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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Revisitando o conceito de eu em Freud: da identidade à alteridade

 

Revisiting the concept of ego in Freud’s writing: from identity to alterity

 

 

Jacqueline de Oliveira Moreira*

Professora do Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica/PUC-MG - MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto pretende ser uma revisão crítica de textos freudianos que se dedicam à questão da presença do outro no processo de constituição do eu. Nesse caso, o texto de Freud, Narcisismo: uma introdução (1914), apresenta-se como uma condição de possibilidade para o desenvolvimento de nossa reflexão. Tentaremos acompanhar as modificações freudianas no que tange à “teoria do eu”. Partiremos da noção do eu como um espaço subjetivo supostamente isento de conflitos e como dispositivo a serviço da realidade, capaz de conter e canalizar o fluxo de energia livre para, então, reconhecer o eu como constituído e determinado na e pela relação com o campo da alteridade. O eu deverá ser concebido como resultado de uma complexa sobredeterminação que envolve não apenas o inconsciente e o Id, mas também o espaço intersubjetivo.

Palavras-chave: Eu, Identidade, Alteridade.


ABSTRACT

This paper aims to be a critical review of freudian writings about the presence of the other in the process of construction of the “ego”. Freud's On Narcissism: An Introduction (1914) presents itself as a condition of possibility for the development of our reflexion. We will try to entail freudian changes when they come to the "theory of the eu". We will start our discussion with the concept of “ego” as a subjective place, supposedly free from conflict, and as a device of reality capable of containing and channeling the unblocked energy flow; then we will recognize “ego” as something constituted and determined by the different figures of alterity. The ”ego” must be conceived as a result of a complex overdetermination that involves not only the unconscious and the Id, but also the subjective place.

Keywords: Eu, Identity, Alterity.


 

 

O tema central do texto é a defesa da presença do outro no processo de constituição do eu. Nesse caso, o texto de Freud, Narcisismo: uma introdução (1914) apresenta-se como uma condição de possibilidade para o desenvolvimento de nossa reflexão. Tentaremos acompanhar, ainda que esquematicamente, as modificações freudianas no que tange à “teoria do eu”. Pensamos que a teoria do eu na obra freudiana apresenta quatro grandes marcos: a introdução do eu na discussão sobre a experiência de satisfação (1895); o dualismo pulsional, pulsão do eu versus pulsão sexual; a discussão sobre o narcisismo (1914); e, o eu como instância psíquica (1923).

Partiremos da noção do eu como um espaço subjetivo, supostamente isento de conflitos e como dispositivo a serviço da realidade capaz de conter e canalizar o fluxo de energia livre para, então, reconhecer o eu como constituído e determinado pelo campo da alteridade. Podemos perguntar por que se dedicar a uma reflexão sobre o eu em uma teoria que apresenta um princípio alteritário como sua maior marca. A teoria freudiana é, acima de tudo, uma reflexão sobre o outro que habita o eu. Mas nosso interesse se justifica na medida em que uma reflexão sobre as vicissitudes do eu no interior da teoria freudiana pode revelar a passagem de uma confiança ilustrada na razão para uma perspectiva cética.

Antes da elaboração de 1914 sobre o narcisismo, Freud pensava o eu como uma instância reguladora, vinculada à realidade e protegida das dissimulações da sexualidade. O dualismo entre a pulsão do eu ou de autoconservação e a pulsão sexual é sustentado pela tese da assexualidade do eu. Uma pulsão é sexual, e a outra não. A introdução do conceito de narcisismo promove um abalo no dualismo pulsional, ao colocar no horizonte da dinâmica pulsional a possibilidade de investimento sexual no próprio eu, criando, pois, a libido do eu. A pulsão de autoconservação ou do eu parece trabalhar no sentido da manutenção do ideário moderno de uma consciência submetida à realidade e à perspectiva da manutenção da ordem. Segundo Birman (1997, p. 28)

as pulsões de autoconservação e o seu correlato, o eu, poderiam deter uma soberania no psíquico, pois essas pulsões estariam salvaguardadas da sexualidade perverso-polimorfa. […] é essa concepção do eu que vincula o discurso freudiano ao modelo clássico de subjetividade…

A “teoria do eu”, anterior à Introdução ao Narcisismo, expressa o desejo de salvaguardar uma instância neutra, autônoma e livre de conflitos sexuais. Na primeira teoria do eu, podemos encontrar a desvinculação desta instância reguladora e autoconservadora da tópica do inconsciente e também da perspectiva da sexualidade. O eu livre de conflitos e autônomo pode ser identificado com a dimensão da racionalidade eficiente, a serviço dos interesses da realidade. Estamos pensando tanto nas funções como na pulsão do eu. No caso da pulsão, um conflito se estabelece com a pulsão sexual, em que a sexualidade deve ser disciplinada e colocada a serviço da conservação da espécie. Na função do eu temos, por exemplo, a contensão do livre fluxo de energia em direção à alucinação descrita na experiência de satisfação (1895). O eu visa, a partir de valores racionais, manter os interesses do indivíduo vinculados com os ideais da realidade social. É nesse sentido que Birman (1997) denuncia a marca insofismável do iluminismo freudiano.

Na primeira tópica, são atribuídas funções determinadas para o eu, como a inibição da alucinação e o recalque da sexualidade. O eu seria um dispositivo de controle do livre fluxo de energia, exercendo, pois, uma função vinculada ao princípio de realidade, uma vez que o aparelho psíquico busca o caminho mais rápido para a descarga pulsional.

A origem do eu anunciada no Projeto para uma Psicologia Científica (1950 [1895]) está vinculada à problemática da alucinação na vivência originária de satisfação. O aparelho psíquico possui a arquitetura de uma máquina fictícia, uma máquina solipsista. O eu surge para inibir o processo de alucinação que visa repetir a vivência de satisfação, por meio da estimulação do traço de memória, como resposta ao desprazer provocado pela fome. O eu inibe a alucinação instaurando o teste de realidade que seria revelador da precariedade da alucinação enquanto possibilidade material de solução para a tensão. O eu garantiria, no sentido biológico, a vida para o pequeno ser.

Faz-se necessário realizar uma distinção dos diferentes níveis de reflexão. O eu da primeira tópica está embebido do ideal ilustrado de autocontrole por meio da razão. Mas, teoricamente, o eu da segunda tópica, que foi construído a partir de um crescente ceticismo sobre o poder da razão, apresenta-se mais complexo. Nesse sentido, Freud constrói uma nova teoria sobre o eu, a sua “psicologia do eu”, assim nomeada no texto O Eu e o Id (1923). Apesar de ser atravessado pela sexualidade e pelo inconsciente, o eu da segunda tópica possui também outras funções, criando, assim, a crença, difundida entre os psicanalistas norte-americanos, da necessidade do fortalecimento do eu.

 

As clivagens do eu

O conceito eu faz sua entrada na rede conceitual freudiana em 1895 com a obra Projeto para uma Psicologia Científica. Mas faz-se necessário ressaltar que, só após a ”viragem” de 1920, a noção de eu recebe um estatuto de Instância.

Em 1914, Freud revela que o eu não é uma realidade originária, é constituído num processo de encontro com dimensões de alteridade. Nesse momento, aparecem as idéias de eu ideal, ideal de eu e precipitado de identificações. O eu ideal refere-se ao narcisismo primário, em que teremos o primeiro investimento sexual em uma “unidade”.1 Parece-nos pertinente ressaltar que na constituição do eu ideal está implicada a presença constitutiva do outro; mas este se encontra reduzido em sua densidade alteritária, pois é visto como um reflexo do eu. Entretanto, será este “outro-reflexo” que, na sua sedução traumatizante, possibilita a percepção do corpo como uma “unidade” para além da carnalidade. O eu corporal que determina seus limites não reconhece o outro presente na sua constituição como um outro-pessoa, mas sim como duplo de si, ou melhor, como uma modalidade de outro-reflexo. Assim, muitas definições da noção de eu aparecem atreladas à problemática identitária, que nos parece uma consequência da idéia de outro como um duplo do eu.

Na primeira tópica, as discussões sobre a presença do outro na constituição do eu aparecem via noção de narcisismo. Na constituição do eu, comparecem diversas figuras de alteridade, nomeadas como eu ideal e ideal do eu.

Já na segunda tópica, Freud aproxima mais o eu das questões da alteridade na medida em que anuncia a criação do eu a partir de um processo de modificação do Id. O eu é uma parte do Id que se modifica no contato com a realidade. O eu surgiria de um princípio de alteridade. A afirmação freudiana de que no Id encontra-se nossa herança filogenética coloca esta instância no campo discursivo da alteridade. Assim, na segunda tópica, o Id seria uma figura de alteridade por excelência e que, a partir de diferenciações, produziria diferentes instâncias como os atravessadores alteritários no eu, o ideal do eu e o supereu. Freud (1923) revela que

O caráter do eu é um precipitado de catexias objetais abandonadas e ele contém a história dessas escolhas de objeto (FREUD, 1923, p. 43 - 44).

O eu é formado a partir de identificações que tomam o lugar de catexias abandonadas pelo Id (FREUD, 1923, p. 64).

A primeira passagem revela-nos que na constituição do eu está presente a história das escolhas objetais frustradas, afirmando, pois, a presença do outro como irredutível e traumatizante. O outro que nega ser consumido deixa marcas de sua presença na estruturação do eu por meio da identificação. Não podemos deixar de mencionar que a presença desse outro no eu é inserida e incluída no âmbito identitário. Mas a história dessas perdas deixa sulcos, marcas que quebram, estilhaçam a imagem total do eu, e na colagem desses pedaços cria-se o eu. A segunda colocação esclarece a afirmação de que o eu é uma parte do Id modificada, pois diante da frustração, da impossibilidade de apoderar-se do objeto do prazer, o Id deve adiar a satisfação, operação impossível para essa instância e que necessita, assim, da criação de outra instância mais apta para realizar essa tarefa surgindo, dessa forma, o eu. Segundo Freud (1933/1932, p. 39), o eu é aquela parte do Id que foi modificada pela influência direta do mundo externo e que visa aplicar a influência da realidade externa sobre o Id. Afirmar a origem do eu no Id acentua a dimensão de alteridade presente nessa instância responsável pelos comportamentos razoáveis. O eu tenta lidar com as perdas insuportáveis para o Id e, nessa tentativa, constrói sua pseudo-identidade com os restos dos outros que atravessaram o campo pulsional do sujeito.

Mas a estrangeiridade do eu fica mais explícita através da consideração sobre o narcisismo com suas figuras idealizantes. As questões da alteridade apareceram de forma irredutível na problemática narcísica do eu ideal e do ideal do eu, pois o eu ideal só pode assumir essa posição por meio do olhar do outro.  O outro-pessoa, na sua função de narcizante, investe libidinalmente no eu, colocando-o no lugar idealizado, e, através de um jogo especular, possibilita a percepção do seu corpo próprio. Sem a interferência desse outro não haveria reconhecimento nem idealização do eu.

Parece-nos interessante questionar o motivo que leva a criança a sair do narcisismo primário: por que abandona a posição do eu ideal, a suposta a completude imaginária? Na verdade, a posição de eu ideal é assegurada por um jogo de espelhos. Será o narcisismo dos pais o responsável pela posição narcísica da criança? Os pais idealizam o filho perfeito que pode em um só movimento representar aquilo que os pais gostariam de ser, o que já foram, o que ainda são e, também, representar a criança que se diferencia das outras por suas qualidades incomparáveis. Pensando desse modo, os pais não amam exatamente a criança que se apresenta, mas as idealizações dessa criança. Assim, a criança ultrapassa a posição do narcisismo primário quando se vê confrontada com um ideal com o qual tem de se comparar, ideal este que se formou fora dela e que lhe é imposto de fora e é impossível de ser concretizado. Esse é o jogo de espelhos: o eu ideal está na imagem do espelho e não na criança real; existe uma distância abissal entre a criança e os ideais paternos. Esse duplo de si podemos denominar outro-narcísico. A criança ancora-se nessa imagem, constrói para si a história deste sonhado lugar no desejo dos pais, mas faz-se necessário abandonar esta posição para não se precipitar nas águas da morte.

 

O eu como um outro

O texto Narcisismo – Uma introdução (1914) segue um movimento que se inicia com o privilégio da identidade em direção à descoberta da alteridade como constitutiva do ser. O conceito de narcisismo irá, paulatinamente, revelando que o eu se forma à sombra do outro; o eu se estrutura na imagem dada a partir de um outro, e é pela intervenção desse outro que o eu se constitui. O modelo de constituição do eu é o da identificação melancólica, o eu é formado pelos restos das relações, pelos fantasmas dos outros. O eu se forma a partir da imagem do outro, que é como um espelho.

É importante mencionar que, na concepção de Badiou, o tema do narcisismo na obra de Freud não é anunciado em sua radicalidade. O outro, do narcisismo, assemelha-se demais comigo, criando obstáculos para a hipótese de uma abertura originária à alteridade. Reproduzimos um trecho de Badiou (1995, p.36) que nos parece claro por si só.

Uma concepção “mimética”, que situa a origem do acesso ao outro em minha própria imagem redobrada, também mostra o que há de esquecimento de si mesmo na captura desse outro: o que valorizo é esse eu-mesmo-à-distância que, justamente por ser “objetivado” para minha consciência, me constrói como dado estável, como interioridade dada em sua exterioridade. A psicanálise explica brilhantemente como essa construção do Eu na identificação com o outro […] Entretanto, estamos no mais afastado do que Lévinas quer nos transmitir…

Badiou adverte que a idéia da constituição do eu por meio do espelho não coloca a problemática da alteridade em sua radicalidade, porque o outro é visto como um duplo do eu. No entanto, acreditamos que esta representa uma das figuras possíveis de relação com o outro, ainda que seja baixa a densidade de alteridade na relação especular.

A tese do narcisismo faz sua entrada na rede conceitual freudiana através da problemática da psicose, ou, em termos freudianos, da neurose narcísica. As neuroses narcísicas se contrapõem às neuroses de transferência. Na última, existe um vínculo de amor que permite ao paciente transferir e reeditar para a figura do analista seus laços afetivos. Nas neuroses narcísicas, existe uma barreira que impossibilita a transferência, que dificulta a relação com o outro.

Mas serão as vicissitudes da libido no âmbito das psicoses que irão nos fornecer diversas pistas sobre a questão do narcisismo. Freud revela que, frente a uma frustração, tanto o neurótico quanto o psicótico retiram sua libido das pessoas e das coisas do mundo externo. A diferença se instaura a partir dos destinos da libido livre. Na neurose, a energia libidinal é desviada para as fantasias. Na dinâmica da frustração da neurose, ocorre uma substituição: retira-se o investimento dos objetos externos para investir nas fantasias. Na psicose, a libido, afastada dos objetos, é dirigida para o eu e, assim, dá margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo.

A megalomania é consequência desse superinvestimento libidinal no eu. Mas é apenas uma reedição patológica de um momento da vida libidinal do homem e da espécie humana. Observações e reflexões sobre a vida mental das crianças e dos povos primitivos revelam a existência da megalomania como um momento no movimento temporal da vida libidinal. A onipotência e o pensamento mágico presentes nas crianças e nos povos primitivos constituem fenômenos que revelam uma catexia libidinal acumulada originalmente no eu. Assim, a satisfação narcísica não é uma aberração ou perversão; constitui um momento necessário no interior da vida libidinal presente na ontogênese e na filogênese.

Mas, o retorno da libido ao eu pode ocorrer após uma perda ou frente uma experiência de dor. As pessoas atormentadas por dor e mal-estar orgânico ou por fantasias hipocondríacas retiram a libido dos objetos do mundo externo, concentrando-a no próprio eu. Todavia, esse represamento da libido no eu constitui uma experiência desagradável, porque o princípio de constância constitui um dos registros que regem o aparelho psíquico. Esse represamento fere o princípio de constância. O retorno da libido para o próprio eu pode produzir um desprazer, uma vez que eleva o nível de excitação, tornando, pois, absolutamente necessária para a vida psíquica a presença do outro como objeto de investimento da libido. O excesso pulsional que surge a partir da ausência do outro, que opera a contenção, produz a loucura. O transbordamento produz o desconhecimento do eu sobre ele mesmo; o eu se quebra e se estranha sem a presença estruturante do outro.

O outro se faz presente na constituição do sujeito desde o primeiro momento; o desamparo humano anuncia a necessidade da presença do outro como elemento estruturante. Todavia, o eu dessa “consciência não intencional” não pode reconhecer a alteridade. O eu pré-originário não pode distinguir o eu do outro. Será na vivência da castração que o eu terá uma percepção especial da alteridade como horizonte constitutivo e intransponível da vida humana. A castração revela a presença fundamental do outro para a constituição do eu no âmbito das relações intersubjetivas. Todavia, a necessidade e a presença do outro são anteriores à constituição do eu; existe uma prioridade ontológica do outro sobre o eu. Mas o estatuto teórico do outro depende da consciência intencional, pois existe uma anterioridade lógica do eu sobre o outro. Esta é a base para a produção do conhecimento e, consequentemente, dos conceitos. O outro se faz presente desde o início, mas o eu só pode reconhecer a alteridade contrapondo-a com a sua identidade. Assim, o eu só reconhece as dimensões de alteridade após o encontro com a angústia de castração.

No interior da teoria psicanalítica, a castração representa um momento crucial e especial da percepção da alteridade. A partir da castração, serão inaugurados novos destinos para a pulsão: recalque, idealização e sublimação. O processo de idealização também é posterior à vivência de castração. O eu ideal expressa uma perspectiva de completude imaginária, mas é fechado em si. É só após a vivência da castração que teremos mais uma tipificação narcísica, o ideal do eu, o que representa um horizonte para a relação com o objeto, uma possibilidade de sair de si em direção a outro. Assim, como revela Birman (1997, p.31):

Um longo processo histórico e psíquico será necessário para que o eu ideal se transforme no ideal do eu, isto é, que o eu não se estabeleça como sendo a sua própria origem, reconhecendo as suas insuficiências e finitude face a um ideal colocado como alvo e meta a ser atingido.

Assim, no âmago do eu vive o outro. O eu é constituído na relação com outro sendo que essa alteridade habita, permanentemente, o cerne do eu. Com o narcisismo, se compreende que tanto o corpo próprio quanto o sujeito se constituem a partir do outro. A identificação será o conceito que torna efetiva a afirmação de que na origem do eu está o outro. O eu carrega no seu corpo e em seu psiquismo as marcas indeléveis da relação com o outro.

 

A identidade descentrada: o outro pulsional

Em Pulsões e os Destinos da Pulsão (1915), texto imediatamente posterior ao do narcisismo, Freud se defronta com o problema do retorno pulsional ao Eu. Os pares antitéticos sadismo/masoquismo e voyeurismo/exibicionismo permitem introduzir a questão do investimento narcísico. No texto em questão, Freud mantém a hipótese de trabalho que pressupunha um conflito fundamental entre as exigências sexuais e as da autoconservação. Hipótese essa formulada a partir da observação dos conflitos presentes nas neuroses de transferência. Como um pesquisador atento, Freud percebeu a possibilidade de alteração dessa fórmula, a partir do contato com as“neuroses narcísicas. No estudo sobre as vicissitudes da pulsão, Freud se dedicou a analisar dois destinos pulsionais: a reversão a seu oposto e o retorno em direção ao próprio eu do indivíduo. No primeiro, teremos a mudança da atividade para passividade e a reversão de conteúdo. Os pares sadismo/masoquismo e escopofilia/exibicionismo constituem o modelo a partir do qual será realizada a discussão sobre a mudança da atividade para a passividade. Freud pensa a reversão da atividade para a passividade entre três movimentos, sendo que o momento intermediário representa o retorno da pulsão em direção ao próprio eu do indivíduo. O primeiro momento refere-se ao exercício da violência sobre outra pessoa ou ao olhar dirigido para um objeto externo; e o último movimento designa a passagem para a passividade, em que o eu se oferece como um outro-objeto para a violência ou para o olhar de outrem. O intrigante nessa exposição é a insistência na atividade como algo originário e primário. O mito da atividade, de uma consciência dominadora parece persistir. O eu parece gozar de um certo controle. A fragilidade do eu anunciada pelo desamparo e sua passividade diante o outro que responde ao grito parece estar eclipsada pelo mito da atividade.

No interior da discussão sobre a passagem da atividade para a passividade, encontramos contradições significativas que abalam o fetiche da atividade originária. No que se refere ao par sadismo/masoquismo sabemos que, num texto posterior, O Problema Econômico do Masoquismo (1924), depois da introdução da noção de uma pulsão de morte, Freud irá reconhecer um masoquismo primário. Todavia, já no texto que estamos examinando, Pulsões e Destinos da Pulsão, a questão da dor coloca sob suspeita a posição primária do sadismo. A dor é agradável ao masoquista, pois se aproxima da excitação sexual. A finalidade sádica de causar dor pode surgir  retrogressivamente2 pela identificação com a meta masoquista. Assim, enquanto a dor está sendo infligida a outra pessoa, o sujeito pode, por meio da identificação com o outro-objeto sofredor, fruir o prazer da dor/excitação. O termo retrogressivamente coloca o masoquismo em uma posição primária em relação ao sadismo, pelo menos no que tange ao problema da dor. Essa se contrapõe ao termo progressivamente; nesse sentido, a palavra parece significar um retorno sobre si mesmo, ou seja, um retorno que se dá no interior de um movimento linear. A afirmação que coloca o prazer sádico em infligir a dor como uma identificação retrogressiva com o prazer do masoquista instaura problemas para a tese da prioridade do sadismo sobre o masoquismo.

No par escopofilia/exibicionismo, encontramos uma ressalva que também lança suspeita sobre o mito da atividade primária. Freud anuncia uma fase preliminar, anterior ao olhar como atividade. O próprio corpo do sujeito é objeto da escopofilia. No auto-erotismo, o sujeito é objeto de seu próprio olhar.

Apesar dessas objeções, Freud mantém a dimensão da atividade como primária; parece-nos que essa tese se encontra na dependência de uma organização identitária do eu. A idéia de um eu constituído é o ponto de partida para a concepção de um desenvolvimento pulsional que passa da atividade para a passividade. Parece-nos uma consciência intencional que visa o outro para completar, para alcançar o preenchimento, gozando, pois, da satisfação da visada intencional que encontrou o seu outro-objeto como alvo do olhar ou do sadismo.

É no momento em que a consciência reflete sobre si mesma, ou seja, quando a consciência toma a si mesma ou o próprio eu por objeto de sua intencionalidade, que ela irá captar a pura vivência que escapa à intencionalidade, que irá perceber que o que precede toda intenção não é a atividade, mas sim a passividade. O prazer em sentir a dor antecede ao sadismo e o prazer do exibicionismo é anterior ao prazer de olhar, pois antes da constituição do eu teremos a pura exposição ao outro. A insistência do eu em assegurar o seu direito de atividade é abalada pelo desamparo, que denuncia a exposição passiva ao outro. A experiência original do ser se situa no nível das emoções e dos afetos. O ser move, reage a um estímulo, é afetado por estímulos internos e externos. A emoção revela um estado de passividade, portanto a experiência da passividade precede a arrogância intelectual da consciência intencional, do eu pensante como pura atividade. Por vezes, o eu intencional, na sua arrogância intelectual, nega a sua condição originária de exposição e passividade. O eu, antes de ser, é abertura, discreta presença que se constitui na interferência intensa do outro. Mas todo conhecimento racional fundamenta-se na existência do eu soberano, a razão pressupõe um “eu senhor”. Dessa forma, a tradição racional tende a cair no engodo de considerar o eu apenas na sua dimensão da identidade, da soberania, da arrogância e do domínio.

Observamos que Freud, apesar de trabalhar exatamente com a dimensão do afeto, que revela a passividade do eu em relação ao outro, ao refletir sobre as polaridades que regem a vida mental, coloca o eu em uma posição de privilégio. A psicanálise trabalha com o campo do afetivo, das afecções, portanto com a dimensão da exposição do homem ao mundo. Todavia, em alguns momentos, o texto freudiano parece salvaguardar o campo da atividade do eu, da soberania e do domínio do eu sobre o mundo. Esse movimento expressa o ideário moderno do eu responsável e ativo. O destino do eu não é tecido pelas Moiras ou por Deus; o homem é senhor do seu próprio destino, o sujeito busca dominar sua vida mental.

Segundo Freud, a vida mental é regida por três polaridades: sujeito e eu contraposto ao não-eu, objeto e mundo externo; prazer versus desprazer e ativo versus passivo. Existe uma linha que vincula prazer, eu e ativo; de outro lado, mundo externo, desprazer e passivo estão associados. Freud revela que o sujeito do eu é passivo no tocante aos estímulos externos, mas ativo através de seus próprios instintos. O eu pretende dominar sua vida pulsional, ou seja, dominar a si mesmo. O autodomínio anuncia a vinculação entre a polaridade do eu e a da atividade. Entre prazer e eu existe uma coincidência; numa situação psíquica primordial, eu e prazer se superpõem. Freud (1915, p. 156) revela:

Originalmente, no próprio começo da vida mental, o eu é catexizado com os instintos, sendo até certo ponto capaz de satisfazê-los e a si mesmo. Denominamos essa condição de narcisismo, e essa forma de obter satisfação de auto-erótica.

A satisfação narcísica denominada auto-erotismo revela um vínculo estreito entre eu e prazer. Mas essa vinculação ganha um colorido mais intenso com a tese da constituição do eu através da introjeção do objeto bom. Tese anunciada no texto das Pulsões, masque reaparece mais desenvolvida no texto intitulado A Negativa (1925). Os objetos que representam fonte de prazer são introjetados.

Para o eu do prazer o mundo externo está dividido numa parte que é agradável, que ele incorporou a si mesmo, e num remanescente que lhe é estranho. […] o sujeito do eu coincide com o prazer, e o mundo com o desprazer. (FREUD, 1915, p. 157-158)

Existe, pois, uma linha que liga o eu ao prazer e à atividade. O eu é o ponto de contato entre os termos; assim, a reflexão sobre as polaridades que regem a vida mental pressupõe a existência de um eu.

A preservação de uma dimensão identitária pode ser fortalecida pela idéia de “apoio” (Anlehnung). As pulsões sexuais apóiam-se nas pulsões de autoconservação ou do eu. Não podemos deixar de mencionar que a idéia do apoio da pulsão sexual na pulsão de autoconservação pode abrir espaço para leituras reducionistas, leituras que advoguem uma anterioridade histórica da pulsão do eu. O eu soberano seria o pressuposto original, e a pulsão sexual, que introduz a dimensão de alteridade, um desvio posterior. A pulsão sexual exigiria um outro-objeto, perturbando, pois, o estado de satisfação narcísica que é insuficiente para conter o calor da vida pulsional. Ou seja, a pulsão sexual exigiria um objeto mediatizado pelo outro.

No princípio era o eu. Esse pressuposto é falsificado no interior da dialética do psiquismo. Freud, em nota de rodapé, denuncia a presença originária e estruturante do outro, revelando a anterioridade da alteridade sobre a identidade, diferente da tese aparentemente defendida no corpo do texto que propõe a existência de um eu realidade originário. O estado narcísico primordial não poderia seguir seu curso se não fosse a presença fundamental e estruturante do outro. Nas palavras de Freud (1915, p.156, nota 2):

Na realidade, o estado narcisista primordial não seria capaz de seguir o desenvolvimento, se não fosse pelo fato de que todo o indivíduo passa por um período durante o qual é inerme, necessitando de cuidados, e durante o qual suas necessidades prementes são satisfeitas por um agente externo…

Assim, o eu prazer, estrutura narcísica, fundamentada na tese da identidade e da auto-suficiência auto-erótica, seria secundário em relação ao eu realidade, que denunciaria a presença irredutível do outro. É importante ressaltar que, na vivência do infans, o eu prazer, a estrutura narcísica, é primordial, e o encontro com outro só é percebido após a vivência da angústia de castração. A verdade que a vivência da angústia de castração revela é a anterioridade do outro sobre o eu. O eu/narcísico constitui sua imagem totalizada a partir do encontro com o outro-narcísico. É o jogo especular entre o eu e o outro-narcísico que possibilita o primeiro passo para o nascimento do sujeito.

Desta forma, as discussões sobre a formação do narcisismo secundário é que anunciaram a presença inegável e constitutiva do outro. O texto sobre o narcisismo revela um movimento progressivo em direção à perspectiva da alteridade, mas será com o campo da pulsão que ocorrerá a consolidação da problemática do outro na cena analítica. A pulsão é descrita como uma força que habita a fronteira entre o psíquico e o somático. Enquanto força se inscreve no registro quantitativo, mas é preciso submeter esse quantum energético ao processo de simbolização e alcançar o registro qualitativo. Para que a pulsão, como força, se transforme num circuito pulsional, no qual essa energia é articulada com a dimensão do outro-objeto, e se inscreva no campo da representação, é necessário um trabalho de oferecimento de possibilidades de satisfação. Esse trabalho é agenciado pelo outro que oferece para a força pulsional uma variedade de objetos para sua satisfação. A interferência do outro no campo do pulsional, marcando a passagem do biológico para o psíquico, pode ser considerada como uma modalidade de sedução. Essa operação é crucial no processo de introdução da força pulsional para o campo do sexual. A presença do outro é fundamental na constituição do humano, na produção do campo da sexualidade.

Assim, as reflexões sobre a subjetividade e a alteridade remetem-nos ao universo pulsional, no campo da continuidade e descontinuidade rítmica do eu e do outro. A ambiguidade da pulsão anunciada pelo duplo registro da excitação e da representação psíquica, ou do registro econômico e do representacional, irá exigir um trabalho de formatividade criativa nos processos de subjetivação, marcados pela presença constitutiva e traumática do outro. O outro que oferece o campo de investimento para o excesso energético, constituindo o campo do psíquico, é uma presença traumática. A oferta parte da falta e, por isso, o outro oferece, mas exige algo em troca. A alteridade constitutiva do sujeito não é uma discreta presença; pelo contrário, é uma presença ruidosa que cobra na proporção em que dá. Com a introdução do conceito de pulsão de morte, as questões relativas à alteridade ganharam um novo rumo.

A pulsão de morte irá apontar para uma dialética rítmica entre o sujeito e o outro, presente no processo de subjetivação. O conceito em questão coloca o limite da representação, anuncia a existência de um campo que escapa à teorização, intensificando e radicalizando a importância da perspectiva da alteridade. Pois será a presença do outro que possibilitará a saída do nada, do limite para o campo da criação de um mundo verdadeiramente humano, onde os objetos são carregados de forma e sentido através da mediação do outro.

A pulsão de morte irá anunciar uma nova direção clínica, em que a brincadeira do “fort-da” é o protótipo da dialética intersubjetiva. A dialética rítmica anunciada pela presença e pela ausência do outro aparece como constitutiva nos processos de subjetivação. Funde-se na figura do outro a perspectiva da salvação e do trauma. Essa nova configuração irá estabelecer um novo ideal de clínica. Birman propõe a figura do ”analista-carretel” como expressão clínica desse novo dualismo pulsional, aquele analista que reatualiza a brincadeira do Fort-da. Segundo Birman (1993, p. 21), “a pulsão se inscreve no universo da representação, através da perda do outro e onde seu registro psíquico fica marcado, numa dialética de presença/ausência que se representa na brincadeira do fort-da.” (BIRMAN, 1993, p. 21).

Assim, podemos dizer que o campo da alteridade é fundamental no processo de subjetivação, e os conceitos de narcisismo e pulsão apontam para a importância do outro na constituição do sujeito. A figura de alteridade mais presente no campo da pulsão sexual é a noção de outro-objeto. O outro-narcísico é essencial no campo das problemáticas colocadas pelo eu ideal e pelo ideal do eu. Mas o conceito de pulsão de morte parece-nos o limite da discussão sobre as figuras de alteridade, limite que, em seu bordejar, possibilita um horizonte para a criação das relações de alteridade.

 

Algumas conclusões

Assim, o eu só existe na e pela relação com o campo da alteridade. Sem o jogo de espelhos do eu ideal, o sujeito não surgiria, pois o indivíduo empírico precisa ser narcizado, elevando-se à categoria de “majestade”.

Podemos, assim, questionar a arrogante afirmação de identidade auto-suficiente que estabelece o“eu igual a eu” e que conduz, dentre outras coisas, à crença numa atividade primordial do eu. Antes de ser atividade, o eu é pura passividade, frágil exposição ao outro, sendo que a reflexão sobre os destinos da pulsão é que irão evidenciar essa verdade. A pulsão opera um descentramento do eu, pois exige a presença vital do outro para formatar o seu excesso energético.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Jacqueline de Oliveira Moreira
E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br

Recebido em: 03/03/2008
Aceito para publicação em: 30/01/2009
Acompanhamento do processo editorial: Luciano Elia e Deise Mancebo

 

 

Notas

* Psicóloga, Doutora em Psicologia Clinica (PUC-SP), Mestre em Filosofia – UFMG.
1 A palavra unidade se encontra entre aspas porque se faz necessário salientar que se trata de ilusão de unidade.
2 A palavra retrogressivamente é utilizada na tradução portuguesa (cf. p. 149) e na edição espanhola (cf p. 124). O termo utilizado em alemão é rückgreifend (cf. p. 221).

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