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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.3 Rio de Janeiro dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Os valores da atenção e a atenção como valor

 

The values of attention and attention as a value

 

 

Luciana Vieira Caliman *

Pos-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo sugere que, nos últimos 300 anos das sociedades ocidentais, o direcionamento da atenção foi revestido de um valor moral, existencial, médico e científico. Fazemos uso de trabalhos dos historiadores da atenção Jonathan CRARY, Michael HAGNER e Lorraine DASTON para analisar a história da constituição dos valores da atenção e da atenção como valor. Resgatamos a riqueza e a diversidade teórica presente nos trabalhos dos autores que, no final do século XVIII e durante o século XIX, se ocuparam do tema da atenção e participaram do processo histórico de constituição do seu valor. Concluímos que, nos discursos analisados, a atenção foi conceituada de diversas formas, mas seu dispêndio nunca deixou de ser alvo de julgamentos morais e de valorações sociais.

Palavras-chave: História da psicologia, Atenção, Valor.


ABSTRACT

This article argues that, in the last 300 years of western societies, our direction of attention was influenced by moral; existential; medical; scientific, and economic value. The works of the historians of attention Jonathan CRARY, Michael HAGNER, and Lorraine DASTON are used to analyse the history of the constitution of the values of attention and of attention as a value. We bring back the richness and theoretical diversity of the authors who, working on the concept of attention at the end of the XVIII century and during the XIX century, took part in the historical process of the constitution of the values of attention. We concluded that in the analysed discourses attention was seen and conceptualized in different ways, but its waste was always a target for moral and social assessment.

Keywords: The history of psychology, Attention, Value.


 

 

Ao percorrer a história da atenção, este artigo sugere que, nos últimos 300 anos de história ocidental, o direcionamento ótimo da atenção e, por outro lado, sua “falta” e seu “desperdício”, foram constituídos enquanto valor moral, existencial, político e econômico. Nestes três séculos, a atenção assumiu funções e formas diversas, foi modelada e transformada por tecnologias e demandas específicas de cada período histórico, mas seu dispêndio nunca deixou de ser alvo de julgamentos morais e de valorações sociais.

Alguns historiadores acreditam que a atenção sempre esteve presente na história da filosofia e do conhecimento como um tema de destaque. Outros afirmam que foi primeiramente a partir da segunda metade do século XIX que seu controle tornou-se importante para a vida moderna e para o discurso científico. Este é o ponto de vista de Crary (1999), um dos mais famosos historiadores da atenção nos dias de hoje. Em sua análise, as últimas décadas do século XIX delimitaram o momento político, econômico, social e tecnológico no qual a capacidade de focalização e de fixação da atenção foi vista como necessária à integração da experiência subjetiva e à adaptação eficiente ao mundo.

Há os que defendem que a importância da atenção para as sociedades ocidentais é mais antiga e remonta às práticas iluministas e românticas de observação e experimentação do eu. Para Hagner (1999, 2003), a habilidade de controle da atenção passou a ser importante para a subjetividade moderna quando, no final do século XVIII, as técnicas de auto-experimentação e de auto-observação tornaram-se fundamentais para a constituição do conhecimento do eu burguês e quando o processo de racionalização do tempo se iniciava.

Orientados pelos trabalhos acima citados e por teóricos da atenção do século XIX, podemos dizer que, desde a segunda metade do século XX, presenciamos a fase mais recente do processo histórico de constituição dos valores da atenção, que teve início nas últimas décadas do século XVIII. Para Frank (1998), vivemos na economia da atenção: uma economia na qual a lógica monetária foi substituída pela atentiva. A atenção é o que há de mais valioso, desejado e disputado em nossas sociedades. Ao mesmo tempo, Davenport e Beck (2001) demonstram que, na sociedade do conhecimento e da informação, expande-se a crença de acordo com a qual o sucesso profissional está intimamente vinculado à capacidade de gestão da atenção. Na configuração atual, também podemos falar da constituição de uma economia biomédica da atenção. Nela, o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H) tem se tornado uma das principais incidências nos serviços de saúde públicos e privados.

Nos tópicos deste artigo, procuramos estimular a constituição de um diálogo com a história da atenção, tema negligenciado pelos manuais e cursos de psicologia e pela própria literatura sobre a economia da atenção. Analisamos o valor outorgado à atenção no século das luzes; suas relações com o objetivismo científico e com o discurso moral do auto-controle, característicos da segunda metade do século XIX; discutimos como se deu o processo de corporificação da função mental e espiritual da atenção; e, por fim, traçamos um panorama dos modelos teóricos da atenção que marcaram a cena psicológica e médica do final do século XIX.

Os estudos da atenção dos séculos XVIII e XIX foram marcados por uma extraordinária riqueza teórica e experimental. Riqueza que surpreende, especialmente quando comparada aos trabalhos recentes sobre a atenção. Esta é uma constatação ainda mais marcante quando consideramos a pesquisa biomédica sobre o TDAH e os “déficits atentivos” a ele relacionados. Na literatura sobre a patologia da atenção mais divulgada, comentada e discutida nos últimos anos, pouco é falado sobre a atenção. E, quando alguma coisa é dita, a ênfase recai tão somente sobre os seus substratos neurofisiológicos e cerebrais.

Ao re-visitar a história da constituição dos valores da atenção e da importância a ela concedida pelos discursos psicológicos e científicos, reforçamos uma atitude analítica necessária aos “pensadores e profissionais da atenção”: considerar que as formas e funções da atenção são histórica e coletivamente definidas e que os valores a elas atribuídos são produto de configurações tecnológicas e sociais específicas. Ao mesmo tempo, buscamos resgatar a riqueza e diversidade teórica presente nos trabalhos que, no final do século XVIII e durante o século XIX, se ocuparam do tema da atenção. Eles nos lembram que, na análise da atenção, um olhar analítico minucioso e complexo deve ser priorizado sobre as teses reducionistas dominantes nos estudos contemporâneos da atenção.

 

A “descoberta” da atenção pela psicologia

Em seu livro sobre a atenção (1908), Edward Bradford Titchener (1867-1927) fazia uma avaliação dos benefícios trazidos pela nova psicologia experimental para a pesquisa da atenção: a psicologia do século XIX foi quem primeiro “descobriu a atenção”, dizia o autor. Para Titchener (1908), isto significava dizer que, pela primeira vez no ocidente, o verdadeiro problema da atenção era explícita e cientificamente formulado e, finalmente, sua importância para a vida mental era reconhecida. Nas palavras de Titchener (1908, p. 173):

O que eu quero dizer com a “descoberta” da atenção é a formulação explícita do problema; o reconhecimento de sua importância fundamental; a descoberta de que a doutrina da atenção é o nervo de todo sistema psicológico e que o julgamento dos homens diante do tribunal geral da psicologia dependerá de como a atenção é por elesjulgada.

A pesquisa psicológica empírica havia encontrado na atenção seu objeto e seu método e a previsão era de que ela se ocuparia de seus estudos por muito tempo. Até 1908, ano em que Titchener publicou seu livro, poucos eram os consensos encontrados, muitas eram as dúvidas. Mas as expectativas eram positivas: o futuro da pesquisa empírica da atenção era promissor.

À postulação histórica de Titchener, Hatfield (1998) dirige sua crítica. Ele acusa a nova ciência psicológica, em particular a figura de Titchener, de total desconsideração da psicologia do século anterior. Na opinião da maioria dos “novos psicólogos”, a psicologia do século XVIII era apenas um corpo teórico em organização e, no que dizia respeito ao tema da atenção, o interesse era ainda incipiente. Contra esta interpretação, Hatfield (1998) argumenta que o primeiro espaço de difusão de uma psicologia da atenção e de reconhecimento de sua importância para a vida psíquica foi a primeira metade do século XVIII.

Em 1889, Lemon L. Uhl e, dez anos depois, David Braunschweiger defendiam um argumento semelhante: desde 1730, a atenção tornou-se um capítulo importante nos manuais de psicologia e Christian Wolff foi quem primeiro formulou um corpo teórico sistemático sobre o assunto. Com o seu trabalho, o tema da atenção foi introduzido nos estudos psicológicos do século XVIII.

Titchener não desconhecia os autores da psicologia do século XVIII. Em seu livro, ele também citava a dissertação de Braunschweiger e fazia referência a antigos teóricos da atenção. No entanto, a seu ver, a psicologia de seu tempo havia descoberto uma nova forma de colocar o problema da atenção e de investigá-lo. Certamente, esta não era apenas uma outra forma. Na visão do novo psicólogo, ela era a melhor e mais científica formulação do problema. Mas se deixarmos de lado o tom cientificista e desenvolvimentista do argumento de Titchener, ele nos revela um aspecto importante.

Não há dúvidas de que se compararmos a ênfase dada à atenção pela psicologia da segunda metade do século XIX àquela do século XVIII, veremos que o século XIX foi, por excelência, o espaço de expansão nos estudos da atenção, mas a comparação entre estes dois momentos nos oferece outras informações. Como Titchener argumentava, um novo problema da atenção havia sido formulado. As questões, as perguntas, as respostas e os métodos que sustentavam a pesquisa da atenção haviam mudado consideravelmente desde sua inclusão nos manuais de psicologia do século XVIII. Neste sentido, o autor estava correto. Mas veremos que Titchener havia se equivocado ao dizer que a psicologia de seu tempo foi a primeira a reconhecer a importância da atenção para a vida mental e seu valor. A valorização da atenção não fora um fenômeno específico do século XIX

 

Os valores da atenção no século das luzes

No século XVII, cientistas naturais como Descartes, Newton, Bacon e Robert Hooke acreditavam que a alma, voraz em sua curiosidade, dificilmente era apreendida por um objeto. A não ser que ele fosse da ordem do extraordinário, a alma continuaria sua peregrinação inquieta e insaciável, sem se ater a nada por muito tempo (DASTON, 2000). Por esse mesmo motivo, a prática científica naturalista ocupava-se do extraordinário e do incomum. Era dito que, anterior à atenção e a condicionando estava o admirar-se por alguma coisa.

Uma mudança ocorrera na psicologia científica do século XVIII, quando comparada à visão dos cientistas naturais do século anterior: a fixação da atenção passou a ser vista como um valor, um poder que poderia ser desenvolvido através da disciplina da mente. No controle da atenção, o exercício e a disciplina eram adicionados ao maravilhar-se e ao admirar-se. Além disso, nas teorias psicológicas, a atenção passava a ser compreendida como um ato mental que exercia um papel ativo no processo de constituição do conhecimento e na formação da identidade pessoal.

Na filosofia e na psicologia do século XVIII, essa transformação afetou diretamente a compreensão do sujeito epistêmico. Para Daston (2000), ela marcou uma mudança altamente significativa nos sistemas de pensamento e na pragmática dos modos de vida. Para as teorias da época, o eu era um emaranhado de funções e estados mentais, extremamente vulnerável em sua integridade, constantemente ameaçado por inimigos internos e externos: de dentro, vinham as seduções da imaginação; de fora, as associações apressadas que produziam as percepções falsas. A atenção bem direcionada passava a ser a solução para os dois perigos, ela era “a direção ativa da mente” que deveria ser treinada, estimulada e desenvolvida. Em certa medida, uma parte da responsabilidade pelo desenvolvimento da razão e pela manutenção da integridade do eu era entregue ao indivíduo. A terapia indicada era o treino da paciência e da concentração. 

Acreditava-se que a atenção ativa e racionalmente direcionada a um objeto o tornava mais distinto e claro e era fundamental ao alcance do verdadeiro conhecimento de si e do mundo. Não por acaso, dentre todos os aspectos da atenção, Wolff elegeu a clareza como seu efeito mais importante (HATFIELD, 1998). Nas teses iluministas, conhecer era sinônimo de tornar as idéias claras e distintas. A atenção era a faculdade, o estado ou função da mente diretamente conectada a este ideal. Para Wolff (apud UHL, 1889) a clareza orientada pelo entendimento era o que distinguia a espécie humana dos demais animais e o homem guiado pelos sentidos do sábio orientado pela razão:

A atenção possibilita a clareza do conhecimento e a clareza do conhecimento distingue o homem da besta, o entendimento dos sentidos […]  a atenção é um ato da vontade que limita e concentra a consciência de acordo com  as preferências internas […] ela marca a diferença entre o ser humano e o animal (WOLFF apud UHL, 1889, p. 20).

Uhl (1889) atribuía o sucesso e a popularidade da teoria da atenção wolffiana ao seu aspecto moral. Não somente para Wolff, mas para muitos psicólogos de sua época, o indivíduo racional, consciente e atento era o fermento da civilização.

Ao tornar-se um valor moral, o dispêndio da atenção passou a ser observado, analisado e julgado. Desde os tempos antigos, era constatado que a atenção era limitada. Quando traduzido para o código moral do século XVIII, seu efeito seletivo se encaixou perfeitamente na constatação de que, de uma forma ou de outra, alguns aspectos da vida sempre seriam privilegiados sobre os outros. Para Hagner (2003) e para Franck (1998), a moral da atenção se constituiu no interior do processo de racionalização e “economização” do tempo, quando seu dispêndio passou a ser medido e julgado.

No vocabulário inglês, os usos da língua revelam dados importantes e esclarecem um pouco mais o que os autores chamam de processo de racionalização e “economização da atenção”. Antes do século XVIII, os verbos que acompanhavam o emprego da palavra atenção eram dar e emprestar. Alguém dava atenção (to give attention) para alguma coisa ou para um outro alguém; alguém emprestava atenção (to lend attention). O verbo dispor ou fornecer atenção (to afford attention) também era utilizado. Somente a partir de 1760 o termo “prestar atenção”, em seu sentido mais econômico (pay attention to), começou a ser empregado. Nesta época, as sociedades inglesas viveram um crescente processo de comercialização. Os indivíduos começavam a ser vistos como entidades comerciais e o processo de racionalização econômica e valoração moral da atenção tinha seu início1.

Na economia do tempo e da atenção que se constituía, o que deveria ser priorizado era decidido pelo pacto social. Na prática científica, o excesso de atenção e de tempo dedicado ao objeto analisado tinha como conseqüência danosa o esquecimento de todos os demais aspectos da vida, colocando em risco os valores da família e do convívio social. Esta era a acusação dirigida a muitos homens da ciência. Mas a crítica aos “cientistas excessivamente atentos” do século XVIII também direcionava-se ao objeto do ater-se. O dispêndio da atenção com um objeto banal não era tolerado. A mesma atitude atenta era aceita e vista com bons olhos quando o motivo do interesse era justificado. Este foi o caso de muitos artistas obcecados por seus objetos de criação. O ato de sua adoração era aceito e mesmo aclamado por motivos que eram, sobretudo, estéticos. O objeto do ater-se merecia o tempo e a atenção a ele dedicados.

No século XVIII, o excesso de atenção também foi assunto médico. Em 1768, o médico suíço Samuel Auguste Andre David Tissot (1728-1797) descrevia o excesso de concentração como uma doença característica de escolares e cientistas, que deveria ser prevenida já na infância (DASTON, 2000). Era necessário evitar o tipo de aprendizagem que envolvesse uma atenção prolongada da mente, sem pausas e sem distrações. Não eram poucos os relatos que exortavam que o excesso do comportamento atento, característico dos homens que se dedicavam ao trabalho intelectual e mental, levava ao sentimento de melancolia2.

O paradoxo que sustentava o julgamento médico, moral e social do gasto da atenção estava sempre presente: seu excesso era, ao mesmo tempo, indesejado e desejado. Na fisiologia da época e principalmente em Tissot, acreditava-se que a concentração da mente em uma idéia ou objeto impedia a distribuição do fluido nervoso para as outras fibras do cérebro e outras partes do corpo. Neste estado, nenhuma outra expressão externa ou interna poderia ser registrada na alma. A energia sensorial e emocional era direcionada para o único ato de concentração. Esta explicação fisiológica justificava as maravilhas e os perigos da atenção. Ao objeto atendido direcionavam-se os afetos, os sentidos e o intelecto tornando-o mais claro, distinto e belo. Mas como a atenção era vista como uma fonte limitada de energia, seus excessos levavam à falência dos sentidos. A direção unilateral e excessiva da mente era o que causava a ruína das funções corporais e a alienação do mundo natural.

 

A atenção e o objetivismo científico

A moral da atenção cresceu num terreno repleto de ambivalências. Na ciência natural do século XVIII, ela ocupava um lugar contraditório ao unir em uma mesma prática coragem, paciência, disciplina, destreza manual, prazer, sedução, renúncia, abdicação e sacrifício. No modelo do indivíduo atento, a razão, a disciplina, as emoções e o interesse criaram entre si relações diversas, não necessariamente de oposição e exclusão.

No contexto histórico da ciência psicológica de Titchener, o valor da atenção foi transformado. Ele era alimentado por dois problemas intimamente vinculados, estranhos ao cenário do século anterior e que estiveram no centro da constituição do objetivismo científico, característico da segunda metade do século XIX: a necessidade científica de separação e distinção dos aspectos subjetivos e objetivos do conhecimento e a moral vitoriana do controle e domínio dos sentimentos e dos impulsos pela força da vontade e treino da atenção.

A psicologia do século XIX também queria compreender as relações entre a atenção, a razão, a vontade, os sentimentos e as emoções, mas suas respostas foram diferentes daquelas do século anterior. O que viria primeiro? Ebbinghaus acreditava que a atenção dependia e era condicionada pelos sentimentos e interesses. Titchener (1908, p. 294), fiel seguidor do evangelho científico da época, declarou seu espanto ao deparar-se com esta posição: “Eu acreditava que o ‘interesse’ era pensado como uma condição da atenção apenas nas psicologias populares” e, acrescentaríamos, nas psicologias do século XVIII.

Na psicologia científica do século XIX e no discurso moral da época, acreditava-se que o interesse, o prazer e a emoção não eram capazes de sustentar a atenção. Eles deveriam ser substituídos pelo esforço da vontade. Para Nayrac (1906), esta não foi apenas uma substituição3. A emoção e os sentimentos são os inimigos mais sérios da atenção, dizia o autor. Eles eram seus adversários internos mais profundos com os quais não havia possibilidade de integração. Tornava-se dever moral e científico da atenção inibi-los e controlá-los. Nayrac era claro, o desenvolvimento da atenção voluntária possibilitou o desenvolvimento da ciência, era de seu exercício que o saber científico sobrevivia, se expandia, crescia. Ambas, a atenção voluntária e a prática científica, possibilitaram o domínio da natureza impulsiva e sua direção apropriada.

A moral e a ciência da época dividiam a natureza humana em duas partes. De um lado, estavam os instintos, as paixões naturais, as emoções fortes e a satisfação imediata dos desejos do corpo. Do outro, estavam a vontade, a razão e a atenção conscientemente controlada. As relações de poder e de controle traçadas entre estas partes do eu definiam o caráter do indivíduo, seu estado de saúde e de doença e seu lugar na escala moral e social. O objetivismo científico também dependia desta separação: os aspectos subjetivos do eu deveriam ser suprimidos e controlados e esta era a tarefa da atenção voluntária.

Mas se o esforço, a vontade e a atenção estiveram sempre juntos na psicologia do século XIX, nunca houve um consenso sobre os seus significados. O discurso científico e moral dominante era o do poder da vontade racional, mas sua soberania também foi ameaçada. As pesquisas neurofisiológicas argumentavam que as funções mentais complexas, dentre elas a atenção voluntária, não eram completamente dependentes dos estados conscientes e racionais. O controle do comportamento era entregue à função cerebral inibitória.

Outras vozes vindas das análises da fisiologia, dos estudos da percepção e dos sentidos buscavam romper com a oposição entre as esferas voluntárias e automáticas da atenção por outras vias. Mas da pluralidade das teorias da atenção, no discurso sobre suas disfunções, predominou uma explicação ambígua, que unia seus determinismos naturais ao seu poder espiritual e moral. Na aparente contradição entre estes pontos de vista havia um consenso: a vida era descrita como um processo adaptativo no qual as relações internas deveriam ser ajustadas às relações externas. A patologia moral, mental ou cerebral era uma reação negativa e ineficiente do corpo ou da alma ao mundo externo, caracterizada pela falência moral e fisiológica da vontade e da atenção.

Foi no contexto acima descrito que a impulsividade e a falta de autocontrole começaram a ser vistos como signos patológicos, indícios de uma adaptação ineficiente e moralmente negativa. Os indivíduos desatentos, distraídos, impulsivos e descontrolados passavam a ter algo em comum: eles eram os inaptos, incapazes de inibir e de controlar seu próprio corpo. O elogio às atitudes comedidas e prudentes e à capacidade de autocontrole não foi específico do século XIX. Mas foi ao longo deste século que a neurofisiologia da atenção e da inibição proporcionou as bases científicas e naturais para o significado religioso, moral e político do auto-controle.

 

Os corpos da atenção

Da análise panorâmica do tema da atenção, na psicologia filosófica do século XVIII, pelo menos três aspectos devem ser ressaltados: 1) como ato mental, ela garantia a clareza necessária ao conhecimento racional; 2) como uma função ou um estado da consciência, ela era a força ativa do processo de integração do eu; 3) por ser prioritariamente um estado ou uma função psíquica, seus atributos fisiológicos eram quase desconsiderados.

No diagnóstico de Uhl (1889), até o século XVIII, a fisiologia da atenção foi pouco destacada, enquanto seu aspecto psíquico e espiritual sempre foi realçado. Este é um aspecto relevante quando observamos a importância concedida à sua fisiologia no século XIX. O corpo da atenção foi colocado no centro de seu debate. A “ciência natural” da alma, que pouco dizia sobre os aspectos corporais, estreitava seu diálogo com as ciências fisiológicas e biológicas.

Para Young (1970), estava em voga o início de um processo de biologização e fisiologização da psicologia. Pelo menos quatro linhas de pensamento e de práticas o impulsionaram: as teorias da localização cerebral e suas suposições sobre a organização funcional do cérebro; a defesa da sensação e do movimento como categorias centrais na análise fisiológica do sistema nervoso; a crença que o princípio de associação de idéias era a lei fundamental da atividade mental; a mudança de ênfase de uma psicologia informada pela filosofia para a psicologia fisiológica de bases evolucionistas e dinâmicas.

O processo de encarnação da psicologia iniciado na virada do século XVIII para o XIX não significou apenas a consideração do papel ativo do corpo na constituição do conhecimento. Um outro deslocamento não menos importante se iniciava: o que precisava ser explicado pela psicologia não era mais (ou não somente) a representação da realidade pela mente, mas o processo de adaptação, vivido por corpos psicodinâmicos que pensavam e sentiam. Através de percursos analíticos distintos, mas complementares, Starobinski (2001), Joas (1996) e Berrios (1995, 1996) demonstram que, no século XIX, a vida passou a ser compreendida prioritariamente como um fenômeno de reação do corpo e da mente às demandas ambientais e sociais. Mesmo os projetos de resistência às tentativas de normatização do corpo apoiaram-se em propostas reativas.

No estilo de vida que passava a ser caracterizado pela conformação e adaptação do corpo às condições políticas, econômicas e sociais emergentes e pelos projetos de resistência a essa adaptação, o problema da atenção e da dispersão ganhava evidência e importância. O corpo, na maior parte das teorias fisiológicas e psicológicas, deveria modificar e controlar seus impulsos e necessidades naturais de acordo com as exigências externas. Era preciso revelar os mecanismos responsáveis pela adaptação da ação humana ao mundo físico, político e social da época e a atenção logo seria vista como um deles. A partir de então, o corpo atentivo esteve na base dos projetos sociais e estéticos de normatização e de liberação da subjetividade.

Os meios de controle e gestão da atenção eram tecnologias subjetivas extremamente potentes e foram usadas para fins diversos. Na esfera urbana que se constituía, o desenvolvimento da atenção racional e voluntária, da capacidade de focalização e concentração da mente e de controle do corpo era visto como necessário à integração do eu, fragmentado pelos excessos da vida metropolitana. Contra esta exigência, filósofos, artistas e poetas acreditavam que a distração e a expressão livre da natureza humana deveriam estar na base do novo fazer artístico e estético. Contra as exigências da atenção, a distração era instigada; contra o projeto adaptativo, a resistência às normas; em oposição à ação racional, a expressão das emoções e dos sentimentos naturais era exaltada.

Mas se podemos falar que o processo de corporificação da atenção nasceu e se desenvolveu ao logo do século XIX, ele não foi linear. Em sua fase inicial, o debate sobre a atenção foi fortemente influenciado pelas teorias psicológicas, filosóficas e teológicas do século anterior. Esta foi a fase integracionista do processo de naturalização da mente, quando as teses metafísicas e cristãs não eram separadas das teorias fisiológicas. Nos estudos neurofisiológicos, a busca era também de integração. A noção que a mente existia como um ente separado e diferente do resto do mundo material deveria ser abandonada, sem que sua esfera ativa e indeterminada fosse colocada em risco (SMITH, 1973; CLARKE; JACYNA, 1987; DANZIGER, 1982). A vontade livre ganhou um corpo, mas este não era um corpo determinado pelas leis naturais e físicas. Nos estudos integracionistas do início do século XIX, em certo sentido, as faces corporais e espirituais da atenção não se opunham e a separação entre suas esferas objetivas e subjetivas não era uma exigência científica.

Na descrição da psicologia do século XVIII, o esforço necessário à manutenção da atenção e à fixação da mente era descrito como uma ação racional da alma (ou da mente) sobre si mesma, inspirada pela vontade de Deus, pela razão ou por uma entidade metafísica. No início do século XIX, outras interpretações surgiram na pesquisa fisiológica dos sentidos e da percepção. Uma parte das teorias do esforço descreviam-no como uma força muscular, um “sentido de movimento” ou um “sentimento corporal de ter agido”. O esforço necessário à direção da mente e ao controle da ação estava, de alguma forma, relacionado à materialidade corporal, era dela dependente e nela interferia (DEWEY, 1897; SMITH, 1973 ; BERTRANDE, 1889).

Para muitos, como Maine de Biran, esta era uma materialidade controlada por uma força natural e vital, ativamente presente em todos os seres da cadeia viva (SMITH, 1973). Nestas descrições, o corpo não era visto como uma esfera natural reativa que deveria se adaptar às exigências de um mundo a ele externo e distinto. Um corpo relacional e cinestésico era colocado na base da subjetividade e do eu. No final do século XIX, foram estas análises naturalistas integracionistas que inspiraram o pragmatismo americano de William James e a filosofia de Henri Bergson.

O século XIX propiciou que as esferas normatizadas e livres da vida fossem colocadas em oposição. Ao mesmo tempo, ambas foram descritas como fenômenos reativos. Mas no rico cenário político, econômico, estético e epistemológico da época, outras propostas se desenvolveram. Para Joas (1996) e para Crary (1999), neste século foram experienciadas formas extremamente ricas e plurais de experimentação do corpo e da percepção. No eixo intelectual destas experiências, a filosofia de vida européia e o pragmatismo americano defendiam a existência de uma dimensão criadora em toda ação humana. Em ambas, era estabelecido um outro vínculo entre atenção, ação e criação. Nestas filosofias, a atenção não era necessariamente oposta à distração e a adaptação não impedia e não limitava a dimensão criadora da vida. A atenção era analisada no espaço paradoxal a ela outorgado pelos dilemas do mundo moderno: ela possibilitava o pertencimento do indivíduo ao mundo social e moral, mas também permitia que ele, o indivíduo, o modificasse de forma criadora, agindo no mundo e sendo por ele transformado.

 

Os modelos da atenção

Crary (1999) identifica pelo menos três modelos de manejo e de descrição da atenção que se distinguiram a partir da segunda metade do século XIX: o modelo reflexo, que a descrevia e a analisava como um ato mecânico e automático; o modelo inconsciente, que oscilava entre considerá-la um resultado e um efeito das funções neurofisiológicas centrais e de causas inconscientes desconhecidas; o modelo da ação, proposto pelo pragmatismo americano e pela filosofia de vida francesa que acreditava na possibilidade de colaboração e integração entre as esferas automáticas e voluntárias da atenção4.

Pillsbury (1908) distinguia seis vertentes teóricas, não necessariamente opostas aos modelos de Crary, mas mais específicas. Na classificação do autor, para alguns psicólogos, ela era uma sensação corporal intensa, causada pelas qualidades de certos objetos. James Mill estaria incluído nesta corrente. Para outros, como Alexander Bain, ela era condicionada pelos sentimentos de dor e prazer. Ribot a fez dependente do movimento motor e, na corrente mais espiritualista, ela era identificada à vontade imaterial ou a um agente inconsciente que, escondido em algum lugar fora da consciência, a controlava e a dirigia. Por outro lado, havia os que a vinculavam necessariamente à consciência.

Em seu Dicionário de Filosofia e Psicologia, Baldwin (1905) distinguia também o modelo inibitório da atenção, estritamente neurofisiológico e localizacionista, representado principalmente por David Ferrier. Este foi o modelo que mais influenciou os estudos das patologias da atenção e da vontade. A ciência da época dizia que a energia corporal e mental era limitada. No processo de adaptação do indivíduo ao mundo, ela deveria ser economizada, drenada e bem direcionada.  Todo gasto indevido, tornava-se um desperdício perigoso que deveria ser inibido, regulado, controlado.

Pillsbury (1908) acusava todos os pontos de vista listados de serem reducionistas. Cada um deles elegeu um elemento da fenomenologia da atenção e dele derivou sua causa primordial. O autor incluía sua própria teoria em um outro grupo. Nele, todos os aspectos da atenção eram considerados. Como um estado, ela era clareza. Como uma causa, ela era a expressão de todas as coisas que o indivíduo havia experimentado e conhecido em sua vida, acompanhada de sentimentos de interesse, de esforço e de movimento. Para compreendê-la, as disposições biológicas deveriam ser consideradas bem como o processo educativo e social vivido pelo indivíduo. Para Pillsbury, as condições que definiam, direcionavam e controlavam a atenção eram idênticas àquelas que determinavam a identidade pessoal. A atenção confundia-se com o ser, era por ele determinada e, ao mesmo tempo, participava da sua determinação.

Uma classificação completa dos modelos teóricos e práticos da atenção da segunda metade do século XIX não terminaria por aqui. Em quase todo manual de psicologia, um capítulo era reservado ao seu estudo. O tema era também discutido no interior de outros tópicos importantes como a memória, o hábito, a vontade, o pensamento e o eu. O interesse pelo assunto também extrapolava o campo psicológico e invadia as esferas educacionais, legais, médicas, artísticas, políticas e econômicas.

Ao descrever o cenário dos estudos da atenção, Dewey (1897, p. 56) atacava criticamente o atencionismo característico da época: “Se escapamos do domínio do associacionismo somente para cairmos no atencionismo, nós dificilmente melhoramos nossa condição na psicologia”. Mas a critica de Dewey não foi suficiente para finalizar a história da constituição dos valores e da moral da atenção. No século XX, principalmente a partir dos anos 70, o interesse pela atenção foi resgatado, fortalecido e transformado pelas novas ciências cognitivas e cerebrais. No interior destas ciências e especificamente nas teorias psiquiátricas dominantes sobre o TDAH, o modelo inibitório neurofisiológico da atenção ganhou espaço e se tornou hegemônico: os corpos da atenção foram reduzidos ao corpo cerebral e suas formas e funções atadas ao culto da performance. Na nova economia biomédica da atenção, presenciamos a expansão de um novo “atencionismo” muito menos plural e diverso do que aquele um dia criticado por Dewey: o “atencionismo” tarefista das funções e localizações cerebrais.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Luciana Vieira Caliman
E-mail: caliman@mpiwg-berlin.mpg.de

Recebido em: 08/10/2007
Aceito para publicação em: 08/10/2008
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald

 

 

Notas

* Doutora e Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Especialista em Saúde Mental pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ).
1 Agradecemos particularmente à Ciàran McMahon pelas informações sobre a história do conceito de atenção e seus usos na língua inglesa.
2 Samuel Auguste Andre David Tissot foi um dos mais famosos médicos do Iluminismo. Em suas descrições médicas, as doenças eram predominantemente “nervosas“ e afetavam a relação entre a alma e o corpo. Ele descrevia a doença dos sábios (Gens de lettres) como uma monopolização dos nervos pela alma, causada pelo trabalho excessivo da mente (VIDAL, 2004). Na análise de Daston (2000), a descrição médica de Tissot e a constatação popular sobre os perigos dos excessos da atenção podem ser vistas como os primeiros indícios da patologização da atenção.
3 Paul Nayrac não é um nome de destaque na história da psicologia, mas sua monografia sobre a atenção reuniu boa parte da literatura sobre o assunto produzida nas últimas duas décadas do século XIX. Seu trabalho nos é valioso por oferecer uma análise geral do ponto de vista sobre a atenção mais aceito e divulgado em sua época.
4 A classificação de Crary abrange apenas as teorias da atenção da segunda metade do século XIX. Quando o autor se refere ao modelo reflexo, por exemplo, os estudos da primeira metade do século são desconsiderados. Como Clarke e Jacyna (1987) comentam, naquela época, as teorias reflexas explicavam apenas a ação simpática e não incluíam as funções mais altas do sistema nervoso. Estas, como a vontade, eram reguladas por um princípio imaterial e metafísico. Naquela época, as teorias reflexas não excluíam a possibilidade de um princípio inconsciente regulador das ações mais complexas. Somente na segunda metade do século esta separação foi rompida e o reflexo foi visto como a unidade fundamental de toda ação humana.

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