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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.2 Rio de Janeiro set. 2009

 

ARTIGOS

 

A gestão da atividade do motorista de ônibus: um olhar ergológico

 

The activity management the bus driver: an ergological view

 

 

Francinaldo do Monte Pinto I, * ; Mary Yale Neves II

I Professor de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba-UEPB, Campina Grande, PB, Brasil
Professor de Psicologia do Centro Universitário de João Pessoa-UNIPÊ, João Pessoa, PB, Brasil.
II Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba-UFPB, João Pessoa, PB, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo busca colocar em evidência a atividade de gestão do trabalho efetuada pelo motorista de ônibus na cidade de João Pessoa/Pb, a partir do relato da atividade de um dia de trabalho deste profissional. Orientados pela perspectiva ergológica e fundamentados na ergonomia da atividade, verificamos que se intensifica a presença de variabilidades e instabilidades existentes em função do tipo de organização do trabalho adotado, o que eleva o nível de exigência dos usos de si por parte do motorista no modo de gestão. Face às im(previsibilidades) geradas pelo tempo, agruras do trânsito, relações com colegas, despachantes e passageiros, o motorista vivencia a dramática do trabalho ao gerir constantemente sua atividade, frente aos limites e equívocos da prescrição e às infidelidades do meio. No curso da atividade, a gestão operada pelo motorista se dá frente a diferentes e simultâneos fatores, muitas vezes antagônicos, como os resultados a alcançar - exemplificado pelo número mínimo de passageiros por viagem, o que nos remete à permanente pressão temporal a que está submetido -, e o respeito a valores não-dimensionados, como preservação da saúde e cordialidade na relação com os clientes.

Palavras-chave: Gestão, Atividade de trabalho, Motorista de ônibus.


ABSTRACT

This study adresses to evidenciate the work´s management activity accomplished by a bus driver in João Pessoa city, Paraíba, Brazil, starting from a labor day report of this professional. Guided by an ergological perspective and based on an ergonomic activity, it is verified that some presence of variabilities and existent instabilities is increasing due to the adopted work organization model, which enhances the demand level of usages by a bus driver on the management method. The driver, up to some un(predictabilities) generated by time such, trafic dificulties, collegues relationships, dispatchers and passengers, experiences the dramatic work by constantily managing his duty, also facing limits, tasks misunderstandings and infidelities in which his live in. In the activity course, the manegement accomplished by the driver occurs due to different and simultaneous factors, many times antagonistic, as the results to reach (exemplified by the minimum number of passengers by trip, prompting us to the permanent temporary pressure that is submitted),  as well as the non-dimensional respectfulness values such health preservation and cordial relation with the customers.

Keywords: Managment, Work activite, Bus driver.


 

 

Introdução

A partir de materiais produzidos por ocasião do desenvolvimento de uma pesquisa com motoristas de ônibus urbanos da cidade de João Pessoa-Pb (PINTO, 2001), com base em observação e registro da jornada de trabalho de um motorista de ônibus, analisamos sua atividade e destacamos a dimensão gestionária que ele desenvolve ao longo dessa jornada. Isto, por entendermos que atuar na perspectiva de compreender/transformar o trabalho implica apreender aspectos associados a esta dimensão, como se constata no decorrer do texto.

Revisitamos os materiais já produzidos na referida investigação, especialmente aquele relato, considerando que eles mereceriam novas análises. Mobilizamos agora a perspectiva ergológica, dela fazendo uso para melhor explorar, aprofundando, o que nos possibilitara as abordagens que já tínhamos feito uso, como a Ergonomia da Atividade e a Psicodinâmica do Trabalho. A Ergologia, no dizer de Schwartz (2005), antes de mais nada, conforma o projeto de melhor conhecer e, sobretudo, de melhor intervir sobre as situações de trabalho, para as transformar. Ou, quando mais pertinente, transformar o trabalho para melhor compreendê-lo, na linhagem de Marx e do Modelo Operário Italiano de luta pela saúde (ODDONE, MARRI, GLORIA, 1986). Este sentido inovador de analisar o trabalho à lupa, privilegiando sua dimensão micro, articulado ao macro, visa compreender, desenvolver e explorar a partir da atividade concreta do humano, a distinção apresentada pela Ergonomia entre trabalho prescrito e trabalho real (DANIELLOU, LAVILLE, TEIGER, 1989; GUÉRIN, LAVILLE, DANIELLOU, DURAFFOURG, KERGUELEN, 2001). Algo que vem sendo explorado por diversas abordagens clínicas do trabalho (LHUILIER, 2006) e que a Ergologia considera como matriz de análise.

Apresentaremos da investigação anterior o que se mostra imprescindível para a análise que faremos e em seguida exploramos outros materiais emergentes de uma pesquisa bibliográfica mais recente. Enfim, passamos ao exercício de análise, com base em observação e descrição de que apresentamos um recorte.

Na pesquisa que deu base à análise apresentada neste artigo, investigamos as relações entre situação de trabalho e saúde mental, considerando experiências de prazer e sofrimento psíquico vividas na atividade cotidiana do trabalho dos motoristas de ônibus urbanos da cidade de João Pessoa-PB. Elegemos então como plano teórico-metodológico principal as contribuições da Ergonomia da Atividade, da Psicodinâmica do Trabalho e da concepção de saúde de G. Canguilhem. Para os procedimentos metodológicos passamos por uma análise global deste setor e da empresa, em seguida utilizamos as técnicas de observação da atividade de trabalho e entrevistas dialógicas.

Dentre os resultados então obtidos destacamos o relato de queixas por parte dos motoristas, relacionadas à insuficiência do horário de descanso (pausa, repouso) e de folga semanal, de conflitos no trânsito, com passageiros, com fiscais, com a chefia da empresa, com colegas de trabalho e com a falta de reconhecimento social do seu trabalho. Entretanto, diante das injunções decorrentes da organização do trabalho, verificamos que os motoristas, além de sistemas defensivos individuais e coletivos construídos em relação a tais injunções, antecipam-se e elaboram também regras e saberes de prudência com objetivo de se proteger e de regular sua atividade de trabalho.

Os motoristas de ônibus fazem parte do nosso dia a dia, presentes na vida da grande maioria da população que é usuária dos transportes coletivos urbanos. Apesar de terem grande importância, não nos parecem ter o reconhecimento que lhes seria proporcional. Ainda não se deu visibilidade satisfatória para o grau de complexidade do transporte urbano e para a atividade de pilotar ônibus, particularmente no Brasil.

Parece-nos dispensável aqui apresentar a pesquisa bibliográfica então realizada. Os estudos realizados sobre esta atividade profissional têm evidenciado uma série de condições de trabalho precarizadas e degradadas. Contudo, pouca atenção tem sido veiculada a partir do ponto de vista da atividade como matriz de prioridades para um entendimento de situações pertinentes ao trabalho destes profissionais. Agregamos agora àquela pesquisa bibliográfica uma seleção de outras investigações com motoristas de ônibus desenvolvidas em diferentes cidades brasileiras. Incorporamos também uma investigação realizada na cidade do Porto, em Portugal, pois sua orientação tinha forte aproximação com a que agora pretendemos.

Dados de pesquisas realizadas na cidade do Rio de Janeiro-RJ, em épocas e com marcações teóricas distintas, apontam elementos preocupantes a respeito das condições de trabalho, saúde e segurança da atividade de trabalho dos motoristas de ônibus urbanos desta cidade.

Ramos (1991) realizou uma investigação sobre as condições e a organização de trabalho dos motoristas, apoiando-se nas contribuições teórico-metodológicas da Ergonomia, do Modelo Operário Italiano e da Psicopatologia do Trabalho. Os resultados apontaram que as condições de trabalho repercutem na saúde do motorista, desencadeando problemas intestinais, de coluna vertebral, cefaléia, crises nervosas, hipertensão e ataques cardíacos. Além destes, a operação do veículo (ônibus) e o tráfego, assim como os engarrafamentos e a má conservação das vias (que perduram), concorrem para acidentes de trabalho. O estudo ressalta a importância da articulação do saber advindo da experiência dos próprios motoristas e do conhecimento técnico dos especialistas para a melhoria das condições de trabalho.

Caiafa (2002) desenvolveu uma pesquisa etnográfica sobre viagens de ônibus na mesma cidade, objetivando descrever aspectos importantes do quotidiano da convivência social nesse meio provisório que é o ônibus. Ancorada por recursos metodológicos da observação-participante e de entrevistas com motoristas, cobradores, despachantes, fiscais e usuários dos serviços de transportes de empresas privadas,1 constatou na diversidade de suas falas, “um grande sofrimento que vem da situação de trabalho” (p. 177), como: má conservação das vias, percursos longos, inexistência de pausas entre viagens (pressão do tempo), jornada extensiva, além de problemas de segurança pública, com riscos constantes de assaltos e de morte.

Embora partindo de abordagens teórico-metodológicas diferenciadas, pesquisas realizadas em capitais do Brasil apresentam resultados similares com relação às dificuldades já apontadas nas duas investigações anteriores.

A pesquisa de Sato (1991) fazendo uso de uma abordagem psicossocial do trabalho penoso de motoristas de ônibus em São Paulo (SP), apresenta dados relevantes sobre a saúde e o trabalho desta categoria profissional. A autora, com base na Medicina Social Latino-americana, na Psicopatologia do Trabalho e na Ergonomia, analisa as ações adaptativas dos motoristas de ônibus frente ao que denomina trabalho penoso. Neste sentido, a penosidade existe quando os esforços decorrentes do trabalho, o incômodo e o sofrimento ultrapassam o limite do suportável. Conclui que as ações adaptativas são compreendidas como um ajuste possível criado pelos trabalhadores para continuar atuando em suas atividades.

Mendes, (1999) em estudo realizado na cidade de Belo Horizonte (MG) com motoristas de ônibus, indica que o trânsito, o risco de assaltos e agressões e a pressão decorrente das exigências de cumprimento dos horários são fatores que no dia a dia criam um clima de permanente “nervosismo”, sem esquecer o contato com passageiros, o que se apresenta como o principal fator de desgaste.

Em pesquisa recente na cidade do Porto, em Portugal, Cunha (2005) realizou uma análise comparativa da atividade dos motoristas de três empresas de ônibus (uma pública, uma subcontratada e uma privada), num percurso de exploração partilhada 2 visando contribuir para a prática de investigação no campo da Psicologia do Trabalho – enriquecida pela perspectiva ergológica e pela Ergonomia da Atividade – para, a partir daí, compreender a atividade dos motoristas de ônibus. E, particularmente, o modo como estes participam das condições de transformação da atividade, mediante as exigências que as empresas colocam na prestação de serviço. Os resultados desta investigação permitem concluir que no exercício de sua atividade, os motoristas não são orientados exclusivamente pelo trabalho prescrito, posto que ele jamais poderá antecipar os compromissos sempre singulares elaborados pela atividade. No modo de gestão de sua atividade, os motoristas de cada empresa levam em conta os seus objetivos de garantir a produtividade no trabalho, ao mesmo tempo em que consideram igualmente os objetivos dos outros motoristas e dos clientes.

Vê-se, assim que mesmo orientados por uma prescrição unilateral no exercício da atividade, os motoristas partilham a gestão de usos de si por si mesmos e os usos de si por outros (colegas de trabalho e objetivos das empresas), numa lógica de valores dimensionados (buscando atingir os níveis de produtividade exigido pelas empresas) e de valores sem-dimensão (preservando os laços de cooperação, confiança e solidariedade).

De um modo geral, as dificuldades com relação às condições e organização do trabalho dos motoristas de ônibus em diferentes cidades do Brasil são claramente evidenciadas no conjunto das pesquisas acima mencionadas. Observa-se uma diferenciação quanto aos resultados da pesquisa feita em Portugal. Nesta última, o foco de análise encontra-se direcionado ao estudo da relação de serviço prestado pelos motoristas e dos valores decorrentes no modo de gestão da sua atividade, o que não exclui a importância e as dificuldades postas às condições de trabalho face aos valores arbitrados pelas empresas (exigências de produtividade e de lucro) e entre os próprios trabalhadores (cooperação, confiança, solidariedade).

Além disso, é preciso considerar que o sistema de transporte urbano no Brasil ainda é bastante deficitário com relação à implementação de políticas públicas que garantam condições satisfatórias de uso a todos aqueles que necessitam desse meio de transporte. Apesar de ser o principal meio de locomoção urbana 3, os ônibus apresentam diversos problemas: inadequação ergonômica nos degraus de entrada e saída dos passageiros, barulho provocado pelo motor que se localiza na parte dianteira, prolongamento do tempo de vida útil dos veículos, dentre outros.

Por sua vez, os motoristas enfrentam dificuldades pelo desconforto dos ônibus e as complicações na organização do trânsito e na má conservação das vias, além do convívio pouco amistoso com outros veículos (ônibus, carros de passeio, motocicletas) quando do congestionamento no trânsito, geralmente em horário de pico — período de ida e retorno dos passageiros ao trabalho e de estudantes à escola. Esse conjunto de fatores sinaliza para a necessidade de novas investigações desta categoria profissional, tendo em vista os diferentes níveis de complexidades que se operam no trabalho de pilotar ônibus.

 

Marco Teórico

A abordagem clínica que utilizamos na análise apresentada neste artigo se distancia de uma ortopedia psicológica com finalidade adaptativa e de ajustes às exigências do trabalho. Neste momento buscamos explorar as possibilidades contidas no uso da perspectiva ergológica – dando nobreza ao saber da prática engendrado pelos protagonistas da atividade.

Em torno da atividade situada como foco central para a análise ergonômica do trabalho, alguns estudiosos, especialmente franceses, como: Wisner (1994), Daniellou, Laville, Teiger (1989); GUÉRIN, LAVILLE, DANIELLOU, DURAFFOURG, KERGUELEN (2001) e Daniellou (2004), contribuem na produção de conhecimento da chamada Ergonomia da Atividade. Reiteram que o trabalho real não corresponde inteiramente ao trabalho prescrito, fixado por regras e orientado por objetivos predeterminados. Ou seja, para dar conta da tarefa, o trabalhador – individual e coletivamente – se depara com equívocos e limites de qualquer prescrição, o acaso e inúmeras formas de variabilidades: panes, dificuldades de previsão, disfuncionamentos, diferenças de ritmo, efeitos da idade e experiência acumulada. Daí é preciso mobilizar-se não apenas para qualificar-se, aprender as prescrições, detectar seus limites e a presença das  “infidelidades” do meio4, como também é necessário criar novas normas e/ou operar as regulações necessárias para dar conta da tarefa.

Mas identificar que a atividade de trabalho situa-se na interseção entre o trabalho prescrito e o trabalho real (a atividade, o que o trabalhador mobiliza para dar conta da tarefa) parece não dar conta da complexidade do trabalhar, algo que se busca com o ponto de vista da atividade. O desafio do que em Ergologia se chama processo ergológico consiste em abordar o vivido em situação de trabalho, sem privilegiar o geral ou o particular, mas procurando apreendê-los conjuntamente. Importa, bem mais que evidenciar a análise do desvio entre o prescrito e o real, considerar as razões que o explicam e o mantém, convocando os valores e o debate de valores que resultam do confronto entre duas maneiras distintas de perspectivar o trabalho (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007).

O que importa, na perspectiva ergológica, é considerar que a atividade humana é o modo como os humanos se envolvem frente ao cumprimento dos objetivos de trabalho, em lugar e tempo determinados, utilizando-se dos meios colocados à sua disposição (BORGES, 2005). De que maneira os trabalhadores lidam com os limites da prescrição, o acaso e as variabilidades que se apresentam nas situações concretas de trabalho? Com muita frequência eles se empenham por completo, a cada ocasião, com seu corpo biológico, cultural e histórico –o corpo-si5 – nas relações com outros seres humanos. Eles fazem a gestão do seu trabalho à medida que – frente ao desafio da realidade – recentram o meio enquanto seu meio, são “infiéis” às “infidelidades” deste meio (CANGUILHEM, 2001) e às determinações impostas pela tarefa prescrita.

O que a Ergologia vem destacando é que “trabalhar é gerir” (SCHWARTZ, 1988; 2000), isto é, fazer sinergias entre normas antecedentes e normas recentradas. Para além do conceito de trabalho prescrito, a noção de normas antecedentes visa incorporar à análise todo um patrimônio de experiências construídas no trabalho, produto de histórias quase sempre singulares, que não se restringem aos procedimentos da prescrição do trabalho. Por outro lado, há sempre a necessidade do ser vivo de colocar em debate as suas normas de vida e os seus valores6 com o meio (inclusive de trabalho).

Sendo assim, a Ergologia entende toda atividade como um debate de normas e valores. No caso do trabalho, considerando as normas antecedentes, na situação concreta, os trabalhadores (re)inventam estratégias, fazem desvios e alterações da tarefa, em um movimento constante de (re)normatização (BRITO, 2007).

Esta discussão que ora priorizamos sobre a dimensão gestionária da atividade de trabalho remete ao contexto das relações de trabalho entre os motoristas de ônibus da nossa pesquisa, especialmente na gestão dos usos de si (SCHWARTZ, 1988; 2000) feita com colegas de trabalho, com despachantes, com a empresa e com passageiros. O relato da atividade de uma jornada de trabalho, que iremos explorar, mostra as diferentes situações de trabalho com as quais o motorista de ônibus faz uso de si ao gerir sua atividade de trabalho.

 

Relato da atividade em uma jornada de trabalho

Selecionamos para a análise que apresentamos neste artigo, um relato da atividade dos pilotos de ônibus, construído pelo conjunto de observações diretas, conversas e depoimentos acontecidos no decorrer da jornada de trabalho de um dos motoristas que mantivemos contato.

Seu Antônio7, motorista do “carro 1” do primeiro turno, acorda às 3h da manhã para trabalhar. Sua mulher também acorda nessa mesma hora para fazer seu café da manhã. Em seguida, ele se prepara para pegar o primeiro ônibus do seu bairro para chegar no centro da cidade, quando então toma um outro ônibus (dessa vez da própria empresa) para chegar até à garagem. Sai de casa portando uma pequena valise, contendo um encosto para a cadeira de motorista e uma toalha para enxugar o suor do rosto nas horas mais quentes do dia (já que se trata de uma cidade quente e úmida). Às 4h40min da manhã o ônibus chega à empresa trazendo vários motoristas e cobradores ao encontro da frota de ônibus que serve às diferentes linhas. Os trabalhadores descem e se cumprimentam de maneira jocosa. Seu Antônio, com seu jeito introspectivo, cumprimenta os outros, parecendo-nos demonstrar no olhar disposição para o trabalho. Aproxima-se da portaria, dá bom dia ao encarregado de ônibus e, de maneira gentil, pede a chave do carro 1 da Linha B, no momento em que seus companheiros fazem o mesmo em relação às outras linhas. De posse da chave, Seu Antônio, assim como os outros operadores, vão ao encontro dos seus respectivos carros. Ao chegar em frente do ônibus, encontra seu parceiro de trabalho – o cobrador – que aparenta estar com muito sono. Antes de entrar no carro, Seu Antônio verifica o estado dos pneus, abre a porta dianteira e junto com o cobrador entram no ônibus. Em seguida retira o encosto da valise e o coloca na cadeira, procurando encontrar a posição mais adequada. Logo depois, regula os espelhos, olha o painel, liga o carro, escuta o barulho do motor, espera o aquecimento e dá partida. Seu Antônio segue dirigindo tranqüilamente com destino ao ponto terminal. Durante o percurso ele comenta que se sente melhor em trabalhar nas primeiras horas da manhã, quando o dia ainda está começando. Acrescenta que os piores horários são aqueles em que o ônibus fica lotado de estudantes e nos períodos em que há festas e shows na cidade, pois segundo ele aparece muita gente drogada e embriagada dentro do ônibus ao final dos eventos, logo cedo da manhã. Às 5h10min, chega no ponto terminal, desce com o cobrador, dá bom dia ao despachante, dirige-se ao birô, assina a ficha diária e espera mais quatro minutos para o início da primeira viagem. Nesse tempo conversa com os colegas de trabalho sobre o seu time favorito, o Flamengo. Às 5h14min o despachante diz: – Tá na hora! Seu Antônio entra no carro e com ele o cobrador, que abre a porta traseira para a entrada dos primeiros passageiros do dia e que aguardavam no terminal. A primeira viagem está começando, programada para ocorrer em uma hora e quarenta e um minutos. No início mantém-se tranqüilo, pois o trânsito ainda está calmo e a expressão facial de Seu Antônio, que não é muito dado a conversas longas, também. Na metade do itinerário o cobrador fala em voz alta: – Motorista, vai descer [pela porta traseira] dois passageiros porque não tem troco prá eles! Seu Antônio balança a cabeça (demonstrando descontentamento), observa atento pelo espelho do carro e, após o toque da moeda na roleta pelo cobrador, fecha a porta traseira e dá partida. Por volta das 6h56min, Seu Antônio termina sua primeira viagem, desce, estica os braços, olha para o relógio e vê que tem dez minutos de pausa, tempo suficiente para ir ao banheiro, tomar água e dizer que esta é a viagem mais sossegada, porque tem poucos passageiros e o trânsito está bom para dirigir. Às 7h06min escuta o alerta do despachante: – Tá na hora de sair! A cena se repete, Seu Antônio sobe no veículo, senta, aperta o botão que faz abrir a porta traseira para dois passageiros que estavam à espera da saída do ônibus. Nesta viagem, aumenta o número de passageiros e, conseqüentemente, Seu Antônio faz mais paradas e enfrenta o trânsito mais tumultuado. Numa das muitas curvas do trajeto, seu veículo é fechado por um ônibus de outra empresa, sendo obrigado a frear bruscamente para evitar um acidente. O seu olhar neste momento é de muita tensão e a expressão do rosto demonstra muita irritação, chegando a comentar com um passageiro do seu lado acerca da imprudência do outro motorista. De volta ao ponto de origem e percebendo que estava atrasado, aumenta um pouco a velocidade, pois o horário previsto para chegada era 8h50min. Entretanto, Seu Antônio só conseguiu chegar às 9h, com dez minutos de atraso. Pára o veículo, espera os últimos passageiros desembarcarem, desce rapidamente para tomar água e ir ao banheiro e às 9h04min, com quatro minutos de atraso, inicia a terceira viagem. Seu Antônio demonstra cansaço, olhar tenso e atento para os sinais sonoros dos passageiros que solicitam paradas repetidamente. Fica esperando o sinal do cobrador para fechar a porta traseira e continuar o percurso. Dado o movimento de passageiros, o ônibus dirigido por Seu Antônio pára em todos os pontos e, como se isso não bastasse, enfrenta um engarrafamento por conta de uma blitz policial numa avenida de grande fluxo de veículos. Numa das paradas do centro da cidade, Seu Antônio se aborrece com a insistência de um guarda municipal tentando se passar por um agente do juizado de menores para ser liberado da passagem. Inconformado, o passageiro ameaça Seu Antônio ao dizer: – Vou dar queixa na sua empresa, já decorei o número do carro e o horário! Seu Antônio, com sinais claros de muita impaciência, dá partida de maneira brusca no veículo e comenta: – A vergonha ia ser muito maior prá esse camarada se eu tivesse deixado ele entrar, e quando chegasse na Lagoa, o fiscal fosse verificar a carteira dele ia vê que era de guarda. Depois dos contratempos, chega ao terminal às 10h57min, com sete minutos de atraso. Seu Antônio, ao descer do car ro, recebe do despachante a marmita deixada por sua esposa no terminal. Seu Antônio chama o cobrador para almoçar, pois estão na hora do repouso, e juntos voltam para o interior do ônibus que se transforma em refeitório, já que a empresa não oferece nenhum outro espaço. Enquanto almoçavam, o assunto era trabalho. Falavam dos passageiros que não gostavam de pagar passagem, dos carros menores atrapalhando o trânsito, do barulho e das confusões dentro do ônibus com passageiros, principalmente o episódio com o guarda municipal. Terminado o limitado tempo de almoço (aproximadamente trinta minutos), voltam para o terminal. Seu Antônio cumpre seu ritual: bebe água, vai ao banheiro, olha o relógio e vê que está na hora de fazer a última viagem do seu turno. Às 11h36min tudo recomeça: o horário está mais tranqüilo e Seu Antônio já não dirige com a mesma vitalidade do início da jornada. Embarcam muitos passageiros idosos e deficientes pela porta dianteira e sempre o cumprimentam. Uma mulher grávida sobe e não está com o dinheiro trocado para depositar na urna do ônibus. Seu Antônio força o freio de mão duas vezes para comunicar ao cobrador que uma passageira grávida irá pagar a passagem e aguarda o sinal positivo do cobrador que, após receber o dinheiro, movimenta e gira a roleta. É um código que ajuda aos dois e os livra de serem multados pelo fiscal secreto quando um passageiro tem a intenção de não pagar a passagem. O restante da viagem foi tranqüilo, o trânsito esteve menos agitado. Apesar disto, Seu Antônio encontrava-se ainda mais cansado e, por vezes, acelerava um pouco para não atrasar o horário previsto. Por fim, ele encerra a última viagem às 13h15min, cinco minutos antes do previsto na escala; retira o encosto da cadeira, puxa do cofre a valise e com sinais de cansaço no corpo, desce e cumprimenta o motorista substituto, a quem entrega as chaves e explica que o carro está “puxando” mais para um lado e que ele deve comunicar ao encarregado de ônibus na garagem para fazer a troca por outro. Despede-se do cobrador e do despachante, sobe no ônibus, desta vez como passageiro, e vai até à parada próxima de sua residência.

 

A preparação para a atividade

Apesar de se tratar de uma pequena capital, o motorista acorda uma hora e quarenta minutos antes de chegar à garagem da empresa, local em que inicia formalmente seu trabalho. A definição da hora de acordar já remete ao quanto uma jornada tem seu planejamento precedido por uma outra, desde o dia anterior. Sua esposa se incorpora à co-produção do início de sua jornada, também acordando de madrugada e preparando seu café da manhã. Juntos constituem este primeiro coletivo de trabalho, articulando trabalho de motorista e trabalho doméstico, engendrando toda uma dimensão amorosa e social que compõe qualquer ofício, assim com as atividades que o definem.

Devido ao modo de organização dos trajetos, o profissional é obrigado a pegar dois ônibus para chegar ao seu local de trabalho. Assim como a maioria dos moradores das cidades, o convívio com este meio de transporte se inicia junto com o dia. À diferença dos outros, também ele é motorista e a lida com a profissão se antecipa. Assim como a transição da noite para o dia, a transição social de usuário para profissional aí se inicia, no encontro com os demais colegas de profissão já nos ônibus que os transportam, em particular no da própria empresa. Denomina-se “garagem” este local de encontro para iniciar o trabalho, encontro entre colegas, parceiros e máquinas, este singular sistema sociotécnico, que será ampliado com a incorporação dos usuários.

Ao chegar à garagem, os colegas se cumprimentam, mesmo que de maneira jocosa. Seu Antônio dá bom dia ao encarregado e de maneira gentil, pede a chave do carro que vai dirigir. Assinalamos aqui, nestes cumprimentos e gentilezas, a presença do que Athayde (2008) nos aponta a partir da Psicodinâmica do Trabalho (MOLINIER, 2006). Apropriando-se de descobertas da Sociologia da Ética, denomina-se tais trocas sociais regra de ofício, algo que compõe a face oculta do trabalho. Aqueles que fazem parte do ofício e delas têm conhecimento são capazes de mobilizá-las sem mesmo a exigência de consciência do fato. Elas não são inculcadas, curiosamente os novatos vão aprendendo-as à medida em que involuntariamente as transgridem. Estas regras são produto de uma atividade deôntica, de acordos normativos – ou seja, agregados à base do que é considerado válido, correto, justo ou legítimo – nos coletivos de trabalho e remanejadas no dia a dia. A presença de regras de ofício nos indica a presença de quem as construiu: um coletivo (de regras), poderosa força antecipatória se instaura, a partir do patrimônio histórico de experiências.

Neste caso podemos assinalar que se trata de uma das quatro regras apontadas pela Psicodinâmica, as regras sociais, dentre as quais destacamos a regra de polidez. Ela permite – através de uma troca socialmente codificada, como dizer “bom dia”, ou “obrigado”, troca que qualquer um pode interpretar sem ambigüidade – atestar a presença do outro, tendo um papel cotidiano na conquista da confiança, elemento prévio e indispensável para a dinâmica do reconhecimento. Outra regra que destacamos é a da convivialidade social, que joga um papel fundamental na busca de coesão de equipes e na manutenção durável da cooperação. Mesmo que de forma jocosa – talvez sinalizando a presença de sistemas defensivos de tipo viril frente às ansiedades que emergem no início da jornada – estes cumprimentos viabilizam a possibilidade de diálogo sobre temas significativos ao trabalhar.

Neste momento preparatório Seu Antônio, motorista, mostra-se disposto ao iniciar sua jornada, como não sê-lo? Aparentar muito sono, como seu parceiro cobrador, não cabe nesta profissão.

 

O início da atividade

No início da jornada formal de trabalho (pois a informal há muito já se iniciou), iniciando-se sua atividade enquanto motorista de ônibus, percebemos a importância de certo ritual de reconhecimento do ônibus, enquanto objeto técnico, seu instrumento de trabalho, com vistas a antecipação de futuros problemas. Este ônibus fora entregue na garagem por um colega que trabalhara à noite, com um relatório verbal ao responsável pela garagem. Ou seja, esta máquina estaria em ordem, pronta para uso regular. Não obstante, Seu Antônio faz a verificação dos pneus, a regulagem dos espelhos retrovisores e a escuta do barulho do motor do veículo. Estas e outras checagens que não fomos capazes de detectar, sinalizam para uma operação de antecipação com base em experiências acumuladas, além de outras fontes de saber (as “formações” engendradas coletivamente no convívio com os pares, e/ou nos cursos de treinamento). Apropriar-se do veículo que lhe foi designado para aquela jornada revela-se fundamental para iniciar um processo de incorporação daquele objeto técnico, em seu processo de individuação (SIMONDON, 1989; ESCÓSSIA, 1999). Não pretendemos reduzir essa operação a um uso utilitário e instrumental de materiais, pois o que aí se constata é uma forma de acoplamento indivíduo-meio, revestido de paixão, transindividuando, subjetivando um corpo-si em funcionamento (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). Este momento inicial do trabalho possibilita que o motorista desenvolva desde já certas regulações quando as condições de uso do ônibus não são satisfórias.

Mas, afinal, “o que é um dia de trabalho?” Essa pergunta feita por Marx (apud CAIAFA, 2002, p. 56) se aproxima das questões por ele formuladas na “enquête operária”, escrita em 1880, quando a exploração fabril dos primórdios do capitalismo industrial alcançava formas e níveis assustadores. Exploração insensata da força de trabalho que compromete as horas de alimentação, sono e de pausas no curso de uma jornada.

Este questionamento permanece bastante atual em muitas ocupações profissionais. No caso do motorista de ônibus urbano, a pressão de tempo se destaca, obrigando-o a um cumprimento rígido em cada viagem. Ele passa a gerir sua atividade subordinado ao controle heterógeno do tempo espacializado, em função dos equívocos da prescrição e das variabilidades e intercorrências que emergem em cada trajeto e ao longo da jornada.

A prescrição gerencial que delimita o tempo a ser percorrido pelo motorista nas viagens urbanas parece não contabilizar suficientemente algo previsível: os imprevistos que acontecem no trânsito, os horários de maior fluxo de veículos, apesar de existir uma margem de tolerância para atrasos e antecipações no encerramento de cada viagem, etc. Mesmo assim, a existência do tempo máximo de uma viagem

[...] que obriga [o motorista] a correr, se não parece ser claramente enunciada, vigora sem dúvida mediante os constrangimentos impostos aos rodoviários no dia-a-dia do trabalho, pela imposição direta ou mesmo pela criação de todo um clima no qual é impossível não se inserir. (CAIAFA, 2002, p.58)

Fazer a gestão do tempo de cada trajeto é um exercício exigente feito pelo motorista no confronto com as adversidades encontradas em toda a sua jornada. Schwartz (2000) observa a esse respeito, considerando Canguilhem, que o meio é sempre mais ou menos “infiel” (nunca se sabe em que proporção) e que essa infidelidade deve ser gerida não como uma pura execução (pois isto só seria recomendável caso o meio se mantivesse fiel), mas como um uso de si. Ou seja, ele precisa fazer uso de suas próprias capacidades, de seus recursos e de suas escolhas para gerir essa infidelidade. O que não descarta a presença de outros, uma vez que o uso de si por si e o uso de si por outros vão estar sempre em sinergia nesta forma de gestão do trabalho. Além do que a pertinência de cada situação vai exigir que diferentes configuraçãoes coletivas emerjam, o que em Ergologia denomina-se “entidades coletivas relativamente pertinentes” (SCHWARTZ, 2000).

A análise de Cunha e Lacomblez (2006) a este respeito assevera que o uso de si por si e por outrem é notável no caso da gestão partilhada da defasagem de horários entre os ônibus das três empresas analisadas (como dito anteriormente). Em função da semelhança de horários de circulação percurso partilhado, os motoristas criaram uma estratégia de escalonamento da passagem de cada um dos ônibus, (alternanância de horários) em momentos distintos, visando um equacionamento da oferta do serviço de transporte. De tal modo que todos possam alcançar, ou pelo menos se aproximar, das metas de produtividade determinadas em cada empresa. Assim, apesar dos motoristas não pertencerem ao mesmo coletivo de trabalho, eles funcionam como uma “entidade coletiva relativamente pertinente ”na medida em que é pertinente esta estratégia para garantir a regulação da ‘vivência em comum’ e para melhoria do serviço público prestado.”(p.32-33).

Esta situação é própria daquilo que a Ergologia concebe como uma dramática dos usos de si por si e por outros (SCHWARTZ, 2000; SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). As escolhas que faz são sempre atravessadas por colegas de trabalho, usuários/passageiros e pelas múltiplas agruras do trânsito. Elas requisitam ao motorista um debate (ainda que interno) de valores em função de critérios estabelecidos no trânsito, pela empresa, pela relação com os despachantes, com colegas, usuários e consigo mesmo.

 

“O tempo não pára...”

O tempo decorrido em cada trajeto durante a sua jornada de trabalho possui uma importância no modo de gestão do trabalho do motorista. A ocorrência de pausas é bastante curta ou mesmo inexistente. Há uma corrida contra o tempo que necessita ser arbitrada para mais (aumentando a velocidade do veículo) ou para menos (diminuindo-a). Em que trechos é possível reduzir ou aumentar a velocidade para garantir pausas entre uma viagem e outra?

As pausas, bem como o intervalo para repouso, só são garantidas se não houver imprevistos no percurso das viagens. Além, é claro, do itinerário (longo ou curto), das avenidas e dos horários de circulação. O controle de saída e chegada de cada viagem dos veículos é registrado pelo despachante, no terminal. A relação que se estabelece entre os motoristas e estes profissionais de controle, dependendo da situação, tanto pode ser tranqüila quanto geradora de conflito e tensão. A primeira situação ocorre quando os motoristas percebem que há por parte dos despachantes uma certa compreensão, no dia-a-dia de trabalho, em relação às exigências para o cumprimento dos horários de saída e chegada das viagens, em função de atrasos, antecipações, pausas entre viagens e repouso. Já a segunda situação remete à dimensão do conflito e tensão, tendo em vista que os despachantes têm a finalidade de regular/controlar o trabalho do par motorista-cobrador no uso e aplicação das normas preestabelecidas. O que pode gerar, portanto, problemas para os pilotos à medida que aqueles se mostram intransigentes e não procuram uma maneira considerada adequada de informar/comunicar/cobrar.

No curso da atividade, a gestão operada pelo motorista se dá frente a diferentes e simultâneos fatores, muitas vezes antagônicos como os resultados a alcançar (o número mínimo de passageiros por viagem), e o respeito a valores não-dimensionados, como: preservação da saúde, cordialidade na relação com os clientes, confiança e cooperação com os colegas e com a chefia. No caso do despachante, é estratégico que o motorista desenvolva laços de solidariedade, confiança e compromisso mútuo. Nesta relação, estão em jogo os valores de produtividade e eficácia do serviço prestado pelo motorista sob o controle de um outro profissional. Os atrasos, por exemplo, podem ser renegociados ou não com o despachante para a concessão de uma pausa entre uma viagem e outra. É neste momento que entram em cena os valores de solidariedade, justiça e cooperação entre estes dois profissionais em posições quase sempre oponentes. Evidencia-se um debate de normas e valores em torno da exigência oriunda da hieraquia de não atrasar as viagens (algo dimensionado) e da garantia de um mínimo de preservação do bem-estar do trabalhador (algo não dimensionável). Em função deste impasse, a gestão do trabalho se depara o tempo todo com um debate de normas e valores, em um meio de trabalho variado. Este meio, conforme mencionamos, está sempre sujeito a modulações, a infidelidades, a negociações, podendo mesmo gerar obstáculos importantes. Para tanto, “compreender-se-á em que sentido qualquer atividade industriosa pode ser dita lugar de uma negociação de eficácias, no sentido em que, geralmente na informalidade, confrontações ou computações silenciosas aí se operam” (SCHWARTZ, 2004, p.29).

Dimensionar o coeficiente do valor tempo de cada viagem permite julgar a aproximação ou o afastamento dos valores sem dimensão. Por exemplo, fazer a gestão coletiva dos atrasos e das pausas desviando-se dos critérios estabelecidos pela empresa, requer a negociação entre motorista e despachante para um acordo (às vezes tácito) de criação de novas normas, isto é, do exercício da capacidade normativa (CANGUILHEM, 1995), de renormatizações (SCHWARTZ, 2000).

No horário de almoço a mulher volta à cena na figura da marmita. Mas o elemento familiar não toma a cena, o diálogo se estabelece em torno do tema trabalho, digerido no curso da refeição.

 

O ônibus em movimento e as variabilidades

O trânsito é considerado um fator de muito desgaste psicossomático para o motorista, pois sua intensidade muda de acordo com o horário, com a estação do ano, especialmente o “inverno” que, nesta região, corresponde ao período das chuvas. Além da variabilidade das condições das vias, das condições naturais, os motoristas também enfrentam outros veículos (ônibus, carros e motos) que acabam dificultando o seu trabalho, à medida que atrasam o tempo programado para a realização do trajeto.

Frente a estas variabilidades, como o motorista pode fazer regulações, se antecipando a estes acontecimentos, fazendo a gestão de sua jornada? Como ele faz uso de si por/para si e/ou por/pelos outros para continuar a cada dia trabalhando? Estas indagações são importantes para perceber que a atividade é muito mais do que a pura execução das tarefas previstas e antecipadas ou pelas normas consideradas antecedentes (aí incluído o prescrito). O ponto fundamental deste confronto do motorista com as agruras do trânsito parece se situar na forma de trabalhar/gerir os constrangimentos, os imprevistos diários, frente à lógica mercantil e à lógica de saúde e de serviço prestado aos co-cidadãos.

Para fazer esta negociação de eficácia, o motorista deve se articular sobre uma boa gestão das incertezas, oriunda de um certo conhecimento anterior, armazenado em forma de patrimônio individual, mas fundamentalmente coletivo, para se resguardar de problemas de caráter humano e técnico referente à conduta operacional. Gerir, afirma Schwartz (2004), diz respeito à maneira pela qual fazemos a gestão de nossas contradições ou de nossas relações com outras pessoas, isto é, o modo como compomos os diferentes usos de si.

No início da jornada e ao final, o trânsito está “calmo” e Seu Antônio se sente melhor, em particular no amanhecer. A temporalidade do trânsito, antropormorfizado, calmo/nervoso, opera em relação com sua economia psicossomática. Assim como para seu Antônio a superlotação do carro ou a presença de usuários fora de rotina de trabalho também são perigo de “confusão”.

 

Considerações finais

Neste trabalho procuramos colocar em destaque a dimensão gestionária presente na atividade de trabalho do motorista de ônibus (ou sua atividade de gestão). Para este propósito, tomamos como referência um relato-descrição da atividade de trabalho, por nós elaborado, em uma jornada de um profissional.

Agregamos para a análise, neste momento, a escolha teórico-metodológica da perspectiva ergológica, o que colaborou para colocar em sinergia e aprofundar no próprio exercício de análise outros conceitos, oriundos de diferentes abordagens. Pudemos assim melhor perceber e compreender um outro modo de gestão para além do gerencial. Na verdade, uma outra atividade na atividade do motorista, ou uma dimensão da atividade geral de pilotar um ônibus.

A análise aqui realizada, a partir da observação e registro da atividade de trabalho de um motorista, é de caráter provisório e parcial. Trata-se, portanto, de um exercício clínico-analítico de uma orientação – ergológica – complexa e exigente sobre a atividade de trabalho. Sem dúvida, falar sobre gestão e atividade de trabalho deste ponto de vista exige (por parte de quem se arrisca) todo um cuidado ao qual nos dedicamos e arriscamos.

Finalmente, assinalamos que o valor tempo (em sua dimensão cronológica) se imiscui a todo instante na atividade de trabalho. Aliás, no caso do motorista de ônibus urbano, o tempo é o ingrediente principal de sua atividade. A maneira como o motorista passa a geri-lo face aos equívocos da prescrição e às variabilidades enfrentadas no meio de trabalho, consiste num debate constante de normas e valores do que representa ser/estar motorista, com os outros, na cidade, cotidianamente. Fica evidente que os valores dimensionados e não-dimensionados, como diz Schwartz, estão presentes nos constantes usos de si, tanto com relação ao próprio motorista quanto na relação entre ele e os outros. Temos aí uma dramática incontornável do trabalho humano frente às adversidades do meio. Poderíamos acrescentar, na linguagem de Canguilhem (2001), que vários meios se recortam em cada sujeito que trabalha e vive sua intersecção nas interferências que lhe oferecem a ocasião, mesmo porque muitas normas individuais e coletivas de vida são possíveis num mesmo meio de trabalho.

 

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Endereço para correspondência
Francinaldo Monte Pinto
Universidade Estadual da Paraíba, Rua das Baraúnas, 351, Campus Universitário, Bairro Bodocongó, Campina Grande, PB, Brasil. CEP: 58109-753
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Mary Yale Neves
Universidade Federal da Paraíba-UFPB, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Cidade Universitária, João Pessoa, PB. Brasil. CEP: 58051-900
Endereço eletrônico: myale@uol.com.br

Recebido em: 29/11/2008
Aceito para publicação em: 05/02/2009
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo

 

 

Notas

* Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1 No Rio de Janeiro, assim como em todas as cidades do Brasil que detêm transporte coletivo urbano, as empresas de ônibus pertencem ao domínio privado.
2Trata-se de um mesmo percurso e horário de circulação dos ônibus das três empresas mencionadas.
3 Somente três grandes cidades do país (São Paulo, Rio de Janeiro e Recife) possuem transporte metroviário.
4 O meio é considerado “infiel” porque não podemos determinar a priori os eventos que se sucederão em cada momento da vida. Daí a idéia de vida como movimento e imperfeição, isto é, que faz desvio e cria diferentes normas. (CANGUILHEM, 1995).
5 Trata-se de um conceito complexo, enigmático que atravessa todas as dimensões do ser humano. A noção de corpo-si, não oponente a alma, notabiliza-se pelo pensamento, pela inteligência, pelo sistema nervoso, pelas regulações e pela história. (SCHWARTZ, 2000).
6 O conceito de valor, segundo a Ergologia é sempre subjetivo e diz respeito à maneira como cada um hierarquiza o que prefere ou o que rejeita. O individuo não inventa seus valores, mas re-trabalha sem cessar o que o meio lhe impõe/propõe. Desta forma, ao menos parcialmente, ele os singulariza (notas de sala de aula – Profº Yves Schwartz–Université d’Aix-en-Provence (BORGES, 2006, p.33).
7 Nome fictício.

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