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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Identidade, consumo e sociabilidade: implicações éticas

 

Identity, consumption and sociability: ethical implications

 

 

Rafael Ramos Gonçalves

Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ - RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Durante o período da Modernidade intensificou-se o processo de falência das instituições responsáveis pela elaboração de narrativas que serviam de norte aos indivíduos. Este artigo atenta para as novas configurações decorrentes deste processo e tenta compreender, no contexto da sociedade do consumo, em que consiste a “identidade pós-tradicional” (SLATER). De fato, o ato de consumir é uma espécie de necessidade existencial, isto é, um caminho privilegiado para as negociações de identidade. Esta tendência favorece condutas narcísicas, nas quais o mundo privado é privilegiado em detrimento do público, sendo este tratado como espaço de realização dos próprios interesses. Uma das principais conseqüências disto é o afastamento da liberdade de sua dimensão política. O artigo oferece uma análise da formação deste cenário, indicando o modo como a lógica do consumo influencia a sociabilidade contemporânea, comprometendo o interesse pela dimensão pública da existência humana.

Palavras-chave: Consumo, Subjetividade, Sociabilidade.


ABSTRACT

During Modernity, the process of bankrupting of the institutions responsible to support stable references to people increases. This article refers to the new configurations of this process and tries to comprehend, in the context of the society of consumption, the meaning of “post-traditional identity” (Slater). In fact, the act of consuming is kind of an existential necessity, that is, an easy way to get to identity business. This tendency favors selfish attitudes, in which the private world takes advantage of the public world, this being treated as a space of self realization. One of the principal consequences of it is the distance between freedom and its political dimension. The article offers an analysis of this scenery background, pointing out the way how the logic of consumption influences the contemporary sociability, compromising the interest to the public dimension of human being existence.

Keywords: Consumption, Subjectivity, Sociability.


 

 

Introdução

Desde a modernidade experimenta-se a falência ou enfraquecimento das grandes tradições e instituições, geradoras das narrativas que serviam de norte aos indivíduos. Sendo todas elas normalmente relacionadas a instâncias divinas, as contingências do mundo não as ameaçavam. Transcendentes à ordem humana, podiam propiciar certa estabilidade aos que se apoiavam nelas.

A soberania destes discursos sobre a humanidade sofreu um forte golpe graças a movimentos como a Reforma, o Protestantismo, o Humanismo Renascentista, a revolução científica e o Iluminismo, que contribuíram para a concepção de um sujeito livre, soberano sobre a natureza, senhor de si. Esta modificação psicossocial, aliada ao contexto pós-tradicional, produziu o que Slater (2002) denomina “identidade pós-tradicional”. Em meio à fluidez de valores e papéis sociais, as identidades deixam de ser fixas e sem ambigüidades, exigindo-se ainda mais dos indivíduos a capacidade de escolha, porque somente assim ele pode situar-se no todo social. O indivíduo precisa dedicar-se à contínua negociação de sua identidade, de acordo com as esferas sociais por ele percorridas.

É interessante notar que é no âmbito da pós-modernidade onde a concepção de eu unificado, auto-contido, tende a ser menos considerada por parte das ciências humanas. As profundas modificações sócio-culturais favorecem o aparecimento de uma compreensão de eu descentrado e inacabado, imerso no mundo em constante transformação, esta cada vez mais acentuada em função dos avanços tecnológicos.

Talvez em decorrência desses aspectos, a perspectiva teórica pós-modernista a respeito da subjetividade tende a valorizar uma abordagem sócio-histórica, destacando, com isto, a contingência da subjetividade, relacionada à dimensão social de sua constituição. As certezas às quais a modernidade aspirou são abaladas pelas incertezas pós-modernas, expressas, por exemplo, no Holocausto e ameaças nucleares, que colocaram em dúvida a capacidade da razão em conduzir-nos pelas sendas de um progresso assegurado pela técnica.

O enfraquecimento do papel da razão científica na tarefa do progresso humano influenciou consideravelmente na substituição do dualismo sujeito-objeto por uma epistemologia social. Daí o crescimento, por exemplo, do interesse nas relações entre linguagem e realidade, baseado na tese de que se a “linguagem é um produto social, o conhecimento sobre o mundo se baseia em processos sociais” (COLLIER et al., 1996, p.490). A linguagem é assumida como um elemento determinante de nossa concepção de mundo, na medida em que a usamos para organizar nossas experiências, modelando nossa percepção dos objetos.

Percebendo isto, Stuart Hall (2001) opera uma analogia entre a linguagem e a identidade. Ele argumenta que, se os significados experimentados não são fixos, mas são dados a partir da relação entre os termos de uma língua, o mesmo ocorre com a identidade. Segundo o mesmo autor (HALL, 2001, p.41), os filósofos da linguagem, como Derrida, afirmam que “apesar dos seus melhores esforços, o/a falante individual não pode, nunca, fixar o significado de uma forma final, incluindo o significado de sua identidade” (HALL, 2001, p. 41).

Esta condição é facilmente experimentada na sociedade contemporânea, onde participamos de uma forma social incapaz de sustentar uma definição consistente de nós mesmos, tamanha a mobilidade dos símbolos, isto é, palavras e imagens que circulam em profusão, levando-nos a experimentar uma gama imensa de significados e também de papéis que somos chamados a desempenhar (GERGEN, 2006).

Entretanto, o colapso dos referenciais identitários estáveis não foi acompanhado pela extinção do desejo de pertencer a um grupo. Os rígidos papéis sociais de outrora desapareceram, mas foram substituídos por uma pluralidade de estilos de vida elaborados mediante o consumo. Nas palavras de Slater (2002, p. 87), vivemos numa “interação vertiginosa de miríades de modos de vida possíveis, nenhum deles com autoridade ou valor cultural indiscutível” (p. 87). Não há mais posições sociais e eus “divinamente ordenados” (p. 87). Agora cabe unicamente ao indivíduo a tarefa de administrar a si mesmo, com as ferramentas dispostas pelo mercado.

 

Identidade, Consumo e Sociabilidade

A crise identitária inaugurada na modernidade conecta-se à cultura do consumo da seguinte maneira: se as escolhas individuais estão orientadas à satisfação das necessidades pessoais, e se o consumo é o principal meio de acesso às ações e experiências necessárias à construção da própria identidade, esta acaba sendo convertida em uma mercadoria. O eu deixa de possuir aquela aura de autenticidade e se converte em algo passível de cálculo, em nome da adaptação social. O ato de consumir transforma-se em uma espécie de necessidade existencial, pois temos “de produzir e ‘vender’ uma identidade a vários mercados sociais, a fim de ter relações íntimas, posição social, emprego e carreira” (SLATER, 2002, p.87).

A partir do momento em que o comércio de identidades é percebido como um bom negócio, a sociedade de consumo, por meio do marketing, atribui aos seus produtos, de maneira cada vez mais sofisticada, o poder de satisfazer as aspirações identitárias dos consumidores. Digo satisfazer porque, na verdade, como disse antes, o desejo de se ligar a um grupo e encontrar um “lugar ao sol” não desapareceu. O que a sociedade de consumo vai fazer é intensificá-lo ainda mais, propondo ideais de vida jamais imaginados. E, se o imaginário não tem limites, ele pode ser tomado, sem dúvida, como um “mercado” muito promissor.

Os indivíduos capturados por tal dinamismo social experimentam grande ansiedade porque percebem que suas escolhas têm um impacto significativo sobre a percepção que os outros têm sobre sua pessoa. Ao mesmo tempo precisam contornar a difícil tarefa de escolher algo em meio a tantas ofertas de modos de ser, sem ter garantias seguras sobre o acerto de suas escolhas. Fico a pensar se este não seria um motivo significativo da proliferação de tantos personal-alguma-coisa e de publicações que ensinam como ser feliz, como administrar suas finanças, como se vestir para o Ano-Novo, Natal, Chá-de-Panela-realizado-às-10-da-manhã, e tantas outras opções que nossa imaginação permite acrescentar. Este é um claro exemplo da descrição sobre a pós-modernidade apresentada no começo do trabalho: ausência de garantias sobre quem somos.

Um exemplo banal disto é extraído do trabalho de Anderson (2002). O autor nos lembra que uma calça jeans “com um buraco no joelho pode ser jogada no lixo por uma pessoa e ser uma preciosa peça de vestuário para outra” (p. 175). O que determina o valor de tal objeto? O preço? Ou o sentido que uma calça rasgada possui no contexto onde uma pessoa vive? Só quem pegou a calça no lixo pode responder. E o significado do objeto será necessariamente diferente porque alguém o dispensou enquanto outra pessoa aproveitou. Os agentes do marketing sabem que existe essa relação simbólica entre consumidor e produtos e, por esta razão, se esforçam por conceber estes últimos de acordo com os interesses dos grupos que pretendem atingir, na expectativa de que as pessoas se identifiquem com os significados agregados à mercadoria e o escolham. Para Anderson (2002), embora o aspecto simbólico dos produtos sempre estivesse presente – vinculado às relações de classe e tradição – ele passou a ser intencionalmente investido para estimular as vendas, permitindo ao simbolismo em torno do consumo invadir “as fábricas, lojas e pontos de vendas, conquistando-os completamente e ocupando o território” (p.175).

As implicações psicossociais desta faceta do consumo podem ser percebidas quando se analisa o processo de mundialização. De acordo com Severiano (2006, p. 62), embora a mundialização esteja sujeita às particularidades dos povos, percebe-se uma tendência a um “padrão civilizatório”, isto é, um conjunto de objetos de consumo, que implicam “um conjunto de novos valores e comportamentos que se vinculam com o espaço desterritorializado, típico do mundo globalizado” (p.62). Certos espaços como aeroportos, bancos e certas marcas de produtos ultrapassam as fronteiras geográficas e culturais e, através da mídia, podem ser assimilados em diversas partes do globo. A questão do simbolismo aparece na formulação de novas necessidades, pois, ainda segundo Severiano (2006), os valores dos produtos advém não mais “das necessidades internas dos indivíduos, mas dos interesses do sistema econômico” (p. 63). Assim, os significados dos produtos não emanam originariamente dos consumidores, mas do mercado.

Esta mudança faz com que o indivíduo, antes voltado para o interior, numa jornada em busca do eu, pela introspecção, seja forçado a lançar seu olhar para fora, donde ele recebe algumas indicações, mesmo que fugidias ou pouco precisas, da adequação de sua identidade. Deste modo, instala-se uma forma de sociabilidade marcada pelo narcisismo, onde os indivíduos buscam seu eu não mais em seu “interior”, mas no “consumo, na aparência e no desempenho social” (SLATER, 2002, p.90). É necessário atentar para as demandas externas que incessantemente se modificam, sejam as provenientes de pessoas com as quais se convive diretamente no cotidiano, sejam, ainda, aquelas que nos alcançam pelas propagandas, jornais, revistas etc.

O discurso do contexto trabalhista reflete com lucidez o que estou afirmando, especialmente quando se recorda a necessidade de se manter atualizado. O profissional que ocupa determinado cargo, não é o mesmo do início do ano passado. Certamente ele precisou ajustar-se às diversas modificações ocorridas, ao longo de um ano, nas relações de trabalho. Neste sentido, Lipovetsky (1989) tem razão ao afirmar que o princípio-moda domina a hipermodernidade, disseminando-se pelos mais variados setores da sociedade, exigindo que o sujeito seja capaz de perceber as mínimas modificações operadas ao seu redor para que possa efetuar os ajustes necessários, de modo a evitar um prejuízo em seu “eu performático”.

Com isto a idéia de que se observa os outros para avaliar a própria condição sofre uma pequena variação. Não se observa o outro para notar que ele tem determinado carro e eu não e por isso estou em uma posição inferior socialmente. O que se avalia agora é a qualidade da experiência subjetiva. Para Lipovetsky (1989, p.173),

consome-se cada vez menos para ofuscar o outro e ganhar consideração social e cada vez mais para si mesmo [...] o que conta é menos a opinião dos outros do que a gestão sob medida de nosso tempo, de nosso meio material, de nosso próprio prazer.

Talvez por isso Slater (2002) proponha a idéia de que a noção freudiana de narcisismo é bastante útil para a análise da sociedade do consumo porque ela condensa dois aspectos marcantes da subjetividade contemporânea: a fragilidade do eu pós-moderno e a obsessão consigo.

Estas duas características, reunidas, produzem modificações na sociabilidade às quais a idéia de narcisismo aponta: uma percepção equivocada dos limites entre o eu e os outros. Os indivíduos que agem segundo esta dinâmica psicossocial do “consumo para si mesmo”, tendem a confundir as fronteiras entre o eu e o outro, entre o privado e o público, concedendo preferência ao registro da intimidade e se relacionando com o mundo apenas como meio de obter a gratificação de suas necessidades.

O indivíduo hipermoderno parece realmente enredado numa busca ansiosa por auto-afirmação, movido por um certo desejo de onipotência, legado da modernidade, mas que ainda persiste, apesar das condições desfavoráveis a sua realização. Basta observar com um pouco de atenção os ideais propostos pelas propagandas que parecem ignorar o fato de que o indivíduo hipermoderno possui limites e fraquezas derivados da condição de ser “um personagem atado a redes sociais, com as quais deve negociar para chegar a uma linguagem que fale de si” (PEREIRA, 2004, p.120).

Os ideais veiculados pelo consumo falam de um sujeito vigoroso, cheio de vitalidade, perseguidor dos seus desejos. Paradoxalmente, no entanto, estes ideais não parecem ser cumpridos facilmente. Quanto mais os indivíduos são instados a consumir e afirmar a si mesmo, mais experimentam ansiedade e incerteza sobre si, aumentando também a dificuldade em assumir, eles próprios, o governo de sua existência. Assim, segundo Lipovetsky (2004, p.84) “quanto mais o indivíduo é socialmente cambiante [...] quanto mais ele quer viver intensa e livremente, mais se acumulam os sinais do peso de viver”.

Em um cenário que incita à busca de si mesmo, os indivíduos narcísicos enfrentam a dificuldade de distinguir o que é inerente à autogratificação e aquilo que não é, ou seja, aquilo que é inerente ao outro, ao seu modo de ser e a seus desejos. Em tal atitude a alteridade não tem vez porque o mundo é sempre visto como reflexo de si, não havendo espaço suficiente para a entrada de um intervalo entre o eu e o outro, que faça aparecer na cena comum as suas singularidades.

É importante ressaltar que a observação de Pereira (2004) sobre a construção social de si não é novidade. A novidade aparece quando, no século XIX, a noção de personalidade invade o domínio público, estimulando a valorização das sensações e percepções e a promoção das diferenças como meio de expressar a si mesmo. As roupas e discursos, neste caso, passam a ser valorizados como indicadores do eu autêntico, fazendo desaparecer a “distância do eu” característica do espaço público até então, onde o comportamento público e privado não precisava coincidir. Com a privatização do espaço público, a distância entre ser e parecer desapareceu, e a distância entre o eu e o outro tornou-se bastante reduzida.

Esta invasão dos aspectos privados no domínio público, tão banalizada em nossa sociedade, contribuiu significativamente para a formação deste modo de subjetivação narcisista, pois, a partir daquele momento, os limites que mantinham os apelos do eu afastados do espaço público foram arrancados.

Na opinião de Pereira (2004), o princípio do narcisismo governa a vida adulta na sociedade capitalista, caracterizando-se “pelo investimento de paixão não na ação, mas na busca dos seus próprios motivos de ação” (p.123). Isto significa que as pessoas atuam no mundo guiadas pelos seus impulsos e negligenciam as formas de sociabilidade baseadas no jogo da interação social, onde necessariamente se excluem as expressões do mundo privado para deixar acontecer o drama humano, com todo risco que lhe é inerente:

Quando se perdem os limites da esfera da ação, em que se desenrola a trama política e se tece a liberdade humana, perde-se também a importância da palavra, da linguagem e de seu potencial de desvelamento e de elucidação das questões da vida em comum, do mundo público (PEREIRA, 2004, p.124)

Liberdade e política separam-se e a primeira se torna sinônimo de liberação das necessidades da vida. Enquanto no mundo grego a família era o lugar exclusivo da busca de satisfação das necessidades, percebemos com muita clareza que é no público onde devemos encontrá-la. Por esta razão, Pereira (2004) acrescenta que, na perspectiva de Hannah Arendt, a modernidade converteu a coletividade em lugar de negócios privados. Esta nova organização política incorpora os componentes antes pertencentes à esfera familiar, ou seja, a manutenção da vida individual e da espécie. A sociedade, então, “disfarça seu verdadeiro caráter, que é o de uma organização de proprietários que buscam proteção para seus interesses privados, principalmente a acumulação de riquezas” (PEREIRA, 2004, p.126). É deste modo que a esfera pública fica subordinada à privada e esta se torna a verdadeira preocupação comum. Mas se esta se torna a principal preocupação, como fica o mundo público?

Costa (1994) aborda este problema na perspectiva do ideal de felicidade presente na sociedade de consumo: “como conciliar o bem comum com uma idéia de felicidade privada cuja cláusula de satisfação é a indiferença para com o outro, individual e coletivo?” (p.1). De fato, a restrição ao âmbito privado da vida pode ser considerada o aspecto negativo (certamente o consumo proporciona muitos benefícios também) da liberdade fomentada na cultura do consumo, dado que os atos particulares de consumo são desprovidos de importância pública. Para Slater (2002, p.35), “não consumimos com a finalidade de construir uma sociedade melhor, para sermos pessoas melhores e viver uma vida autêntica, mas para aumentar os prazeres e confortos privados”. Deste modo, a cultura do consumo não incentiva o fortalecimento de uma sociedade sedimentada na cooperação e solidariedade. Se os desejos individuais não são ordenados por quaisquer instâncias, sendo as escolhas deixadas ao governo das preferências individuais, mostra-se pertinente a observação de Slater (2002, p.36) que se assemelha à de Jurandir Costa, citada acima: “a privacidade da escolha individual parece contradizer a solidariedade, a autoridade e a ordem social. Se os indivíduos definem seus próprios interesses, como a sociedade pode se manter coesa?” Tal busca por felicidade dá continuidade às modificações na sociabilidade já comentadas. De fato, o homo consumens (BAUMAN, 2004), tipo que descreve os praticantes do consumo, é um personagem “solitário, auto-referente e autocentrado comprador que adotou a busca pela melhor barganha como uma cura para a solidão” (p. 89) e que tende a tratar as outras pessoas de seu convívio como “objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu ‘valor monetário” (BAUMAN, 2004, p.96). Enfraquece-se, com isto, a preocupação com a singularidade dos outros e com o valor que eles podem manifestar por si mesmos.

Estas observações de Bauman (2004) nos reconduzem ao texto de Costa (1994). Aqui encontramos crítica semelhante, que nos permite vincular consumo, felicidade, e alteridade. Embora Bauman (2004) não mencione o ideal de felicidade como fator influente na forma de sociabilidade por ele descrita, suas considerações são adequadas para assinalar o sentido de felicidade associado ao consumo. Podemos supor isto a partir da afirmação sobre a ordem proposta pelo mercado aos consumidores: “ame os objetos, eles jamais dizem ‘não’! São dóceis e programados para realizar o que julgamos saber sobre a satisfação de nossos desejos” (COSTA, 1994, p.2). Do mesmo modo, para retomar a tese de Bauman (2004), os outros, quando tratados como os objetos do consumo, deverão proporcionar esta experiência do “sim” absoluto aos nossos desejos. Nada de diálogo, divergências, surpresas, ou seja, tudo o que tornava o espaço público de outrora mais rico e que promove o fortalecimento dos laços com o mundo.

As conseqüências deste tipo de sociabilidade podem ser desastrosas. O indivíduo hipermoderno parece ter regressado àquela concepção de “eu” que nega sua ligação às contingências das relações sociais. A visão de Contardo Calligaris (1996) sobre um “narcísico mundo novo” lembra-nos dos possíveis problemas gerados pela influência do consumo na construção identitária:

Frequentemente, a procura de um fundamento levará as pessoas a se agarrarem em identidades imaginárias, como se estas fossem propriedades intrínsecas de seu ser. As possibilidades de diálogo, negociação e conciliação entre identidades diferentes serão difíceis, pois, à diferença dos valores simbólicos, as imagens narcísicas – embora substituíveis – são, uma vez assumidas, compactas e inalteráveis (CALLIGARIS, 1996, p.52).

Na medida em que as identidades se firmam, aumenta o apego a elas e, por conseguinte, cresce a intolerância ao que difere desta auto-imagem conquistada. Isto corresponde ao que Pereira (2004) designa por fascinação, um fenômeno bastante comum na contemporaneidade.

Enquanto na sedução existe o ritmo “oscilante do segredo/revelação, velado/desvelado, visível/invisível, oscilação cara a Heidegger no que diz respeito à essência da verdade” (PEREIRA, 2004, p.133), a fascinação, ao contrário, está associada a uma imobilidade, e a uma absorção no objeto da percepção, a “pura presença [...] do olhar sem objeto” (PEREIRA, 2004, p.133), ou seja, sem a distância necessária à experiência do que está adiante. Em outras palavras, fechamento à dialética do objeto ou do seu significado.

Esta forma de viver limita a experiência ou modela uma forma de convívio humano onde as ocasiões para a experiência são escassas. Na verdade o consumo não é o único responsável por isso. O excesso de trabalho, informação, opinião e, particularmente a falta de tempo, também colaboram, também são obstáculos a experiências mais satisfatórias (BONDÍA, 2002). Todo este excesso produz um sujeito “consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito” (BONDÍA, 2002, p.23). Estas condições contribuem ainda mais para a manutenção de identidades fluidas, flexíveis, próprias desta nova fase da modernidade. Percebamos que o consumo não é “mais uma” prática cultural. Ela é por si só uma cultura que promove a lógica da sucessão de instantes, do efêmero, à semelhança da temporalidade que rege a existência ou a validade dos produtos. Um modo de ser e de viver que avança velozmente afetando tudo e todos.

Este ritmo frenético pertence à dinâmica da “vida instantânea”, caracterizada pela “anulação da resistência do espaço e liquefação da materialidade dos objetos” (BAUMAN, 2001, p.145), onde as experiências e relações são pautadas igualmente pela instantaneidade, ou seja, pelo “curto prazo” de sua existência. A duração perde progressivamente a importância de outrora e os casamentos, terminados cada vez mais cedo, bem como a dificuldade que temos de conviver em maior qualidade com as pessoas, dão testemunho disto.

Assim como no âmbito da produção de mercadorias, percebe-se que os atributos da instantaneidade e descartabilidade se fazem presentes nas relações humanas, introduzindo nelas o regime da fugacidade. A revolução do consumo foi um dos principais veículos de condicionamento das pessoas a este ritmo. Os objetos duráveis, destinados a anos de existência, foram substituídos pelos objetos transitórios, destinados ao consumo e, portanto, com seu desaparecimento condicionado ao próprio ato de consumir. Aqueles que se relacionam com estes produtos são gradualmente induzidos a assumir o ritmo da “obsolescência programada”, conformando-se a uma temporalidade submetida ao signo da urgência, de tal maneira que as escolhas na era da instantaneidade passam a ser avaliadas pelo grau de gratificação que proporcionam, evitando-se ao máximo possíveis riscos associados a elas (BAUMAN, 2001).

Para Lipovetsky (2004), realmente existe uma notável relação entre o novo regime temporal e as paixões consumistas, que foi construída ao longo da história, acompanhando a evolução da economia. Ele afirma que o ímpeto consumista dos indivíduos está associado ao prazer pelas novidades e o desejo de “renovar sua vivência do tempo, revivificá-las por meio das novidades” (p. 79), que a sociedade de consumo não cessa de oferecer. Esta correlação (tempo-consumo) não é tão nova. Já em 1830, de acordo com Carl Honoré (2006), Tocqueville apontava o vínculo entre o impulso para o consumo e a dimensão temporal da vida: “Aquele que volta seu coração exclusivamente para a busca do bem-estar material está sempre com pressa, pois tem à sua disposição um tempo limitado para tocar, capturar e desfrutar” (HONORÉ, 2006, p.43). A duração, que antes era um valor, passa à condição de risco. Reter ou apegar-se excessivamente a certos objetos, pessoas, ou valores é uma decisão que restringe ou impede os movimentos, colocando o indivíduo em uma situação desfavorável, numa época onde impera a velocidade, onde somos provocados a experimentar as mais diversas possibilidades que a sociedade do consumo dispõe. Entrar neste ritmo significa querer tudo e nada ao mesmo tempo. Significa querer os livros, jornais, viagens, roupas, lazer, férias, mas correndo o risco de não conseguir aproveitá-las da maneira desejada, pois o excesso de afazeres acaba diminuindo nosso tempo para tocá-los, capturá-los, desfrutá-los, como disse Tocqueville. Eis nosso paradoxo: temos condições de fazer mais coisas e cada vez menos tempo de desfrutá-las. E assim a insatisfação é preservada e o consumo renovado.

 

Considerações finais

Seja pelos ideais de identidade que se associam aos objetos de consumo, seja pelas sensações despertadas pelo movimento consumista, os indivíduos tendem a investir mais em si do que no mundo. Sob a influência dos meios de comunicação de todo tipo percebemos a difusão de um certo consenso quanto aos modos de ser e as preocupações da vida, o que anula a transitoriedade do tempo e a substitui por sucessões de instantes pelos quais os indivíduos são configurados na forma narcísica, estimulados a olhar o mundo de forma individualizada e buscando safar-se dos problemas que surgem de modo também individualista. E é talvez por esta razão que ouvimos tantas pessoas se mostrarem despreocupadas com a ameaça de falta d’água no planeta porque provavelmente não estarão vivas quando tal previsão se realizar!

Meu esforço neste trabalho não foi condenar o consumo como responsável pelo enfraquecimento da sensibilidade para com a dimensão pública da existência, mas argumentar que ele contribui muito para a promoção de um tipo de sociabilidade que já estava em formação antes da consolidação de uma “sociedade de consumo” tal como a conhecemos.

A ênfase na dimensão individual ou privada da vida é mais do que “adequada” ao estilo de vida dominante. Tudo que é da ordem da alteridade passa tão rápido diante de nós que fica difícil estabelecermos relações duradouras e sensíveis. As condições para atenção são bastante desfavoráveis. Parar, ficar sem fazer nada, parece absurdo diante de tantas alternativas.

Neste sentido são muito valiosos os comentários do filósofo Jean Lacroix (2006) sobre o “culto da emoção” na atualidade. Ele nos lembra que, em meio a este mundo de tantas possibilidades e de ansiedade em consumi-las, nós “tiramos maior proveito das coisas quando adiamos o momento de usufruí-las” (p.164). Isto é muito interessante porque a lógica do consumo prevê que se abrevie cada vez mais a “vida útil” das coisas, encurtando também o intervalo das compras. Daí o predomínio da emoção-choque sobre a emoção-contemplação.

A primeira, segundo Lacroix (2006, p.132), refere-se ao instante, à variedade, enquanto a segunda é mais duradoura e elaborada, favorável a um desfrute realista da vida e não a esse delírio de felicidade, que conduz tantas pessoas à depressão, ao esgotamento subjetivo provocado pela compulsão em ser e fazer (EHRENBERG, 2000).

Numa lição de esperança a todos nós, Lacroix (2006, p.168) conta-nos uma história que merece ser transcrita por completo:

Um bandido, um pintor, um avarento e um sábio estavam viajando juntos. Ao cair da noite, encontraram refúgio numa gruta.

_ Que belo esconderijo para marginais! – exclamou o bandido.

_ É um local perfeito para esconder um tesouro – observou o avarento.

_ Que belo tema para um quadro, esses jogos de luz e sombras nas paredes! - suspirou o pintor.

_ É um lugar propicio à meditação. Poderíamos fazer um convento de eremitas aqui – sugeriu o monge.

_ O sábio proferiu estas simples palavras: _ Que linda gruta!

Todos os personagens, exceto o sábio, pretendiam consumir aquela gruta de algum modo. Não se mostraram disponíveis à gruta enquanto tal, dissociada de seus desejos. A atitude destes personagens não está distante do mundo em que vivemos, regido pela razão instrumental, onde cada um deve se preocupar em calcular o melhor para si. Por isso esta é uma história valiosa para todos nós. Ela sugere (e nos adverte) que as coisas e pessoas à nossa volta não devem ser tomadas exclusivamente como meio de satisfazer nossos desejos. Ela nos convida a reconsiderar a inutilidade das coisas, revelada apenas quando voltamos nossa atenção para aquilo que não responde às nossas intenções. Por isso, diz Lacroix (2006, p.168), a “disponibilidade pressupõe a abolição do útil, a gratuidade absoluta, o ‘nirvana’ da intencionalidade”. Eis um caminho ao alcance de todos que pretendem ter um relacionamento mais livre com o consumo, sem deixar-se consumir por ele, esquecendo que a vida humana é mais do que a alegria de adquirir novos prazeres. Como nos lembra Bauman (2001, p. 105), “mudar de identidade pode ser uma questão privada, mas sempre inclui a ruptura de certos vínculos e o cancelamento de certas obrigações”. Por isso a necessidade de atentar para a responsabilidade frente às escolhas, a atenção às conseqüências do posicionamento assumido diante do mundo.

O potencial excludente das práticas de consumo é algo que tentei apontar nestas considerações. Ainda que a sociedade de consumo seja algo irreversível, precisa-se atentar para os possíveis prejuízos acarretados à promoção de uma liberdade geradora de cooperação e interesse pela dimensão pública, comum, da existência humana. Afinal, se o consumo enquanto expressão do domínio técnico da vida oferece os meios para a administração da existência de modo individual, liberando-nos das dependências diretas, ele também induz “à competição mais ríspida, em vez de unificar uma condição humana inclinada a gerar cooperação e solidariedade” (BAUMAN, 2004, p.106).

 Trata-se de um compromisso ético recordar que o exercício da liberdade tem uma dimensão social. Concebê-la como liberdade orientada predominantemente a si é negar os riscos e incertezas que ela comporta, atributos característicos dos assuntos humanos e do sujeito moral. A tarefa de construir a si mesmo precisa ser executada simultaneamente à disponibilidade para exercitar a sensibilidade ensinada pelo sábio da história narrada anteriormente.

Talvez esta seja uma forma de cada um pensar criticamente sobre a dimensão moral de nossa sociabilidade, analisando as implicações contidas no tratamento de certas questões públicas como um artigo de consumo a mais, onde o que conta é “um pequeno surto de bem-estar participativo” sem nenhum comprometimento “com alguma forma de consolidação dos próprios valores e raízes, mas sim uma mera espetaculosidade dos valores, sem nenhum penhor de engajamento ético” (LIPOVETSKY, 2005, p.112).

 

Referências Bibliográficas

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BONDÍA, J.L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n.19, p.20-28 Jan/Abr. 2002. Disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/275/27501903.pdf . Acesso em: 15/01/2007.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rafael Ramos Gonçalves
E-mail: rafrj@yahoo.com.br

Recebido em: 25/06/2007
Aceito para publicação em: 16/08/2007
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra Torres Prestrelo

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