há esse fracasso, porque não é o objeto em si que é importante, ainda), essa criança irá procurá-lo em outro lugar, quanto tem esperança.

Para Winnicott (1983), o roubar está relacionado à interação com a mãe, ao desempenho de sua função materna primária, ao fato de ela exercer um holding que teria falhado. No roubar, a criança estaria “apresentando exigência no tempo, preocupação, dinheiro, etc das pessoas (manifestadas pelo furto)” (p. 188). Esse tipo de exigência se relaciona ao holding, ao suporte materno ao bebê, já que o que a criança exige, em forma de roubo, é a disponibilidade da mãe (exigência no tempo) e a sintonia desta com o bebê em forma de um “adoecimento sadio” (preocupação).

Já a destrutividade estaria relacionada à interação com o pai. A função paterna, em Winnicott, é ser o ambiente indestrutível, aquele que sustenta a mãe, que sustenta o bebê. Por isso Winnicott nos diz que este aspecto da tendência anti-social está relacionado não com todas as crianças em geral, como o aspecto do roubo em si, mas ao menino e ao menino que existe na menina. O que a criança busca são limites.

Ela está esperando daquele grau de força estrutural, a organização e reabilitação que se torna essencial para a criança se tornar capaz de descansar, relaxar, desintegrar-se, sentir-se segura (o que manifesta pela destruição que provoca forte reação de controle (WINNICOTT, 1983, p. 188).

Segundo Rassial, delinqüente é:

alguém que delinqüe, que faz falta ao “linqüe”, mas também àquilo que o “linqüe”. A etimologia da palavra é interessante de & linquere. Linquere é deixar algo, ou alguém, no seu lugar e o de marcar a separação, o destacamento.O delinqüente é contra a natureza própria das coisas, de retornar ao seu lugar (Aristóteles) & aquele que desaloja: que desaloja as coisas, que desaloja de seu lugar, do lugar que lhe é atribuído pela sociedade (1999, p.55).

O conteúdo do filme nos remete exatamente a estas questões, dramatizadas na perda da mãe, na agressão sofrida por parte do pai, fuga para o terreno baldio, com todas as carências que daí decorrem: falta de um teto, falta de proteção de um adulto, etc. Tsotsi, agredido pelo pai e abandonado à própria sorte, “se esquece” do seu lugar,  identifica-se com seu agressor e transforma-se num ladrão e assassino, até que o bebê roubado reacende a lembrança da mãe e a esperança de, revivendo a situação traumática de (de ) privação, poder superá-la e dar oportunidade ao ressurgimento do self criativo. A última cena do filme, com a rendição aos policiais, sugere o começo de um caminho de redenção.

 

Conclusão

De acordo com o dicionário “Aurélio”, o verbo render-se possui diferentes sentidos, que deslizam da idéia de capitular, entregar-se, para a idéia de substituir, ocupar o lugar de -, como em “render a guarda”. Por outro lado, a palavra redenção refere-se a uma ajuda ou recurso capaz de livrar alguém de uma situação aflitiva ou perigosa (FERREIRA, 1986). A cena da rendição de Tsotsi poderia então ser compreendida como a oportunidade extrema (mencionada por Winnicott quando este se refere ao último limite encontrado pelo delinqüente nos muros da prisão) de uma “redenção” na substituição de Tsotsi por David.

Assim, podemos perceber que o comportamento anti-social, que questiona, pela atuação, um direito a um lugar, o colo e atenção da mãe, e um limite e significação para os seus atos na figura do pai, pode, caso não seja atendido, aumentar a sua área de ação e passar a ser destrutivo.

Fraga, ao discutir a relação entre juventude e violência, aponta para alguns aspectos que consideramos importantes para a articulação com a questão da subjetividade. O autor refere-se à existência em nossa sociedade de um “modo específico de afirmação do indivíduo sob a vigência de determinadas formas de sociabilidade” (FRAGA, 2002, p. 46), isto é, a “continuidade da sobrevivência pela violência” (FRAGA, 2002, p. 49). O autor, portanto, aponta para um padrão de sociabilidade que permeia toda a sociedade contemporânea, especialmente a juventude, e que tal forma de sociabilidade, marcada pela violência, modela e afirma determinadas subjetividades. Ampliando tal discussão, Diógenes (1999) ressalta que tal padrão de sociabilidade está ancorado em três eixos, a saber: individualismo e intolerância à diversidade; disposição subjetiva favorável à violência e busca de reconhecimento pela violência. Em outras palavras, a autora toma “a violência como forma ”muda” (ARENDT) de afirmação da invisibilidade e da exclusão compartilhada por jovens de várias esferas culturais” (ARENDT, p.169).

Tal compreensão nos ajuda a desmistificar a relação entre violência e juventude concentrada nas camadas pobres, com base no estereótipo que liga violência à miséria, pois se trata, na verdade, da nossa imersão em uma cultura cujo produto são formas de relações sociais e subjetivas específicas. De acordo com Novo, esse processo social, marcado, segundo a autora, pela “solidão da falta de confiança, da impossibilidade do encontro, do reconhecimento no outro, da ação solidária, da negociação verbal dos conflitos, da busca coletiva” (NOVO, 2001, p. 69), tem afetado não só jovens das camadas pobres, mas também aqueles pertencentes às camadas privilegiadas economicamente, não só pelo enclausuramento dos mais abastados nos grandes condomínios fechados, que se encontram também

esvaziados em suas possibilidades de ação e de reconhecimento social de tal forma que simetricamente busca afirmar-se de forma destrutiva e excludente no espaço urbano, seja atraindo atenção pelo medo seja pela perplexidade que causa no meio social (NOVO, 2001,p.68).

Ou seja, tal padrão de sociabilidade é engendrado por todos. Em trabalhos prévios (VILHENA, 2002b; VILHENA ;MAIA, 2003 a e b; VILHENA; ZAMORA; DIMENSTEIN, 2003; BITTENCOURT,2004; 2006), foi postulado que em grupos que têm a violência como sua raiz fundadora, os mecanismos de identificação têm três matrizes de apoio: a procura pela visibilidade e endosso público; a coesão de grupo que a maior parte do tempo exacerba a hostilidade e, finalmente, a falta de referentes simbólicos e culturais que lhes proporcionariam um sentimento de pertença. Há, por assim dizer, um certo desenraizamento cultural, que atinge as populações moradoras de favelas e periferias, no que diz respeito aos seus costumes, tradições, crenças e outros aspectos de seu patrimônio cultural, gestado ao longo de muitas gerações e herdado de seus ancestrais, sejam negros, sejam nordestinos.

Sociedades complexas e extremamente desiguais freqüentemente promovem não somente os socialmente excluídos, mas também os "não-afiliados", os desenraizados. Em tais situações, estes grupos podem ser descritos geográfica e psicologicamente como estando nos subúrbios da cidadania. Sem esta dimensão de afiliação o processo de afirmação identitária pode ficar comprometido ou ancorado em valores que não os da coletividade, podendo, inclusive ser fonte de sofrimento e loucura.

Em tais situações nós poderíamos pensar na violência como uma marca que permite ao sujeito emergir de um lugar não escolhido por ele, à procura de afiliação e reconhecimento - um lugar em uma pólis que o rejeitou (VILHENA, 2002b).

Por isto enfatizamos que a questão da delinqüência não pode ser circunscrita a uma classe, nem reduzida a uma patologia social. O ato delinqüente é, muitas vezes, uma busca de filiação, de reconhecimento & ato fadado ao fracasso - uma vez que a busca em questão é por um objeto simbólico e não por um objeto real e concreto. 

A história de Tsotsi remeteu-nos assim a questões muito próximas da experiência que vivenciamos na prática clínica cotidiana, tanto com crianças e jovens vivendo em lugares de risco, quanto com aqueles que, embora não tenham sofrido privações materiais, mostram os efeitos das (de)privações de ordem afetiva, igualmente nocivas. Na ficção de Tsotsi, assistimos à re-encenação da violência sofrida na infância por um jovem que perdeu precocemente o apoio ambiental, tendo sido jogado brutalmente no mundo real sem ter tido a possibilidade de desenvolver um mundo interno capaz de prover condições para uma vida social e afetiva construtiva.

Podemos chamar de Tsotsi todas as crianças desprovidas da espinha sustentadora do simbólico, solitárias, soltas demais ou confinadas, testemunhas da violência banalizada como parte do cotidiano, tomadas pelo desespero, pela impotência, pelo ódio, decorrentes de condições da vida em lugares onde não há espaços favoráveis à experiência de simplesmente ser criança.

 

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Endereço para correspondência
Junia de Vilhena
E-mail: vilhena@psi.puc-rio.br
Maria Inês G. de Freitas Bittencourt
E-mail: mines@psi.puc-rio.br

Recebido em: 28/08/2007
Aceito para publicação em: 14/02/2008
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia Clinica.
** Doutora em Psicologia Clínica.

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