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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Palhaços: uma possível reflexão para a Gestalt-terapia

 

Clowns: a possible reflection to Gestalt-therapy

 

 

Alexandra C. Tsallis*

Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ - RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir como os palhaços podem contribuir para uma reflexão acerca das intervenções psicoterápicas na Gestalt-terapia. Essa tarefa foi possível a partir do acompanhamento de uma oficina de teatro, intitulada “A nobre arte do palhaço” e das proposições teóricas da Teoria Ator-Rede acerca da recalcitrância.  O efeito do palhaço reside na subversão do anseio pela vitória: quando todos no mundo almejam vencer, ele explora perder. Portanto, o que norteia seu surgimento é estabelecer um fluxo contínuo de contato com as dimensões frágeis, ridículas e transgressoras de cada um, nesse sentido compartilha com alguns dos princípios almejados pela Gestalt-terapia. Dessa forma, os palhaços favorecem que esta abordagem revisite suas reflexões, sua capacidade de criação, ou melhor, re-creação no encontro terapêutico.

Palavras chave: Palhaços, Recalcitrância, Intervenção psicoterápica.


ABSTRACT

This article aims to discuss how clowns can contribute to a reflection concerning psychotherapic interventions in Gestalt-therapy. This task was possible starting from the observation of a theatre workshop, called “The noble art of clown”, and from the theoretical propositions of Actor-Net Theory relating to recalcitrance. The clowns effect its about the subversion of the wish to succeed: while everybody pursues winning, the clown explores the experience of losing. Therefore, what guides his emergence is to establish a continuous flux of contact with the fragile, ridiculous and transgressing dimensions of each of us, which shares common principles pursuit by Gestalt-therapy. So, clowns give Gestalt-therapy the opportunity to rethink its reflections, its capacity of creation, in better words, re-creation on therapy gathering.

Keywords: Clowns, Recalcitrance, Therapy gathering.


 

 

Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir como os palhaços podem contribuir para uma reflexão acerca das intervenções psicoterápicas na Gestalt-terapia. Embora, em se tratando de fazer pensar o campo clínico, eles sejam personagens inusitados – aliás, adjetivo recorrente entre estes ilustres artistas, aposto no caráter renovador dessa arriscada empreitada. Ainda assim, talvez a proposta não seja tão estranha se pensarmos que desde os primórdios da Gestalt-terapia o teatro foi um caro interlocutor para Fritz Perls (1979).

Os palhaços invadiram minhas reflexões em 2003, quando dei início ao trabalho de campo que resultou na elaboração da tese de doutorado: Entre terapeutas e Palhaços: a recalcitrância em ação (TSALLIS, 2005). Naquela ocasião acompanhei uma oficina do Teatro de Anônimo, denominada “A nobre arte do palhaço”, coordenada por Márcio Libar1 - na figura de um Messiê (alusão à palavra francesa Monsieur) - que tinha como seu objetivo instalar a alma do palhaço nas pessoas.

É importante mencionar que foi o processo de construção desta personagem me fez refletir sobre as inúmeras possibilidades criativas para o desenrolar do encontro terapêutico. De acordo com essa proposta, a idéia central para o surgimento do palhaço é estabelecer um fluxo contínuo de contato com as dimensões frágeis, ridículas e transgressoras de cada um - é desses elementos que o palhaço irá se nutrir para viver. Nesse sentido, ele exige um confronto direto com aquilo que permanece apartado da consciência e uma vez que essas questões se configurem, precisam ser exploradas por sua potência e não pelo seu aniquilamento. Em poucas palavras, o palhaço tem a função de revelar aquilo que queremos esconder.

Mas a necessidade neurótica de vitória não é a necessidade do objeto pelo qual se lutou, exercendo agressão no conflito aberto, é uma necessidade de ter ganho, de ser um vencedor enquanto tal.(PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997, p.160)

É nisso que reside o efeito do palhaço: quando todos no mundo almejam vencer, ele explora perder; quando no circo todos voam, ele cai; quando as feras são domadas, ele é indomável; enfim, quando o poder é gigantesco, ele vence pela fraqueza... Em suma, embora ocupe o lugar do perdedor, ele possui um trunfo: sim, o palhaço perde, mas ele sempre recomeça! Aí está sua capacidade de criação / re-creação (ibid), sua potência surge desse momento, desse encontro com sua fragilidade. Nesse instante, ele captura o outro por sua humanidade, não por sua capacidade de superação. Essas são figuras recorrentes entre todos os grandes palhaços: por isso sempre se vê a imagem de Carlito indo embora sozinho.

Como horizonte para orientar esse diálogo entre palhaços e a clínica em Gestalt-terapia trabalharei com a descrição de alguns dados referentes a oficina, bem como do relaxamento feito para iniciar o processo de tornar-se palhaço. Vale ressaltar que essa maneira de apresentar os dados de campo visa permitir ao leitor um breve mergulho nesse estranho universo dos paspalhos2.

Na sequência, irei apresentar algumas proposições teóricas da Teoria Ator-rede - ANT3 - (LATOUR, 2006, 2005, 2004, 2002, 2000 e NATHAN, 2001) no que se refere ao conceito de recalcitrância. A partir dessa abordagem pude sistematizar e acompanhar o trabalho da oficina e criar um percurso que viabiliza uma analogia entre os palhaços e a prática clínica. Dito de outra forma, percorrendo os caminhos de formiga (ANT) pude depreender a riqueza desse campo e vislumbrar o fenômeno da recalcitrância em suas inúmeras possibilidades de invenção4 e reinvenção do encontro. Feito isso, discuto as possíveis contribuições disso para pensar a intervenção clínica em Gestalt-terapia.

A primeira tarefa para estabelecer esse diálogo é despsicologizar a Gestalt-terapia, o que não me parece estar distante do que essa própria abordagem propõe com o conceito de fronteira de contato (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997). Especificamente, uma Gestalt-terapia despsicologizada significa pensá-la não como uma guardiã do sujeito (dotado de interioridade), em oposição ao objeto (exterior). Nessa forma, despsicologizada, na qual o sujeito interior não ocupa a posição central, ela mantém seu olhar para o singular. Assim, direcionando o foco sobre a singularidade, ela cria um terreno fértil para vislumbrar o movimento dos vínculos/relações, entendendo a noção de vínculo como mais uma tentativa de dissolver a interioridade do sujeito por oposição à exterioridade do objeto (NATHAN, 2001).

Sem dúvida a Gestalt-terapia sempre teve um olhar para o indivíduo, mas uma forma de não rotulá-la como defensora do individualismo, é encarar seu olhar como uma contribuição que permite realçar a lógica da imanência em oposição à transcendência. Dito de outra forma é possível tomar as construções dessa abordagem naquilo que ela tem a dizer sobre o que é singular, sobre o que, de fato, acontece no cotidiano.

 

O picadeiro de palhaços: a perda em ação

A oficina “Nobre Arte do Palhaço” trabalha com a idéia de fabricar em cada pessoa um estado de picadeiro, ou seja, de instalar um paspalho disposto a viver o ridículo e a se divertir com isso. O cerne dessa oficina é viver um mundo ao contrário, onde as lógicas já assentadas possam perder seu lugar estabelecido, para dar espaço a um mundo de misturas de sentimentos, de pessoas, de objetos, enfim, de acontecimentos sem sentido aparente. “O mundo cômico é o mundo ao contrário, pelo avesso. E o palhaço, principal arquétipo do universo cômico, tem como missão instaurar este mundo ao revés...” (Teatro de Anônimo, s/d). A concepção de um mundo ao contrário está centrada na idéia do palhaço como aquele que subverte a lógica corriqueira de funcionamento do mundo. O imperativo para esse movimento de subversão é o trabalho com a comicidade e a idéia central do palhaço é perder, ser um perdedor! Enquanto a lógica do mundo é ganhar, superar, a do palhaço é perder e assumir isso. O objetivo da oficina é instalar o “coração do palhaço” em cada um que participa. Para isso o Messiê irá propor jogos e brincadeiras que serão vividos em conjunto pelo grupo.

Em primeiro lugar, cabe fazer uma descrição do Messiê. Ele é velhinho, tem o queixo projetado para frente e a cabeça pende sobre o pescoço. Ele se apóia em sua bengala enquanto caminha e às vezes erra um degrau, bate em uma quina de parede, justamente por não ter uma visão perfeita. É claro que essas também são gags5 de palhaço, mas cabem bem ao Messiê, por ser ele um velhinho. Quando ele cumprimenta as pessoas pode ter dor nas costas, bater seu anel na bengala, cruzar uma perna que lhe escapa do joelho. Enfim, um elemento crucial nessa figura é que ele é cheio de manias.

O Messiê repete muitas frases a respeito da fragilidade humana, dos princípios que norteiam o palhaço. “O Messiê não tem moral, mas tem uma ética profunda”. Ele fala repetidamente das perdas. É com essas frases que vai criando uma atmosfera do que é perder e de como isso é fundamental na vida do palhaço. “Brincar é brincar, quando tenta acertar está se criticando, não está se divertindo. Pensou, fodeu.” Outra frase possível é: “No trailer do filme Senhor dos Anéis o final é uma frase: é impossível o triunfo sem a perda”. Quando as pessoas erram ele diz: “Observem que cada impulso de vocês é uma pequena história com início, meio e fim”. Vale mencionar que ele é bastante ranzinza, rabugento. Na verdade, ele é um falso mal-humorado, uma vez que seu coração é de manteiga e que ele se comove facilmente diante da fragilidade, da espontaneidade do outro.

Quanto à origem do Messiê ele próprio a contou durante uma das oficinas:

O Messiê faz parte de uma nobre linhagem de Messiês. O Messiê tem mais ou menos 420 anos, mora em uma casa velha, cheia de coisas velhas, bebe muito vinho, até que um dia bate na porta um idiota querendo saber os segredos da arte de ser palhaço... o Messiê bate a porta na cara dele. Ele fica lá esperando e depois de duas horas o Messiê abre a porta e volta a mandá-lo embora. Chega a noite e o paspalho continua lá, só depois disso o Messiê o recebe. O Messiê habita originalmente na Idade Média, então ele diz ao paspalho: Você quer ser palhaço? Coloque uma cadeira na praça e peça para alguém puxá-la e caia no chão. O paspalho vai, faz  e ninguém ri. Por que será? Isso aconteceu centenas de vezes, até que um dia, o idiota assume seu fracasso. Nesse dia, todos riram! Riram porque te viram! No dia seguinte o idiota volta à praça vaidoso e faz o mesmo, ninguém ri... Isso é para vocês terem a dimensão que uma arte clássica, iniciática, é para quem esteja revelado em sua fragilidade, ninguém que tente superar isso consegue fazer o outro rir.

O trabalho na oficina precisa estar ancorado pela dimensão da experiência, no que se refere à idéia de uma experimentação e de como é, mediante isso, que se arregimentam os acontecimentos, produzindo este ou aquele resultado. Ela produz efeitos enquanto acontece no mundo concreto. Dessa forma, os elementos vão se construindo, vão se dando no território vivo, no campo em ação, em outras palavras, no corpo imantado pelos seus vínculos.

Assim, tendo em vista a discussão do presente artigo descrevo a seguir o relaxamento proposto na oficina de palhaços. Ele faz germinar o estado da fragilidade, a dimensão da perda, a subversão de uma lógica cotidiana.

Messiê: ”Imaginem uma grande bola laranja e quente...”

Todos estão deitados sobre o tablado, de olhos fechados.

Messiê: “Pés de raízes... e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

Algumas pessoas respiram mais profundamente, outras sorriem.

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

O silêncio é grande naquele galpão.

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... galhos saindo do umbigo... e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

Apenas se ouve a voz do Messiê.

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... galhos saindo do umbigo... grande rabo de baleia e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

Messiê anda devagarzinho entre as pessoas, sua bengala o ajuda a equilibrar-se.

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... galhos saindo do umbigo... grande rabo de baleia... asas de anjo nas costas... e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

A entonação do Messiê muda quando ele fala - o sol: a grande bola laranja e quente - ela fica mais grave e o ritmo diminui.

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... galhos saindo do umbigo... grande rabo de baleia... asas de anjo nas costas... coração de girassol... e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

Algumas vezes se ouve um estalo de madeira enquanto o Messiê caminha. O tablado crepita.

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... galhos saindo do umbigo... grande rabo de baleia... asas de anjo nas costas... coração de girassol... e dentro uma janelinha... e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

Mais sorrisos, suspiros de satisfação.

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... galhos saindo do umbigo... grande rabo de baleia... asas de anjo nas costas... coração de girassol... e dentro uma janelinha...Daí um pontinho preto... e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

Resta uma pergunta: aonde irá chegar esse relaxamento?

Messiê: ”Pés de raízes... pernas de tronco de árvore... galhos saindo do umbigo... grande rabo de baleia... asas de anjo nas costas... coração de girassol... e dentro uma janelinha... Daí um pontinho preto... um beija-flor quem vem para o seu girassol...”

Messiê começa a fazer barulho de beijo bem comprido.

Messiê: “e o sol: uma grande bola laranja e quente...”

Mais barulho de beijo.

Messiê: “O tamanhinho do beija-flor mostra toda a fragilidade da vida.”

O galpão parece inundar-se daquele beijo de beija-flor.

Messiê: “Mas, o beija-flor tem que ir embora...”

Podem se ver algumas lágrimas no rosto das pessoas.

Messiê: “Mas ele volta e quando ele volta é tão bom, tão bom...”

E novamente o barulho de beijo, repetido várias vezes.

Messiê: “Agora, ele vai embora, mas ele pode voltar, basta vocês abrirem a janelinha.”

Messiê: “Quando o beija-flor se afasta ele revela toda sua fragilidade. Depois o beija-flor volta para o sol. Quando vocês não estiverem sendo aceitos, lembrem do beija-flor.”

Silêncio.

Messiê pede que as pessoas, ainda de olhos fechados, se sentem.

Messiê: “Agora, olhem para isso que vocês têm nas mãos.”

As pessoas olham para o nariz de palhaço. Ele foi sendo colocado – suavemente - durante o relaxamento, na mão de cada um, pelo ajudante do Messiê.

Messiê: “Olhem para o nariz, a menor máscara do mundo. Ela lhes dá o direito de serem ridículos. Esse é um símbolo. Podemos ser idiotas, crianças de novo, que ninguém acha que é maluco. Essa é a menor máscara do mundo, a que menos te esconde e a que mais te revela. Coloquem o nariz e se olhem, seus paspalhos.”

As pessoas se olham, gargalham ou sorriem.

Messiê: “Façam um bolinho no meio, se juntem, se aconcheguem, façam carinho uns nos outros.”

Enquanto isso vai acontecendo, ele começa a falar:

Messiê: “Vocês se lembram da última vez que disseram que amavam alguém? Pensem nessa pessoa que vocês amam e pensem se ela não estiver presente amanhã no café da manhã. Um dia todos vocês irão morrer, não serão nada. Com sorte, vocês serão um retrato na parede e com mais sorte ainda haverá alguém por perto para dizer quem vocês eram. O que garantiu a sobrevivência da espécie foi a comida e a troca de afeto. Quando falamos de afeto e de acolher não é só exercício da oficina. É condição da espécie, é condição para não perder. Para adiar a perda... Na merda todo mundo é igual. Portanto, seus paspalhos, dêem sentido à sua existência”.

Ele pede que todos fiquem de pé em meia-lua e se olhem.

Messiê: “Vejam como vocês são frágeis. Para quê e para quem vocês vivem? Para quê e para quem vocês trabalham? A serviço de quê e a quê dedicamos nossa energia. Se a gente quer mudar alguma coisa em volta, nada melhor do que começar por onde se trabalha. Para o Messiê, trabalhar e viver: só se for para transformar. Pelo menos morre com um sonho. Afinal, o afeto é uma condição da humanidade.”

Em síntese, é preciso que a pessoa esteja disposta a lutar por sua fragilidade, se ela desiste de vencer, passa a ter o direito ao picadeiro. Pois o picadeiro é para os palhaços - aqueles que, no circo, rompem a lógica. Quando todos superam a lei da gravidade, se pendurando em trapézios, equilibrando pratos, o palhaço é aquele que cai. Ele está ali para virar do avesso o mundo, seu mundo é um mundo ao contrário. Ele não é esperto, ele é idiota. Ele não é forte, ele é frágil. Além de toda a riqueza que pode ser depreendida desse episódio no tocante à experimentação é interessante o modo como o relaxamento se recusa a funcionar nos moldes previstos, em uma única palavra, sua recalcitrância.

 

A recalcitrância como potência: re-criando mundos

Um ponto de partida para essa reflexão é a própria etimologia da palavra recalcitrância. Ela vem do latim re calci trare, que significa dar com os calcanhares, escoicear, resistir com veemência, desobedecer (CUNHA, 1991). A partir disso, é possível vislumbrar o modo como esse conceito faz emergir uma imensa gama de possibilidades, uma vez que a recalcitrância se remete à relação, pois não se pode resistir, desobedecer, se não frente a alguma coisa ou alguém. O que quer dizer que é na relação que ela aparece, que o fenômeno se maximiza, colocando-se, assim, frente as diferentes possibilidades que permaneciam silenciadas até então. Por conseguinte, a recalcitrância renuncia a uma lógica de causa e efeito, uma vez que a partir dali as estabilizações são, ao mesmo tempo, configuradas (pois a recalcitrância faz frente a elas, revelando-as) e reconfiguradas (pois ela impõe uma redefinição dos vínculos). (LATOUR, 2004, 2002 e 2000).

Portanto, a noção de recalcitrância só pode ser definida dentro de um contexto. Nesse sentido, situá-la em seu cenário, em seu fluxo reestabelece a possibilidade de experienciação. Dessa forma,  ela assume um posto que deixa vislumbrar não apenas uma simples recusa, mas toda uma fabricação de acontecimentos que permite a construção de um mapa provisório para pensar a prática de intervenção clínica. 

Outro ponto que destacaria na recalcitrância é como ela torna possível perceber a singularidade, uma vez que ela redefine os vínculos, redesenha as bordas do cenário e até mesmo estabelece novos cenários. Em suma, a recalcitrância é essa trava a um certo fluxo ininterrupto do cotidiano.

Os atores se definem antes de tudo como obstáculos, escândalos, como aquilo que suspende a superioridade, que incomoda a dominação, que interrompe o fechamento e a composição do coletivo. Para falar de maneira popular, os atores humanos e não-humanos aparecem, então, como importunos. É pela noção de recalcitrância que convém, de modo especial, definir sua ação. (LATOUR, 2004, p. 150)

Desse modo, é possível dizer que a recalcitrância torna singular aquele acontecimento. Essa singularidade que torna possível “fotografar” as reconfigurações daquilo que está sendo vivido, experienciado. Em outras palavras, através desses acontecimentos, dessas trajetórias, a singularidade pôde ser vista em seu tracejado. Portanto, ela precisa ser pensada como um território de acontecimentos, onde as trajetórias dos sujeitos fabricam esse vivido.

Valendo-se da denominação de actante para designar tanto humanos quanto não humanos, a ANT objetiva abandonar a idéia de substância para destacar a idéia de agência, ação. Com isso, coloca-se em foco o fato de que os actantes acontecem na medida em que habitam o mundo, que se vinculam aos demais elementos desse mundo. Ou ainda, eles são mais autônomos quanto mais conectados estão. Em outras palavras, quanto mais vínculos se estabelecem, mais sua existência pode ser vista no mundo, e, assim, pode ser acompanhada em seus efeitos por aquele que quer investigá-los.

Frente a isso sintetiza Latour (2001) “Essência é existência e existência é ação.” (p.207). Mais uma vez o realce é dado à noção de ação, ação de fabricação. Portanto, o que importa não é só a idéia de vínculo, de relação, mas, principalmente, o que estes vínculos produzem, que efeitos decorrem dessas alianças.

 

A Gestalt-terapia no picadeiro: re-creando encontros

Será que não poderia se pensar a Gestalt-terapia como uma proposta psicológica que pode ser reveladora da recalcitrância? Afinal, ela própria subverte o caminho reflexivo a partir do por quê, criando a demanda pelo como (ROBINE, 1999). Um como que vasculha pelo vivido, pelo sentido, no aqui e agora e não no lá e então. Se o passado desaparece? Não, claro que não! Ele se torna presente na medida que se transforma em figura em comunhão com um fundo. Mais do que uma linearidade de causalidades, busca o olhar para relações, para aquilo-que-une (COLIN, 1999). Busca estar atento, primordialmente, para a atitude terapêutica.

Seguindo esse percurso é fundamental lembrar o quanto em Gestalt-terapia o conflito indivíduo / sociedade é genuíno (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997 e PERLS, 1973), o que significa entendê-lo em seus constrangimentos, bem como em sua capacidade de engendrar novos contextos, fabricar novos mundos (RIBEIRO, 1999) No processo psicoterápico, é comum acompanhar a recalcitrância, pois ela vivifica o momento em que é possível “fotografar” as configurações da experiência, fazendo com que a multiplicidade de possíveis tenha mais de um ponto de partida, mais de uma figura possível (OAKLANDER, 1980). Dito de outra forma a recalcitrância precisa ser pensada como um território pleno de vida.

Em outro sentido, tomando como base a relação dialógica, segundo Hycner (1995), é no encontro que o crescimento assume seu desenrolar e seguindo nessa trilha seria possível dizer que o próprio confronto, frente a frente, que deixa ver a sabedoria da neurose e sua potência. Dessa forma, objetivar a awareness significa tomar posse do que já está lá, trabalhar de fato com a Teoria Paradoxal da Mudança: simplesmente ser aquilo que se é (BEISSER, 1973 e YONTEF, 1998).

É nesse sentido, que o método fenomenológico se transforma em um aliado, pois ele permite, através de sucessivas epochés, voltar às “coisas mesmas”, o que significa instaurar o movimento como base para encontrar o mundo em suas verdades múltiplas (FORGUIERI, 1993 e TROTIGNON, 1965). Nesse âmbito, o perceber se refere a ação de entrar em contato com o mundo, produzindo uma zona de interação onde sujeito e objeto não podem ser distintos e tratados como unidades estáticas. Em outro sentido, o próprio objeto não é desprovido de intenção. Ele, nessa zona de interação, não é apenas resultado daquilo que o sujeito propõe. Pelo contrario, ele também possui como sugere Gibson (1986), uma capacidade de affordance, propiciação. Em outras palavras, ele também se insinua ao sujeito, criando assim, uma leitura em via de mão dupla.

Esse modo de entender traz como horizonte o trabalho desenvolvido pela Fenomenologia proposta por Depraz, Varela e Vermersch (2006 e 2003) em que o homem precisa ser encarnado, isto é, investido de seu corpo como território experiencial. Desse forma, o ato de perceber funciona mais como um espaço onde delimitar fronteiras rígidas pode por a perder o processo pelo qual essa relação, esse encontro, acontece. Portanto, nesse encontro atuar na dimensão do percebido em suas diferentes formas revela o campo de possibilidades. Em síntese, nessa aproximação com a recalcitrância buscamos pelo trabalho com o percebido, que não precisa ser dominado pelo ver, mas pode ser melhor entendido como a corporificação da experiência com o mundo. A recalcitrância, face à sua imensa potencialidade reflexiva, bem como à sua capacidade de exigir autenticidade, faz emergir um caminho em psicoterapia que merece ser mais explorado. Afinal, ela pode funcionar como um fenômeno metafórico que convoca a todos para um encontro cuja atitude permaneça autêntica (AMATUZZI, 1989).

Assim sendo, temos um encontro que vira arte - essa arte como expressão genuína, vivência última e primeira, única e principalmente intransferível, reservada ao mistério. A arte como experiência de estar no mundo, que anseia pelo “como” de cada um viver, onde a singularidade representa o brilho de simplesmente estar. Considerando que fomentar a investigação instigada pelo mistério não cessa, ela gera e regenera. Promove a transformação por excelência. A vida como processo de criação, onde aquilo que precede é re-criado / re-creado a cada instante.

 

Considerações finais

Desta forma, quem sabe a Gestalt-terapia poderia ser pensada como um ponto de chegada, ao invés de um ponto de partida? Assim, a cada vez que se inicia um processo terapêutico, talvez fosse preciso, em algum nível, reinventar, fabricar a forma de atuar, já que cada pessoa gera situações inusitadas. Do mesmo modo, a questão do indivíduo, quando vista desde a ótica da Gestalt-terapia, pode ser entendida como um falso problema. O que é designado como indivíduo passa a ser um ponto de chegada, uma estabilização provisória, portanto funciona como uma possível posição de observação, mas não necessariamente a única. Assim, é possível eliminar a idéia de representação e passar às coisas tal qual habitam o mundo. Ou, nas palavras de Serres (1994),

Retornar às próprias coisas, às multiplicidades misturadas, às dispersões, tomando-as tais quais, não mais encadeá-las em seqüências lineares ou planos múltiplos, tecidos em rede, mas tratá-las diretamente como grande número, grandes populações, nuvens. Onde a tecelagem regular torna-se exceção e não mais uma norma totalizante. (p. 124)

Não se trata de uma mera figura de retórica, mas de estabelecer no trabalho de clínico a compreensão de todos os elementos enquanto trajetórias e não enquanto essências. É, nesse sentido, que o fenômeno da recalcitrância assegura um lugar de potência para o encontro terapêutico. Dessa forma, os palhaços e suas técnicas de explicitação da perda podem nos sensibilizar para a re-creação de nossos encontros.

Resta a seguinte pergunta: seria isso possível no interior de uma abordagem clínica? É difícil responder sem vivê-lo. De qualquer modo, a Gestalt-terapia ou qualquer outra narrativa não precisa mais do que belas metáforas que ampliem movimentos criativos (SAARINEN; USCHANOV, 1998). Não precisa mais do que boas histórias que permitam um sono sonhado. Se isso é possível na psicoterapia? Depende de como a vivamos, do quanto nossa vida possa estar fielmente sendo sentida por nós. Já que estamos remetidos a vida, cabe então perguntar: sobre a morte. Afinal, ela sim representa um bom exemplo de recalcitrância. Seria ela o fim disso tudo? Não, pelo contrário, seria o princípio, o esvaziamento que permite o recontar de uma história com outras e cada vez mais belas metáforas.

Se as narrativas puderem deixar de ser tentativas de supressão do erro - de melhoria da precisão – poderão experimentar a surpresa de depararem-se com brechas. Espaços do vivido desse homem, que vive sua vida - em seu tempo, com seus contemporâneos (COMBTE-SPONVILLE, 1997). Um homem recheado de histórias que ele as faz dele na medida em que pode, usando aquilo de que dispõe, sem precisar parar de investigar esse mundo vivido, esse mundo que também pode ser ao contrário.

 

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Endereço para correspondência
Alexandra C. Tsallis
E-mail: alexandra.tsallis@terra.com.br / atsallis@gmail.com

Recebido em: 06/04/2008
Aceito para publicação em: 01/07/2008
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra Torres Prestrelo

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ - RJ, Brasil
1 Atualmente, Márcio Libar já não faz parte do Teatro de Anônimo, seus trabalhos podem ser acompanhados a partir de seu projeto Mundo ao Contrário, disponível na internet pelo endereço. www.mundoaocontrario.com.br
2 Palavra utilizada para designar as pessoas que aspiram desenvolver-se na arte da palhaçaria.
3 O motivo por utilizarmos a sigla em inglês – ANT – ao invés de em português para designar a Teoria Ator-Rede se deve ao fato da palavra inglesa ant significar formiga. Nesse sentido, a Teoria Ator-Rede é aquela que percorre os pequenos caminhos, as trilhas do mundo, os percursos da formiga.
4 A palavra invenção tem sua origem no termo latino Invenire, que significa criar a partir dos restos arqueológicos (KASTRUP, 2007).
5 Gags são todas os pequenos números ou gestos repetidos pelos palhaços.

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