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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.2 Rio de Janeiro set. 2009

 

ARTIGOS

 

Da metamorfose dos deuses: capitalismo e arquétipo no século XXI1

 

On the metamorphosis of the gods: capitalism and archetype on the 21st century

 

 

Henrique de Carvalho Pereira*

Professor da Universidade Estácio de Sá e da Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo examina as fantasias dominantes no mundo ocidentalcontemporâneo, isto é, os “mitos” que nos sustentam. Em outras épocas (ou lugares), atribuiu-se a seres míticos, como as divindades, o poder de criação e de atuação sobre a realidade. Para nós, ocidentais, a ciência tem ocupado o lugar mítico que cabia aos deuses. Esta é uma hipótese já sugerida por S. Freud e C. G. Jung. Nesse sentido, a tecnociência e a economia capitalista, que lhe é afim, constituemo mito do homem ocidental moderno. Conforme os sociólogos R. Sennett e Z. Bauman, as relações trabalhistas e amorosas no “capitalismo flexível” obedecem ao imperativo de renovação constante, variedade e temporalidade de curto prazo. Estas características, segundo a psicologia junguiana, seriam expressões do pólo juvenil do arquétipo do senex-puer (velho-jovem). Poder-se-ia afirmar que estamos vivendo um processo patológico de inflação do puer merecedor de consideração.

Palavras-chave: Mito, Capitalismo, Arquétipo.


ABSTRACT

The present article deals with the dominant fantasies in the contemporary western world, namely, the “myths” that support us. At other ages (or places), it had been ascribed to the mythical beings, as the deities, the power of creation and of action upon reality. For us, westerners, science has occupied the mythical place before due to the gods. This is a hypothesis already suggested by S. Freud and C. G. Jung. In that sense, the techno-science and the capitalistic economy, which is related to the former, constitute the myth of the modern western individual. According to the sociologists R. Sennett e Z. Bauman, labor and love relationships in the “flexible capitalism” obey an imperative of constant renovation, variety and short-term temporality. Those features, for the Jungian psychology, would be expressions of the youth pole of the senex-puer archetype. One could state that we are living through a pathological process of puer inflation, worthy of consideration.

Keywords: Myth, Capitalism, Archetype.


 

 

Há cerca de 50 anos, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1999, p.1) iniciou seu ensaio intitulado Presente e futuro com a seguinte questão: “O que nos reserva o futuro?”. Argumentou então que períodos históricos de crise costumam despertar as mais variadas “antecipações, utopias e visões apocalípticas” (id., ibid, p.1). “Crise”, aliás, era o que não faltava naqueles dias: a iminência de destruição do planeta por uma guerra nuclear, a expansão do totalitarismo bolchevique, a massificação do homem moderno. Além disso, a proximidade do ano 2000, como exemplar de data “milenarista”, parecia produzir quase que automaticamente um desejo de previsões, um desejo de futurologia. Assim, diante das grandes ameaças que pesavam sobre o indivíduo em sua época, Jung arriscou-se a meditar sobre o futuro do homem europeu.

Minha proposta neste artigo é muito menos ousada, mas não mais simples que a de Jung. Parafraseando o analista suíço, gostaria de discutir o que nos reserva — não o futuro — mas o presente. Afinal, não seria exagero afirmar que o “futuro”, simbolizado pelo ano 2000, a que se referia Jung em seu ensaio, já chegou. Trata-se, portanto, conforme as palavras de Michel Maffesoli (2007, p.27), de tentar “pensar e dizer o que já é vivenciado pela maioria, da qual fazemos parte [desde o] momento em que não nos abstraímos da vida comum”. Em outros termos, trata-se de tentar identificar as fantasias atuantes, os mitos que, hoje, nos sustentam.

Ora, como assim “identificar os mitos que nos sustentam”? Isto é, vale perguntar se, de fato, faz algum sentido, hoje, utilizar a mitologia ou os mitos na tentativa de discutir as grandes questões que afligem a nós, homens e mulheres, na primeira década do século XXI. Não terão sido os deuses, espíritos, anjos e demônios há muito substituídos pelas invenções e descobertas de Galileu, Newton e Darwin? Não terá a ciência, com seu sucesso tecnológico, dessacralizado definitivamente o mundo em que nós ocidentais, cidadãos da polis, habitamos? Woody Allen, em um de seus melhores filmes, resumiu o problema com a seguinte provocação: “Entre o Papa e o ar condicionado, fico com o ar condicionado”2

Ao contrário do que disse Tales, há cerca de 2500 anos, as coisas não estão mais cheias de deuses. As coisas estão, sim, apinhadas de moléculas e, em certos casos, de isótopos radioativos... Quando os deuses eram vivos, rios, grutas e colinas costumavam servir de morada para sátiros, ninfas e curupiras. E hoje? Hoje os rios acumulam detritos industriais, as grutas se tornaram esconderijos de terroristas e traficantes de drogas, e as colinas não passam de empecilho para a circulação dos velozes meios de transporte urbanos. Será então que a mitologia se tornou um saber que nada tem a dizer sobre os tempos atuais, visto que seu objeto, o mito, seria matéria de um passado pré-moderno, ao qual já não pertencemos? Minha resposta a esta questão é não. Não, porque os mitos continuam atuando — e de fato nunca deixaram de atuar — mesmo sobre nós que nos autodenominamos “modernos”. Se os deuses não habitam mais o Olimpo, conforme observara Jung3 (2002), é apenas porque mudaram de nome e endereço, como espero mostrar mais adiante.

Para que esta hipótese fique mais clara, ou seja, a idéia de que ainda somos vinculados a agências que nos transcendem — as “divindades” — e que nossa existência, neste sentido, permanece mítica, é necessário primeiramente definir o que entendo por “mito”.

Muitos significados têm sido atribuídos ao mito por etnólogos, sociólogos e historiadores da religião, desde o século XIX. Segundo Mircea Eliade, o mito não é sinônimo de “ilusão” ou “ficção”. Em vez disso, deve ser entendido como o relato de uma “história verdadeira”. Relato de uma criação, de uma origem, produzida no princípio dos tempos por entidades sobrenaturais. Em suas palavras:

[...] o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente (ELIADE, 1972, p.11).

Convém esclarecer qual a natureza desta realidade a que se referem os mitos. Trata-se de uma realidade factual, isto é, de eventos históricos literais, ocorridos em dado momento do tempo, como, por exemplo, o descobrimento do Brasil, em 1500, ou a queda da Bastilha, em 1789? Não. Os acontecimentos a que se referem os mitos não estão na história, porque são exatamente os eventos que, transcorridos antes dela, possibilitaram que houvesse o devir histórico tal como o conhecemos, ou seja, uma sequência significativa de fatos se desenrolando ao longo do tempo cronológico, do tempo profano. Os eventos míticos e seus agentes, as divindades, perdem assim sua substancialidade ou literalidade, mas não sua realidade de atuação. Os mitos se tornam mais metáforas significantes e imagens de valor que fatos concretos (HILLMAN, 2004). Sua verdade, se quisermos levá-los a sério, deve ser definida pragmaticamente mediante sua instrumentalidade. Desse modo, o pensamento mítico pode ser considerado “verdadeiro” porque atua efetivamente sobre nós (JAMES, 2006).

Como realidades de atuação, os mitos assumem a função de modelos exemplares de todas as atividades humanas significativas, como a alimentação, o casamento, o trabalho, a educação, a arte e a sabedoria (ELIADE, 1972). Exemplo: entre os índios Cuna do Panamá, o bom caçador é aquele que conhece a origem da caça; e um Cuna que conhece o segredo da criação do fogo é capaz de segurar ferro em brasa, conforme o relato de um etnólogo (ibid.).

Gostaria de sublinhar, no que foi dito, esta idéia básica: os mitos são realidades de atuação, metáforas significantes, imagens de valor servindo para orientar as práticas fundamentais de uma cultura.

 

A metamorfose dos deuses

Afinal, o que nós, herdeiros da ciência hipotético-dedutiva de Galileu e Newton e da teoria da evolução de Darwin, temos a ver com tudo isto? Ora, o que faz de nós, modernos, diferentes dos “primitivos”, dos “arcaicos”, dos “exóticos” não é exatamente a nossa desvinculação da realidade mítica dos deuses e fetiches? Hoje ninguém mais pode considerar seriamente Apolo, Dioniso, Mercúrio, Wotan ou as divindades dos bosques, dos rios e dos jardins como figuras exemplares que regem nossas atividades práticas mais importantes. Sem dúvida, mas nem por isto a consciência mítica desapareceu. O ser humano moderno permanece vinculado a agências, a um só tempo imanentes e transcendentes, que, escapando a seu controle, afetam-no de modo profundo e significativo.

Quais são, portanto, essas agências e quais as suas faces? Seguindo aqui as idéias do sociólogo francês Bruno Latour (2000), eu diria que essas agências podem ser subsumidas nos domínios da Natureza e Sociedade (Cultura). As idéias de Natureza e Sociedade são nossos fetiches, nossas divindades, sem as quais não somos o que somos. Portanto, o que nos diferencia dos “primitivos” não é o fato de eles serem ingenuamente vinculados a entidades sobrenaturais e nós, conscientes de tal absurdo, sermos autônomos e livres da influência de fantasias pré-lógicas, livres dos mitos e suas divindades. Não, não é a presença ou ausência de vínculo a uma alteridade o que distingue primitivos e modernos, mas o tipo de alteridade com que uns e outros fazem aliança. Nossas divindades são os quase-objetos ou quase-sujeitos criados pelas ciências naturais e sociais, respectivamente. Ciências que, por sua vez, ocupam o lugar de verdade e significado antes destinado aos velhos mitos. Daí podermos afirmar que nossas teorias científicas são a nossa mitologia.

A esta altura do texto, o leitor poderia indagar-se se eu, ao aproximar ciência e mito, estaria igualando-os em termos de eficácia. Quer dizer, diante de uma doença orgânica grave, por exemplo, não faria diferença procurar-se um pai-de-santo, um pastor evangélico ou um médico, já que tudo se nivelaria ao nível comum, nebuloso, do “mito”. Ora, não estou aqui para defender uma espécie de relativismo radical, onde todas as práticas sociais assumem o mesmo valor. Antes, estou procurando destacar o que para uma dada coletividade é entendido como sendo uma realidade de atuação. Neste sentido, para a maioria de nós, ocidentais modernos letrados, que vivemos o momento histórico presente, esta realidade de atuação se encontra, primeiramente, no discurso e nas práticas científicas. São eles que regem as atividades mais importantes de nossa existência comunal. São eles que dão sentido às nossas vidas. As ciências com suas teorias e práticas constituem os mitos do homem moderno. Esta não é uma proposição original ou tampouco recente. Na história da psicologia conhecemos bem dois autores que compararam os mitos com conceitos e teoria científicos: Sigmund Freud e Carl Jung.

Em 1932, Freud (1976, p.119) escreveu: “A teoria dos instintos [pulsões] é, por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos [pulsões] são entidades míticas, magníficos em sua imprecisão”. Não por acaso Freud nomeou um dos dois grandes grupos pulsionais, as “pulsões de vida”, de “Eros”, o deus grego do amor. Isto sem falar no famoso “complexo de Édipo”, que é como o psicanalista passou a chamar o complexo nuclear da personalidade a partir da segunda década do século XX. Jung em várias passagens de sua obra comparou os arquétipos4, entendidos como predisposições psicossomáticas herdadas e atuantes sobre a atitude individual, a divindades e daimones. Em 1930, por exemplo, anotou: “Em si mesmo, um arquétipo não é bom nem mau. É moralmente neutro, como os deuses da antiguidade, e se torna bom ou mau apenas pelo contato com a mente consciente ou ainda pela mistura de ambos” (JUNG, 1984, p.104). Em outro momento, acrescentou: “[...] os arquétipos, enquanto não apresentam apenas relações funcionais, revelam-se como daimones, como agentes pessoais” (JUNG, 1995, p.248).

Deuses e daimones, pulsões e arquétipos: diferentes máscaras para as experiências fundamentais de valor e significado que constituem a própria vida em sua reatualização e metamorfose infinitas. Eterno retorno daquilo que nunca deixou de ser (MAFFESOLI, 2007). Contudo, é no citado ensaio Presente e futuro, que encontramos um comentário de Jung (1999, p.51) particularmente interessante sobre o que entendo como a mudança de figura que as divindades vêm sofrendo na modernidade:

Vivemos no kairós5 da ‘transfiguração dos deuses’, dos princípios e símbolos fundamentais. Essa preocupação do nosso tempo, que não foi conscientemente escolhida por nós, constitui a expressão do homem inconsciente em sua transformação interior. As gerações futuras deverão prestar contas dessa modificação e de suas graves consequências, caso a humanidade queira se salvar da auto-destruição ameaçadora de seu poder, técnica e ciência.

Interpreto este comentário de Jung da seguinte maneira: os deuses, isto é, os símbolos e princípios fundamentais que nos orientam, estão mudando ou já mudaram de forma: seus atuais avatares são o Poder — menos o poder encarnado pelo Estado e mais aquele representado pelo Mercado —, a Técnica e a Ciência. Nota-se, não apenas pela passagem citada, o pessimismo de Jung em relação à tecnociência. Para ele, o homem estaria se tornando “escravo e vítima das máquinas” (ibid., p.19). Com efeito, o projeto iluminista moderno de domínio da natureza pelo uso da razão instrumental visando um horizonte de liberdade e felicidade parece ter fracassado. A técnica e a ciência adquiriram tal autonomia que deixaram de ser meios para o progresso para se tornarem fins em si mesmas. Provavelmente não somos mais felizes hoje do que há duzentos ou trezentos anos, não obstante possuirmos a televisão de plasma ou o computador de última geração. Evidência disto é a maior ocorrência de depressão nos jovens exatamente nos países mais ricos (STEVENS; PRICE, 2000).

Assim, se quisermos entender a condição psíquica do homem moderno é necessário voltar nossa atenção para as máscaras que seus deuses vestem no presente. E o Poder da Economia Capitalista, como apontei, é uma destas principais roupagens. É neste sentido, então, que passarei a discutir a função mítica, isto é, a função de origem e significado para nossas experiências quotidianas, do “capitalismo flexível” assim como do mercado de consumo que lhe é afim6.

 

Caráter corroído, amor líquido

No livro A corrosão do caráter, o sociólogo americano Richard Sennett descreve o “novo capitalismo” e seus efeitos sobre a vida das pessoas. De acordo com Sennett, até meados do século XX, o indivíduo que iniciava a vida profissional, digamos, entrando para uma empresa ou instituição, preparava-se para ali fazer carreira até provavelmente a idade de aposentar-se. A ocupação de longo prazo, frequente naquele período, produzia no trabalhador uma espécie a sensação de estabilidade. A própria existência parecia adquirir previsibilidade e sentido. Contudo, as mudanças que vêm ocorrendo na economia capitalista têm transformado esta situação. No novo capitalismo, que Sennett denomina “capitalismo flexível”, os empregos estão sendo substituídos por projetos de curta duração. Em suas palavras:

Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as formas rígidas de burocracia, e também os males da rotina cega. Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais  (SENNETT, 1999, p.9).

O problema é que flexibilidade, mudança e risco, em altas doses, geram ansiedade também em grau elevado. O ser humano parece não suportar sem mal-estar o estado de prolongada deriva produzido pelo novo sistema capitalista. De acordo com Sennett (ibid., p.10), o aspecto da vida pessoal onde o impacto do capitalismo flexível mais se nota é o “caráter”:

O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. É expresso pela lealdade e compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro.

O imediatismo e a impaciência vigentes nas relações de trabalho em nossa sociedade flexível impedem a construção de metas de longo prazo. Como ser leal e compromissado quando se trabalha em instituições que estão sempre se reformulando? Sennett conclui: o capitalismo flexível corrói o caráter.

Um exemplo de minha prática clínica. O paciente, que chamarei de Paulo, é um professor universitário de 30 anos de idade, casado e sem filhos. Veio em busca de análise queixando-se de ansiedade crônica e insônia. É professor na pós-graduação de uma conhecida universidade particular no Rio de Janeiro. Paulo começou a trabalhar naquela instituição depois de terminado seu mestrado. Isto já faz seis anos. Até hoje, porém, não tem vínculo empregatício, a carteira de trabalho assinada e, por conseguinte, direitos trabalhistas. As disciplinas que ministra costumam durar dois meses. Ao fim de cada bimestre sua ansiedade cresce e é acometido por crises de insônia. Paulo nunca sabe se continuará com a mesma carga horária de antes ou se perderá turmas. Pior: nunca sabe se, ao cabo do semestre, será chamado para lecionar. Nunca sabe ao certo se terá trabalho. Com efeito, houve períodos em que não lhe ofereceram novas turmas. Justificativa dos empregadores? Nenhuma. Seu desespero só não é maior porque está empregado em outra instituição de ensino, nesta, sim, com carteira de trabalho assinada.  A incerteza sobre se terá ocupação e, consequentemente, dinheiro para pagar as contas no fim do mês tem afetado sua relação com a esposa, que também é profissional liberal, sofrendo da mesma instabilidade financeira. Como fazer planos de longo prazo — como ter filhos, por exemplo — diante de tanta insegurança?

A análise do sociólogo polonês Zygmunt Bauman acerca da vida amorosa do homem moderno faz coro às observações de Sennett. Segundo Bauman (cf. 2004), vínculos afetivos frágeis e relacionamentos amorosos descartáveis, efêmeros, típicos dos dias atuais, têm sua contrapartida num crescente sentimento de insegurança. Chamou este estado de coisas de “amor líquido”. Assim como o caráter corroído de Sennett, o amor líquido de Bauman tem raízes na economia capitalista. Mais especificamente, nos “poderes supremos do mercado de consumo”. Mercado que deve em grande parte seu ascendente sucesso à espantosa velocidade das inovações tecnológicas. Graças à tecnologia, novos bens de consumo são incessantemente introduzidos no mercado, não deixando nunca que este perca sua atração. O homem da modernidade líquida, seduzido pelo feitiço mercadológico, pelo “fetiche da mercadoria”, transformou-se no homo consumens (homem consumidor). Convém notar que consumismo não é o mesmo que acúmulo de bens, mas, antes, a capacidade de adquiri-los, usá-los e rapidamente descartá-los. “A vida consumista favorece a leveza e a velocidade”, avalia Bauman (2004, p. 67). Acrescenta que favorece também a “novidade” e a “variedade”. O consumidor de sucesso é aquele que pode desfazer-se de seu bem de consumo antes que lhe produza tédio. O fracassado, diversamente, é o sujeito condenado a permanecer com um único bem, não podendo gozar de sensações novas e melhores.

Esta lógica se reproduz nos relacionamentos afetivos. Parcerias se tornam objetos de consumo. Assim como celulares, computadores, televisões e automóveis são trocados, embora em perfeitas condições de uso, parceiros amorosos são substituídos por outros que prometem sensações aperfeiçoadas ou inéditas. Portanto, o inimigo a ser combatido nos relacionamentos líquidos é o compromisso de longo prazo. Se nos comprometemos com alguém, afirmou certo conselheiro sentimental citado por Bauman, estaremos provavelmente fechando a porta para encontros românticos mais interessantes. Eis então a regra de ouro do amor líquido: deixar sempre todas as portas abertas para um novo encontro.

No Rio de Janeiro — não saberia dizer se também em outras partes do Brasil —, tem-se adotado o verbo “ficar” para definir um relacionamento amoroso frouxo. “Ficar” não requer compromisso. Em bom “carioquês”, quando fulano diz que está ficando com sicrana, significa que continua disponível para parcerias amorosas novas e mais satisfatórias. Outra expressão emblemática para descrever certo tipo de atitude no Brasil urbano contemporâneo é o adjetivo “descolado”. O sujeito descolado é alguém “moderno”, cool. Sobretudo, é alguém descompromissado. Um flanêur das novas tendências, um descobridor de novas bossas.  O amor líquido dos ficantes e descolados tem, sim, o frescor da liberdade, mas está também sob a sombra da insegurança. Sem o convívio prolongado, sem o compromisso de longo prazo, sentimo-nos inseguros e desamparados. Haverá uma mão amiga para nos consolar num momento de agonia?

Um breve relato de minha clínica. Uma paciente, cerca de 40 anos, namorava um homem de sua idade, há alguns meses. Ele se dizia adepto de uma nova forma de amor: o “poli-amor”, isto é, o amor sem posse, o amor com múltiplas parceiras, o amor “descolado”, o amor sem compromisso. Ela, por sua vez, desejava o velho e quase espectral modelo de parceria erótica: desejava compromisso, fidelidade e monogamia. A instabilidade do poli-amor, disse a paciente, deixava-a profundamente insegura. Entretanto, talvez porque doutrinada pelo namorado e pelas amigas, duvidada da autenticidade de seu próprio desejo de estabilidade. Certa vez, perguntou-me: “É normal querer estar apenas com uma pessoa, comprometer-se apenas com um parceiro?”.

 

A inflação do puer

Vamos procurar resumir as principais imagens e metáforas apresentadas, que atravessam os relacionamentos humanos submersos na ambiência do capitalismo flexível e do mercado de consumo. São exatamente estas imagens e metáforas que expressam os mitos prevalentes no mundo atual. Das relações trabalhistas do novo capitalismo e de suas consequências sobre o caráter, identificamos o imperativo de renovação constante, flexibilidade e relações de curto prazo, em vez da estabilidade, da previsibilidade e dos projetos de longa duração. No amor, similarmente, é a metáfora do consumo que se impõe: devem-se evitar compromissos de longo prazo e privilegiar a leveza, a novidade e a variedade dos relacionamentos.

Que isto nos parece? Parece que estamos diante do ressurgimento, em novas vestes, de uma configuração arquetípica: o arquétipo senex-puer. Jung (1966, 1990) havia distinguido os arquétipos da criança e do velho-sábio. Entretanto, foi James Hillman (1999), na Conferência de Eranos, em 1967, quem talvez tenha mostrado mais claramente como estes dois esquemas arquetípicos não podem ser entendidos separadamente, já que constituem duas faces do mesmo processo vital.

Senex e puer designam o complexo de experiências humanas relacionadas à velhice e à juventude, respectivamente. Convém esclarecer que senex e puer não se referem a idades, a faixas etárias literais, mas, antes, a experiências psíquicas. Assim, podemos dizer que uma criança pode apresentar características do senex (“velho”, em latim), enquanto o adulto ou o idoso pode manifestar atributos do puer (“jovem”, em latim).

A parte senex do arquétipo expressa a continuidade temporal, a tendência à repetição, a formação do hábito. Senex constitui o princípio vital de ordem, de limites e fronteiras. Neste sentido, aquela parte da experiência psíquica que costumamos chamar de “eu” está intimamente associada ao senex: o ego como o território existencial ou a “zona de conforto” que acreditamos conhecer e controlar em nós mesmos. Os deuses Cronos e Saturno são algumas das representações do senex mais conhecidas na tradição ocidental. Saturno, observa Hillman (1999, p.25),

é a um só tempo a imagem arquetípica do velho sábio, sábio solitário, o lapis como pedra ancestral com todas suas virtudes morais e intelectuais positivas, e a imagem arquetípica do Velho Rei, aquele ogro castrador e castrado.

Alquimicamente7, a atitude senex é composta principalmente de chumbo, a substância que confere peso, gravidade, à alma. Está também relacionada à propriedade de coagulatio, isto é, à capacidade de transformar algo em “terra” (substância fixa e concreta), conferindo-lhe, deste modo, peso e permanência (EDINGER, 1995). Em sua aborrecida rigidez e secura, o senex é o patrono dos melancólicos e dos obsessivos.

Estabilidade, compromisso, lealdade e relações de longo prazo, aquelas qualidades desprezadas pelo novo capitalismo, são todas qualidades do espírito senex.

A parte puer do arquétipo do velho-juvenil reflete o eterno vir-a-ser, o eterno recomeçar, a transcendência do tempo cronológico. O puer aeternus é a própria semente criadora em nossa alma, a inspiração que nos move, a novidade que revitaliza. Nossos ideais — nossa glória ou nossa ruína, dependendo da situação — são a sua dádiva. A Criança Eterna ou o Jovem Eterno é avesso a regras, a limites, à repetição típica do Velho. A consciência puer assume as características da impermanência e da instabilidade. Impaciente, nunca pára quieta. O puer, por ser auto-suficiente, não faz laço, não se relaciona. Ou, antes, se ele se relaciona, é para em seguida desfazer o laço. A auto-suficiência do puer confere à personalidade seus traços de narcisismo. Na alquimia, as substâncias da qualidade puer seriam o mercúrio, com sua volatilidade, e o enxofre, por sua capacidade de combustão instantânea. Diferentemente do senex, o puer não se coagula, pois é o próprio princípio da desintegração ou solutio. Errante e instável, o histérico é um puer. Hermes-Mercúrio, o deus de pés alados, exibe vários atributos puer: é o ágil mensageiro dos deuses e o patrono do comércio. Jesus, o deus-menino, como princípio de renovação, também é puer.

Recapitulando: renovação, criatividade, inconstância e impaciência são qualidades distintivas do puer. Não são estas exatamente as qualidades valorizadas no trabalho e no amor contemporâneos?

Sabemos que “a relação com qualquer arquétipo envolve o perigo da possessão, marcada normalmente pela inflação” (Hillman, 1999, p.47). Inflação psíquica, nas psicologias analítica e arquetípica, significa o domínio de uma parte da psique sobre as demais. Nesse sentido, parece que estamos vivendo, nos dias de hoje, a inflação do puer. Atributos do puer são exaltados e recompensados, enquanto que os do senex são desprestigiados e excluídos. Em uma palestra proferida originalmente em 1996, Hillman (cf. 2007) descreveu este estado de coisas como “intoxicação hermética”. A alta permeabilidade dos países à “invasão” de produtos, capital e pessoas (imigrantes) decorrente do processo de globalização tem gerado incerteza crescente no indivíduo. Este busca então defender-se da insegurança, restaurando sua condição psicossociológica anterior (restauração regressiva da persona), mediante estratégias senex disfuncionais, como ataques de pânico e depressão. O senex,antes recalcado ou na sombra, retorna como patologia. A busca desesperada por certeza e estabilidade em um mundo hiperpuer se reflete também em práticas sociais reacionárias, como os fundamentalismos religiosos, cujos líderes se mostram cada vez mais ativos politicamente. Práticas de modificação corporal como body piercings e tatuagens podem, neste contexto de hybris puer-hermética, ser tomadas como tentativas de produzir marcos, focos identitários do tipo senex na carne, e assim compensar a volatilidade dominante na ambiência social (HAUKE, 2003).

Estamos, então, diante do desafio de curar a inflação puer, a intoxicação hermética, nos planos inseparáveis da cultura e do indivíduo. Como transformar nossa relação disfuncional com o arquétipo senex-puer? Hillman não tem, é claro, nenhuma “receita de bolo” para este problema. Como sempre, sua sugestão é genérica, arquetípica. De qualquer modo, ajuda-nos a olhar através do sintoma. Com efeito, Hillman propôs duas vias arquetípicas de transformação da inflação puer-hermética que, embora aparentemente distintas, mostram-se semelhantes.  A primeira, aproximar o puer da psique. A função reflexiva da anima, com sua dose adequada de sal — o elemento alquímico responsável pela amarga sabedoria —, amansaria a compulsão puer. A segunda via passa pelo cultivo das qualidades atribuídas a Héstia, deusa grega do lar e da lareira. Qualidades como consciência atenta e disciplinada, intensidade focada e interesse caloroso podem atuar como contrapeso, gravitas, à intoxicação hermética. Não por acaso o sal é associado a esta deusa. Secando e desinflando, o puer pode redescobrir sua face senex.

Finalmente, vale destacar as possibilidades deflacionárias da atitude puer oferecidas pela análise clássica nos moldes de Freud e Jung, um dispositivo considerado anacrônico por muitos. Para Hillman (cf. 2007), esta forma de psicoterapia de longa duração, com suas sessões introspectivas, lentas e intensamente focadas, atua como um ritual “héstico” — e eu acrescentaria saturnino — num mundo freneticamente mercurial. Considerada desse prisma, a análise pode ter muito a contribuir no plano mais vasto da cultura.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Henrique de Carvalho Pereira
Universidade Estácio de Sá, Rua Eduardo Luiz Gomes, 134, Centro, CEP: 24020-340, Niterói, Rio de Janeiro, RJ.
Endereço eletrônico: henripere@gmail.com

Recebido em: 24/07/2008
Aceito para publicação em: 17/04/2009
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra Torres Prestrelo

 

 

Notas

* Psicólogo clínico e doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1 Este artigo foi baseado em “Reflexões míticas na aurora do século XXI”, comunicação apresentada no evento A mitologia da vida quotidiana, realizado no Rio de Janeiro, na rua Jardim Botânico 674 (auditório), em 1 de março de 2008.
2 Cito de memória.
3 Estou parafraseando a seguinte passagem: “Os deuses tornaram-se doenças. Zeus não governa mais o Olimpo, mas o plexo solar e produz espécimes curiosos que visitam o consultório médico” (JUNG, 2002, p.43).
4 Sobre a construção do conceito de arquétipo na obra de Jung, ver Jung and Making of Modern Psychology, de S. Shamdasani (2003).
5 Em grego, “o momento oportuno”.
6 O fato de propor-me a examinar os problemas psicossociais decorrentes da atual economia capitalista não significa, em contrapartida, que eu acredite como mais “justa” ou “melhor” a economia controlada por um Estado forte e centralizador, como ocorre nos países comunistas. Muito pelo contrário. Nesse sentido, faço minhas as palavras de Nietzsche (apud HAYMAN, 2000): “O Estado chama-se o mais frio de todos os monstros frios. Friamente também ele mente... em todas as línguas de bem e mal... Com dentes roubados, ele morde...esse mordaz” (p.25).
7 A alquimia é tomada aqui não como “protoquímica”, mas segundo a interpretação de Jung, isto é, como conjunto de metáforas e símbolos de processos psíquicos.

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