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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.8 no.3 Rio de Janeiro Dec. 2008

 

ARTIGOS

 

O acompanhamento terapêutico no cuidado em saúde mental

 

Therapeutic accompaniment at mental health care

 

 

Thaís Azevedo I; Magda Dimenstein II, *

I Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN - Rio Grande do Norte, Brasil
II Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN - Rio Grande do Norte, Brasil
Pesquisadora do CNPq

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho objetivou investigar as demandas de portadores de transtornos mentais (PTM) no processo de reabilitação psicossocial referentes aos cuidados cotidianos, à relação com a comunidade, à ida ao ambulatório e circulação na cidade. Além disso, conhecer as dificuldades vividas pelo familiar (cuidador) nesse processo e em que medida se beneficiaria com o auxílio do acompanhamento terapêutico/AT. O AT consiste em uma prática exercida para além dos espaços fechados do hospital, geralmente em locais públicos da cidade. Isto é, a rua como espaço clínico do AT diminuiria o tempo de permanência dos usuários em casa e sua dependência em relação aos cuidadores, os quais têm a responsabilidade compartilhada com o AT. A função de passagem desta prática contribuiria também para desconstrução de figuras já cronificadas pelo usuário e produção de novos horizontes, isto é, experienciar acontecimentos.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, Saúde mental, Acompanhamento terapêutico, Cuidados familiares.


ABSTRACT

The aim of this study was to investigate the demand of patients with mental disorders (PTM) in the process of pyschosocial rehabilitation and what it concerns to daily care, the relationship with society, the setting out to the clinic and the traffic around the city. Besides that, knowing their relatives’ (caregiver) difficulties in this process and how much the therapeutic accompaniment/TA would aid them. The TA consists in a practice done beyond the indoor hospital spaces, usually in public places of the city. It means that the street, as a therapeutic space of the TA, would decrease the time spent by the usuaries at home and the dependence about their caregivers, which have the responsibilities shared with the TA. The passage function of this practice would also contribute to disconstruct pictures already established by the usuary and the production of new ranges of perception, which means, to experience events.

Keywords: Psychiatric reform, Mental health, Therapeutic accompaniment, Family care.


 

 

Introdução

A reforma psiquiátrica no Brasil vem interferindo em práticas e serviços tradicionais do campo com vistas à produção de novas formas de cuidado em saúde mental. A redução de leitos é evidente, entretanto, a matriz dessa proposta está na desconstrução do saber psiquiátrico acerca da loucura, bastante consolidado na sociedade, o qual limita a vivência do portador de transtorno mental/PTM e o exercício de sua cidadania, comprometendo, portanto, seu convívio em sociedade.

Nesse contexto, a família é a esfera mais próxima do PTM e comumente convocada a partilhar dos cuidados juntamente com os profissionais. Porém, a literatura aponta uma sobrecarga sentida por parte destes familiares em atender às demandas de cuidado, acarretando muitas vezes a intensificação do transtorno e o histórico de reinternações (ROSA, 2003). Tal contingência estaria comprometendo um elo fundamental à reabilitação: o apoio familiar, uma vez que a família é um dos eixos de sustentabilidade da proposta de reinserção psicossocial. Visto que a prática do Acompanhamento Terapêutico/AT é pouco difundida, investir em tal recurso é valorizar um instrumento clínico e político (PALOMBINI, 2006b), uma vez que o AT permite a circulação do PTM no espaço da cidade dando visibilidade ao estigma da loucura que marginaliza e o exclui desse espaço.

Não faz muito tempo, o trabalho em saúde mental era referenciado somente aos manicômios, às crises psiquiátricas, ambientes carcerários e segregação social, etc. (AMARANTE, 2007, p.19). No entanto, tal perspectiva vem sofrendo mudanças significativas ao longo dos anos através de inúmeras iniciativas de reforma psiquiátrica espalhadas pelo mundo, sendo as mais conhecidas as Comunidades Terapêuticas e a Antipsiquiatria (na Inglaterra); a Psiquiatria Institucional e de Setor (na França); Psiquiatria Preventiva (América do Norte) e a Psiquiatria Democrática (Itália). Estes Movimentos questionaram a internação e isolamento social do louco como intervenções únicas (pautados na visão de inaptidão civil do paciente) e, conseqüentemente, exerceram demasiada influência na construção de alternativas aos modelos asilares e hegemônicos no Brasil (SIMÕES, 2005).

No Brasil, segundo Amarante (2007), dentre as inúmeras estratégias e dispositivos implementados no sentido de composição de um novo cenário de cuidados em saúde mental, houve uma redução de quarenta mil leitos hospitalares na última década (p.103). No entanto, Delgado e Weber (2007) afirmam que a diminuição do número de leitos não se traduziu em uma redução do financiamento para a saúde mental, havendo então um menor gasto com os hospitais psiquiátricos e um aumento das despesas extra-hospitalares (abertura e manutenção de serviços substitutivos), de maneira tal que os gastos totais em saúde mental aumentaram. Tais investimentos são em parte destinados à implementação e manutenção de CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), Residências Terapêuticas, ambulatórios na rede básica de saúde, dentre outros serviços substitutivos, que cresceram de forma importante desde o início dessa década (Ministério da Saúde, 2005).

Entretanto, a superação dos manicômios e edificação de tais serviços não pode se resumir a uma oferta de ambiente mais harmonioso, uma tentativa de esquivar os usuários das (re)internações, ou ainda fazer dos hospitais uma alternativa aos casos que não consigam tratar (recorrer em última instância), pois tal recorte “reduz o processo [reforma] à mera reestruturação de serviços; [...] essa transformação não deve ser o objeto em si, e sim conseqüência de princípios e estratégias que lhes são anteriores” (AMARANTE, 2007, p.63).

O autor refere-se às estratégias que contemplem a dimensão social desse processo. Isto é, que não atinjam somente os profissionais do campo de saúde mental, mas que sejam estendidos à sociedade e repercuta em seus pensamentos (posturas), atitudes e relações sociais.  Não obstante, esta repercussão potencializaria as formas singulares de tratamento propostas pelos serviços para a reabilitação do paciente, bem como a emancipação e reinserção do mesmo na sociedade. Tais perspectivas são almejadas também pelo propósito do Acompanhamento Terapêutico (FIORATI, 2006). Segundo Pitiá e Santos (2006),

O trabalho do terapeuta AT é uma forma de acolhimento que opera na produção da (re)colocação do sujeito na realidade urbana, encontrando espaços onde a cidade incorpora a conexão da pessoa à sua organização psíquica e à dinâmica social. As saídas pela cidade, preferencialmente fora dos lugares conhecidos do paciente e já cristalizados pelo hábito, aumentam suas possibilidades de concretizar articulações no social, como sujeitos que exercitam sua potencialidade vital (p. 3).

Historicamente, a base teórica do AT é psicanalítica, entretanto, estudos recentes já abordam o acompanhamento terapêutico sob a ótica da terapia comportamental (LONDERO; PACHECO, 2006) e psicoterapia corporal (PITIÁ, 2004). De acordo com Simões (2005), a Clínica Pinel (Porto Alegre-RS), instituição privada e inspirada no tratamento oferecido nas Comunidades Terapêuticas inglesas (reestruturação da dinâmica institucional, participação dos pacientes nas medidas adotadas), dispunha de “atendentes psiquiátricos”, os quais atuavam dentro da instituição, coordenando atividades juntamente com outros profissionais e acompanhavam os pacientes pelas ruas ou ao retorno de suas casas em meio ao regime de hospital-dia dos mesmos. Semelhante a esse trabalho, desenvolveu-se o “auxiliar psiquiátrico” na Clínica Villa Pinheiros (Rio de Janeiro-RJ). Com o fechamento da mesma e suspensão das comunidades terapêuticas no final da década de 70, o auxiliar psiquiátrico era requisitado por psiquiatras e psicanalistas para complementar seus tratamentos e evitar possíveis internações. Baseado nessas experiências anteriores e com vistas à interação social de seus pacientes, surge a figura de “amigo qualificado” no Instituto A Casa (São Paulo&SP), o qual constitui hoje o acompanhante terapêutico. A nomenclatura de “amigo qualificado” distanciava-se do teor político que emblema a psiquiatria social no AT, sua nomenclatura atual (ARAÚJO, 2006).

O AT não exige uma formação acadêmica específica para seu exercício, podendo ser realizado por trabalhadores de categorias distintas: de servidores de nível médio, a enfermeiros, psicólogos etc. (SIMÕES, 2005; FIORATI, 2006). Está inserido tanto em serviços de ordem pública, nos CAPS, por exemplo, quanto privada, a pedido de um psicólogo clínico, como relata Simões (2005) na sua primeira experiência como acompanhante terapêutica.

Viabilizando a circulação do PTM no espaço da cidade e, portanto, dando visibilidade ao estigma da loucura que o marginaliza e o exclui desse espaço, é imprescindível que a instrumentalidade política e clínica do AT sejam ressaltadas. Para tanto, sua prática abrange

efeitos clínicos que a cidade em sua forma de se organizar produz nas pessoas que acompanhamos, assim como efeitos políticos que a presença e o contato com pessoas antes impedidas de circular pela cidade produz nessa própria cidade (ARAÚJO, 2006, p.79).

Palombini (2006b) encontra em Foucault a definição de dispositivo como encadeamento de “discursos, instituições [...], leis, enunciados científicos” (FOUCAULT, 1979, p. 244) para conceituar o AT enquanto tal, uma vez que é atravessado por elementos que articulam loucura e sociedade. Nesse sentido, acompanhar o usuário é também uma forma de acompanhar a implantação da reforma, seja por evidenciar a disposição e funcionamento dos serviços substitutivos na rede pública, como também por vivenciar a desinstitucionalização da loucura em seu entorno e nos espaços públicos da cidade (PALOMBINI, 2006b).

O Acompanhamento Terapêutico constitui-se, então, em um dispositivo da reforma, que busca intervir na vida de pessoas com o intuito de retomar o movimento e a circulação social (PITIÁ, 2004). O setting terapêuticoé a rua, configurando assim a “clínica em movimento” definida por Palombini (2004a), ao propor que tal modalidade pode contribuir para a convergência entre a experiência social de tempo e espaço. Concatenar tais instâncias é também cumprir com a “função de passagem” da clínica no acompanhamento, discutida por Araújo (2006). O passeio pela cidade, pelos diálogos, paisagens, favorecem a passagem de sentidos, re-arranjo de fragmentos, formação de figuras, mesmo que para isso outras tenham de ser desconstruídas. O autor aborda ainda o conceito de acontecimento em Deleuze1, segundo o qual quando um sentido transita de um estado a outro, há um acontecimento:

o acontecimento é então o exprimível da passagem de um estado de coisas a um outro estado de coisas [...] (logo) o sentido que surge das passagens faz com que esses passeios façam a diferença [...] (de modo que) é acompanhando a pessoa que acompanhamos também o surgimento do sentido, e mais fundamentalmente, as mudanças de sentido (ARAÚJO, 2006, p. 49-51).

Embora o AT reivindique o estatuto de clínica para si e enquanto dispositivo coloque a própria clínica em questão, é preciso um mínimo de técnica para um máximo de acontecimento (ARAÚJO, 2006). A literatura de certos acompanhamentos aponta para casos em que atentar para objetos do lar (desmerecidos de atenção pelo cotidiano), peculiaridades das ruas, sons, são aspectos em potencial para encontrar um mundo mínimo de referências e evocar acontecimentos (ARAÚJO, 2006; GRUPO TRAMA, 1997). Desta forma, o cotidiano e ambiente natural do acompanhado também compõem o setting do AT, o que o incita a atuar também junto às famílias, auxiliando-as no cuidado e na convivência entre seus membros perante um dos seus membros identificado como portador de transtorno mental. Nesse sentido, o dispositivo em questão diminui o tempo de permanência dos usuários em casa e a dependência dos mesmos em relação aos cuidadores, os quais têm a responsabilidade compartilhada com o AT (aliviando a sobrecarga familiar).

Comumente, em virtude do despreparo familiar diante do transtorno mental, tal cuidado propicia atitudes desorientadas ou até mesmo o abandono do PTM nas instituições (re-internação), culminando na intensificação da crise quando a família, enquanto suporte, poderia amenizá-la (FIORATI, 2006; ROSA, 2003). A inserção do AT nestas circunstâncias adquire grande importância, corroborada por Londero e Pacheco (2006), ao afirmarem que “o AT pode servir até mesmo como modelo de identificação no que diz respeito ao manejo do paciente, demonstrando (à família) condutas mais adequadas que facilitem a melhora de seu quadro” (p. 264).

Diante disso, realizamos uma investigação2 junto a usuários de um serviço substitutivo da rede de saúde mental do município de Natal/RN e seus respectivos familiares. Ela teve por objetivos investigar: 1) Que demandas os portadores de transtornos mentais (PTM) têm no processo de reabilitação psicossocial referentes aos cuidados cotidianos, relação com a comunidade, ida ao ambulatório e circulação na cidade; 2) Quais as dificuldades vividas pelo familiar (cuidador) nesse processo e em que medida se beneficiaria com o auxílio do acompanhamento terapêutico/AT.

 

Metodologia

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 03 usuários (duas mulheres e um homem; faixa etária entre 42 e 46 anos) do Ambulatório de Saúde Mental, situado no Centro Clínico Dr. José Carlos Passos, em Natal-RN e 03 familiares identificados como o cuidador: um irmão e duas mães (faixa etária entre 52 e 64 anos). A escolha dos usuários teve como critério a evidência de histórico de internação psiquiátrica. Como instrumentos de coleta de dados foram utilizados dois roteiros: um para familiares, outro para os usuários. Realizamos uma pesquisa piloto no Hospital Psiquiátrico João Machado (unidade de referência no RN em tratamento psiquiátrico), para auxiliar na confecção definitiva do roteiro de questões, os quais abordaram os seguintes pontos:

 

Roteiro 1 & Família

• Atividades do cuidador e dos outros membros familiares perante o PTM

• O que gostaria que o PTM fizesse sozinho e não o faz

• Que dificuldades os cuidadores sentem no cuidado cotidiano (higiene, medicação etc.). O que poderia ajudá-los?

• Como o cuidador lida com as dificuldades da dinâmica familiar perante o PTM (eventualidade de conflitos, aversão a outros membros, eclosão de crises).

• O cuidador promove interação do PTM com comunidade, vizinhos, familiares? (se sim, como; se não, por que evita?).

• Quem se responsabiliza pela locomoção do usuário até o ambulatório? (como o faz; com que freqüência; empecilhos; já deixou de levá-lo, por quê?).

 

Roteiro 2 - Usuários & PTM

• O que mais gosta de fazer e não o faz? Por quê?

• Que atividades tem vontade de fazer sozinho?

• Como se sente na relação com a família?

• Sente falta de alguém para ajudá-lo? Em que?

• Tem amigos? Quem são?

• Vai sozinho para algum lugar? Se sim, quais? Se não, por quê?

• O que acha do tratamento do ambulatório? (freqüência, o que faz).

 

Resultados:

Quanto à ida ao ambulatório, os usuários mostraram-se independentes, exceto na eventualidade de consultas clínicas, em que requisitam a presença do cuidador para dar informações mais específicas acerca de sua saúde. No tocante aos cuidados cotidianos, os usuários relatam sua autonomia no asseio, em se vestir e em administrar sua medicação, embora reconheçam a dificuldade em realizar tais tarefas quando estão em crise. Apesar de estarem aptos à circulação na cidade, alguns não se sentem motivados para tal, assumindo uma postura de dependência e ficam ociosos no cotidiano que contribui para sua auto-depreciação: “Eu me sinto inútil, sem fazer nada” (Usuário B) ou “Me sinto incapaz de aprender as coisas [...] eu sou burra mesmo” (Usuária C).

Outros o fazem, entretanto, gera preocupação para seus cuidadores quanto à segurança em virtude da rejeição de seu entorno (devido ao transtorno) e das adversidades do trânsito. A relação dos usuários entrevistados com a comunidade é quase inexistente, restringindo seu contato social aos membros da família, o que acarreta maior dependência em relação aos familiares e requer demasiada atenção dos mesmos.

A respeito da relação com a família, os usuários atualmente sentem-se bem no ambiente familiar, entretanto relatam momentos de desconforto quanto a episódios de maus tratos ou ignorância perante a eclosão das crises, referindo-se, principalmente, aos familiares que os internaram (em geral um parente que apesar de sua inserção na casa, não se envolve diretamente no cuidado).

Quanto ao ambulatório, apenas um dos usuários é envolvido com as atividades e programações do referido serviço (reuniões, oficinas, trabalhos artísticos, por exemplo), mostrando apreço e motivação em freqüentá-lo, especialmente pelo estabelecimento de amizades no local. Os outros dois participantes da pesquisa freqüentam o serviço apenas por retorno às consultas psiquiátricas, pois alegam indisposição ou incapacidade para participarem daquelas atividades propostas pelo ambulatório. Estes últimos revelam atividades prazerosas e presença de amigos em um tempo passado e longínquo, com dificuldade em resgatá-los. Não obstante, almejar fazer algo comumente inclui alguém da família (cuidador ou não): “queria fazer hidroginástica, aí botar mãe para fazer comigo” (Usuário C), excetuando-se situações em que gostam de estar sozinhos (todos citam “compras”, por exemplo).

As atividades de cuidado dos familiares entrevistados remetem-se a prover atenção contínua (por vezes de vigilância) aos PTM, comumente concentrada na figura do cuidador; outros membros são citados, mas não envolvidos tanto quanto os primeiros (contribuem em eventual ausência daquele). Os cuidadores entrevistados, apesar de incomodados com a ociosidade dos PTM em casa, tentam amenizá-la, convidando-os a participarem dos afazeres domésticos (lavar louça, varrer a casa) ou “equipando” o quarto do usuário com aparelhos de entretenimento (tv, som, dvd). Esta última, enquanto maneira do cuidador lidar com as dificuldades da dinâmica familiar perante o PTM, é relatada também como uma forma de preservar o espaço do PTM e protegê-los de possíveis conflitos deste com os demais moradores da casa, atitude esta que o exclui da dinâmica familiar de divisão de trabalho ou espaços do lar (que poderiam ser comum uso e incentivar a convivência), dificultando a já restrita interação social do PTM, visto que poucos têm envolvimento com a comunidade ou existência de amigos.

As dificuldades ao cuidado diário são reportadas com veemência aos momentos de crises dos PTM em que a autonomia deste (corroborada em seus relatos) é comprometida e, para tanto, convoca o cuidador a responsabilizar-se pelo asseio, ministrar a medicação, conduzi-los até o ambulatório, etc. Para os familiares, a sobrecarga é bastante evidente, expressa sob diferentes aspectos. Do ponto de vista emocional, a demanda por uma atenção contínua (PTM estando ou não em crise) dota o cuidador de uma responsabilidade exacerbada, que acomete seu bem-estar psíquico e requer uma abdicação de suas atividades de lazer: “Nenhum dos irmãos me acompanha, (chora) eu me viro sozinha e já vivo fraca [...] trabalhei tanto e ainda vim, mas nenhum deles liga de visitar ele (Familiar)”.

“Às vezes eu quero ir para o meu interior e não vou porque não tem quem cuide dele (Familiar B)”.

O encargo financeiro é relevante e aqueles PTM que não possuem aposentadoria contam com a restrita renda do cuidador (que já depende financeiramente de outrem). Mesmo nos casos em que o PTM é aposentado, o orçamento familiar é comprometido em virtude do cuidador ficar afastado do seu posto de trabalho:“Estou sem trabalho [...] o quadro lá de casa atrapalhou meu desempenho [...] minha dedicação é quase exclusiva a eles” (Familiar A).

Fisicamente, sua própria saúde é posta em risco devido ao cuidado intenso: “teve um tempo que de tanto eu cuidar deles eu fiquei doente, só vivia chorando” (Familiar C). Observamos, pois, que a participação da família no cuidado se intensifica ao ponto de sobrecarregar aqueles que mais se implicam no tratamento. Todavia, os serviços (bem como a formação acadêmica dos profissionais que o compõem), em sua maioria, não dispõem de intervenções direcionadas a essa clientela (MELMAN, 1959).

Nesse contexto, Campos e Soares (2005) indicam que “há uma sobrecarga que não está sendo tratada, da qual ninguém se ocupa. A desinstitucionalização chama as famílias a participar, mas não cria mecanismos que ajudem a aliviar a sobrecarga” (p. 234), ressaltando assim a demanda por estratégias da reforma que contemplem também estes familiares, ou seja, que os auxilie na promoção dos cuidados básicos e a exercer seu papel primordial de favorecer a ressocialização.

Sobre esse processo, é na família que se edifica o primeiro papel social a ser exercido pelo indivíduo, o de filho; papel pelo qual tomamos conhecimento de normas basilares da vida em sociedade e arrimamos outros papéis sociais (da profissão, cônjuge, estudante, cidadão, etc.) adquiridos no curso da socialização (REIS, 1984). Entretanto, esses “outros papéis” podem ter seu exercício prejudicado em virtude do transtorno e da falta de orientação do cuidador para manutenção dos mesmos, acarretando a supressão daqueles papéis ainda “remanescentes” (não estimulando ou privando-os do exercício dos mesmos). Enquanto mediadora da socialização de seus membros (REIS, 1984), a família tem esta responsabilidade ampliada quando há um comprometimento da saúde mental de algum membro. Na pesquisa, corroborando este fato, a socialização dos usuários se resume à retaguarda do lar, já que a relação dos mesmos com a comunidade encontra-se incipiente e restrita aos membros da família.

O esfacelamento do aparato institucional e de toda a sua infra-estrutura devolve à família uma parcela da responsabilidade pelo cuidado dos PTM; dado o momento em que este recebe a alta hospitalar, o cuidador acaba por responsabilizar-se pela manutenção do tratamento (medicação), levando-o periodicamente ao serviço ao qual foi encaminhado e provendo-o de cuidados básicos no período em que ele não está no serviço. Na eclosão das crises é comum que os cuidadores se sintam desamparados e incapazes para compreender a vivência da doença do outro; é o momento também em que comumente recorrem à internação e deparam-se com profissionais presos aos sintomas, quando na verdade deveriam (também) estar a serviço da subjetividade dos familiares (visto que esta) sugere a estratégia de procurar conhecê-los de uma maneira mais global e abrangente [...] (possibilitando) desenvolver modalidades de cuidado mais Não havendo a abrangência desse acolhimento ao familiar e a responsabilidade do cuidado concentrando-se em um único membro, este, não obstante, experiencia o campo da sobrecarga familiar sobre diferentes instâncias, sendo mais freqüente a financeira, a emocional (subjetiva) e a física (CAMPOS; SOARES, 2005; MELMAN, 1959; PEGORARO; CALDANA, 2006; ROMAGNOLI, 2006).

No que se refere aos encargos financeiros, “o portador de doença mental ou é um sustentáculo da renda familiar (quando é beneficiado ou aposentado) ou é um peso a mais, para usufruir os escassos recursos existentes” (ROMAGNOLI, 2006). Sobre esse último, uma das cuidadoras entrevistadas relata a dificuldade de ser sustentada por um dos filhos e ainda lançar mão deste auxílio para ajudar o irmão doente (o qual não reside com ela e desde a eclosão das crises encontra-se desempregado): “Eu que dou de comer, de vestir e de calçar. [...] Eu tenho muita vontade de aposentar ele pra ver se melhora pra mim as condições, porque assim não dá”, relata.

Sobre a tensão da família perante a improdutividade do doente mental, Gonçalves e Sena (2001) discutem que “numa sociedade competitiva, sob a égide do modo de produção capitalista, aquele que não produz [...] e carrega o estigma de ser doente mental, não tem inserção social e passa a ser visto como improdutivo, inútil, sem cidadania” (p.52). Comumente, segundo Campos e Soares (2005), alguns familiares deixam seus empregos para se dedicarem ao cuidado do PTM, evidenciado pelo entrevistado:

mamãe sempre chamando pra levar um pra internar, resolver as coisas e isso foi me tirando da melhora de rendimento onde eu tava (trabalho). [...] Hoje, (afastado do emprego) eu administro a pensão que ela (mãe) tem e na minha necessidade vou suprindo com o que ela me dá (Familiar A).

O entrevistado, juntamente com a mãe (aposentada), assume os cuidados dos dois irmãos com transtornos mentais e comparece às reuniões esporádicas de familiares do ambulatório em que a irmã (também PTM; reside com marido) freqüenta. Embora sua irmã, Usuária A, apresente certa autonomia e não more com o familiar entrevistado, a presença deste em reuniões promovidas pelos serviços substitutivos é duplamente enriquecedora para cuidador e para a usuária, de maneira tal que é dada a ele oportunidade de escutar a experiência de outros cuidadores e melhor compreender a vivência da irmã frente a seu transtorno. Quanto ao cuidado dos irmãos mais cronificados pela doença mental, o mesmo familiar revela: “Eu sinto satisfação. [...] Eles nasceram assim, eu não nasci assim então eu tenho que dar alguma coisa de mim para cuidar deles”(Familiar A). Ilustrando tais segmentos, “a família é a célula mestra da sociedade contemporânea, atuando não só para a continuação da existência dos indivíduos, mas também para a proteção e socialização de seus membros” (ROMAGNOLI, 2006, p.310).

Nos estudos de Campos e Soares (2005), é discutida a influência do gênero na vivência da sobrecarga, alegando que esta “está ancorada nas práticas e ideologias associadas aos papéis masculino e feminino na nossa sociedade” (p.233). Desta forma, os autores expõem que tanto o familiar do sexo masculino sente mais impacto da sobrecarga financeira, quanto a ocorrência da doença (impossibilitando-o de trabalhar) em um membro deste mesmo sexo culminam nesta sobrecarga, posto que, historicamente, a representação social do homem está associada à promoção dos recursos financeiros no lar.

Por sua vez, a mulher cuidadora é mais suscetível à sobrecarga emocional, dado o maior contato desta com questões psicológicas implicadas na desorganização da rotina, cabendo-lhe a deliberação sobre a internação integral do PTM, “pois são as mulheres que ficam mais em casa e acabam se responsabilizando pelos cuidados da pessoa portadora de transtorno mental” (CAMPOS; SOARES, 2005, p.231). Desta forma, são mais sensíveis ao impacto dos conflitos entre os membros (principalmente quando envolve o PTM) e demonstram grande preocupação em “tornar o ambiente suportável para os outros familiares ali presentes” (PEGORARO; CALDANA, 2006, p.573), corroborado na fala desta mãe: Ela (uma das filhas) é muito limpa, já a outra (filha PTM) não é; aí (aquela) se incomoda com a sujeira dela, mas aí eu limpo, boto tudo arrumadinho dela, banheiro só pra ela, pra não dar problema” (Familiar C).

O comportamento agressivo manifestado pela doença, os cuidados diários (higiene, alimentação, administrar medicação), estado de vigilância (evitando tentativas de fuga ou suicídio) compõem a sobrecarga física, isto é, “de ordem prática” (PEGORARO; CALDANA, 2006, p.572), sendo mais evidente em episódios de crise. Estas circunstâncias são clarificadas no relato de uma irmã cuidadora: “pra mim vir (ao hospital internar o usuário), eu venho com corda dentro da minha bolsa pra amarrar ele se ele se fizer de bravo (chora)” (Familiar).

Sobre a circulação do PTM na cidade, para Palombini (2004a), a experiência de circulação nas cidades “imprime à locomoção a marca da velocidade [...] o privilégio, agora, é o do corpo em movimento” (p.31). Entretanto, o movimento do PTM não é privilegiado, visto que a cidade é também um espaço que marginaliza sua circulação. A respeito da locomoção do irmão, o Familiar A relata:

Eu vejo ele como um verdadeiro andarilho; se livrando do mal, alguém ajudando, alguém compreendendo, alguém agredindo, só vejo isso, não me passa nenhum pânico, nenhuma preocupação. [...] Eu tô tranqüilo com o que vai acontecer, alguém vai bater nele, que ele chega às vezes manchado em casa; alguém vai dar lanche [...] e o taxista vai ligar, vem deixar ele (este possui um nome e telefone residencial inscritos na camisa; segundo o irmão, é conhecido entre taxistas, motoristas de ônibus) [...] a minha posição é que ele tá livre, tá solto, tá fazendo o que gosta.

Por esse discurso, vislumbra-se um cenário urbano de “apatia dos sentidos, reduzindo-se a complexidade da experiência urbana ao mínimo contato possível, em uma economia de gestos e percepções” (PALOMBINI, 2004a, p.33). Essa apatia e restrição de contato são intensificadas com a presença do PTM, privando-o da vivência social necessária à sua reabilitação. Sua autonomia é duplamente abalada: as atitudes de repúdio (agressões, como acima descritos pelo familiar) podem privá-los de circular na cidade pela preocupação (e superproteção) dos cuidadores ou estes o permitam circular nos espaços urbanos, mas sob a condição de tutela de outrem. Contingência esta que reforça a demanda pela estratégia emancipadora do AT. Como já ressaltado anteriormente, a circulação do PTM nas ruas e espaços públicos da cidade favorece uma repercussão clínica e política naquele e na sociedade.

 

Considerações finais

Diferentemente das experiências descritas em São Paulo e no Rio Grande do Sul por Simões (2005) e Palombini (2004a), respectivamente, quanto à presença de cursos de formação para acompanhantes terapêuticos, o estado do Rio Grande do Norte ainda não dispõe de ferramentas para a capacitação de recursos humanos nesse sentido. Naqueles estados, o profissional inserido na saúde mental se depara freqüentemente com demandas, sejam públicas ou privadas, de AT. Aqui, onde este dispositivo é pouco difundido e não há cursos de formação disponíveis que habilitem pessoas para tal função, um profissional pode até conhecer a clínica do AT e saber dos seus benefícios, mas se vê impotente diante da demanda por não dispor de pessoas para quem encaminhar. Nesse sentido, observamos que a necessidade de inserir essa discussão dentre os serviços de saúde mental, em especial no Hospital Psiquiátrico João Machado, torna-se cada vez mais evidente, bem como é urgente mobilizar os gestores locais para a oferta de capacitações, visando a formação de recursos humanos qualificados para o acompanhamento terapêutico de usuários e familiares do sistema público de saúde.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Thaís Azevedo
E-mail: thatha_sa@hotmail.com
Magda Dimenstein
E-mail: magda@ufrnet.br

Recebido em: 18/02/2008
Aceito para publicação em: 24/04/2008
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald

 

 

Notas

* Doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.
1 Deleuze, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.
2 Pesquisa que foi parte das atividades desenvolvidas no processo de Iniciação Científica realizado pela primeira autora e orientado pela segunda durante o ano de 2007.

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