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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Criatividade na Gestalt–terapia

 

Creativity in Gestalt Therapy

 

 

Patrícia Albuquerque Lima*

Professora da Uni-IBMR/Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação – RJ, Brasil
Professora dos cursos de especialização do IGT/Instituto de Gestalt-terapia – RJ, Brasil
Professora do ICGT/Instituto Carioca de Gestalt-terapia - RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Como se conceitua criatividade na teoria da Gestalt–terapia? Qual o papel e a função da criatividade nesta abordagem? O que se considera como um comportamento criativo no senso comum é tão diferente do que compreendemos, na abordagem gestáltica, como criatividade? Estas são algumas das perguntas sobre as quais buscaremos transcorrer ao longo deste artigo. Partimos de simples perguntas, pois talvez um bom recurso para se “tratar” da criatividade seja a curiosidade. Para isto, iremos apresentar a contribuição de alguns autores que discorreram sobre o tema da criatividade em suas obras, iniciando por Kurt Goldstein e sua Teoria Organísmica, que consideramos o principal substrato teórico para se pensar a criatividade na Gestalt–terapia.

Palavras chave: Gestalt–terapia, Criatividade, Psicoterapia, Arte.


ABSTRACT

How shall we conceptualize creativity in gestalt–therapy theory? What are the creativity role and function in such approach? Is a creative pattern of behaviour according to common sense so different from creativity as far as gestalt approach is concerned?
These are some of the questions to be discoursed on in this article. We’re starting from simple questions, as curiosity  may come in handy when dealing with creativity..
With this aim, we’ll present the contribution of some authors who discussed on creativity in their works, beginning with Kurt Goldstein and his Organismic Theory, which we consider the main theoretical essence to reflect on creativity in Gestalt–therapy.

Keywords: Gestalt–therapy, Creativity, Psychotherapy, Art.


 

 

Introdução

Para desenvolvermos o conceito de criatividade na Gestalt–terapia, partiremos de uma premissa que nos é fundamental para a compreensão da importância e do papel da criatividade nesta abordagem. Sendo assim, iremos assumir que a Gestalt–terapia é uma abordagem psicológica que valoriza o papel da criatividade como um dos recursos fundamentais ao processo da auto–regulação organísmica.

Na realidade, o conceito de criatividade que iremos adotar pouco difere do conceito usual de criatividade que encontramos na língua portuguesa. No “Novo Dicionário da Língua Portuguesa” consta no verbete criatividade: “[...] é a qualidade de criador...” E aquele que cria é quem: “[...] dá existência a algo, tira do nada, [...] dá princípio, inventa...” (p. 400). Ou seja, a criatividade pressupõe um ato criador, inovador, uma resposta nova.

A noção de auto–regulação é advinda da Teoria Organísmica do neurologista alemão Kurt Goldstein, de quem Fritz Perls, o criador da Gestalt–terapia, foi médico–assistente. Perls foi profundamente influenciado pelas novas teorias de Goldstein sobre o processo de readaptação de pacientes que haviam sofrido lesão cerebral na guerra, formuladas a partir da sua experiência no contato direto com este tipo de paciente em um hospital especializado, fundado por Goldstein na década de 20 na Alemanha (Instituto de Soldados Portadores de Lesão Cerebral). Suas idéias resultaram em um livro, no qual apresenta as premissas básicas da teoria organísmica, que resumiremos a seguir.

 

1 – A criatividade na Teoria Organísmica de Kurt Goldstein

No livro de Kurt Goldstein, o autor tratou da auto–regulação como uma das características fundamentais do funcionamento de qualquer organismo. Goldstein definia a auto–regulação organísmica como uma forma do organismo interagir com o mundo, segundo a qual o organismo pode se atualizar, respeitando a sua natureza do melhor modo possível. Segundo as palavras do próprio Goldstein (1995, p. 162): “Esta tendência a atualizar sua natureza e a si mesmo é o impulso básico, o único impulso pela qual a vida do organismo é determinada”.1

Para que a auto–regulação aconteça, é fundamental que o organismo possa ter respostas novas para as situações pelas quais ele passa na sua permanente interação com o meio ambiente. Se pensarmos deste modo, nos parece que ser criativo é uma condição fundamental ao processo de auto–regulação, que é o principal critério para se considerar se o modo como uma pessoa está se relacionando com demandas do meio está sendo harmônico ou satisfatório2. Conforme citação de Kurt Goldstein (1995, p. 50) : “O meio–ambiente de um organismo não é absolutamente algo definido e estático, pelo contrário, está em metamorfose contínua, comensurável com o desenvolvimento do organismo e sua atividade”.  Acredita–se que os indivíduos se auto–regulam dando prioridade para a execução de ações que visem à satisfação das suas necessidades emergentes, e quando uma necessidade é satisfeita, esta deixaria de ser figural e outra necessidade emergeria. Pela influência do Gestaltismo na formação acadêmica de Goldstein, vemos aqui uma clara transposição da lei de figura–fundo para o processo de auto–regulação, no qual haveria uma reversibilidade entre necessidade satisfeita e a emergência de novas necessidades. A adoção do termo necessidade foi do próprio Goldstein, sendo que, mais tarde, Perls também o assumiu na teoria da Gestalt–terapia.  

Kurt Goldstein percebeu que, quando uma pessoa é confrontada a realizar algo que se considera sem condições de fazer, isto gera uma experiência de grande ansiedade. Os comportamentos desordenados resultantes são comportamentos desarmônicos, tanto do ponto de vista do organismo, quanto do meio ambiente. Isto faz com que a pessoa evite, de todos os modos possíveis, se expor às situações que lhe gerem ansiedade. Na observação de seus pacientes, notou uma tendência em buscar comportamentos padronizados de ordem e em evitar experiências que pudessem gerar qualquer sensação de vazio, de desordem. Na tese de doutorado “Psicoterapia e mudança – uma reflexão” encontramos:

Fritz Perls amplia esta noção (de Goldstein) para descrever comportamentos presentes nos mecanismos neuróticos, onde esta evitação da novidade, de situações geradoras de sensação de vazio, também se faz notar como uma tentativa neurótica de padronização de modos de atuação já conhecidos. (LIMA, 2005, p. 50 – grifos meus)

A Gestalt–terapia compartilha com a teoria organísmica de Kurt Goldstein da idéia de que tentativa de repetição de padrões de comportamentos já conhecidos, a não mudança e não exposição a situações novas é uma tentativa dos indivíduos de não lidar com a ansiedade gerada pelo inesperado. Quando há uma cristalização deste padrão, a Gestalt–terapia vai entendê–la como um padrão neurótico de comportamento, padrão este que vai levando ao empobrecimento das experiências do sujeito, a um repertório repetitivo e limitado de comportamentos que não propiciam a mudança.   

Goldstein compreendia que, no funcionamento do indivíduo normal, poderíamos verificar dois movimentos distintos na sua interação com o meio – um que busca evitar a experiência da ansiedade através da criação de padrões de conduta e de mecanismos estereotipados para lidar com as situações, e outro, igualmente importante, que leva o indivíduo a buscar novas experiências através da expansão de suas possibilidades de ação e de reflexão.  Neste sentido, Goldstein deu grande importância ao papel da criatividade como um dos potenciais naturais do ser humano que lhe possibilitam se auto–regular.  Ou seja, evitar a ansiedade e busca da novidade, da mudança, são movimentos igualmente importantes para o processo de auto–regulação do sujeito. 

 

2 – Criatividade, neurose e psicoterapia

Na teoria da Gestalt–terapia, conforme apresentada no primeiro livro publicado na década de 50 nos Estados Unidos, os padrões de adaptação emergenciais são considerados mecanismos neuróticos, que são: “[...] padrões estereotipados que limitam o processo flexível de dirigir–se criativamente ao novo” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 45). Os autores compreendem a neurose como a repetição constante de mecanismos neuróticos em vez de um processo espontâneo de auto–regulação.  

Estar em contato é criar, gera movimento e novidades a cada instante. Esta possibilidade vai sendo perdida, em graus de restrição que variam de pessoa a pessoa, no que consideraríamos como um comportamento neurótico. O contato da pessoa consigo própria e com os elementos do meio (outras pessoas, ambiente físico e social, etc), fica comprometido nestas situações: Abaixo listamos algumas características encontradas no “neurótico”3, descritas por Perls ao longo de sua obra,  que podem ser pensadas como decorrências de um padrão neurótico de auto–regulação:

– O neurótico desiste, muitas vezes, de buscar a satisfação.

– O neurótico passa a não discriminar mais o que é realmente importante para si.

– Ele perde seu auto–suporte e passa a ser orientar apenas pelos referenciais externos.

– Perde a capacidade de perceber o óbvio.

– Não consegue mais entrar em contato com as suas próprias emoções e sensações.

– Perde a espontaneidade no seu modo de ser e deixa de ser CRIATIVO nas suas ações.

Portanto, a perda da criatividade é uma das consequências mais usuais nos processos de restrição de funcionamento no ciclo da auto–regulação organísmica. Poderíamos então afirmar que a criatividade não é um “talento” que algumas pessoas possuem e outras não. Ser criativo é algo inerente à natureza do organismo. É uma dádiva do universo e a perda da criatividade é uma lástima, pois ela implica, entre outras coisas, na perda da capacidade da pessoa auto–realizar–se e viver a vida de modo prazeroso, lidando com as adversidades e restrições de forma inusitada e “re–inventando” novos meios de estar no mundo a cada momento.  

Deste modo, as “doenças psicopatológicas” na Gestalt–terapia aproximam–se muito mais do que poderíamos considerar perda de flexibilidade nesta permanente interação com o meio do que a apresentação de um quadro sintomatológico padronizável. E o que isto ocasiona? A perda da fluidez tem como resposta imediata a impossibilidade de a pessoa ser criativa, ou seja, de ensaiar novas respostas diante das demandas do meio. Em Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 138) encontramos: “Deveria ser óbvio que a falta de curiosidade estarrecedora das pessoas é um sintoma epidêmico e neurótico”.

 As interrupções, inibições ou acidentes no ajustamento criativo trazem, como decorrência, um padrão de respostas estereotipadas por parte da pessoa. Portanto, criatividade e ajustamento, já na primeira obra de Gestalt–terapia, são vistos como polares e mutuamente necessários: “A psicologia é o estudo dos ajustamentos criativos, e a psicologia anormal é o estudo da interrupção, inibição, ou outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo”. (PERLS et al., 1997, p. 45)

Outro autor da abordagem gestáltica que se debruça sobre o tema da criatividade em suas obras é o psicoterapeuta americano Joseph Zinker. Ele descreve a criatividade (2007, p.15) como: “[...] a possibilidade de a pessoa ser e fazer qualquer coisa”. Para este autor, a criatividade “[...] representa a ruptura dos limites, é um ato de coragem”. (p.16)

Criar é algo vital ao ser humano e ser criativo é um modo de ser que lhe é peculiar.  Segundo Zinker (2007, p. 21): “O ato criativo é uma necessidade tão básica quanto respirar e fazer amor. Somos impelidos a criar”. Deste modo, o que impedirá então que uma pessoa usufrua da possibilidade de ser criativa e se veja embotada neste recurso, que lhe é tão fundamental no seu processo de auto–regulação? O que poderia justificar o surgimento de um “impedimento”4 na auto–regulação de uma pessoa?  Se um indivíduo é forçado a conviver com uma situação de restrição por muito tempo, o seu modo de funcionamento é afetado, e este passa a se comportar de um outro modo não harmônico. Portanto o funcionamento não harmônico é o resultado de situações de limite, onde se forma um padrão de adaptação emergencial.

Lima (2005, p.147), refletindo sobre o papel da mudança na vida do homem indaga–se:

E o que dizer de nós, seres humanos, que além de sermos organismos vivos ainda somos dotados de criatividade... A nossa função de saúde na vida é a mudança. No entanto a mudança não está em nós... Ela não está dentro de nós, nem fora de nós, ela está na vida, no fluxo dos acontecimentos que não para. (p. 147)

Deste modo, fica evidente que, na teoria da Gestalt–terapia, criatividade e saúde são funções que andam juntas e as restrições no modo de ser do homem ocasionam sempre restrições na possibilidade desta pessoa ser criativa e de ter respostas inovadoras e espontâneas para os acontecimentos sempre novos no seu dia–a–dia e nas relações interpessoais que estabelece pela vida.

Como já tão bem descrito por Chico Buarque de Holanda, viver a vida de modo neurótico se expressa quando: “Todo dia ela faz tudo sempre igual, me acorda às seis horas da manhã, e sorri um sorriso pontual, e me beija com a boca de hortelã”5.

As crianças são quase sempre criativas e mostram as suas possibilidades de serem criativas de formas bem diversas. Nas brincadeiras, nas histórias fantasiosas e cheias de personagens imaginários, no jeito pouco usual de se relacionar com os objetos e de responder aos “fatos da vida”. Um forte aliado à criatividade é a curiosidade, que se expressa através de muitas perguntas, indagadoras sobre o modo como a vida funciona: as coisas são e as pessoas sentem–se. 

Fritz Perls em seus livros lamentava que nós, adultos, perdêssemos este recurso e passássemos a nos comportar de uma forma esteriotipada e consoante com as regras morais e sociais que foram nos sendo impostas. Deixássemos de “fazer arte” e passássemos a levar a vida “a sério”.  Ele ressaltou que: “Quanto mais caráter uma pessoa tem, menor é seu potencial. Isto parece um paradoxo, mas a pessoa com caráter é aquela que é previsível, que tem apenas um número determinado de respostas fixas”. (PERLS, 1977, p. 55)

A perda da espontaneidade e, consequentemente, um embotamento do potencial criativo, foi alvo de discussão na obra de vários psicólogos e tema de destaque em algumas abordagens de psicoterapia. O Psicodrama é uma que dá grande destaque à importância do resgate de um modo criativo de ser e de ser relacionar no mundo. Esta abordagem propõe que a dramatização seja um recurso para as pessoas buscarem respostas novas e pouco usuais para as situações pelas quais passam ao longo da sua vida.

O próprio Moreno, criador do Psicodrama, escreveu (1984, p. 147):

A criatividade tem duas ligações; uma com o ato criativo e com o criador. [...] a outra ligação é com a espontaneidade, sendo esta considerada a matriz do crescimento criativo. Espontaneidade–criatividade é considerado frequentemente um conceito gemelar contrariamente ao conceito descartado de espontaneidade–automaticidade, que deixava de considerar os mais profundos significados da espontaneidade, tornando–a de certo modo incontrolável e particularmente característica do comportamento animal.

Esta preocupação com um processo de automação no homem, que resultaria num comprometimento da possibilidade de ser criativo, também já se fazia presente na obra de Bertallanfy. O criador da Teoria Geral dos Sistemas, Ludwig von Bertallanfy (1997), apresentou a idéia de que um dos sintomas da doença mental estaria na perda da espontaneidade, denominando a isto de princípio de mecanização progressiva, princípio segundo o qual haveria uma perda das potencialidades dos componentes de um sistema e de regularidade no todo. A tentativa da psicologia americana de entender o homem como um robô, ou então de entender o cérebro como uma máquina semelhante a um computador, foi posta abaixo pelo pensamento de Bertallanfy (1949, p. 17) :

Os organismos não são máquinas, mas podem, até certo ponto, tornarem–se máquinas, solidificarem–se em máquinas, nunca porém completamente, porque um organismo inteiramente mecanizado seria incapaz de reagir às condições incessantemente variáveis do mundo exterior. 

Diante desta preocupação de vários psicólogos com o tema da criatividade, não seria importante pensar o espaço terapêutico como um espaço de resgate do potencial criativo daqueles que o buscam? E quais seriam os recursos possíveis que sirvam como auxílio neste processo?

Zinker (2007, p.17) esclarece que: “A terapia é um processo de mudança da awareness e do comportamento. O sine qua non do processo criativo é a mudança: a conversão de uma forma em outra”.  Quanto ao terapeuta, ele destaca: “[...] a responsabilidade essencial do terapeuta em relação ao cliente é criar um terreno experimental em que o cliente procede a uma ativa investigação de si mesmo como um organismo vivo”. Partirei deste pensamento de Zinker sobre o papel da criatividade na psicoterapia para traçar um esboço do que considero as principais funções que atribuo à psicoterapia e ao papel do psicoterapeuta neste processo.

 

Qual a função da psicoterapia?

Ajudar o indivíduo a perceber como ele interrompe seu fluxo auto– regulativo.

Fornecer subsídios para que o cliente busque modos criativos de agir (respostas inovadoras para as diversas situações na vida).

Permitir que o cliente “ensaie” na relação com o terapeuta modos “criativos” de responder às demandas da vida.

Ser um “celeiro de criatividade” e, para isto, o psicoterapeuta precisa também ser criativo na sua própria vida. Ser um espaço de resgate do senso estético do cliente. Ser um espaço onde o cliente possa “fazer arte”. Ser um espaço de exercício do potencial criativo.

Mais uma vez, destacamos o que Zinker (2007, p.17) escreveu sobre o terapeuta: “O terapeuta é um artista na medida em que é uma pessoa que usa a inventividade para ajudar os outros a moldar suas vidas....” E continua: “[...] qualquer relacionamento entre duas pessoas se torna uma criação quando o contato entre elas tem a fluência e a sensação de um transformar recíproco”.

Dentro desta visão, entendemos a psicoterapia como um processo de criação conjunta de uma “obra de arte”.  Laura Perls (1994, p.24) já dizia:

A terapia também é uma arte. Tem mais a ver com a arte do que com a ciência. Requer muita intuição e sensibilidade e uma visão geral... Ser artista supõe funcionar de uma maneira holística, e ser um bom terapeuta supõe o mesmo".

A Gestalt–terapia é uma abordagem na qual a arte sempre foi extremamente valorizada, tanto pela sua importância como veículo de promoção da awareness, como por ter papel formativo na vida dos principais autores desta abordagem. Barbosa (2007, p.88) afirmou que

[...] não podemos deixar de considerar a estreita relação que a Gestalt–terapia possui com as artes como uma forte fonte de influência estética também. Tanto Fritz quanto Laura Perls sempre estiveram envolvidos com atividades artísticas – teatro, ópera, pintura, dança, música, literatura, etc. Sem dúvida, esse interesse comum por formas criativas de expressão muito contribui para que o desenvolvimento da abordagem fosse esteticamente enriquecido e adquirisse esse forte “parentesco” com a arte.

Compreendemos a relação terapêutica como uma relação de criação conjunta. O terapeuta tem, portanto, um papel de artista neste processo; ele é “uma pessoa que usa a inventividade para ajudar os outros a moldar suas vidas....” (ZINKER, 2007, p.17). E qual o instrumento que o gestalt–terapeuta pode dispor para poder “inventar” nesta relação? O próprio Zinker (2007, p. 30) irá nos apontar o experimento como sendo este recurso:

A Gestalt–terapia é, na realidade, uma permissão para ser criativo. Nossa ferramenta metodológica básica é o experimento... Os experimentos não precisam brotar de conceitos, podem começar simplesmente como brincadeiras...

Deste modo, os experimentos – quando usados de uma forma criativa e como recurso para convidar o cliente para exercer sua própria criatividade – são uma excelente maneira de se promover no espaço terapêutico a possibilidade de uma vivência de realização artística e espontânea.  

       

Conclusões

Precisamos, cada vez mais, reaprender a brincar. O espaço terapêutico também deve ser um espaço do lúdico, do divertido. As propostas de experimento devem trazer a possibilidade de viver o diferente, de ser ousado. As demandas por seriedade, competência e eficiência na vida do homem contemporâneo, principalmente por parte daqueles que vivem nas grandes cidades e precisam garantir seu sustento na “batalha” diária pela própria sobrevivência, se tornam um verdadeiro “massacre” ao qual somos todos submetidos. A principal perda que experienciamos neste processo é o esvaziamento do contato, a amortização das nossas sensações e emoções, um distanciamento das relações afetivas mais profundas e de nós mesmos.  O preço que pagamos é deixar de sermos criativos e nos tornarmos meros repetidores de papéis. A arte deixa de fazer parte do nosso cotidiano e nos esquecemos de ousar. Mais uma vez, recorrendo ao dicionário, encontro na definição do verbete ousadia: “[...] Qualidade de ousado, destemor, coragem, arrojo”. E o que é ser ousado: “Ser bastante corajoso [...], para ter a ousadia de atrever–se....” (FERREIRA, 1975, p.123)

Acredito que a ousadia é um ótimo antídoto para se enfrentar o medo. Vivemos tempos de muito medo. Os quadros de pânico e as fobias são cada vez mais freqüentes na sociedade contemporânea. O medo paralisa o processo de busca criativa de respostas aos estímulos do meio. O medroso funciona sempre de modo “limitado”. Talvez um forte aliado aos quadros de pânico seja proporcionar ao cliente um espaço de criação.  A arte pode ser curativa e também uma saída eficaz para quem está paralisado diante do medo.

O espaço terapêutico deste modo é um grande laboratório, no qual terapeuta e cliente podem experimentar formas criativas de ser e de fazer, principalmente diante daquilo que sempre “fizeram do mesmo jeito”. Busco inspiração nas palavras de Guedes quando afirma: “[...] o que gosto mesmo é de acompanhar as pessoas nas suas descobertas, nas suas criações” (PORCHAT; BARROS, 1985, p. 25). Eu diria que o que eu gosto também é de poder simplesmente estar com as pessoas que me procuram e acreditar que, quando há liberdade e respeito mútuos, cria–se um terreno fecundo. Nele podem brotar muitos frutos. Lindos frutos, cada um do seu jeito, cada qual com seu gosto. Gosto de novo, cor de novidade e, sobretudo, com tons de criatividade.

 

Referências Bibliográficas

BERTALANFFY, L. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 1977.        [ Links ]

Barbosa, R. In:  D’Acri, G.; Lima, P.; Orgler, S. (Org.)  Dicionário de Gestalt– terapia – Gestaltês. São Paulo: Summus Editorial, 2007.

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.         [ Links ]

GOLDSTEIN, K. The Organism. Nova York: Zone Books, 1995.        [ Links ]

LIMA, P. A. Psicoterapia e mudança – uma reflexão. 2005. 152 f. Tese (Doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.        [ Links ]

MORENO, J. O teatro da espontaneidade. São Paulo: Summus Editoral, 1984.        [ Links ]

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PERLS, L. Viviendo en los limites. Valencia: Promolibro, 1994.        [ Links ]

Guedes, A. In: PORCHAT, I; BARROS, P. (Org.). Ser Terapeuta. São Paulo: Summus Editorial, 1985.        [ Links ]

ZINKER, J. O Processo Criativo em Gestalt–terapia. São Paulo: Summus Editorial, 2007.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Patrícia Albuquerque Lima
E-mail: ticha@infolink.com.br

Recebido em: 07/01/2009
Aceito para publicação em: 26/03/2009
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra Torres Prestrelo

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia pela UFRJ.
1 As traduções das citações são de minha autoria.
2 Os verbos são usados no gerúndio de forma propositada, pois a auto–regulação é vista como um processo que, quando se dá de forma harmônica, leva a pessoa à experiência de permanentes mudanças no seu viver.
3Na Gestalt–terapia opta–se por não se classificar as pessoas dentro de um padrão nosográfico, portanto uso o termo “neurótico” entre aspas para deixar claro que esta é uma denominação simplista que visa simplesmente ilustrar algumas características que são bastante repetitivas em pessoas que vivem um processo de restrição no seu fluxo da auto–regulação.
4 Estou adotando o termo “impedimento”, pois o considero mais condizente com a noção de um processo auto–regulativo do que o uso de termos como distúrbio, disfunção ou doença.
5 Este é um trecho da canção “Cotidiano”, de Chico Buarque de Holanda.

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