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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.3 Rio de Janeiro dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Representações sociais da AIDS e alteridade

 

Social representations of AIDS and altruism

 

 

Brigido Vizeu CamargoI; Raquel Bohn BertoldoII,*; Andréa BarbaráIII

I Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, SC, Brasil
II Doutoranda em Psicologia Social e das Organizações pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – ISCTE, Lisboa, Portugal
III Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, SC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo investigou as representações sociais da AIDS de adolescentes assim como suas estimações sobre as representações dos outros adolescentes. Os dados foram coletados a partir de duas questões abertas: 1) “O que você pensa sobre a AIDS?” e 2) “O que você acha que os jovens da sua idade pensam sobre a AIDS?”, analisadas pelo programa ALCESTE. Participaram do estudo 261 estudantes do ensino médio, sendo 50,6% do sexo feminino. Os resultados indicam uma representação da AIDS como um problema social, biomédico e relacionado à intimidade. A representação do que os outros jovens pensam sobre a AIDS também enfoca o aspecto biomédico, mas se diferencia ao relacionar a contaminação pelo HIV à falta de preocupação com a prevenção e à irresponsabilidade. Conclui-se que os adolescentes projetam nos outros de seu grupo elementos negativos que envolvem questões ligadas à próprias emoções e percepção de risco frente a doença.

Palavras-Chave: AIDS, Adolescentes, Representações sociais, Alteridade.


ABSTRACT

The study aimed the investigation of the social representations of AIDS among adolescents, as well as their estimations of other adolescents’ representations. The data were gathered from two opened questions: 1) “What do you think of AIDS?” and 2) “What do you think youngsters your age think of AIDS?”, analyzed by the software ALCESTE. 261 high school students took part in the study, from whom 50.6% were females. The results pointed that AIDS is represented as a social and biomedical problem concerning the intimacy. The representation of what do the other youngsters make of AIDS also emphasized the biomedical aspect, distinguished by the relationship established between contamination by the HIV and the lack of preoccupation with prevention and the youth irresponsibility. It was concluded that adolescents tend to project over the others of their group negative elements involving issues concerning their own emotions and risk perceptions of the disease.

Keywords: AIDS, Adolescents, Social representation, Altruism.


 

 

1. Introdução

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (2005), nos últimos 50 anos não houve epidemia mais grave que a AIDS. Caracterizou uma pandemia, uma vez que eclodiu em diversos países e regiões do mundo simultaneamente. Mesmo tendo seu crescimento desacelerado no Brasil, permanece uma tendência ao aumento de contágio entre mulheres e por transmissão heterossexual (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006).

Tura (1998) observa que o fenômeno da AIDS é particularmente complexo, pois envolve a sexualidade, o afeto, o desejo, a necessidade de afirmação, além de normas, valores e informação. Crises epidêmicas, como a da sífilis no século XIX na Europa, da AIDS desde os anos 80 no mundo, ou da dengue nos últimos anos no Brasil, envolvem e acentuam a dimensão da alteridade. Em momentos de crise, as características negativas do outro são intensificadas, e freqüentemente se transformam em bodes expiatórios, transferindo o mal do interior para o exterior de uma comunidade (Joffe, 1998).

A alteridade pode ser compreendida positivamente, ao viabilizar toda atividade simbólica existente entre seres humanos; ou negativamente, quando expõe um dado grupo a outro que lhe é estranho, ameaçador. Assim, Jodelet (1998) define a alteridade como um processo simultâneo de construção e de exclusão social, cuja compreensão deve ser conjunta e englobar os níveis interpessoal e intergrupal.

É importante ressaltar que a diferenciação que conduz à identidade, é diferente da que faz emergir a alteridade. Esta última implica em um processo em que o ‘outro’ deve afastar-se do eu, tornar-se estranho por características diversas daquelas que exprimem o que é próprio da identidade. O “trabalho de elaboração da diferença é orientado para o interior do grupo em termos de proteção; para o exterior, em termos de tipificação desvalorizante e estereotipada do diferente” (JODELET, 1998, p. 51).

A alteridade é concebida no campo discursivo à partir de representações e teorias (JODELET, 1998). O conceito de representação social utilizada neste artigo corresponde à teoria elaborada por Serge Moscovici (1976). Por representações sociais, entende-se como um conjunto de conceitos, afirmações e explicações originadas no cotidiano, no decurso de comunicações interrindividuais (MOSCOVICI, 1982). De acordo com Moscovici (1978), as representações “circulam, cruzam-se e se cristalizam quase incessantemente, através de uma fala, um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano” (p.41). É uma forma de conhecimento do mundo construída a partir de conjuntos de significados, que permitem dar sentido ao desconhecido. Esse processo partilhado no interior de grupos compõe um saber compartilhado, geral e funcional para as pessoas, chamado de senso comum (JODELET, 1986; MOSCOVICI, 1978).

Joffe (1994) estudou as representações sociais da AIDS considerando a dimensão da alteridade entre jovens sul-africanos e britânicos, junto aos quais foram abordadas questões como a origem do HIV/AIDS, a disseminação da doença e a quais grupos eram mais afetados pela doença. Observou-se em ambas amostras a projeção da responsabilidade pela AIDS para grupos externos ao próprio grupo. Esse fenômeno enfatiza a importância de afetos como o medo, a ansiedade e a impotência na representação objetos ameaçadores como a AIDS, o que cria a ilusão de controle sobre o próprio território.

Pode-se perceber assim que, à semelhança do que ocorre nos primeiros anos da infância, com a secção do bem e do mal e com a projeção do mal e preservação de um bem, bom e puro, quando o indivíduo cresce e o mesmo processo projetivo de defesa é mantido. Na medida em que há a assunção de uma identidade grupal, a necessidade de manter uma concepção positiva e pura de si aplica-se ao grupo, do mesmo modo que os grupos externos se tornam depositários de sentimentos maus (JOFFE, 1998).

A proximidade e o convívio cotidiano às vezes se impõem à separação física dos grupos dificultando mecanismos de projeção de sentimentos negativos para um ‘outro’ distante. Nesse sentido, Jodelet (2005) investigou o convívio deste ‘outro’ no seio do próprio grupo em uma colônia para tratamento de pacientes psiquiátricos, os quais eram hospedados em casas de famílias residentes na comunidade. A autora mostra como a loucura marca a distinção do ‘mesmo’ e do ‘outro’, produzindo, por um lado, um sistema de regulação social que visa “dominar as inquietações e perigos imaginários ou reais e diminuir a acuidade da consciência deles”; e, por outro, sustentando processos de separação simbólica e de discriminação (JODELET, 2005, p. 198).

A partir dos estudos já mencionados (JODELET, 2005; JOFFE, 1998), constata-se que estudo da alteridade pauta-se no estabelecimento de uma distância intergrupal e da projeção de elementos de caráter negativo, seja em relações interpessoais ou intergrupais.

Neste sentido, o conceito de ‘zona muda’, importado da perspectiva estrutural das representações sociais, ajuda a compreender os efeitos de valores e normas compartilhados por grupos sociais na dinâmica dos cognemas de um espaço representacional dado (GUIMELLI; DESCHAMPS, 2000).

A zona muda é composta por elementos contranormativos, isto é, cognições ou crenças que não são expressas pelo sujeito em condições normais de produção, pois podem entrar em conflito com valores morais ou normas de um determinado grupo (GUIMELLI; DESCHAMPS, 2000). Estes elementos escondidos podem até mesmo fazer parte do núcleo central, de modo que a representação acessada por métodos consensuais de pesquisa é ‘mascarada’, significativamente diferente das representações socialmente partilhadas.

Os trabalhos teóricos sobre o conceito de zona muda tiveram conseqüências metodológicas importantes, no sentido de desenvolver ferramentas que permitissem identificá-la. Estas ferramentas visam sobretudo a diminuição da pressão normativa (ABRIC, 2003); por exemplo, a substituição do contexto de enunciação a reduz ao propor um ‘ambiente’ para o questionamento que isenta o sujeito do receio de ser julgado por emitir respostas socialmente pouco aceitas ou que coloquem em cheque valores fundamentais para o grupo de pertença (GUIMELLI; DESCHAMPS, 2000).

Esta técnica é utilizada no estudo de Guimelli e Deschamps (2000) sobre as representações sociais dos ciganos entre estudantes franceses. Quando questionados em situação normal, evocavam-se mais frequentemente noções neutras ou positivas (ex.: nômades, alegria, violão) enquanto que no contexto de substituição – o que “as pessoas em geral” pensam sobre os ciganos – surgem elementos com conotação mais negativa (ex.: ladrão, mendigo, sujo).

A partir desta perspectiva desenvolvida pela abordagem estrutural para o estudo da zona muda, pode-se explorar campos discursivos pouco empregados quando a pressão normativa é maior.

Partindo-se dos aspectos teórico-metodológicos acima desenvolvidos, o presente estudo teve como objetivo a investigação das representações sociais da AIDS entre adolescentes e as representações que estes têm do que pensam outros jovens do mesmo grupo.

 

2. Método

Participantes

Participaram do estudo 261 estudantes da 2ª série do ensino médio da rede Estadual de Educação da cidade de Florianópolis, do período matutino. A amostra foi composta por 49,4% de homens e 50,6% de mulheres. A média de idade foi de 16 anos e 5 meses (DP=1 ano e 2 meses), com moda em 16 anos (60,9% dos alunos).

Instrumentos

Foi aplicado um questionário auto-administrado em situação coletiva, composto por questões sobre (1) variáveis demográficas (idade e sexo); (2) variáveis de interesse para o comportamento sexual (namoro, relações sexuais, uso do preservativo) e (3) instrumento para o diagnóstico da representação social da AIDS com duas questões abertas:

1. O que você pensa sobre a AIDS?;

2. O que você acha que os jovens da sua idade pensam sobre a AIDS?

Análise de dados

Na análise dos dados foi utilizado o programa Alceste – Analyse Lexicale par Contexte d’um Ensemble de Segments de Texte (REINERT, 1998). Este programa realiza uma Análise Hierárquica Descendente a partir do corpus inicial formado pelo conjunto das respostas. A análise hierárquica descendente fornece “contextos textuais que são caracterizados pelo seu vocabulário, e também segmentos de texto que compartilham esse vocabulário” (NASCIMENTO-SCHULZE; CAMARGO, 2000, p. 297). Estes contextos, ou mundos lexicais são, na sua totalidade, a expressão estável e coletiva de pontos de vista específicos de indivíduos (REINERT, 1997).

As classes compostas pelos contextos lexicais podem indicar representações sociais ou campos de imagens sobre um dado objeto. É o conteúdo das classes e as relações entre elas que determinará se se trata de uma representação social em seus vários aspectos ou de mais de uma representação social (CAMARGO, 2005).

 

3. Resultados

Como um todo, no momento da coleta de dados 33,6% dos alunos afirmaram estar namorando; 54,4% já haviam tido ao menos uma relação sexual com penetração, dos quais 62% afirmam ter usado o preservativo em todas as relações, 23,8% na maioria delas, 2,4% em metade, 7,1% na minoria e 4,8% em nenhuma.

Representações Sociais da AIDS

A primeira questão do instrumento, “o que você pensa sobre a AIDS?” contou com 257 respostas, das quais 235, ou seja, 91,4% foram associadas à alguma classe. O corpus foi formado por 10.214 ocorrências de palavras, que corresponderam a 1.453 formas distintas, indicando uma média de sete ocorrências por palavra.

Os resultados da Análise Hierárquica Descendente podem ser observados no dendograma (Figura 1) que além de descrever as classes, apresenta a relação entre elas. Pode-se perceber que o corpus foi inicialmente dividido em dois subcorpora. O primeiro – que originou posteriormente as classes 1 e 3 – relaciona a AIDS, enquanto problema, às esferas individual (classe 3) e social (classe 1). O segundo – que constituiu a classe 2 – apresenta noções concretas sobre a doença, sua transmissão e prevenção.

 

Figura 1 – Dendograma da Análise Hierárquica Descendente da questão “que você pensa sobre a AIDS”.

 

A classe 1 que em conjunto com a 3 opõe-se à 2, é formada por 86 UCEs, o que corresponde à 33,8% do corpus. A AIDS é representada neste contexto como um problema da sociedade que assola o mundo e, para proteger-se, é necessário conhecer os métodos preventivos. Esse contexto relaciona cognições sobre a AIDS ao âmbito social, fazendo sempre a associação entre o comportamento dos jovens e as políticas públicas que poderiam promover a prevenção, como pode ser observado nos elementos relacionados à classe: cuidado, prevenção, informação, sociedade e contrair. Apresenta-se a seguir uma das UCEs que compõem essa classe:

Uma doença transmitida por vírus e sem cura, a AIDS esta bem espalhada na sociedade, e essa expansão, que não escolhe classe social, se deve muito à falta de informação em relação à própria AIDS e como ela se transmite. Quem tem AIDS sofre um enorme preconceito de toda a sociedade, e alguns desinformados associam o vírus à homossexualidade. Tanto quanto à própria doença, o preconceito também deve ser combatido e vencido (aluno do sexo masculino, sem namorada e sem experiência sexual).

A classe 3 que em conjunto com a 1 opõe-se à 2, é composta por 59 UCEs, representando 23,2% do corpus. Este contexto agrupa elementos da representação da AIDS que fazem referência a emoções referentes à relação íntima com o parceiro sexual do indivíduo frente ao risco e à sua vida, o que abarca o medo da doença, a tristeza de se descobrir portador do vírus HIV e o prejuízo à vida. Além dessas noções emocionais sobre a doença, compõem o contexto julgamentos de valor frente ao indivíduo que contrai o vírus (irresponsabilidade, descuido). A classe apresenta, portanto fatores emocionalmente ambíguos frente ao portador: sofrimento pela doença e revolta pelo descuido, como pode ser observado pelos seguintes elementos ligados à classe: irresponsabilidade, parceiro, medo, descuido e tristeza. Apresenta-se a seguir uma das UCEs que compõem esse contexto: “Infelizmente, uma vida triste, apesar de continuar tendo uma vida normal. No fundo o portador sofre, tem medo, culpa, enfim, acredito que não tem como ficar tranqüilo sabendo que você possui uma doença incurável” (aluna do sexo feminino, sem namorado e com experiência sexual).

A classe 2, que se opõe as classes 1 e 3, conta com 109 UCE que corresponde a 42,9% do total do corpus. Nesse contexto a AIDS é apresentada sob a ótica biomédica, como uma doença sexualmente transmissível que pode ser disseminada através de relações sexuais, pelo compartilhamento de seringas contaminadas e por transfusões de sangue, causada por um vírus que ataca o sistema imunológico, como pode ser observado nos elementos componentes do contexto: sexual, sangue, transmitida, através e transmissão. A classe aparece associada a estudantes do sexo masculino e a estudantes de ambos os sexos que ainda não tiveram relações sexuais. Estas cognições enfatizam questões pragmáticas de transmissão e prevenção reforçadas pela escola e por campanhas de prevenção. Estas respostas fazem contraponto às duas outras classes por abordar as questões biomédicas da doença em si, enquanto que as outras classes fazem abstrações sobre o significado da doença para as pessoas e para a sociedade. Apresenta-se a seguir uma das UCEs que compõem do contexto da classe 2: “A AIDS é uma doença sexualmente transmissível que atualmente não tem cura, que pega através de contato sangüíneo, sexual, etc.” (aluno do sexo masculino, sem namorada e sem experiência sexual).

O fato de esta classe estar associada a garotos parece indicar um modo mais objetivo e concreto de representar a realidade que as garotas. A associação com pessoas que ainda não tiveram ao menos uma relação sexual aponta para a falta de contato com o objeto da representação e a necessidade de materializá-la. As pessoas que têm experiência com o objeto evocam sentimentos e emoções em relação a ele, o que dificulta sua organização cognitiva baseada somente no conhecimento empírico.

 

Representações sociais sobre a representação do ‘outro’ sobre a AIDS

O corpus correspondente à segunda questão, “para você, o que pensa a maioria dos jovens da sua idade sobre a AIDS?”, contou com 258 UCEs, das quais 220 foram associadas à alguma classe, ou seja, 85,3%. Foram analisadas 619 palavras diferentes, as quais foram evocadas em média 6 vezes cada.

Os resultados da Análise Hierárquica Descendente deste corpus podem ser observados no dendograma da Figura 2. Percebe-se que o corpus foi inicialmente dividido em dois subcorpora. O primeiro – que continuou estável e originou a classe 1 – refere-se, sobretudo ao conhecimento pragmático e concreto que se supõe que os outros jovens tenham sobre a AIDS. O segundo – que originou posteriormente as classes 2 e 3 – apresenta julgamentos a respeito do como o ‘outro’ comporta-se em face de uma ameaça que envolve a intimidade e a sexualidade.

 

Figura 2 - Dendograma da Análise Hierárquica Descendente da questão “o que os jovens da sua idade pensam sobre a AIDS”

 

A classe 1 que se opõe às classes 2 e 3 em conjunto, conta com 47 UCEs que correspondem à 21,4% do total do corpus. O contexto apontado por esta classe apresenta o pensamento que os outros jovens têm sobre a AIDS em termos biomédicos, da AIDS como doença sem cura que pode levar à morte, perigosa e, portanto, deve-se tomar cuidado e evitá-la, como mostram os seguintes elementos ligados à classe: doença, cura, perigoso, transmissão e morte. Esta classe está ligada a estudantes do sexo masculino. De modo similar ao observado na classe 2 do primeiro corpus, os garotos tendem a representar a realidade de forma mais concreta e pragmática. Como pode-se observar na UCE associada ao contexto: “Que é uma doença sem cura que leva à morte depois de um tempo e que para evitar deve-se usar camisinha.” (aluno do sexo masculino, sem namorada e sem experiência sexual).

Parte do segundo sub-corpus, a classe 2, que em conjunto com a 3 opõe-se a 1, conta com 107 UCEs que correspondem à 48,6% do total do corpus. Esta classe indica um contexto onde os alunos creem que os outros jovens da sua idade não se preocupam com a AIDS, que possuem vários parceiros, têm várias relações e que na hora da relação, não pensam nas conseqüências do não uso do preservativo. Problematizam a questão da informação ora afirmando que falta informação, ora dizendo que embora haja informação suficiente, os jovens não acreditam que possam contraí-la, pois são imediatistas, querem viver o prazer do momento. Esse ambiente pode ser definido pelos elementos associados à classe: jovens, preocupação, conhecer, relação e consciência. A classe 2 pode ser ilustrada pela seguinte UCE:

Os jovens da minha idade, hoje em dia só pensam em curtir a vida do modo deles e sem responsabilidade com nada, não sabem o perigo que o mundo nos oferece. Eles até debatem a respeito da AIDS com tom de ironia, com um pouco de preocupação, mas na hora de se relacionar com alguém ao menos querem conhecer bem a pessoa já partem para o sexo, aí vem as conseqüências. (estudante do sexo feminino, sem namorado e com experiência sexual).

As respostas reunidas nesta classe fazem uma análise da situação do jovem frente à prevenção, analisando as causas do abandono do preservativo, principalmente em termos de valores. O fato de pessoas que nunca tiveram relações sexuais estarem associadas a esta classe parece indicar que a falta de experiência com o objeto da representação leva a pessoa para um julgamento no plano cognitivo, onde não são levadas em consideração questões relativas a sentimentos e afetos. Assim, o discurso recriminador frente às pessoas que não se protegem pode dever-se à dificuldade de compreensão acerca da gestão da racionalidade em uma situação íntima.

A classe 3 que em conjunto com a 2 opõe-se a 1, conta com 66 UCE que correspondem a 30% do total do corpus. Esse contexto organiza crenças sobre os outros jovens do seu grupo, segundo as quais os jovens pensam que só os outros pegam AIDS, por isso não se previnem de DSTs. Por outro lado, o contexto aponta que os outros jovens só se previnem quando há a preocupação com a contracepção ou quando algum amigo contrai a doença, o que transforma uma remota possibilidade em chance real. Esta classe pode ser ilustrada com os seguintes elementos associados ao contexto: vai, nunca, acontecer, pegar e prevenir. As seguintes UCEs exemplificam o contexto:

Que ela esta aí, mas muitos têm o seguinte pensamento, eu nunca vou pegar. A gente pensa que com a gente nunca vai acontecer. Que quando se ama é tudo perfeito. (estudante do sexo feminino, sem namorado e com experiência sexual).

Na verdade eles nunca se preocupam sinceramente com isso, usam camisinha por causa da gravidez e não por causa da doença, se preocupam apenas depois que pegam ou algum amigo porque acham que com eles nunca vai acontecer, então depois que acontece se preocupam. (estudante do sexo feminino, sem namorado e sem experiência sexual).

Assim como a classe 2, a classe 3 analisa a situação do jovem frente ao risco de contrair o HIV. A classe 3 é associada a alunos que já tiveram ao menos uma relação sexual e, portanto, levam em consideração além do conhecimento que os jovens têm sobre a AIDS, a dificuldade de se administrar os riscos quando emoções estão envolvidas. Os alunos parecem projetar “nos jovens de sua idade” o seu próprio pensamento sobre o objeto (ABRIC, 2003).

 

4. Discussão

Os dados indicam, a partir do corpus 1, uma representação social da AIDS partilhada globalmente que compreende a doença enquanto problema ora social – ao enfocar estratégias socialmente orientadas de prevenção; ora pessoal – ao contemplar as emoções que permeiam a intimidade. O contexto associado especificamente aos alunos do sexo masculino e sem experiência sexual, enfoca a doença da perspectiva biomédica, ou seja, informação sobre modos de contágio e prevenção.

A representação do que os outros jovens pensam sobre a AIDS (corpus 2) apresentou um contexto mais específico dos alunos do sexo masculino (classe 1), onde pensa-se que os outros jovens compreendem a doença em termos de conhecimento sobre o contágio e comportamentos preventivos. O corpus apresentou outros dois contextos mais próximos, um deles associado a alunos sem experiência sexual – no qual o pensamento dos outros jovens sobre AIDS sub-dimensiona o risco representado pelo comportamento sexual desprotegido face ao prazer imediato; e outro a alunos com experiência sexual – segundo o qual os outros jovens projetam o risco frente à AIDS em outras pessoas, resultando no sexo desprotegido.

Os resultados deste trabalho vão ao encontro dos resultados experimentais sobre a mudança do contexto normativo (GUIMELLI; DESCHAMPS, 2000). O relaxamento de preocupações com o julgamento permitem uma problematização fora da experiência imediata do jovem, mais refletida. As representações da AIDS na alteridade tentam, portanto dar um sentido à baixa proteção contra a contaminação entre os jovens, noção central da representação social da AIDS atualmente (CAMARGO; BARBARÁ; BERTOLDO, 2007).

Mesmo que o presente estudo tenha investigado a alteridade em sua dimensão intragrupal, o mecanismo de secção simbólica e de projeção descritos por Jodelet (2005) e Joffe (1998; 1994) puderam ser observados. Os indivíduos projetaram nos outros jovens de seu grupo algumas noções mais negativas e homogeneizadas, frequentemente empregando chavões de campanhas preventivas ou frases prontas. As representações dos próprios alunos sobre a AIDS apresentaram contextos mais complexificados, isto é, mais heterogêneos semanticamente e em termos de valores.

A complexidade da gestão da racionalidade no âmbito da sexualidade é evidenciada pelos resultados – a percepção do risco incorrido, fundamental para a prevenção, é alterada no sentido de diminuir a dissonância cognitiva (THORNTON; GIBBONS; GERRARD, 2002). Podendo a pressão normativa enviesar os resultados em função do que se imagina desejar o pesquisador, é importante relativizar os resultados de pesquisas sobre representações sociais de objetos de saúde, sobretudo aqueles que auxiliam o desenvolvimento de políticas públicas em saúde pública.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Brigido Vizeu Camargo
Departamento de Psicologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Campus Universitário, Trindade, CEP 88.040-970, Florianópolis - SC, Brasil
Endereço eletrônico: brigido.camargo@yahoo.com.br
Raquel Bohn Bertoldo
Av. das Forças Armadas, Gabinete 119 da Ala Autónoma, CEP 1649-026, Lisboa, Portugal
Endereço eletrônico: raquel_bertoldo@iscte.pt
Andréa Barbará
Centro de Filosofia e Ciências Humanas , Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Campus Universitário, Trindade, CEP 88.040-970, Florianópolis – SC, Brasil
Endereço eletrônico: andreabs@gmail.com

Recebido em: 05/07/2007
Aceito para publicação em: 28/09/2009
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo

 

 

Notas

* Psicóloga pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, SC, Brasil

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