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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.9 n.3 Rio de Janeiro dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Uma compreensão da infância dos índios Jenipapo-Kanindé a partir deles mesmos: um olhar fenomenológico, através de narrativas e desenhos1

 

A comprehension of the Jenipapo-Kanindé Indian's childhood from their own: a phenomenological look through narratives and drawings

 

 

Sacha Lima PinheiroI; Ana Maria Monte Coelho FrotaII,*

I Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, Brasil
II Professora Adjunta do Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa objetiva traçar uma compreensão dos significados e da experiência de infância entre os índios Jenipapo-Kanindé, da comunidade da Lagoa Encantada, em Aquiraz, Ceará. Neste estudo, partimos da compreensão da Infância como uma categoria socialmente construída, vivenciada de forma singular em cada momento da história e nas diferentes sociedades. Inicialmente, discutimos acerca deste conceito e da história da infância no Brasil e no mundo. Posteriormente, discorremos sobre a questão indígena no Nordeste e apresentamos a comunidade que serviu de lócus de investigação neste trabalho. Para a construção dos dados, realizamos entrevistas com dois adultos e duas crianças da etnia Jenipapo-Kanindé. Recorremos ao método fenomenológico para a análise do material, tecendo reflexões acerca da infância dos Jenipapo-Kanindé, apresentando as contribuições dos principais autores que tratam da temática. Assim, pretendemos contribuir para a desconstrução do conceito de infância como uma categoria universal, trabalhando com a concepção da existência de várias infâncias.

Palavras-chave: Infância, Cultura indígena, Fenomenologia.


ABSTRACT

The objective of this research is to trace a comprehension of the meanings and the childhood experience between the Jenipapo-Kanindé indians, from the community of Lagoa Encantada, in Aquiraz, Ceará. In this treatise, we start from the comprehension of childhood as a category socially constructed, singularly lived in each stage of history and in the different societies. Initially, we discuss about this concept and the history of childhood in Brazil and in the World. Later, we argue about the indian question in Northeastern and present the community that has been our locus of investigation in this research. For the construction of the data, we interviewed two grown-ups and two children of the Jenipapo-Kanindé ethnic group. We used the phenomenological method for the analysis of the material, making reflections about the childhood in the Jenipapo-Kanindé community, presenting the contributions of the major authors who deal with the subject. Thus, we intend to contribute to the deconstruction of the concept of childhood as a universal category, working with the conception of the existence of several childhoods.

Keywords: Childhood, Indian culture, Phenomenology.


 

 

I. O QUE É INFÂNCIA?  Uma discussão inconclusa

1. O conceito de Infância: construindo uma compreensão

“O que é infância? O que significa ser criança? Que características especificam a infância e a diferenciam? A infância sempre foi a mesma independente do tempo histórico e do espaço social?” Estas são algumas das questões que vêm sendo discutidas nos mais recentes estudos sobre a temática da infância.

Um dos pontos que mais tem atraído a atenção dos pesquisadores diz respeito à desconstrução da ideia de infância como uma categoria universal, que independe do momento histórico e da estruturação da sociedade. A partir de uma concepção naturalizante e universalizante da infância, compreende-se que esta fase do desenvolvimento é vivenciada e representada da mesma forma nas diferentes culturas e nos espaços sociais mais variados, por vezes minimizando a influência que o contexto exerce sobre as relações sociais e, inclusive, sobre os papéis sociais.

Entendemos como simplista e mesmo ingênuo falar da infância como um fenômeno universal. Partimos da concepção de infância como uma categoria socialmente construída, vivenciada de forma singular em cada momento da história e nas diferentes culturas. Assim, trazemos como pressuposto que existem diferentes infâncias, marcadas por singularidades que resultam do modo de organização das diferentes sociedades.

Neste estudo, nossa aproximação com os índios Jenipapo-Kanindé nos permitiu entrar em contato com uma vivência particular de infância, delineada pela cultura e forma de organização social deste grupo indígena. As crianças Jenipapo-Kanindé têm experiências diferentes se comparadas às pertencentes a outros grupos, de outras culturas e com outro modo de estruturação social.  

Concordamos com Kramer (1984) quando esta afirma que “é impróprio ou inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea, ao invés de se perceber diferentes populações infantis com processos desiguais de socialização” (p. 15). A autora traz a dificuldade em se conceber um modelo universal de criança, tendo em vista que os papéis desempenhados pela criança dependem dos espaços e contextos sociais dos quais participa.

O trabalho, por exemplo, é uma realidade entre grande parte das crianças de classes subalternas, sendo uma atividade distante da infância em classes sociais mais elevadas. Os papéis desempenhados por essas crianças são, portanto, diferentes, bem como suas vivências de “ser criança”, tendo em vista sua participação em espaços sociais distintos.

Lopes da Silva; Nunes (2002) complementam esta ideia comentando sobre a transformação no modo de conceber a infância:

A hegemonia das explicações provenientes do determinismo biológico, que definiam a infância como uma etapa de maturidade biológica, naturalizada e a-histórica, tem sido revista e tem perdido terreno enquanto cresce o entendimento da infância como construção social que difere de cultura para cultura (p. 26).

É nesse sentido que Kramer (1984) propõe o abandono de uma concepção abstrata da infância, tendo em vista que partir desta concepção seria compreender a criança sob a ótica de uma “natureza infantil”, sem levar em conta o contexto no qual está inserida. Pinheiro (2006) acrescenta que ir além desta concepção abstrata de infância possibilita o alcance de uma abordagem mais concreta da criança e do adolescente, permitindo a compreensão dos lugares sociais por eles ocupados. A autora complementa explicitando sua visão sobre crianças e adolescentes:

Tenho em consideração a criança e o adolescente não apenas como segmentos etários, caracterizados por critérios biológicos, mas como sujeitos sociais que ocupam ou não determinados lugares na vida social, a partir de significados que lhes são atribuídos pela teia de relações que se engendram na sociedade brasileira (p. 36).

Complementarmente, Castro (2001) traz a necessidade de se conceber a criança fora de uma lógica desenvolvimentista e evolutiva, em que a infância é a fase inicial do desenvolvimento e a criança é entendida como vir-a-ser. Na perspectiva desenvolvimentista, compreende-se a infância como a idade da falta, da incompletude. Cabe à criança brincar e se preparar para o futuro, quando, como adulto, poderá participar ativamente na sociedade. Nesse sentido, a criança é entendida a partir de uma perspectiva de menoridade com relação ao adulto. A autora discute também o significado idealizado de infância que, nesse caso, representa o paraíso perdido, a fase do brincar e da falta de responsabilidades.

Este significado atribuído a esta fase, além de outros, nos chegou também pela fala das próprias crianças, quando da elaboração, por uma de nós, integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança – NUCEPEC, da pesquisa intitulada “Como se Significam as Crianças? Representações Sociais que as Crianças têm da Infância”.

Esta pesquisa teve como objetivo investigar as representações sociais de infância que eram compartilhadas pelas crianças. Como resultado, resumidamente, observamos que a maioria das crianças da nossa amostra compartilhava uma concepção naturalizada da infância, que aponta para a existência de características próprias para cada fase do desenvolvimento. A criança brinca, estuda, se diverte, ao contrário do adulto, que trabalha e assume responsabilidades. Esta representação da infância por parte das crianças participantes da pesquisa faz referência à concepção desenvolvimentista e normativa criticada por Castro e já comentada anteriormente. 

É importante ressaltar que a amostra desta pesquisa foi composta por vinte e três crianças da cidade de Fortaleza, catorze de classes média ou alta e nove de classes subalternas2, tendo sido utilizados os seguintes indicadores para a caracterização das classes sócio-econômicas: profissão dos responsáveis, bairro de moradia, constituição familiar (número de membros que residem juntos) e a escola em que a criança estuda (pública ou particular). Apesar de termos decidido realizar a pesquisa em uma atividade de caráter gratuito3 de forma a tentar incluir crianças de diferentes realidades sócio-econômicas, nossa amostra foi composta por participantes que compartilhavam experiências de infância semelhantes – todas residiam com os pais, frequentavam a escola, não vivenciavam situações de trabalho infantil e eram moradoras da área urbana. A participação de crianças de diferentes contextos poderia ter nos trazido outras concepções sobre a infância que, por exemplo, incluíssem o trabalho como uma realidade na vida da criança. 

Pensar a infância a partir da lógica desenvolvimentista e normativa significa pôr em questão os direitos e deveres das crianças e reduzir, ou mesmo anular, sua participação na constituição das relações sociais. Sob a ótica desenvolvimentista, entende-se que: “A criança precisa ser cuidada e protegida pelo adulto, portanto, ela é incapaz de ser porta-voz de seus próprios desejos e direitos, e torna-se dependente do adulto para que este aja como seu porta-voz único e absoluto” (CASTRO, 2001, p. 23).

Trazendo a fala de Castro para a nossa realidade, é fácil perceber como esta concepção de criança é compartilhada em nossa sociedade. Afinal, quase não existem espaços onde as crianças possam participar colocando suas opiniões, expressando suas vontades e necessidades.

Ao contrário, os estudos sobre grupos indígenas apontam para a valorização atribuída à participação e à voz da criança na sociedade4, sendo esta característica observada também em nosso trabalho sobre os Jenipapo-Kanindé. É importante, então, compreender que a concepção desenvolvimentista da infância e a forma de representar e tratar a criança a partir de uma perspectiva de menoridade em relação ao adulto é marca de sociedades moderno-ocidentais, não devendo ser generalizadas para todos os grupos sociais, independentemente de aspectos históricos e culturais.

Cohn (2005), ao discutir sobre uma antropologia da criança, a coloca como ativa no processo de construção das relações sociais:

...a criança não é apenas alocada em um sistema de relações que é anterior a ela e reproduzido eternamente, mas atua para o estabelecimento e a efetivação de algumas das relações sociais dentre aquelas que o sistema lhe abre e possibilita (p. 28).

Segundo a autora, as crianças elaboram sentidos para o mundo. As diferenças entre elas e os adultos não são quantitativas, e sim qualitativas: elas não sabem menos, sabem outra coisa. 

Nesse sentido, consideramos fundamental que os estudos na área da infância abram espaço para a expressão da própria criança, entendendo que ela assume um papel ativo na trama das relações sociais, significando o mundo e o modificando, ao mesmo tempo em que é modificada por ele. O olhar do adulto, sem minimizar sua importância na construção teórica a respeito da infância, é sempre o olhar de fora, distante da experiência. O adulto fala sobre a criança; o olhar da criança é o da própria vivência. A criança se fala.

Partindo da concepção da infância como uma categoria socialmente construída, que surge a partir de transformações que são produzidas na sociedade e no mundo adulto, é importante conhecer um pouco da sua história e a forma como ela foi sendo representada e vivenciada ao longo do tempo, para se compreender como se chegou às concepções de infância que conhecemos hoje.

2. A história mundial da Infância: um pouco do seu percurso 

Em nossas reflexões iniciais, perguntávamo-nos em que momento a infância começou a ser compreendida da forma como a vemos hoje, e se ela sempre ocupou um lugar específico na sociedade. Parecia-nos estranho considerar que a infância surgiu em determinado momento histórico, como se antes não houvesse crianças, como se não fosse considerada nenhuma diferença entre elas e os adultos. Nesse sentido, concordamos com a afirmação de Stearns (2006) na qual ele afirma que todas as sociedades, em todas as épocas, tinham alguma noção da particularidade infantil. Ainda sobre essa questão, David Archard (apud HEYWOOD, 2004, p. 22) fala da necessidade de se fazer uma distinção entre conceito e concepção. Para ele, sociedades de diferentes momentos históricos compartilharam o conceito de infância, diferindo apenas em suas concepções, ou seja, elas tiveram idéias diferentes no que diz respeito, por exemplo, à duração da infância e às qualidades que diferenciam adultos de crianças.

Ariès (1981) tece reflexões sobre a história da infância na Idade Média e início da Idade Moderna na Europa, discutindo sobre a transformação do sentimento de infância, entendido como consciência da particularidade infantil, e tem como um de seus objetivos mostrar que este sentimento nem sempre existiu do modo como é vivenciado nos dias de hoje, tendo sido resultado de transformações econômicas e políticas da estrutura social. Para este autor, na Idade Média o sentimento devotado à infância era inexistente, não havendo uma concepção clara da infância como um estágio específico da vida. Heywood (2004) discorda de Ariès e, novamente citando Archard (1993), afirma que “... o mundo medieval provavelmente teve algum conceito de infância, mas suas concepções sobre ela eram muito diferentes das nossas” (p. 27).  E Stearns (2006) complementa: “Havia um reconhecimento da infância, havia muitos sinais de afeição pelas crianças. Ainda que variassem, as pessoas do período pré-moderno não eram tão diferentes das modernas como o quadro inicial sugeriu” (p. 83).

Postman (1999) traz mais elementos para a discussão a respeito da infância e discorre sobre o caminho que vem conduzindo ao seu desaparecimento nos dias atuais. O autor analisa a concepção de infância na antigüidade, trazendo um pouco desta idéia nas civilizações grega e romana. Segundo Postman, a importância que a civilização grega concedia à educação é um indício da existência de uma consciência da particularidade infantil entre os gregos. Comenta ainda que a arte romana concedeu atenção especial à criança, o que só voltaria a acontecer durante o Renascimento.

Retomando Stearns (2006), este autor afirma que o modelo moderno de infância começa a ser formulado nos séculos XVIII e XIX, a partir da passagem das sociedades agrícolas para as industrializadas. Nas primeiras, o trabalho entre as crianças era comum e mesmo estimulado. No modelo moderno há uma valorização da escolarização. Essa transformação foi fundamental para um redimensionamento do conceito de infância da época, tendo em vista que as crianças passaram de economicamente ativas para passivas no processo de produção, significando um maior empenho por parte dos pais para o sustento das famílias. Isto teve influência direta também na redução da taxa de natalidade. As famílias diminuíram cada vez mais, pois um grande número de filhos representava maiores gastos. Além disso, com a industrialização, o trabalho deixou a residência e as crianças não trabalhavam mais com os pais, e o fato de passarem a freqüentar a escola diminuiu ainda mais seu convívio com o adulto. A redução considerável nas taxas de mortalidade infantil também contribuiu para o surgimento de uma nova concepção de infância.  

É importante enfatizar que estas mudanças que ocorriam na Europa Ocidental não se processavam da mesma forma em todo o mundo. Transformações de ordens diferentes afetavam as crianças em outras partes do mundo, por vezes contribuindo para a efetivação, nesses locais, de concepções de infância opostas ao modelo moderno. Stearns (2006) aponta a escravidão e a expansão do tráfico de escravos da África para as Américas, assim como o crescimento do colonialismo europeu, processos históricos que iniciaram por volta do século XVI, como os principais acontecimentos que tiveram impacto sobre as crianças. Nas Américas criava-se uma infância diferente, vivida por um grande número de pessoas.

Postman (1999) também traz suas contribuições para a compreensão da transformação da concepção de infância da Idade Média para a concepção moderna de “ser criança”. A invenção da infância, para este autor, está relacionada às transformações consequentes do advento da tipografia, em meados do século XV.  Segundo Postman, para que a ideia de infância surgisse, era preciso que houvesse transformações profundas na cultura adulta. A tipografia foi responsável pela criação de um mundo simbólico que exigiu uma nova postura do homem diante do mundo, e a consequente criação de uma nova concepção do “ser adulto”. A importância dada por Postman à leitura e à escrita no delineamento de um conceito de infância está relacionada ao fato de que num mundo letrado compartilha-se a ideia de que a criança precisa transformar-se em adulto. No momento em que ela tem o domínio da linguagem escrita, pode ter acesso ao mundo adulto.

Percebe-se aqui como a concepção da criança como vir-a-ser, tão compartilhada na sociedade atual, tem origem remota. O conceito de criança não surge por si só, mas a partir de modificações no mundo dos adultos. A criança passa a ter importância a partir do momento em que se percebe sua condição como futuro adulto, que precisa ser cuidada e educada para o futuro. Com a invenção de uma nova idade adulta, surgiu a necessidade de se delinear um novo espaço para a infância. O conceito de infância foi, então, sofrendo transformações, e a criança ocupando um lugar cada vez mais específico na dinâmica das relações sociais. 

Tomando como referência os Estados Unidos, Postman comenta como a ideia de infância fincava suas raízes e se fortalecia entre os anos de 1850 e 1950.  A criança já ocupava um espaço bem delimitado na sociedade. Criava-se uma cultura infantil, delineava-se uma forma de se vestir e se comportar das crianças, determinava-se o que era do mundo adulto e não deveria ser acessado pela criança. Dava-se atenção à educação e alfabetização. No entanto, foi no mesmo período que, segundo Postman, montava-se o cenário para o início do desaparecimento da infância, que vem acontecendo nos dias atuais. Segundo este autor, a invenção do telégrafo alterou novamente a ordem das coisas, modificando o mundo adulto e, consequentemente, influenciando diretamente a infância. E ao telégrafo seguiu-se a prensa rotativa, a máquina fotográfica, o telefone, o cinema, o rádio, a televisão. E foi essa última a que mais promoveu transformações na cultura infantil. Acontece que a televisão inaugura outra forma de comunicação - a imagética. A imagem assume papel principal, a palavra é renegada a segundo plano. Crianças e adultos têm a mesma capacidade de acesso a esta forma de comunicação e, consequentemente, diminui a distância entre a infância e a idade adulta. A criança acaba por ter acesso às mesmas informações transmitidas para os adultos, como acontecia de forma similar entre os séculos XIV e XV, mesmo que sua compreensão e elaboração das informações se processe de forma particular. Como consequência, conforme o pensamento do autor, os segredos que separam a criança do universo adulto diminuem. Ele afirma: “Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa como infância” (p. 84). E complementa: “O efeito mais óbvio e geral desta situação é eliminar a exclusividade do conhecimento mundano e, portanto, eliminar uma das principais diferenças entre a infância e a idade adulta” (p. 98).

É importante, no entanto, atentar para a especificidade do contexto do qual trata Postman (1999) quando tece suas considerações sobre a infância. O autor trata deste conceito no mundo ocidental, na Europa e posteriormente no continente americano. Seu trabalho se detém no nascimento e no caminho para o desaparecimento da infância tal qual nós a conhecemos na cultura ocidental. Consideramos que a idéia da existência de segredos que separam a infância da idade adulta não é suficiente para definir a infância, conforme sugere o autor. Como será discutido mais adiante, uma das principais singularidades apontadas por estudiosos entre as sociedades indígenas é a permissividade com que a criança circula pela aldeia e a valorização de sua participação nos espaços da comunidade. Os “segredos de adultos”, restritos às crianças, parecem não existir entre os grupos indígenas, o que não significa a inexistência da vivência de infância entre esses grupos.

Este aspecto foi observado, inclusive, entre os índios Jenipapo-Kanindé. Como pudemos perceber durante nossas visitas à comunidade e a partir das entrevistas realizadas, havia uma grande aceitação com relação à presença das crianças nos diferentes espaços e parecia não haver assuntos secretos partilhados apenas pelos adultos entre este grupo indígena. Durante todo o tempo de realização deste estudo, não presenciamos nenhuma situação em que as crianças foram retiradas do ambiente para que os adultos pudessem tratar de temas restritos a elas.  

Parece-nos que a infância vem diminuindo cada vez mais, ou seja, as crianças deixam a infância cada vez mais precocemente. As diferenças entre adultos e crianças parecem estar ficando realmente menos definidas e, principalmente na mídia televisiva, encontramos a criança como “adulto em miniatura” voltando à cena. O fato é que o mundo da infância vem sofrendo transformações significativas e que não podemos mais nos referir à criança hoje como fazíamos há algumas décadas atrás.

3. A história da Infância no Brasil

Pinheiro (2006) analisa a história do nosso país desde a época do Brasil Colônia e aponta como marcas históricas, constituintes de uma matriz cultural da sociedade brasileira, as condições de dominação/submissão, desigualdade e exclusão a que sempre estiveram submetidas grande parte da população do Brasil. O “descobrimento” do país pelos portugueses e a violência contra os povos indígenas, tanto pela dizimação da população índia como pela desvalorização e destruição de sua cultura; a catequização promovida pela Igreja Católica, com a negação da fé indígena; a submissão à metrópole portuguesa quando do período colonial; a condição de dependência que era característica também do Brasil Império; o regime escravocrata, enfim, estas condições são marcas características da cultura do nosso país desde os tempos mais remotos.

Sobre a infância no Brasil Colônia, Pinheiro (2006) aponta o patriarcalismo familiar característico daquele período como traço cultural que significa que já naquela época a vida social brasileira era marcada pelo adultocentrismo. O chefe de família detinha todo o poder, era o senhor das terras e dos escravos, e as mulheres e os filhos também lhe estavam subordinados. As transformações ocorridas no século XIX – que incluem o início do Brasil Império, a Independência, a abolição da escravatura e a Proclamação da República em 1889 – geram novas configurações que afetam o mundo da infância. Com o início do processo de urbanização do país, que denuncia ainda mais a desigualdade social, surge um sentimento de temor com relação à população menos favorecida economicamente. Os pobres passam a significar perigo para a sociedade, e isto inclui as crianças e os adolescentes em situação de rua, que já representavam um contingente significativo da população (Pinheiro, 2006).

A autora identifica quatro representações sociais mais recorrentes que emergem em contextos sócio-históricos específicos ao longo da história brasileira, quais sejam: a criança e o adolescente como objetos de proteção social; como objetos de controle e disciplinamento social; como objetos de repressão social; e como sujeitos de direitos. Apesar de estas representações sociais terem surgido em momentos específicos e distintos ao longo da história do nosso país, verifica-se uma existência simultânea entre elas, ou seja, o fato de surgir uma nova representação da criança e do adolescente em determinado momento histórico não significa que a anterior tenha necessariamente desaparecido.

A primeira tem origem no Brasil colonial e refere-se principalmente à criança nos seus primeiros anos de vida, manifestando-se por meio de ações que se voltam basicamente para a garantia da sobrevivência da criança.

A segunda é a que coloca estes dois segmentos da sociedade na posição de objetos de controle e disciplinamento social. A abolição do regime escravocrata, o início da fase republicana e a ação dos médicos higienistas – final do século XIX e início do século XX – compõem o cenário de emergência dessa representação social. Institui-se a concepção da criança e do adolescente como um investimento do Estado, ou seja, a vida de crianças e adolescentes deveria ser preservada para que eles pudessem ser colocados a serviço do Estado. Com a abolição da escravatura e o surgimento de um novo mercado, apareciam novas funções de trabalho, que não mais poderiam ser exercidas pelos escravos, nem muito menos pelos senhores. Criavam-se funções subalternas que só poderiam ser exercidas pelas classes pobres do país. As crianças e adolescentes pobres representavam a mão-de-obra barata que se procurava, bastando que fossem disciplinados e controlados para se manterem submissos e serem úteis ao país. Buscava-se, assim, prevenir a marginalidade ao mesmo tempo em que se fabricava mão-de-obra produtiva. Ações de cunho profissionalizante, de caráter restrito, que são muito presentes, e são super incentivadas hoje no Brasil, representam exemplos atuais da representação da criança e do adolescente como objetos de controle e disciplinamento social. São cursos que preparam os adolescentes para a ocupação de cargos de subordinação, sem nenhuma perspectiva de crescimento profissional.

A representação social da criança e do adolescente como objetos de repressão social, por sua vez, surge com o processo de urbanização vivenciado pelo Brasil a partir das décadas de 1930 e 1940. Como comenta Pinheiro (2006), com o aumento da população urbana resultado da migração dos moradores do campo para as cidades, cresce a marginalização, acentuam-se as desigualdades sociais e a delinquência juvenil. Surgem, então, ações que viam na coerção a solução para essas questões. É nesse contexto que entra em vigor no Brasil, em 1927, o primeiro Código de Menores da América Latina e, em 1940, é criado o Serviço de Assistência ao Menor – SAM, com o objetivo de prestar atendimento aos “menores” de 18 anos, abandonados e delinquentes. Em 1964, com o Regime Militar, o SAM foi substituído pela Fundação Nacional pelo Bem-Estar do Menor – FUNABEM. Segundo Pinheiro, inicia-se a era do isolamento, retirando-se do convívio social crianças e adolescentes a quem se atribuía o cometimento de atos infracionais. A exclusão da vida social aparece como punição, e como meio de neutralizar a ameaça que esses adolescentes representavam para a sociedade. É a partir da implantação do Código de Menores de 1927 que o termo “menor” começa a ser utilizado para designar especificamente crianças e adolescentes de classes subalternas, contrapondo-se a outras categorias que se referem à infância e adolescência de classes sociais mais elevadas.

Por fim, a última representação identificada por Pinheiro, crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, emerge a partir dos anos 70 e é ratificada com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Esta representação traz como princípios básicos a igualdade perante a lei e o respeito à diferença. Considera-se que a todas as crianças e a todos os adolescentes devem ser garantidos todos os direitos, independente de classe socioeconômica, idade ou estrutura familiar. Além disso, têm-se a criança e o adolescente como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, cabendo ao Estado, à sociedade e à família prover-lhes cuidados especiais.

As primeiras três representações sociais da criança e do adolescente que identifica como mais recorrentes ao longo da história brasileira se referem às crianças e adolescentes de classes subalternas. Esta última representação – a criança e o adolescente como sujeitos de direitos – , por outro lado, é a única que engloba todo o universo da infância e da adolescência. A emergência desta representação e o compartilhar de seus princípios no meio social, representa, na nossa concepção, um avanço na forma de se conceber a infância e a adolescência. Entretanto, ainda há muito que avançar em termos de políticas públicas que se construam a partir da concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. O que vemos ainda hoje muito forte no Brasil é a implementação de políticas que se pautam na concepção de crianças e adolescentes como objetos de controle e repressão social. Tomando a criança como sujeito de direitos, pode-se, inclusive, criar formas de garantir sua participação na construção de políticas públicas na área da infância, entendendo a criança como capaz de ser porta-voz de suas necessidades, de participar e transformar a realidade.

4. A criança indígena

Especificamente sobre as crianças indígenas, constatamos, a partir de levantamento bibliográfico, que a literatura não é vasta. Muito se fala sobre os índios, mas a criança não aparece como personagem principal na maioria dos textos. De acordo com Nunes (2002), antropóloga estudiosa das sociedades indígenas brasileiras:

A perspectiva de investigação, por exemplo, é sempre a de uma determinada sociedade, que é composta por alguns grupos domésticos, os quais têm algumas crianças. E não a de algumas crianças, que pertencem a um grupo doméstico que, por sua vez, está inserido numa determinada sociedade. As perguntas, direta ou indiretamente, não são dirigidas às crianças, nem mesmo as que a elas dizem respeito (...) (2002, p. 239-240).

Como exemplos de estudos que aprofundam um pouco mais a temática da infância, sem, no entanto, tê-la como o principal objeto de investigação, Nunes (2002) cita o trabalho de Júlio e Delvair Melatti sobre as crianças Marubo, e de Lux Vidal sobre a sociedade Kaiapó-Xikrin. Os autores apresentam peculiaridades do comportamento infantil, do processo de construção da autonomia da criança e de como participa da vida na aldeia. Vidal faz referência à participação das crianças na vida social do grupo, às relações da criança com os familiares, aos cuidados com a criança na comunidade estudada e à grande permissividade com que circulam pela aldeia e se relacionam com os adultos. Segundo Vidal, a criança exerce, na comunidade estudada por ela, o papel de mensageira, por não ser inserida no sistema de restrições que permeiam a organização social do grupo. Dessa forma, a criança sempre sabe de tudo e são quase inexistentes os lugares a elas vedados.

Esta liberdade experienciada pela criança indígena é apontada por Nunes (2002) como um dos aspectos mais contrastantes entre os estudos etnográficos sobre a infância de sociedades urbanas modernas e as referências sobre o ser criança nas sociedades indígenas:

No debate que se tem empreendido quanto ao espaço social da infância das sociedades européias, em sua inter-relação com o dos adultos, são freqüentes as referências à exclusão e separação da primeira do mundo dos segundos (...). As observações realizadas nas sociedades indígenas brasileiras, de modo unânime, apontam na direção oposta, o que não quer dizer que nessas sociedades não existam problemas, ou conflitos, de sociabilidade ou de integração (...) as crianças vivem uma permissividade quase sem limites, são onipresentes na aldeia e nas áreas circundantes, e punições quase não acontecem (NUNES, 2002, p. 72).

Destacamos ainda o trabalho que Koller Lecznieski (2005) desenvolve sobre as noções de parentalidade, parentesco, socialidade-sociabilidade e gênero entre os Kadiwéu - grupo indígena que vive atualmente no sudoeste do Mato Grosso do Sul – no qual discute alguns aspectos sobre a infância da comunidade. A autora evidencia a atenção e o valor depositados nas crianças Kadiwéu, apontando a centralidade que assumem na vida cotidiana do grupo, afirmando que a preocupação com elas pode ser observada nas mais diversas esferas da vida social do grupo, “dos mitos – onde figuram como protagonistas importantes, quando não principais – à organização social, cultural e política, onde desempenham um papel nodal no estabelecimento de relações intra e extra-grupais” (p. 67).    

Partimos do pressuposto de que a infância entre os Jenipapo-Kanindé tem suas especificidades. Nosso objetivo é, então, compreender o fenômeno da infância neste grupo indígena, entendendo, inclusive, que características especificam a criança da etnia Jenipapo-Kanindé.

 

II. SOBRE OS ÍNDIOS

1. A questão indígena no Nordeste: um breve apanhado

De acordo com Oliveira Júnior (1998), temos assistido no Ceará a uma crescente mobilização entre os povos indígenas em prol do reconhecimento de sua identidade e de suas terras. Este movimento emerge a duas décadas em quase toda a região Nordeste, quando várias etnias indígenas reaparecem no cenário social e se fortalecem na luta por seus direitos. Sobre o reconhecimento das etnias indígenas, Oliveira Júnior (1998) discute a dificuldade enfrentada pelos índios nordestinos no atendimento às suas reivindicações. Estas dificuldades estão relacionadas às transformações culturais que sofreram os povos indígenas do Nordeste como resultado do intenso contato interétnico que experimentaram, levando ao fortalecimento da ideia do desaparecimento dos povos indígenas desta região. O mesmo não acontece com as etnias da região da Amazônia, tendo em vista que mantêm uma grande distintividade com relação às características e padrões culturais da sociedade nacional.

Se pararmos para refletir, a imagem que nos vem à cabeça, quando falamos nos povos indígenas, é a figura do índio do passado colonial, e tendemos a imaginar que os existentes hoje devem ainda carregar características e tradições típicas dos seus antepassados – uso de adereços como colares, cocar, brincos; pinturas corporais; danças; rituais sagrados etc. A permanência dessa figura, no imaginário da maioria das pessoas, se deve em parte à educação escolar, que se encarregou de nos transmiti-la, ignorando as transformações culturais que aconteceram ao longo de tantos anos entre os povos indígenas, assim como em todos os demais grupos sociais (SOUSA, 2001). A ideia que se compartilha é que, se não podemos mais encontrar a figura do índio que corresponda a esse imaginário, é porque os índios desapareceram, como se não se admitisse que o movimento e a transformação estão presentes em todas as culturas e sociedades. É por não se encaixarem mais nesse imaginário social sobre o que é ser índio, que os grupos indígenas atuais, principalmente os do Nordeste, precisam reelaborar sua cultura e resgatar tradições de seus antepassados a fim de evidenciar sua identidade (Oliveira Júnior, 1998).

Cardoso de Oliveira (apud OLIVEIRA JÚNIOR, 1998) discute sobre a noção de identidade contrastiva. Como essência da identidade étnica, a identidade contrastiva é construída no contato com os outros, na necessidade de se diferenciar e se afirmar em sua diferença dos demais grupos sociais. Assim, elementos simbólicos podem servir como referencial de afirmação da identidade. No caso dos povos indígenas atuais, por exemplo, formas de se vestir, acessórios como colares e cocar, e pinturas corporais são resgatados da cultura tradicional e assumem uma função política. É assim que esses grupos indígenas procuram legitimar sua identidade: diferenciando-se dos demais grupos étnicos. Os Jenipapo-Kanindé, como observa Sousa (2001), utilizam-se da dança do Toré como instrumento de afirmação da identidade do grupo, visando “em determinadas situações a mostrar aos não-índios a diferença étnica que possuem” (p. 59).

Em uma das ocasiões em que estive na comunidade presenciei as crianças e os professores da Escola Indígena dançando o Toré. Esta atividade acontece todas as sextas-feiras no horário da manhã, quando os alunos dos turnos da manhã e da tarde se reúnem no espaço da escola para aulas de campo ou outras atividades fora da sala de aula. Caminhando em círculo com passos que acompanham o ritmo dos sons dos instrumentos, os índios cantam: “vamos dançar o Toré, vamos dançar o Toré, somos índios Jenipapo-Kanindé”, como uma forma clara de afirmação e fortalecimento da identidade do grupo.

De acordo com dados da FUNAI, existem atualmente no Estado do Ceará sete grupos indígenas, divididos em nove áreas diferentes, somando uma população total de aproximadamente 5.365 pessoas. Os grupos são: Kalabassa, do município de Poranga; Tremembé, divididos nas áreas de São José do Capim-açú e Almofala, ambas no município de Itarema; Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz; Potiguara, em Crateús; Pitaguary, nos municípios de Maracanaú e Pacatuba; Tabajara, em Viçosa; e Tapeba, em Caucaia. Com relação à situação fundiária, a maioria das etnias do Ceará está enfrentando o processo de identificação e delimitação de suas terras, como é o caso do grupo Jenipapo-Kanindé.

2. Jenipapo-Kanindé: Os “Cabeludos da Encantada”

A terra indígena da Lagoa Encantada corresponde a uma área de 1731 hectares e localiza-se no município de Aquiraz, distando aproximadamente 21 km da sede e 51 km de Fortaleza. De acordo com o resumo do relatório de identificação e delimitação da terra indígena Lagoa Encantada, publicado no Diário Oficial da União de 18 de agosto de 2004 (BRITO, 2004, a população da tribo era, em 2004, de 78 famílias, sendo que 47 destas famílias residiam dentro da terra indígena, enquanto 31 residiam fora dela. Os limites territoriais da área indígena dos Jenipapo-Kanindé são: ao norte, Fortaleza; a noroeste, Messejana; a oeste, Pacatuba; ao sul, Pacajus; a sudeste, Cascavel; a leste e nordeste, o Oceano Atlântico. O povo indígena Jenipapo-Kanindé é reconhecido pelo movimento indígena do Estado do Ceará, e é assistido regularmente pela FUNAI-CE. O processo de regulação fundiária das terras dessa etnia ainda está em andamento. Conforme relatório histórico-documental, os índios Jenipapo-Kanindé são descendentes dos Genipapo, Canindé e Paiakú. São conhecidos pelos não-índios, habitantes das proximidades da aldeia, como “Cabeludos da Encantada”.

Provavelmente a língua originária dos Jenipapo-Kanindé foi a Trairariú, que após o aldeamento desses índios foi substituída pelo Tupi. Segundo dados do Diário Oficial da União (BRITO, 2004), atualmente a etnia fala apenas o português, tendo perdido completamente o idioma original.

Parece-nos que o processo de identificação dos Jenipapo-Kanindé como povo indígena é confuso (mantém-se o original: o processo é confuso). Segundo relato de um dos índios, antes da chegada da FUNAI e da sua intervenção, eles não se reconheciam como índios. Foi somente quando aquele órgão, a partir de diversos estudos, concluiu que se tratava de um povo com ascendência indígena, que esta identidade começou a ser compartilhada pelo grupo. Assim nos esclarece João, um dos nossos entrevistados neste estudo:

...a gente num era reconhecido como índio ainda (...) o pessoal chamava aqui nós de “os cabeludo da Lagoa da Encantada”, né, pessoal dos Alves e Silva (...). A FUNAI ainda num tinha entrado aqui ainda, né. Nós sabia que era alguma coisa, porque pra ta aqui nesse confim de mundo, escondido, né, no mei da mata (...) mas não sabia que era índio não... sabiamos que era pessoas, né... (João).

Sousa (2001) estuda a identidade dos índios Jenipapo-Kanindé e percebe que a sustentação desta identidade está em lembranças que os fazem encontrar uma organização social passada que fortalece o sentimento de pertencer a um mesmo grupo. Este sentimento está presente, por exemplo, na fala de uma das crianças entrevistadas, quando ela afirma: “Eu sou índia porque... porque meu pai, ele também é índio. Minha mãe também. Por isso que eu sou índia” (Vitória).

A atribuição externa como fator de sustentação dessa identidade étnica pode ser percebida no trecho acima em destaque na narrativa de João. Os não-índios da região, ao se referirem ao grupo como “os cabeludos da Encantada”, delimitavam uma distinção étnica. Os cabeludos da Encantada sabiam que eram diferentes, sabiam que eram “alguma coisa”, mesmo que ainda não se reconhecessem como índios.

Sobre a história da sua comunidade, os índios Jenipapo-Kanindé contam sobre como viviam anos atrás, quando o contato com os não-índios era bem menor. A fala da cacique, em especial, retrata as transformações pelas quais a comunidade passou ao longo dos anos, e que acabaram distanciando o grupo da figura do índio que permanece no imaginário social.

... não somo mais aquele pessoal que viveu muitos anos atrás... um pessoal intocado dentro das toca, sem ter contato com branco. Há 700 anos atrás aqui não existia contato de ninguém branco com esse povo daqui. Que as crianças antes de doze anos abaixo tudo vivia nuzinho, a roupa deles era a pele. (...) E agora não, vocês já viram eles tudo vestidinho, andando vestido, calçado e tudo, mas antes não existia isso pra eles, porque era uma cultura que eles tinham, era uma cultura que nós carregava conosco. (...) Hoje a gente já é diferente, a gente diz assim 'menino, vai se vestir porque num tarda chegar gente de fora aqui'. (...) De lá pra cá foi que nós comecemo a se vestir, as criança, e a conhecer outro mundo. Foi isso que aconteceu, né, da década de 80 pra cá (Cacique Pequena).

Atualmente, a liderança da comunidade é exercida pela Cacique Pequena que, como conta, assumiu o cargo depois de alguns anos em que a comunidade ficou sem líder. Segundo ela, assumiu o posto por decisão de todo o grupo.

Com relação às atividades produtivas, os Jenipapo-Kanindé vivem da agricultura (com plantio de feijão, mandioca, batata-doce) e da pesca, principalmente. Atualmente, muitos moradores da comunidade desenvolvem atividades laborais fora da aldeia, especialmente nas localidades de Iguape e Aquiraz. A comunidade conta com uma Escola Indígena de ensino fundamental, onde lecionam nove professores índios, que passaram pelo Curso de Ministério Indígena Diferenciado. Grande parte das crianças da aldeia estuda neste espaço. A cultura do povo Jenipapo-Kanindé é trabalhada com as crianças, sendo este o principal diferencial da escola indígena. Resgatam-se as histórias de grupo, as lendas, as danças.

O Morro do Urubu e a Lagoa Encantada, que fazem parte do cenário natural do entorno da comunidade dos Jenipapo-Kanindé, são dois elementos bastante significativos para o grupo. A lagoa é a morada sagrada da Mãe D'água, e várias são as lendas envolvendo essa figura mitológica, seus cantos e encantos. O Morro do Urubu, por sua vez, esconde um templo sagrado. Segundo Edson “alguns moradores da comunidade já viram muito encantos, só aqueles que tem o merecimento, não é todo mundo”. Conheci muitas das lendas do grupo através das crianças, que me contavam estórias quando me acompanhavam nas caminhadas pela comunidade, nas conversas informais, e em nossos banhos na lagoa. Algumas relatavam, com entusiasmo, que seus familiares haviam visto a sereia, o saci pererê que habita a mata e a Mãe D'água lavando seus longos cabelos na lagoa. Essas lendas fazem parte do imaginário coletivo e enriquecem a cultura dos Jenipapo-Kanindé.

A partir das leituras do material teórico, das observações e das conversas com alguns índios, compreendemos esse resgate da cultura e sua transmissão às crianças como uma forma de afirmação da identidade do grupo e de delimitação étnica. Segundo Edson, coordenador da escola indígena:

... a gente tem o máximo de cuidado pra não tá deixando de tá praticando nosso toré, que é um ritual sagrado, nossas crenças, nossas histórias, tá passando a história de como era antes. Então a gente tá cada vez mais aprimorando para que isso não morra e fique de geração pra geração (Edson).

As dificuldades que os Jenipapo-Kanindé encontram em serem reconhecidos como índios também foram relatadas por Edson, que falou não só do não reconhecimento por parte da população não-índia, mas do preconceito que os índios nordestinos sofrem por parte das etnias indígenas de outras regiões do Brasil.

De fato, com pudemos perceber, o Jenipapo-Kanindé em muito se afasta da imagem do índio que corresponde ao imaginário social. Não percebemos a utilização de acessórios, como colares e cocar, ou de pintura corporal no cotidiano dos índios da Lagoa Encantada, elementos que, de acordo com esse imaginário, caracterizam uma população indígena. O uso destes adereços entre os Jenipapo-Kanindé parece estar restrita à necessidade de se diferenciar e afirmar sua distintividade em relação aos padrões culturais da sociedade nacional. São elementos simbólicos que servem como afirmação da identidade do grupo, como discute Cardoso de Oliveira (apud OLIVEIRA JÚNIOR, 1998) quando aborda o conceito de identidade contrastiva.

Um dos aspectos que chamou a atenção, e que já havia sido apontada pela bibliografia sobre as comunidades indígenas, diz respeito à permissividade com que as crianças circulam pelos espaços da aldeia. Na comunidade da Lagoa Encantada as crianças estão por toda parte e parecem saber de tudo o que se passa. Sempre que nos sentávamos para conversar as crianças estavam por perto, de ouvidos atentos ao que estava sendo dito.

A partir das visitas à comunidade da Lagoa Encantada, procuramos construir uma reflexão acerca da experiência de infância entre esses índios, e do significado que a ela se atribui. As conversas informais com os adultos e as crianças, os passeios pela tribo, as leituras do material teórico sobre o grupo e as entrevistas com moradores da Lagoa Encantada, nos ajudaram a delinear reflexões e a construir essa compreensão.

 

III: METODOLOGIA: o caminho trilhado para chegar aqui

Utilizamos a metodologia qualitativa que permite uma compreensão mais profunda dos fenômenos sociais, dando relevância bem maior aos aspectos subjetivos que a metodologia de cunho quantitativo. Segundo Ozella (2003):

Ao invés de ter como objetivos a predição, a descrição (apesar desta fazer parte como uma etapa da investigação) e o controle, a abordagem qualitativa pretende conhecer, esclarecer, entender e interpretar os processos que constituem os fenômenos, objetos da investigação (p. 122).

O objetivo deste estudo não é chegar a uma verdade absoluta ou a um conhecimento que possa ser universalizado e generalizado para diferentes sociedades, e sim estar mais próximo da experiência de infância dos índios Jenipapo-Kanindé, compreendê-la e refletir sobre ela, entendendo-a como uma vivência única, com características específicas relativas à cultura desse povo e à forma de organização da comunidade em questão.

O termo experiência é empregado neste trabalho tal como o definem Rogers; Kinget (1975):

Esta noção se refere a tudo que se passa no organismo em qualquer momento e que está potencialmente disponível à consciência; em outras palavras, tudo que é suscetível de ser apreendido pela consciência. A noção de experiência engloba, pois, tanto acontecimentos de que o indivíduo é consciente quanto os fenômenos de que é inconsciente (p. 161).

Assim, entendemos a experiência como referenciada ao mundo vivido, ao momento existencial do indivíduo. O experimentar é entendido como um processo “corporalmente sentido, experimentado interiormente e responsável pelo material concreto da personalidade ou seu conteúdo, formados por esse fluxo de sensações corporais ou sentimentos” (DUTRA, 2002, p. 372).

A pesquisa seguiu um enfoque fenomenológico, direcionado para a experiência, enfatizando a dimensão existencial do viver e buscando a compreensão dos significados construídos pelos sujeitos no seu contato com o mundo. Frota discute ainda que “pensar, para a fenomenologia, significa indagar, questionar, tentar compreender. Algo processual, parcial, relativo. Muito diferente do conhecer metafísico, que pretende 'dominar' o conteúdo de uma matéria ou disciplina” (1997/98, p. 28). Assim, é a partir da perspectiva fenomenológica que nos acercamos e refletimos sobre o fenômeno da infância dos índios Jenipapo-Kanindé.

Dentre as vertentes da fenomenologia, é a perspectiva ontológico-hermenêutica de Martin Heidegger como método de condução de pesquisa que mais se aproxima às nossas concepções e que mais se afina a este estudo.  De acordo com a perspectiva heiddegeriana, não se pretende que se realize a redução fenomenológica tal como conceituada por HUSSERL na pesquisa de base fenomenológico-existencial (pôr em suspenso, entre parênteses, todos os nossos conhecimentos, teorias, preconceitos e valores, de forma a entrar em contato o mais íntimo e próximo possível com a experiência, com seus sentidos e significados). Apoiando-nos na afirmação de Frota (1997/98) de que

... a redução não é adequada por deixar de lado o modo-de-ser, preocupando-se tão somente com o conteúdo. Fazendo-se assim, prescinde-se da existência. (...) a hermenêutica quer compreender a vida desde si mesmo, ‘participar’ e não ‘suspender’ o próprio viver (p. 31).

Assim, na construção desta pesquisa, não recorremos à redução fenomenológica, permitindo-nos estar inteira no contato com os colaboradores deste estudo, facilitando um encontro entre as experiências que eram narradas durante as entrevistas e as nossas próprias experiências, contribuindo para a construção de novos significados.

Neste estudo, utilizamos a narrativa como técnica de pesquisa. A narrativa não se resume ao relato de uma experiência vivida e que teve fim, pois no momento em que se narra, essa experiência é revivida e resignificada pelo narrador no presente.  Dessa forma, foi a partir do relato dos entrevistados que procuramos alcançar o vivido, ou seja, por via da linguagem. Através do que nos foi narrado pelos colaboradores desta pesquisa, pretendemos nos acercar de suas vivências, atravessadas por todos nossos saberes, conceitos e pré-conceitos. Nesse sentido, tivemos acesso ao vivido dito, a uma aproximação do próprio vivido, pois que, quando dito, já se configura de forma outra.

Na pesquisa fenomenológica apoiada na perspectiva heiddegeriana, admite-se a impossibilidade de se assumir uma postura de neutralidade diante da realidade estudada. O encontro entre pesquisador e pesquisado – ou narrador e ouvinte – é um encontro entre subjetividades. O que é narrado pelo entrevistado mobiliza o pesquisador, que significa essa experiência a partir de sua própria vivência.  As interpretações realizadas aqui são resultados deste encontro de experiências, são frutos das mobilizações que as narrativas propiciaram. Nesse sentido, Dutra (2002) afirma que a interpretação tem uma dimensão existencial, pois o pesquisador interpreta a narrativa a partir de sua própria experiência e a reconstrói segundo sua vivência no mundo.

Para a compreensão dos significados e da experiência de infância entre os índios da etnia Jenipapo-Kanindé, contamos com a colaboração mais direta de quatro pessoas, dois adultos e duas crianças moradoras da comunidade. É importante ressaltar que na metodologia qualitativa o número de sujeitos pode ser reduzido, tendo em vista que o que importa nesta forma de investigação não é a quantidade, mas sim a qualidade do material, que permite ao pesquisador uma melhor compreensão do fenômeno estudado. Segundo Ozella (2003), esta é uma das diferenças entre a metodologia qualitativa e a quantitativa. O autor assim afirma:

Isto se contrapõe ao procedimento geralmente utilizado na investigação quantitativa de natureza estatística, na qual uma amostra tem um caráter apriorístico e invariável e que se propõe a chegar a um conhecimento estatisticamente significativo, com um nível de generalização do fenômeno que, em geral, ignora o individual em função de objetivos gerais (p. 123).

E complementa:

Neste sentido, em oposição à visão tradicional, que considera que em uma amostra “representativa” ou “significativa” não existiriam diferenças entre os sujeitos, dentro de nossa abordagem o sujeito é identificado como único e sua singularidade é entendida como um “momento diferenciado e subjetivado que surge como individualidade na condição do sujeito” (p. 124).

Na construção desta pesquisa, foram realizadas por volta de oito visitas à comunidade Jenipapo-Kanindé, durante os meses de agosto a outubro de 2007. Este período compreendeu observações de campo e a realização das entrevistas propriamente ditas. Sabemos que para a elaboração de uma pesquisa mais aprofundada, seria necessário um maior tempo de convivência com as crianças e adultos da comunidade indígena. Porém, para um trabalho de cunho monográfico com um prazo de seis meses para sua conclusão, não foi possível se estender mais.

A ideia inicial era que os adultos colaboradores fossem escolhidos dentre os moradores da comunidade que, a partir das observações, se mostrassem bastante envolvidos com o local e com a cultura de seu povo, e não nos pareceu importante que os colaboradores fossem de sexos diferentes.  Assim, João é uma das lideranças do grupo, defensor da causa indígena e participante ativo dos movimentos dentro da comunidade. Nasceu entre os Jenipapo-Kanindé e residiu na aldeia até os 13 anos, quando se mudou para Fortaleza e, posteriormente, para São Paulo, retornando à comunidade no ano de 2000. Edson também nasceu na comunidade e, ao contrário de João, passou toda sua vida ali. 

Com relação às crianças, a ideia era escolher os colaboradores entre aquelas que tivessem idade mínima de sete anos e se identificassem como crianças. A definição da idade mínima, sete anos, partiu da consideração de que crianças nessa faixa etária já dominam melhor a linguagem, possuindo um repertório verbal mais elaborado, com maior capacidade de expressão e representação. Também não consideramos fundamental definir o sexo dos entrevistados a priori, já que não tencionávamos fazer nenhum recorte de gênero. A escolha das crianças colaboradoras foi realizada muito mais pelo desejo delas em participar e pela proximidade estabelecida com a pesquisadora de campo.

Partindo desse requisito referente à idade, foi solicitada a colaboração de Vitória (nove anos) e Clara (sete anos). A primeira é neta da Cacique da tribo e fez contato com a pesquisadora de campo logo durante a primeira visita à comunidade. É uma criança bastante comunicativa, o que facilitou a aproximação. Ela foi uma das crianças com a qual o contato foi mais próximo. Clara, também neta da Cacique, estava na escola por ocasião de uma das visitas. Também aceitou prontamente participar deste estudo. Investigamos, primeiramente, com as crianças sua vontade e disponibilidade em colaborar, para em seguida recorrer à autorização dos seus pais. O contato com estes também foi tranquilo e não encontramos empecilhos para realizar as entrevistas com as meninas.

Os nomes das crianças foram modificados neste estudo como forma de preservar suas identidades. No caso dos adultos, constam aqui seus verdadeiros nomes, pois nenhum deles expressou desejo de manter suas identidades em sigilo.

Nas entrevistas com os adultos, partimos de seis perguntas principais, compondo um roteiro semiestruturado que serviu de base para as conversas com os colaboradores. As perguntas foram as seguintes: (1) O que é ser criança para você? (2) Como foi sua infância aqui na comunidade? (3) Como é a infância das crianças de hoje? (4) O fato de você ter crescido em uma comunidade indígena contribuiu de alguma forma para que sua infância fosse diferente da infância vivida por crianças de outros locais? (5) O que caracteriza seu povo como um povo indígena? (6) Existem diferenças entre a infância que você viveu e a infância experienciada pelas crianças de hoje?  A partir do que ia sendo narrado pelo entrevistado, sentimo-nos à vontade para colocarmos outras questões que surgiam. Em um dos casos, foi preciso retomar a entrevista, pois após uma leitura do que havia sido narrado, surgiu a necessidade de aprofundar alguns pontos.

Cabe ressaltar aqui que nos contatos iniciais e conversas informais com os moradores da comunidade Jenipapo-Kanindé, pudemos observar que a expressão “infância” era utilizada pelos adultos da comunidade em seu discurso. Além disso, iniciamos as entrevistas com os colaboradores com a pergunta “O que é ser criança para você?”, e percebemos que a categoria “infância” surgiu espontaneamente nas falas dos adultos entrevistados. Então, no decorrer da entrevista com os adultos, trouxemos esta expressão em nossas perguntas. Com as crianças, por outro lado, fizemos referência apenas ao termo “criança” por não termos nos certificado de que a categoria “infância” fazia parte do seu repertório verbal, e por esta expressão não ter surgido de forma espontânea em nenhum momento nas suas falas durante as entrevistas. Durante nossos contatos com os Jenipapo-Kanindé, não detectamos o uso de expressões próprias do grupo para se referir às crianças. 

Todos os relatos foram gravados, transcritos e, posteriormente, textualizados. Bom Meihy (apud SANTOS, 2005) fala sobre a textualização das entrevistas. Este procedimento propicia que o conteúdo da entrevista se transforme em um texto literalmente agradável. Na textualização, preservam-se as pausas, reticências, e a maneira como o texto foi narrado na tentativa de recriar o mais fielmente possível o momento da entrevista. Neste processo, as intervenções do pesquisador são anuladas, e a narrativa do entrevistado assume uma forma mais fluida e contínua. Segundo Santos (2005): “Não se pretende negar as intervenções e direções do entrevistador ao anular sua fala, mas temos o objetivo de aproximar o leitor, a partir da textualização das narrativas, do mundo experiencial do narrador” (p. 41). 

No caso dos adultos, lhes foram apresentadas suas narrativas transcritas para que pudessem, depois de devida apreciação, acrescentar ou modificar algo que julgassem pertinente, de forma a dar conta do que foi dito sobre suas experiências. Nossa idéia era realizar este mesmo procedimento com as crianças, mas infelizmente não foi possível, tendo em vista a falta de tempo de retornar à comunidade para este contato com elas logo após a transcrição de suas entrevistas. Apenas um dos colaboradores fez pequenas modificações em seu texto, que não alterou o conteúdo inicial. O outro entrevistado nos autorizou a registrar sua fala tal qual apresentava-se na transcrição. Entretanto, optamos por fazer algumas modificações, corrigindo pequenos erros e vícios de linguagem, de forma a tornar as narrativas mais leves sem, contudo, perder a originalidade das falas dos entrevistados.

Em alguns momentos neste trabalho, apresentamos relatos da Cacique Pequena, obtidos a partir de entrevistas, mas não farão parte da análise como as narrativas dos outros adultos. A entrevista com a cacique foi realizada com o objetivo principal de conhecer melhor a comunidade Jenipapo-Kanindé, sua história, sua cultura.

Com as crianças foi utilizado o desenho, por sabê-lo um ótimo instrumento para facilitar a expressão da criança. Gobbi (2002) trabalha com o desenho, conjugado à oralidade, na pesquisa com crianças. Ela afirma que “O desenho e a oralidade são compreendidos como reveladores de olhares e concepções dos pequenos e pequenas sobre seu contexto social, histórico e cultural, pensados, vividos, desejados” (p. 71). E complementa: “Sua riqueza e sua complexidade [do desenho] permitem-nos também concebê-los como expressão capaz de nos apresentar o que está sendo vivenciado e percebido por seus produtores” (p. 74).

As entrevistas realizadas com as crianças também partiram de perguntas-chave, que elegemos como necessárias para o alcance dos objetivos. Inicialmente, pedimos que a criança desenhasse o que era ser criança para ela. Em seguida, solicitamos que falasse o que estava representado no desenho para, a partir da daí, começar a colocar outras questões. São as seguintes as perguntas de partida (1) O que é ser criança? (2) Você é criança? (3) Por que você é criança? (4) Como é seu dia aqui na comunidade? (5) Você vai deixar de ser criança? (6) Quando isso vai acontecer? (7) O que você vai ser quando deixar de ser criança? No decorrer da entrevista, foram acrescentadas algumas questões pertinentes para a maior compreensão da experiência da criança.

Convém ressaltar que não partimos de categorias a priori5 para a interpretação dos dados que apareceram nos relatos das crianças e dos adultos. As leituras do material permitiram nos aproximar cada vez mais das experiências dos entrevistados e, a partir do contato com suas experiências, construir uma compreensão acerca do fenômeno da infância. 

 

IV. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS: Como se experiencia e se significa a infância entre os índios Jenipapo-Kanindé?

Foi possível perceber na comunidade Jenipapo-Kanindé, uma transformação no lugar ocupado pela criança na sociedade. Segundo os moradores, a comunidade passou por muitas dificuldades no passado. Como relata João

... no meu tempo, a gente passou por muitos problemas, dificuldades, até mesmo de alimentação, né... porque... foi sofrido mesmo pra nós, né? Nós moramos numa terra farta, mas pra nós foi uma infância muito sofrida, tanto que no tempo né, a gente passava um ano, dois anos, né, pra conseguir até mesmo comprar uma roupa.

Estas dificuldades aparecem como influenciando diretamente a experiência de infância das crianças da época – no caso, o período compreendido entre as décadas de 60 e 80, tempo em que João e Edson foram crianças. Eles narram as dificuldades em se chegar até a escola, a necessidade de trabalhar para ajudar a família e o penoso deslocamento até outras localidades para tratamento médico, como experiências que marcaram sua infância na comunidade. Nessa época, o trabalho fazia parte do cotidiano da criança. Ela precisava trabalhar para ajudar no sustento da família. O trabalho na infância aparecia, então, como uma necessidade, e sobrava pouco tempo para o lazer e os estudos. 

A minha infância foi trabalhando, né, até porque minha mãe tinha que trabalhar e eu tinha que ir com ela. A gente sempre ia pros roçados, né, e lá trabalhava o dia todo. (...) A gente não tinha muito esse negócio de brincadeira com a gente não (João).

Com o tempo, este cenário foi se modificando. As transformações pelas quais passou a comunidade, que incluem a melhoria econômica e a assistência prestada pela FUNAI, a partir de 1997, quando se deu o reconhecimento da etnia Jenipapo-Kanindé por esta Fundação, possibilitaram que se delineasse um espaço um pouco diferente para a criança na comunidade. Parece que houve um distanciamento entre o trabalho e o mundo da criança. A partir das narrativas, é possível compreender que atualmente o trabalho na infância perdeu o sentido de obrigação, de necessidade, e a criança de hoje, na comunidade Jenipapo-Kanindé, tem a possibilidade de ter como sua principal atividade, estudar, como é perceptível na fala de Edson:

Na infância a gente vê muito trabalho também... mas esses, da infância, esses tem a preocupação de tá estudando, as mãe, os pais tem a preocupação de tá mandando os filhos pra escola, e não trabalham. A profissão apenas é estudar. (Edson).

A infância de João, entre as décadas de 60 e 70, foi marcada pelo trabalho, como podemos concluir a partir de sua narrativa. João relata uma experiência de infância bem diferente da de Edson. Este, que viveu a infância na década de 80 e início da década de 90, começou a trabalhar com o pai por volta dos oito ou nove anos. Antes disso, segundo ele, “... era só estudar e brincar” (Edson). Vitória, por sua vez, não faz referência a nenhuma forma de trabalho em nenhum momento da sua narrativa quando fala sobre a sua infância. Ser criança, para ela, é brincar e estudar. Na narrativa de Clara, o trabalho também não aparece como vinculado à infância. Quando ela cita uma forma de trabalho, o faz se referindo ao pai, como no seguinte trecho do seu discurso: “Meu pai é adulto, ele dá ração o garrote”.

Apesar de o trabalho não ser uma atividade que caracteriza a infância na comunidade Jenipapo-Kanindé atualmente, encontramos nas narrativas um sentido positivo ligado a esta atividade entre as crianças de hoje. O trabalho na infância aparece como algo bom por se acreditar que, assumindo certas atividades, as crianças aprendem a ter responsabilidade desde cedo. Entretanto, o estudo é colocado sempre em primeiro lugar. Este sentido positivo do trabalho entre as crianças se revelou em trechos das narrativas de João e Edson:

...há muitas famílias que (...) ainda levam, ensinam já o jovem a trabalhar né, desde pequeno já. Bom então é uma coisa boa, né... mas a gente quer que as famílias indígenas ponham seus filhos pra estudar, certo? (João).

Porque tem deles que já trabalham, trabalham ajudando o pai, trabalham em casa mesmo, em horta... trabalham em casa ajudando a mãe a varrer o terreiro e... eu acho que é a partir daí que eles começa a ter responsabilidade (Edson).

Percebemos, então, experiências diferentes de infância na comunidade Jenipapo-Kanindé, ao longo do tempo. No passado, o trabalho parecia fazer parte do cotidiano da criança, e tinha o sentido de necessidade, obrigação. Nos dias de hoje, esta atividade se desvincula do sentido de obrigação, e se afasta um pouco mais do mundo da infância, assumindo um sentido mais relacionado à responsabilidade.

A criança de hoje tem mais tempo para brincar e estudar. Essa transformação na forma de se vivenciar a infância está relacionada às mudanças na organização da própria sociedade, que permitiram que a criança pudesse ocupar um lugar social diferente na comunidade. Além disso, apesar de no passado o trabalho ter feito parte da experiência de ser criança, unindo de certa forma o mundo adulto ao da infância, já havia uma compreensão acerca da singularidade da infância: a criança trabalhava, assim como o adulto, mas podia alternar a atividade com a brincadeira, e sua produção era diferente. É o que afirma João: “... a produção era diferente, né? A gente ia trabalhar um pouco, depois ia brincar outro”.

Hoje, entre os Jenipapo-Kanindé, compartilha-se a concepção de que o estudar é uma atividade que define o ser criança. Segundo Vitória: “Eu sou criança. Eu brinco, eu estudo...”. O estudar aparece na narrativa de Clara, como uma das atividades que realiza, ao lado do brincar, desenhar e assistir televisão. O estudo está relacionado à possibilidade de melhoria de vida, de garantia de um futuro melhor, sendo bastante valorizado entre os índios da Lagoa Encantada.

João afirma que hoje as crianças da comunidade são mais felizes porque podem estudar e brincar, e relaciona o estudar à possibilidade de ser um cidadão no futuro:

Hoje em dia as crianças daqui não trabalham (...) a gente põe pra estudar... e fazer as diversões delas (...) São mais feliz por isso... hoje tem escola, né? (...) a gente quer que as famílias indígenas ponham seus filhos pra estudar, certo? Isso é uma base de qualquer cidadão, qualquer jovem que no futuro queira ser um cidadão, né? (João).

Lembramos da discussão de Castro (2001) a respeito de se pensar a infância por uma lógica normativa e desenvolvimentista. Isto acarreta pôr em questão os direitos e deveres das crianças e diminuir sua participação na constituição das relações sociais. Assim, retira-se da criança sua posição de cidadã, de capaz de participar e de ser porta-voz dos seus direitos.

O brincar está presente em todas as narrativas, ao se falar da infância na comunidade Jenipapo-Kanindé, e é significado como uma atividade própria do momento da infância. Os índios da Lagoa Encantada compartilham a ideia de que ser criança é, dentre outras coisas, brincar, se divertir. Vitória se identifica como uma criança afirmando: “Eu brinco, eu estudo, eu vou pra casa da minha prima, eu brinco com ela, eu vou pra casa da minha tia...”. Clara se sente criança porque, segundo ela “Criança faz... brincar, desenhar... dormir, assistir. Eu faço isso”. Edson complementa enfatizando que “A criança ela precisa de um espaço para se divertir, de um espaço para o lazer...”. E para João: “uma criança ela gosta muito de brincar”.

A representação do brincar e do estudar como atividades próprias da infância nos remetem à lógica desenvolvimentista (CASTRO, 2001), segundo a qual a cada estágio de desenvolvimento correspondem determinadas características. O brincar e o aprender, nesse sentido, aparecem como atividades naturais da criança, que deve se preparar para o futuro.

Nas narrativas de Vitória, Clara e Edson, a interação com as outras crianças aparece como uma dimensão do brincar. Clara fala que brinca sozinha e também na companhia de outras crianças. Todas as brincadeiras que Edson cita na sua narrativa quando fala da sua infância eram realizadas coletivamente, às vezes em grupos só de meninos, outras vezes em conjunto com as meninas. Compreendendo o brincar como uma ação humana, retomamos Castro (2001) quando a autora afirma ser a relação com outros indivíduos uma prerrogativa desta ação, tanto da criança como do adulto. Segundo a autora:

A ação humana, seja qual for, presta-se à construção do mundo em que vivemos visibilizando a diferença que é marca de cada um de nós. Adultos e crianças, como diferentes categorias sócio-etárias, e com diferentes inserções nos espaços de convivência, têm possibilidades distintas de intervir no mundo e construí-lo (2001, p. 34).

Entendemos o brincar como uma ação da criança que possibilita, dentre outras coisas, a transformação da sua realidade, bem como a sua própria transformação. Ao brincar, a criança constrói significados acerca da realidade, sendo as situações de brincadeiras facilitadoras de processos de simbolização e elaboração do mundo.

Os tipos de brincadeira são, na opinião de Edson, um dos aspectos que diferencia a infância das crianças Jenipapo-Kanindé da experienciada por crianças de outros locais. Segundo ele:

Eu acho que eu ter nascido numa comunidade indígena fez diferença na minha infância sim, porque em outro local, como por exemplo na zona urbana, é difícil a gente vê esses tipos de brincadeiras, como bandeira, pega-pega, brincadeira do policial. (...) eu acho que é também soltar pipa. Aqui é uma raridade acontecer e nesses outros locais a gente sempre vê as crianças soltando pipa no meio das ruas... (Edson).

Nas narrativas, o brincar aparece distanciado do mundo adulto, sendo o gosto pela brincadeira uma das características que diferencia a criança do adulto. É o que se pode apreender da seguinte fala de Edson: “ Essa é uma das diferenças que eu acho entre a criança e o adulto, as crianças terem mais tempo de brincar e depois terem que assumir mais responsabilidade” (Edson). Não podemos concluir, entretanto, que o brincar está inteiramente excluído da vivência dos adultos Jenipapo-Kanindé, mas esta atividade não foi citada para caracterizar a idade adulta, surgindo nas falas dos entrevistados como própria do universo infantil.

Quando relata sobre a sua experiência, Edson afirma que deixou de ser criança quando “... deixei muitas brincadeiras de lado, deixei muitas coisas... que criança gosta de lado (...) e fui dando mais importância a meus estudos, à minha vida. (...)”.

Para os colaboradores desta pesquisa, o assumir responsabilidade está relacionado ao mundo do adulto, enquanto o brincar é próprio da criança. Sobre esta questão, retomamos o discurso de Castro (2001) sobre a concepção idealizada que se atribui à infância, como a fase do brincar, da falta de responsabilidades. É interessante como o ato de assumir responsabilidades surge na fala de João. Segundo ele, foi quando decidiu ir embora da aldeia, para tentar a vida em outro lugar, que ele deixou de ser criança.

Eu deixei de ser criança quando eu me entendi nos meus treze anos de idade que eu tinha um sonho muito grande de sair da tribo, né. De ver tanto sofrimento na tribo que eu disse assim 'eu tenho que ir pra outro lugar, eu tenho que decidir minha vida', e com onze anos eu decidi minha vida. Eu trabalhei aqui até os 13 anos de idade e com 13 anos de idade fui embora pra Fortaleza (João).

Para diferenciar a infância da idade adulta, Vitória afirma que “a criança ela é pequenininha. E o adulto é grande”. Clara parece ir um pouco além quando identifica características próprias de cada uma das fases: “Meu pai é adulto. Ele dá ração o garrote. Ele num vai não [pro colégio], eu vou”.

A vivência de fortes vínculos familiares é uma das características que singulariza a infância na comunidade Jenipapo-Kanindé, e parece própria da cultura indígena. Praticamente toda a família da criança mora na aldeia, e o seu contato é diário e intenso não só com a família nuclear (entendida aqui como pai, mãe e irmãos), mas também com a família estendida (tios, avós, primos...). No desenho de Vitória ela se coloca entre as casas de muitos dos seus familiares, dizendo: “Desenhei o morro do Urubu, a casa do meu tio, a casa da minha mãe, a casa da minha tia, a casa da minha prima Carline, a casa da minha vó...” (Vitória). Como na aldeia todos se conhecem e possuem algum nível de parentesco, percebemos que as crianças têm mais liberdade para sair de casa, passear pela comunidade, pois sempre existem adultos que podem olhar por elas, e os pais não costumam se preocupar tanto com os filhos quando eles não estão em casa. Esta vivência de liberdade aparece, inclusive, na narrativa de Edson, ao definir o que é ser criança na sua concepção: “Ser criança pra mim é ser livre”.

A concepção da criança como sujeito de direitos tem presença muito forte na narrativa de Edson, quando este colaborador procura definir o ser criança.

Ser criança pra mim é ser livre. É ter direitos garantidos por lei, (...) e que esses direitos sejam válidos, não estejam só no papel. Então criança é poder tá participando de vários movimentos... em casa, na comunidade, estudar também, que não pode deixar de estudar, então isso pra mim é ser criança, ser uma pessoa educada, e o mais importante, o principal: ser uma criança livre, dentro dos limites.(...) A criança ela precisa de um espaço para se divertir, de um espaço para o lazer... (Edson).

Segundo Pinheiro (2006), a representação social da criança e do adolescente como sujeitos de direitos é a primeira, na história do Brasil, a reconhecer a condição de cidadania de crianças e adolescentes, cidadãos no presente, e não em um futuro que há de vir. É esta mesma concepção que está no discurso de Edson, quando fala da participação da criança como um direito: “... o espaço é sempre aberto pra elas, se quiserem participar (...) porque cada opinião é importante, então as crianças sempre tem a oportunidade, sempre tem espaço em todos os eventos que acontecem, elas podem tá participando” (Edson).

A fala de Edson chama a atenção por enfatizar a importância da participação da criança na sociedade, também como forma de se preparar para sua atuação no futuro. Para ele, a criança aparece, como capaz de agir no meio social, como sujeito ativo na construção da realidade. Tal afirmação nos remete novamente às idéias de Castro (2001), que enfatiza que crianças e adolescentes não se tornam capazes de agir apenas quando chegam à fase adulta, mas se capacitam no presente, a partir de sua participação na sociedade.

A infância das crianças Jenipapo-Kanindé não pode ser igualada a uma outra experiência, tendo em vista o contexto específico em que elas vivem, incluindo o espaço geográfico onde moram e a cultura que compartilham os índios da Lagoa Encantada. A localização da aldeia, que contribui para a singularidade da experiência infância entre os Jenipapo-Kanindé: as crianças vivem no meio rural, em uma localidade afastada dos municípios ao redor.

O isolamento da comunidade dificultava o acesso das crianças Jenipapo-Kanindé à escola. No tempo de João ainda não havia escola na comunidade, e ele e as demais crianças precisavam se deslocar até localidades vizinhas. Como não havia estrada, o caminho era aberto entre a vegetação, e as crianças iam a pé. Edson já teve a oportunidade de estudar na própria aldeia até a sétima série do Ensino Fundamental, quando precisou passar a frequentar outra escola no Iguape. A partir de então, enfrentava as mesmas dificuldades de João: “Tinha que ir de pé. Ônibus escolar não tinha não. Inclusive porque no meu tempo nem estrada aqui tinha, certo? Pra mim chegar até a escola de Iguape eu tinha que andar mais ou menos (...) uma hora pra ir, uma hora pra voltar” (João). “Eu muitas vezes saía de casa (...) com fome pra não perder aula, muitas vezes dava graças a Deus ter caju quando ia pro colégio. Ali a gente na caminhada que era 7 km a pé...” (Edson).

As experiências de Vitória e Clara já se configuram de outra forma. Atualmente funciona na comunidade uma escola indígena de ensino fundamental, e as crianças não precisam mais se deslocar para os municípios vizinhos. Mesmo os que estudam fora da aldeia já não precisam mais percorrer uma distância tão grande a pé. É também por isso que João afirma que as crianças de hoje da comunidade da Lagoa Encantada são mais felizes.

Percebemos que a vivência de contato intenso e diário com a natureza também contribui para diferenciar a infância entre os grupos indígenas. Entre os Jenipapo-Kanindé, isso é marcante. Os banhos na lagoa, o caminhar todos os dias pela mata para se deslocar na aldeia, o contato com os animais e o respeito pela natureza são característicos da infância dessas crianças. Vitória desenha o morro do Urubu, a lagoa e os peixes, para representar o que ela acha que é ser criança: “Desenhei o morro do Urubu (...) E aqui é a lagoa, aqui é os peixinho tomando banho. Tem um peixe grande que é o pai da sereia, que ele canta dentro da água pra sereia.(...) Eu moro aqui, pertim da lagoa pra mim tomar banho” (Vitória).

A preocupação de uma criança com a poluição da Lagoa da Encantada, dizendo a uma a pesquisadora, “A nossa mãe d'água tá ficando sem respirar, tu num tem pena dela não?”, parece representar o respeito e o contato intenso com a natureza. Esta é, a propósito, uma das singularidades da infância entre os Jenipapo-Kanindé apontadas pela cacique Pequena. Segundo ela, as crianças da comunidade vivem em contato com a mãe terra, brincando com a mãe terra, e esta proximidade com a natureza é o que garante a saúde das crianças da comunidade, que quase não ficam doentes.

A maneira como a infância foi representada pelas crianças nos seus desenhos merece destaque, por ter gerado algumas reflexões: as duas meninas, entrevistadas separadamente, desenharam a comunidade em que vivem, e nos dois desenhos estão presentes a lagoa e o Morro do Urubu. Em ambos os desenhos as meninas se representam, Vitória aparece sozinha e Clara com os pais. Talvez esperássemos que as crianças desenhassem ações que poderiam caracterizar o ser criança, como o brincar e estudar, por exemplo, mas isto não aconteceu. As meninas escolheram representar o ser criança a partir do espaço em que vivenciam a infância, a comunidade Jenipapo-Kanindé. Os desenhos não se referem ao ser criança em qualquer lugar, mas especificamente à experiência de ser criança na aldeia da Lagoa Encantada. Se tivessem agido como esperávamos, os desenhos das meninas poderiam se referir a diversas infâncias, de diferentes contextos, pois brincar e estudar são atividades que também estão presentes nas experiências de outras crianças. Contudo, a infância representada através do desenho das meninas é específica desse grupo. Ser criança na comunidade Jenipapo-Kanindé é experimentar este espaço, é subir o Morro do Urubu e tomar banhos na lagoa da Encantada.

 

 

Uma das questões de partida este estudo diz respeito à especificidade da infância das crianças Jenipapo-Kanindé, quais os aspectos da cultura indígena presentes em sua experiência que a diferenciava de outras crianças. Foi esta indagação que impulsionou a inclusão, nas entrevistas com os adultos, da seguinte pergunta: O fato de você ter crescido em uma comunidade indígena contribuiu de alguma forma para que sua infância fosse diferente da infância vivida por crianças de outros locais? Há elementos interessantes sobre este assunto nas narrativas dos nossos colaboradores. Inicialmente, João relaciona a diferença existente entre a sua infância e a de uma criança não-índia a questões outras que não a cultura indígena. Segundo ele, o fato de ter crescido em uma comunidade indígena contribuiu para que sua infância fosse diferente porque, se tivesse nascido na zona urbana, teria que ter morado em uma favela, pois as condições econômicas da sua família quando era criança foram muito difíceis.

Eu creio que se eu tivesse nascido numa periferia, nós tinha crescido numa favela, né... Porque ninguém tinha condições de morar num bairro mais ou menos (...) Então, as condições financeira, né, naquele tempo o pessoal num tinha mesmo, né, recursos pra morar num lugaaaar, né... (João).

Posteriormente, ele diz que o fato de ser índio não foi importante para singularizar sua infância porque naquela época os “cabeludos da Encantada”, como eram chamados, ainda não eram reconhecidos como índios, ou seja, a identidade daquele povo como um grupo indígena ainda não existia. João explica:

...nós não era reconhecido como índio nesse tempo aí. Conhecidos como os cabeludos da Encantada (...) a FUNAI ainda não tinha entrado aqui ainda, né. Nós sabia que nós era alguma coisa, porque pra tá aqui nesse confim demundo, escondido, né, no meio da mata, né (João).

E complementa, afirmando que hoje em dia é diferente: as crianças se reconhecem como índias: “... elas mesmas se reconhecem como indígena, né, todas as crianças daqui” (João). 

João fala sobre o reconhecimento da FUNAI como um fator que promoveu mudanças na infância da comunidade: as crianças de hoje são mais bem assistidas, diferentemente do que acontecia em sua época, quando ainda não havia a participação da FUNAI. Por poderem frequentar uma escola de melhor qualidade e não precisarem trabalhar desde cedo, as crianças Jenipapo-Kanindé são mais felizes hoje. É o pensamento de João.

A singularidade da cultura indígena é apontada por Edson, ao falar sobre a especificidade da infância na comunidade Jenipapo-Kanindé. Ele cita as lendas compartilhadas pelo povo, o ritual do Toré e as histórias dos antepassados, como aspectos da cultura do grupo que são vivenciados pelas crianças e contribuem para uma experiência única de infância. As crianças compartilham também dessas lendas, partilhando significados, construindo sentidos a partir de cada uma das histórias do grupo. São lendas que contam a história dos Jenipapo-Kanindé, que falam sobre os encantos da lagoa, a sereia, a Mãe D'água, a cobra dos olhos de fogo... Sendo assim, a experiência de infância das crianças da Lagoa Encantada é singular também por estarem imersas em um mundo diferente de sentidos, próprios da cultura do grupo. O saci-pererê, a Mãe D'água e a sereia são personagens que fazem parte do mundo dessas crianças, não como figuras folclóricas, mas como seres encantados que habitam a região. Queremos dizer que as histórias e as lendas que são próprias desse grupo criam um universo de sentido único, singular, que não existe em outro lugar. As crianças compartilham desses sentidos, estando imersas em um mundo diferente de significados. As lendas, como constituintes da cultura dos Jenipapo-Kanindé, são passadas de geração para geração, como elemento de diferenciação étnica e afirmação da identidade do grupo. Sobre isso, Edson afirma:

As crianças de hoje tem contato com essas lendas também. A gente é acostumado a tá chamando lideranças pra dar palestra, pra tá passando essas lendas, a gente faz pesquisa com os mais velhos, com a Cacique, que nem foi feito uma agora recente. A gente tem o máximo de cuidado pra não tá deixando de tá praticando nosso toré, que é um ritual sagrado, nossas crenças, nossas histórias, tá passando a história de como era antes. Então a gente tá cada vez mais aprimorando para que isso não morra e fique de geração pra geração.

Com relação aos espaços ocupados pela criança dentro da comunidade, há uma grande aceitação com relação à sua presença. Chamou a atenção perceber a presença da criança em praticamente todos os momentos e espaços. Em todas as ocasiões em que estivemos conversando com os adultos na casa da Cacique, havia crianças por perto. Parecia não haver “assunto sério”, “coisas de adulto” que as crianças não pudessem saber. A permissividade com que a criança circula nos espaços da aldeia é uma das principais singularidades apontadas por Nunes (2002) entre as sociedades indígenas. Esta característica também foi observada por Cohn (2002) na sociedade Xikrin e por Koller Lecznieski (2005) em seus estudos sobre os Kadiwéu. Permitir a presença da criança em praticamente todos os espaços parece, então, ser uma característica da cultura dos povos indígenas.

Entre os Jenipapo-Kanindé, um dos aspectos que pode estar relacionado a essa grande permissividade é a valorização da participação da criança compartilhada entre este grupo indígena. Para os adultos Jenipapo-Kanindé, a criança deve participar desde cedo dos acontecimentos dentro da comunidade, porque assim já começa a conhecer o mundo adulto, e se fortalecer para sua atuação no futuro.

O contato com as narrativas dos colaboradores, que permitiu a aproximação com suas vivências, e o convívio com os índios da Lagoa da Encantada possibilita o encontro com uma experiência única de infância.

 

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

“... [Ser criança] é muita coisa (...) que não se pode explicar, né?”6 Neste trabalho, trilhamos um caminho na tentativa de compreender os significados compartilhados acerca da infância e a maneira como se experiencia este momento existencial entre os índios Jenipapo-Kanindé, mas não chegamos ao fim deste percurso. Se entendermos a infância como um fenômeno histórico e a analisarmos a partir desta condição, esta compreensão não se esgota, tendo em vista a própria condição de devir do ser humano. Apresentamos aqui reflexões, construídas no contato com este grupo indígena, resultantes do encontro das experiências dos nossos colaboradores com as nossas experiências. Cada leitor que acessar estas compreensões poderá elaborar outras compreensões, a partir das nossas, e assim se dá o processo de construção de conhecimento. Como diz o velho ditado “quem conta um conto, aumenta um ponto”.

Concluímos este artigo com a certeza ainda mais forte de que, para compreender o universo da infância, não se pode deixar de considerar o que a criança tem a dizer sobre si mesma. As discussões aqui realizadas contribuem para essa compreensão.

 

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Endereço para correspondência
Sacha Lima Pinheiro
Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança - NUCEPEC/UFC, Av. da Universidade, 2853, Benfica, CEP 60020-181, Fortaleza – CE, Brasil
Endereço eletrônico: sachinhalima@hotmail.com
Ana Maria Monte Coelho Frota
Universidade Federal do Ceará, Centro de Ciências Agrárias, Departamento de Economia Doméstica, Campus do Pici, Bloco 860, Av. Mister Hull, 2977, Pici, CEP 60021-970, Fortaleza – CE, Brasil
Fortaleza - Ceará
Endereço eletrônico: anafrota@ufc.br 

Recebido em: 16/06/2008
Aceito para publicação em: 08/10/2009
Acompanhamento do processo editorial: Anna Paula Uziel

 

 

Notas

1 Este artigo é parte de um trabalho monográfico da primeira autora, exigência parcial para a conclusão de Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
2 Tal classificação tem uma precisão parcial, uma vez que a identificação de classes sócio-econômicas são influenciadas por diversos outros fatores, tais como a renda per capita e a infra-estrutura da moradia, mostrando, assim, o caráter dinâmico e a complexidade das relações sociais.
3 A pesquisa foi realizada na atividade “Pintando no Dragão”, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, instituição localizada na cidade de Fortaleza-CE, voltada para a democratização do acesso à cultura, à geração de empregos e à movimentação do turismo no estado. Seu espaço é constituído por um planetário, teatros, cinemas, uma biblioteca, museus e ateliês de arte. Ademais, este centro conta com um amplo espaço de lazer aberto a toda a comunidade.
4 Ver trabalho de Koller Lecznieski (2005) sobre os índios Kadiwéu e de Cohn (2002) sobre a sociedade Xikrin.
5 Trazíamos algumas idéias sobre o que poderia surgir nas narrativas, assim como expectativas em relação ao estudo, fruto das experiências anteriores e das leituras do material teórico. Queremos dizer que não construímos categorias de análise anteriores ao contato com os colaboradores. Toda a construção dos dados partiu do conteúdo das narrativas, dos elementos que surgiram na própria fala dos entrevistados.
6 Frase coletada em uma pesquisa acerca da compreensão da infância, desenvolvida no NUCEPEC.

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