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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.10 no.2 Rio de Janeiro ago. 2010

 

ARTIGOS

 

A velhice no Estatuto do Idoso

 

The old age in Estatuto do Idoso

 

 

José Sterza JustoI; Adriano da Silva RozendoII

I Professor da Universidade do Estado de São Paulo - UNESP, Assis, SP, Brasil
II Mestrando do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade do Estado de São Paulo - UNESP, Assis, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Estatuto do Idoso, criado como decreto-lei a partir de disposições sobre o idoso contidas na Constituição de 1988, assume um papel fundamental na maneira como a velhice é vista e tratada na sociedade brasileira. Este artigo, resultado de uma pesquisa realizada pelos próprios pesquisadores, teve como objetivo analisar o conteúdo do Estatuto, procurando identificar imagens e sentidos básicos atribuídos à velhice, com os quais se constrói a figura do idoso, como uma figura diferenciada, e se definem práticas, especialidades, espaços próprios, e tecnologias de gestão do envelhecimento. Foi possível apreender no Estatuto a tentativa de diferenciar os idosos como cidadãos de direitos, marcados por características próprias que demandam proteções, serviços e benefícios especiais. No entanto, um exame crítico das preocupações, amparos e proteções estatutárias permite entender que o idoso acaba sendo construído como um ser frágil, limitado, impotente e incapaz de assumir a gestão da própria vida.

Palavras-chave: Estatuto do idoso, Velhice, Terceira idade, Sentidos.


ABSTRACT

The "Estatuto do Idoso", is a low created from arrangements about seniors citizens contained in the "Constitution of 1988", assumes a substantial function in the way that the old age is seen and treated in the Brazilian society. This article, a resulted from a research made by the actual researchers, had how analyses’ objective  the content of the "Estatuto", trying to identify images and senses attributed to the old age, with which the senior’s figure have been built, like a differentiated figure. Was possible to apprehend in the "Estatuto" the attempt of differentiating the seniors like citizens of rights, marked by own characteristics who demand protections, services and special benefits. However, a critical examination of the preoccupation, supports, and protection contained in the "Estatuto" allows understanding that the senior finishes being built like fragile, impotent and incompetent being to assuming the management of them lives.

Keywords: "Estatuto do Idoso", Old age, Seniors citizens, Senses.


 

 

Introdução

O Estatuto do Idoso, lei No 10.741, completou cinco anos no dia 1o de Outubro de 2008. Em conjunto com a lei 8.842, que regulamenta a Política Nacional do Idoso, promulgada pela presidência da república em 4 de Janeiro de 1994, o  Estatuto dispõe normas e diretrizes para a formulação  e execução de políticas públicas e serviços destinados à  população idosa, definida, pelo próprio Estatuto, como aquela com 60 anos ou mais.

Não bastasse sua força como instrumento legal, goza ainda do prestígio que conseguiu conquistar no cotidiano da sociedade pelos efeitos produzidos no imaginário sobre a velhice e no tratamento dispensado aos idosos. Tornou-se um marco na história da velhice na nossa sociedade; um registro de mudanças significativas em relação à figura do idoso e em relação aos espaços sociais destinados aos velhos. Enquanto um marco, de tamanha magnitude, traz consigo uma série de injunções de ordem política, econômica, cultural e subjetiva que o torna um objeto extremamente complexo e problemático para exame e investigação.

O levantamento de pesquisas realizadas sobre o assunto indicou a existência de poucos estudos sobre o Estatuto, dentre eles, alguns foram encontrados no campo do Direito (SILVA, 2007), (CENEVIVA, 2004) e outros no da saúde (MARZIALE, 2003), (MARTINS; MASSAROLLO, 2008). No campo da Psicologia, em nossas pesquisas, encontramos apenas um artigo que o tomou como objeto de análise. O referido artigo, intitulado "AS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO AOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA EXPRESSAS NO ESTATUTO DO IDOSO", de autoria da pesquisadora Anita Neri, foi publicado em 2005, na revista "A Terceira Idade". O artigo traz importantes reflexões sobre o Estatuto do Idoso. Neri fez um amplo levantamento histórico sobre as políticas públicas para idosos no Brasil e ainda se atentou para vários trechos do Estatuto, fazendo análises sobre suas possíveis repercussões, sobre algumas concepções de velhice presentes no Estatuto, sobre a condição do idoso no contexto social brasileiro, assim como sobre os avanços e retrocessos, na política nacional do idoso, decorrentes desta Lei.

Neste nosso trabalho o conteúdo do Estatuto será analisado, em sua totalidade, tendo em vista a importância e repercussão do Estatuto, não só na esfera jurídica, mas na sociedade em geral. 

O Estatuto do Idoso será tomado não somente como um instrumento jurídico que estabelece direitos, mas também como uma produção simbólica e conceitual que, mediante um conjunto de signos, representações, imagens e saberes, configura o idoso na cultura, retirando daí a legitimação das práticas e políticas destinadas especificamente a esse segmento.

O Estatuto do Idoso é entendido aqui como um dispositivo de Estado formado por um conjunto de normas e diretrizes, e suas decorrentes práticas, produtores de sentidos que se incorporarão aos próprios idosos e ao imaginário coletivo como produtor da realidade da velhice. O pressuposto fundamental é o de que a linguagem, a produção discursiva, como no caso do Estatuto do Idoso, não apenas expressam, mas também constituem os referentes que toma como objeto.

Entendemos o Estatuto do Idoso como parte de um conjunto de práticas discursivas ou de um campo discursivo que instaura a velhice como categoria de pensamento e significação a partir de imagens matriciais, por meio das quais a realidade passa a ser apreendida e modelada. Por exemplo, o olhar dirigido para uma árvore ou para um computador passará pelo crivo da idade, ou seja, incluirá na imagem que formará do respectivo objeto o atributo de ser velho ou não. Dessa forma, as práticas e a produção de sentido que toma o idoso como objeto e referente, modelam, por extensão, outros objetos e referentes abarcados por similaridade ou contigüidade.

Nesse sentido, a abrangência do Estatuto do Idoso, enquanto produtor de práticas e sentidos em relação à velhice ultrapassa os idosos, tomados estrito senso, e afeta tantas outras populações e demais produções sociais sobre as quais incidem os estigmas do envelhecimento.

 

Marcos históricos da gestão e da produção de sentidos da velhice

Para Neri, no final do século XIX se instaurou, no Brasil, a categoria social "pobre", que passava a ser vista, pela aristocracia, como um problema. A solução encontrada para administrar a pobreza foi o asilamento desta população, composta por orfãos, imigrantes, leprosos, mendigos e velhos. Para a autora, neste mesmo período, foram construídas as associações "negativas" entre asilo, pobreza e velhice, presentes, no próprio Estatuto do Idoso (2005, p. 09).

Focalizando o mesmo período, Groisman (1999), investigou a constituição histórica das instituições para velhos, na cidade Rio de Janeiro, a capital brasileira, na época. Em seu trabalho o autor selecionou uma instituição para análise, a qual qualifica como "modelar" o "Asilo São Luiz para a Velhice Desamparada". Fundado em 1890, por iniciativa do Estado, da Igreja e da sociedade civil, o que colaborou para que tivesse grande visibilidade social, o asilo se tornou "um locus privilegiado para a elaboração de representações sociais sobre o envelhecimento", devido ao grande interesse que despertava nos jornais cariocas. Com o intuito de angariar recursos financeiros, para a instituição, as notícias difundiam imagens carregadas de simbolismo, que vinculavam a velhice à tristeza, à desilusão, ao desamparo, à invalidez, à santidade, à morte e à pobreza. Em sua análise, o autor concluiu que tais imagens logo foram sendo incorporadas ao imaginário coletivo e à própria velhice, como categoria de pensamento (GROISMAN, 1999, p.70-71)

Haddad (1986) aponta que, no final dos anos 60, do século XX, se inaugurava, no Brasil, um novo paradigma de serviços à velhice, inicialmente promovido pelo SESC e, posteriormente, pelas universidades abertas à terceira idade (DEBERT, 1999). O paradigma emergente tinha como objetivos a promoção do bem estar social, a ocupação do tempo livre e a refuncionalização da velhice, implementados dentro de espaços criados especialmente para esses fins, nomeados como "espaços de convivência". As atividades desenvolvidas no SESC estavam atreladas a práticas esportivas, ao lazer, à cultura, ao conhecimento, enfim, vinculavam a velhice a uma vida ativa. Este modelo de atendimento à velhice colaborou para a criação de uma nova categoria social: a "terceira idade". Diferente da categoria "velhice", a terceira idade passa a ser retratada como uma fase ativa da vida repleta de realizações. Podemos encontrar tais representações nas nomenclaturas vinculadas, ao público idoso, na contemporaneidade: "melhor Idade", "feliz idade", "maturidade" e outras designações acompanhadas de valores meliorativos.

Atentando para os regimes de verdade que forjaram a velhice, Haddad (1986) nos revela que as práticas e saberes da Gerontologia e da Geriatria, no Brasil, foram cooptados pelos interesses do Estado buguês. Segundo a autora, essas duas especialidades ignoraram, na elaboração de seus regimes de verdade, as questões objetivas do público idoso, principalmente aquelas mais estreitamente relacionadas à realidade histórica e cultural brasileira. Para Haddad o objetivo principal da Gerontologia e Geriatria, em cumplicidade com o Estado, era a disciplinarização dos velhos. No trecho, a seguir, fica bastante evidente tal cumplicidade, na proposta da abolição da aposentadoria por tempo de serviço apoiada no regime de saber geriátrico-gerontológico, considerando exclusivamente, o ônus causado pelos dos benefícios de aposentadoria ao Estado:

A aposentadoria não é raro uma espécie de doença ou de morte que toma conta progressivamente do indivíduo, acabando por liquidá-lo, em geral, antes do tempo. O trabalho é o melhor prêmio que a vida pode oferecer ao homem. Sem ele a vida perde completamente o sentido, passando a ser pesado fardo. Pesado e inútil. O que se faz preciso é trabalhar com entusiasmo e, sobretudo com humor, pois desse é que nasce a sublime alegria de viver (STIEGLITZ, 1978, p.29, apud HADDAD, 1986, p. 43)

O asilo, a aposentadoria, a Gerontologia e a Geriatria, conforme destaca Groisman (1999), são importantes marcos na diferenciação da velhice no cenário social e na produção de sentido acerca do envelhecimento. O asilo veicula fortes imagens de uma velhice decrépita, disfuncional e inapta para a vida, necessitando, portanto, de um amparo total que demanda e legitima a tutela, a reclusão e o confinamento. A aposentadoria, na mesma linha de invalidação, ao desqualificar o idoso para as atividades produtivas, o desqualifica também para outras atividades e funções sociais. O estigma que pesa sobre o aposentado é o da inatividade, uma inatividade não só relacionada ao trabalho, mas a outras esferas da vida. A gerontologia, por seu turno, valendo-se da autoridade galgada pelo cientificismo no mundo moderno, irá difundir imagens do envelhecimento como um período de perdas e limitações, além de ditar as normas de tratamento do idoso.

Mais recentemente, o Estatuto do Idoso irá se consumar como outro marco fundamental na história social da velhice. Desdobrado da constituiçao de 1988, como uma lei dirigida especificamente para o idoso, "reflete a influência de atuação de especialistas, políticos e segmentos da sociedade organizada" (NERI, 2004, p.07), registrando mudanças significativas no tratamento e nas figurações da velhice.  Indubitavelmente, hoje, ele funciona como uma grande usina de produção simbólica referente à velhice, por ser o principal orientador das políticas e práticas que tornam o idoso objeto da gestão pública. Funciona como um grande guia das ações do Estado e da sociedade civil como um todo no tratamento do idoso e, sobretudo, como grande guia do modo como a velhice é vista e significada.

Estamos aqui destacando no Estatuto sua função de enunciação (BENEVISTE, 1991) entendendo-o precipuamente como uma produção de linguagem realizada na prática social, na interação entre falantes que se subjetivam na língua. Dessa forma, a linguagem não é vista como mero instrumento de comunicação ou de expressão - um veículo de circulação de materialidades pré-construídas ou construídas fora dela -, mas sim como produtora da mundanidade e do próprio sujeito.

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem (...) é um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (BENEVISTE 1991, p.85).

Nessa linha de raciocínio, a linguagem é vista como fundamental para a constituição do homem e do seu mundo, uma linguagem que se materializa na língua posta em movimento nas relações entre os falantes, concretamente constituída.

Dessa forma, o Estatuto do idoso, como um texto, será tomado como uma produção de linguagem inserida num contexto, num cenário social no qual os falantes são dispostos em lugares específicos, mediados por relações de poder, tendo a velhice como referente principal. O Estatuto será entendido como um encontro de várias vozes, socialmente construídas, que falam da velhice, e ao falarem dela criam os sentidos pelos quais os sujeitos a reconhecem e se reconhecem como idosos.

Portanto, é preciso buscar no Estatuto figuras, imagens, concepções associadas aos sentidos que produz e veicula em relação à velhice e pelos quais o idoso se subjetiva e é objetivado. Um exame sistemático do texto do Estatuto permite rastrear as imagens com as quais a velhice é figurada, significada e construída entre nós.

 

Objetivos

O propósito do presente trabalho foi o de buscar no Estatuto os sentidos básicos que ele fomenta em relação à velhice. Para tanto, foi feita uma análise do conteúdo do Estatuto, seguindo sua estrutura básica, subdividida em Títulos, Capítulos, Artigos, Parágrafos únicos, Incisos e alíneas, recolhendo, em cada parte, as unidades de significação contidas nas frases e palavras. Tal análise, bem como as interpretações gerais, levaram também em consideração os contrastes com a produção de sentido das políticas públicas direcionadas para a velhice, anteriores ao Estatuto.

 

Método

Para o exame do Estatuto do Idoso, foi adotada a Análise de Conteúdo, conforme a proposta de Bardin (1977). Segundo essa autora, a análise de conteúdo, de longa tradição no campo da comunicação e da linguagem, acumulou um conjunto de conhecimentos e de técnicas bastante útil para a compreensão dos sentidos que permeiam um texto, sobretudo, quando se pretende ir além de sua superfície, da imediaticidade da significação ou daquilo que é dado na aparência mais visível.

Trata-se de uma leitura do texto, de uma mensagem, que tem como ponto de partida a "leitura flutuante", feita preliminarmente como a de um leitor distraído, mas que, a seguir, imbuída de um rigor metodológico de cunho indisfarsavelmente positivista, se vale de um arsenal de procedimentos para desvendar as significações que escapam a um primeiro olhar ou deixam indícios tênues, embora possam compor seus sentidos básicos.

Desde já, é preciso deixar claro que não compartilhamos dos pressupostos de cunho positivista que, segundo autores (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005) marcam a Análise de Conteúdo, delineada por Bardin, sobretudo, no tange à pretensão de neutralidade e objetividade. Entendemos que qualquer análise, ainda mais quando se dirige diretamente para um artefato da linguagem, como é o caso de um texto, será sempre uma leitura que estará inevitavelmente marcada pelo leitor ou analista.

Portanto, assumimos que nossa análise do Estatuto se vale sim de instrumentos de leitura sistemáticos, oriundos da Análise de Conteúdo e que consideramos úteis e fecundos, porém, assumimos também que a leitura assim produzida traz consigo uma inteligibilidade que não pode ser dissociada tanto dos instrumentos utilizados como da relação do pesquisador com seu objeto de estudo – o texto do Estatuto. 

Entendemos nossa análise como parte de um processo de produção de sentido inserido na linguagem viva, na linguagem praticada socialmente por sujeitos concretamente constituídos, processo no qual, munidos do instrumental da Análise de Conteúdo, realizamos uma leitura num diálogo e interlocução com outros sujeitos, tendo a velhice como referente principal.

 

Procedimento da análise

Num primeiro momento, realizamos uma leitura flutuante do Estatuto, com o intuito de identificarmos unidades básicas de significação, através das palavras e frases. Neste momento, foram catalogadas 200 palavras que nos auxiliaram na elaboração das 28 subcategorias de análise. Na segunda fase, nossas leituras buscaram a elaboração, catalogação e quantificação das subcategorias (tabela 2). As frequências foram anotadas e discriminadas de acordo com a estrutura do Estatuto, composta por: 7 títulos; 23 capítulos; 118 artigos; 109 incisos; 48 parágrafos; 16 parágrafos unicos e 10 alíneas.

As freqüências foram anotadas, em cada subcategoria, toda vez que as unidades de significação (frases e palavras), se referiam exclusivamente aos idosos. Em muitos casos, houve a ocorrência de mais de uma subcategoria na mesma unidade (artigo, inciso, etc.) do Estatuto. Em função das ocorrências múltiplas não utilizamos cálculos percentuais. Não foram anotadas mais de uma frequência, para cada subcategoria, na mesma unidade. Também não foi adotado critério de peso para as unidades, considerando-se peso igual a cada aparição no conteúdo geral do Estatuto (título, capítulo, artigo, etc.). As anotações das frequências das subcategorias foram feitas conforme as aparições em unidades de significação (frases e palavras) ou no sentido geral das unidades.

 

Descrição das categorias de análise

As subcategorias foram agrupadas em 7 categorias de análise (tabela 1). O critério utilizado para o agrupamento foi o de semelhança de sentidos das subcategorias, de acordo com as significações que elas assumiam no Estatuto. A seguir, descreveremos as categorias de análise. As subcategorias "Aposentadoria" "Asilo" e "Entidades de Atendimento" foram agrupadas em duas categorias de análise distintas por possuírem duplo sentido, de acordo com nossos critérios na elaboração das categorias.

AUTONOMIA: nesta categoria foram agrupadas as subcategorias que traziam representações da velhice como uma fase da vida autônoma, independente, enfim, apta à vida.

CARÊNCIA: nesta categoria foram agrupadas as subcategorias que relacionavam a velhice à pobreza, imputando-lhe necessidades financeiras, afetivas ou orgânicas.

CIDADANIA: nesta categoria foram agrupadas as subcategorias, subtraídas do Estatuto, que expressavam os direitos adquiridos pela velhice no decorrer da história brasileira, tendo como marco referencial a Constituição Federal de 1988. Esta categoria assume um sentido peculiar em nossa análise, pois, no Estatuto, a cidadania assume um papel unidirecional, atribuindo, quase que em sua totalidade (exceto em três casos), apenas direitos aos idosos, condicionando-os como sujeitos passivos, sem lhes estabelecerem deveres, assim, não é levado em conta, o amplo sentido do conceito de cidadania, que é composto por direitos e deveres dos cidadãos.

DEPENDÊNCIA/INVALIDAÇÃO: nesta categoria foram agrupadas as subcategorias que traziam representações da velhice como sendo uma fase da vida marcada pela invalidez, incapacidade, dependência física, psíquica ou financeira.

FRAGILIDADE: nesta categoria foram agrupadas as subcategorias que traziam representações da velhice como uma fase da vida frágil, limitada, indefesa, de decreptude física e psiquica, digna de excessivos cuidados e proteção.

REALIZAÇÃO/POTÊNCIA: nesta categoria foram agrupadas as subcategorias que representavam a velhice, como uma fase da vida potencializada, quando, por exemplo, o idoso era retratado como portador de diversos potenciais, apto a realizações e trocas indiscriminadas com as demais gerações e apto a fazer suas próprias escolhas.

TECNOLOGIAS DE DIFERENCIAÇÃO: nesta categoria foram agrupadas as subcategorias que faziam menções às especialidades científicas e profissionais voltadas exclusivamente para a velhice, como a Gerontologia e a Geriatria.

A organização geral das categorias, com suas respectivas subcategorias, estão dispostas na tabela 1.

 

Tabela 1. Rol das categorias com suas respectivas subcategorias

 

Dados obtidos e discussão

Como um dado preliminar, que merece ser considerado, cabe destacar que o Estatuto é um documento escrito, estruturado na linguagem do Direito como um conjunto de dispositivos jurídicos derivados da Constituição Nacional e publicado, na forma de lei, como decreto do Senado Federal. Sua extensão, adentrando vários aspectos da vida do idoso, junto ao seu poder de lei estatutária, baseadas na Constituição Federal, o torna um dispositivo crucial, na atualidade, de configuração da velhice.

A própria formulação das categorias e subcategorias já indica as tônicas observadas na leitura do Estatuto, sejam essas tônicas apreensíveis pela ênfase dada a certos atributos vinculados à velhice, quando, por exemplo, um determinado tema é tratado como título de um capítulo ou pela sua repetição ao longo do documento.

Na leitura flutuante inicial, recomendada como primeiro passo na análise do conteúdo (BARDIN, 1977), já se destacaram as reiteradas referências à saúde/doença, cuidados e assistências essenciais, fragilidades, dependências, passividade e outros atributos desvitalizadores imputados à velhice. Até mesmo os direitos são formulados como concessões obrigatórias da sociedade ou do Estado e não como garantias de participação política.

É notável como o Estatuto, enquanto um dispositivo jurídico, produz um efeito de sentido de verdade, de determinação e de direito inquestionável. A linguagem jurídica não pode ser desprezada como produtora de importantes efeitos de sentido neste documento. A organização do texto sob a forma de capítulos, parágrafos, incisos, etc. e a redação sintética, direta e clara geram sentidos de objetividade e determinação, ainda mais quando aliados a uma suposta força da lei.

A um leitor atento, dificilmente escapará a diagramação da página inicial do Estatuto que ostenta, na parte superior, o brasão da república do Brasil, seguido das inscrições "Senado Federal", "Comissão Diretora", "Parecer n° 1301, de 2003, tudo isso em negrito e letras de tamanho grande. São indícios inequívocos de que o que se segue a essa primeira página é algo importante, sério e que tem o peso da chancela do símbolo maior do país - o brasão nacional - e a sub-escritura de uma das mais importantes instituições políticas nacionais: o  Senado Federal. Diante de tal imagem inicial, o leitor não duvidará do peso e do valor desse documento.

O uso de numerações, típica do discurso jurídico, é outro aspecto formal que gera um efeito de sentido de ordem, precisão e seriedade. O decreto é de número tal, do ano tal, sugerindo que não cabe qualquer dúvida sobre sua existência e que poderá ser facilmente localizado, resgatado e recuperado naquilo que ele reza sem qualquer titubeio. Apresenta-se como uma vontade suprema e onipresente por ser um "decreto", portanto não cabendo contestações e por conter mandamentos de forma clara e precisa, distribuídos por compartimentos bem definidos e de fácil localização.

Ninguém ousaria tripudiar com dizeres, pronunciados por um Senado de uma República, como o que aparece no Título I, artigo 3° do referido Estatuto: "É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação (...)". Está aí, de forma clara e contundente, uma determinação imposta a todos (família, sociedade e poder público) e com absoluta prioridade. Como nesse trecho, a linguagem do Estatuto não economiza verbos na forma imperativa, substantivos concretos e superlativos para fazer valer suas determinações, de maneira inequívoca e sem vacilações.  

Não se pode ignorar que o referido Estatuto é uma regulamentação de um preceito constitucional, a saber, oriundo de uma constituição federal que foi celebrada como a "constituição cidadã". Tudo que ali está se reveste da força da legislação maior do país e, ainda mais, dessa força e legitimidade de uma constituição vista como redemocratizante e profundamente enraizada nas aspirações e na vontade popular.

Esses elementos formais e contextuais do Estatuto participam ativamente da produção dos seus efeitos de sentido e não devem ser desprezados, mesmo numa análise de conteúdo dirigida precipuamente para aquilo que está expresso no texto mediante palavras e frases que o compõe.

No segundo movimento da análise, na busca de uma sistematização das unidades de sentido, arrolamos as freqüências das subcategorias (tabela 2) conteúdos a elas pertinentes.

 


Tabela 2. Frequências de cada subcategoria

 

O rol das subcategorias permite uma visão geral das questões que são destacadas e tratadas no Estatuto em relação ao idoso. Através delas é possível compor o cenário da velhice no qual o Estatuto insere o idoso: alimentação, aposentadoria, asilo, assistência e assim vai se descortinando o panorama dos sexagenários.

Tomando as freqüências brutas como indicadoras da ênfase do conteúdo das subcategorias, a da cidadania se desponta, disparadamente, como a mais recorrente. Foram verificadas 119 menções à questão da cidadania, aferidas por palavras ou temas que tratavam do assunto. A subcategoria denominada "Punição" aparece em segundo lugar nas freqüências apuradas, lembrando que nessa subcategoria foram arroladas as menções às punições previstas para os casos de negligência ou violação dos direitos dos idosos.

Os dados dessas duas subcategorias podem ser tomados conjuntamente para efeito de demonstração do quanto o Estatuto, em função de sua natureza jurídica e de sua origem no bojo do restabelecimento de um Estado de direito, tenta instituir na sociedade a figura da velhice e construir um lugar social sólido e bem estabelecido para o idoso, mediante uma lei forte que obrigue o conjunto da sociedade, inclusive o poder público, a assumir as responsabilidades que lhe são atribuídas.

A subcategoria que trata das entidades de atenção aos idosos, também aparece com certo destaque e reforça ao espírito do Estatuto em assegurar amparo, serviços e cuidados aos idosos, num certo sentido, encorpando, ainda mais, o esforço em apresentá-los como cidadãos de direitos. Junto a tais entidades, a família é apontada como um lugar importante para o assentamento do idoso e a saúde se desponta como uma preocupação fundamental. As limitações ocupam um espaço razoável na caracterização do idoso e junto com a saúde cria a imagem da velhice como uma fase marcada por uma constrição da vida.

Num terceiro momento da análise, as subcategorias foram agrupadas, com suas respectivas freqüências, em categorias mais amplas capazes de fornecer indícios sobre sentidos básicos que perpassavam por elas.

 

Análise das categorias

De acordo com os dados, as categorias, extraídas do Estatuto, que vinculam o idoso à dependência, invalidação, passividade e fragilidade e carência, têm frequências muito superiores às demais categorias. As imagens que representam a velhice pela autonomia, realizações e potenciais acabaram tendo freqüências secundárias. Pode-se observar também, pela categoria referente às "Tecnologias de Diferenciação", que a  velhice é tida como um público específico mediante classificações,  ordenações  e separações que diferenciam os idosos, dos demais estratos sociais.

A tabela 3, mostra a somatoria geral de cada categoria:

 

Tabela 3. Freqüência de cada categoria

 

Como se pode observar, predominam as referências ao idoso como aquele sobre o qual pesa uma condição de fragilidade e um estado de passividade e incapacidade diante das exigências da vida. A dependência e invalidez são outros signos disseminados pelo Estatuto, assim como o da carência. A autonomia não deixa de ser uma imagem ventilada como ideal de velhice a ser alcançado pelos esforços e ações dos idosos, do Estado e demais instâncias da sociedade civil. A diferenciação dessa idade ou fase da vida das demais idades ou fases é também reconhecível no Estatuto, mediante referências diretas e reiteradas a um suposto fato de que a velhice traz consigo modos e formas específicas marcadas por limitações, fato esse sustentado por outro suposto saber, atribuído às especialidades que retratam a velhice dessa forma.

 

Lócus da velhice

A fim de identificarmos o lócus ou os espaços destinados ao idoso, pelo Estatuto, tomamos mão das subcategorias que, além de representações e imagens diversas sobre a velhice, a localizavam em determinados espaços geográficos e sociais. Seguindo o referido critério, nos valemos das frequências das subcategorias: "ASILO", "ENTIDADES DE ATENDIMENTO", "FAMÍLIA" e "HABITAÇÃO", tomadas, agora, como categorias de análise da espacialização da velhice.

 

Tabela 4. Frequência das menções a lugares dos idosos

 

O maior número de menções do Estatuto a espaços geográficos e sociais, vinculados à velhice, incide sobre entidades de atendimento ao idoso, que não necessariamente são instituições de longa permanência, como o caso do asilo. Este é um sinal de reconhecimento, na lei, da ascensão de outras instituições de atendimento aos idosos, criadas mais recentemente, como é o caso dos Centros de Referência do Idoso (CRIs), dos Centros de Convivência do Idoso (CCIs), Centros de cuidados-dia e outros. A família aparece como outro lugar bastante mencionado e, um pouco mais atrás, o asilo. Habitação própria é o lugar menos citado e vinculado ao idoso. O idoso independente, abrigado em sua própria casa, é mencionado insignificantemente, comparando a frequência desta categoria com as outras.

É importante observarmos uma mudança ou transição de paradigma de atendimento à velhice, conforme sugerem os dados sobre o lócus da velhice. Se antes o velho encontrava abrigo e assistência no espaço do "asilo", na atualidade, o idoso é inserido nas "entidades de atendimento" como as casas lares, residências assistidas, centros dia, centros de referência e convivência do idoso e outras instituições específicas. Mudam-se as nomenclaturas e os espaços, mas a velhice continua diferenciada e apartada do convívio e espaços comuns. Seja preso a uma cadeira de rodas em algum asilo ou participando de oficinas e outras atividades oferecidas em centros de convivência, o idoso permanece segregado em um "curral psicossocial".

O lócus social da velhice, ainda mantido como espaço de segregação, somado às representações e imagens que retratam o velho como dependente e incapaz de suprir suas necessidades autonomamente criam uma diferenciação com um sentido predominantemente pejorativo.

 

Conclusões

É importante frisarmos que as noções, imagens e representações que foram aqui mapeadas no Estatuto não podem ser consideradas como as únicas ventiladas na sociedade, portanto, não podem ser entendidas de maneira generalizada ou como única fonte de produção de sentido sobre a velhice. As imagens, representações e concepções de velhice, propagadas pelo mercado, por exemplo, se diferenciam bastante das noções de velhice presentes no Estatuto, tal como se pode observar nos anúncios publicitários veiculados pela mídia, e também se incorporam fortemente ao imaginário coletivo e ao imaginário dos próprios idosos.

No entanto, é preciso realçar o peso do Estatuto do idoso como expressão e, ao mesmo tempo, produção da maneira como a sociedade e a cultura brasileira concebe, representa, produz sentidos sobre a velhice e define políticas, princípios e  práticas de tratamento do idoso.

Como desdobramento da Constituição de 1988, surgida no bojo de todo um longo processo de redemocratização do estado brasileiro, após um duro período de ditadura militar, o Estatuto finca suas origens num amplo debate sobre a sociedade brasileira que culminou com a referida Constituição, celebrada como a Constituição Cidadã. Portanto, não se trata de uma lei qualquer, surgida da iniciativa de algum parlamentar, mas de uma legislação decorrente de um amplo movimento social em torno da recuperação do estado de direito e do exercício da cidadania.

Sem ignorar interesses corporativos e as disputas de poder que acompanharam todo o processo constituinte de 1988, o fato é que a velhice aí apareceu como objeto de preocupação da sociedade e do Estado. Podemos tomar as menções ao idoso, na referida Constituição, como um marco importantíssimo do reconhecimento da velhice e de sua diferenciação como um segmento da população. Se antes a velhice era ignorada, relegada ao ostracismo ou pelo menos não era objeto de maiores preocupações do Estado, a partir de 1988 não resta mais dúvidas de que, para o bem ou para o mal, passa a ser tratada como assunto de importância nacional e de gestão pública planejada e orientada científica e politicamente. Diferentemente de outros preceitos constitucionais que caíram no esquecimento posteriormente e sequer foram regulamentados em forma de lei, as questões relacionadas à velhice se mantiveram vivas e foram coroada com o Estatuto do Idoso, decretado em 2003.

O Estatuto, portanto, reflete e ao mesmo tempo produz um sentimento nacional em relação à velhice. Possui um caráter universalizante e disciplinador do entendimento que se tem da velhice e do tratamento que se deve dispensar a ela no cenário social. É fruto de um amplo consenso em torno do qual se reúnem setores organizados dos próprios idosos, entidades prestadoras de serviços especializados, políticos que têm suas bases eleitorais e interesses nesse segmento, profissionais que atuam junto a essa população, pesquisadores e acadêmicos que elegem esse campo como local de seus objetos de estudo e investigação, tornando-o uma especialidade da ciência. Vários outros segmentos da sociedade elegem, como maior ou menor intensidade, a velhice como foco de seus interesses e ações e, mesmo indiretamente, fazem parte desse amplo consenso que eleva os idosos a uma categoria social de prestígio e consideração.

Os alarmantes dados demográficos que projetam a aceleração do envelhecimento da população, com conseqüências trágicas na economia, são responsáveis, em grande parte, pelo recente despertar da sociedade brasileira em relação às condições de vida dos idosos e aos lugares destinados a eles no cenário social. Não se deve desprezar tantos outros motivos nesse despertar para as questões da velhice, tais como o avanço do conhecimento científico, a preocupação com melhoria da qualidade de vida, a ampliação de direitos e do exercício da cidadania e assim por diante.

Não se deve ignorar também que tamanha projeção social, tal como essa ocorrida com os idosos por meio do Estatuto, está intimamente relacionada com estratégias e ações do Estado para resolver problemas, gerenciar e controlar populações, administrar subjetividades e manter a integridade do corpo social. Nesse sentido, o Estatuto assume o papel de catalisador de um problema social ao qual procura dar uma forma, inteligibilidade e respostas capazes de neutralizá-lo, como força de contestação, e absorvê-lo na lógica do funcionamento do Estado. É nesse quadro de referência ou contexto no qual se inscreve o Estatuto que devem ser  apreendidos e lidos  os conteúdos de seu texto organizado em compartimentos bem delimitados por capítulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas que dão o grau e ordem de importância a cada aspecto da velhice que põe em evidência ou atribui a ela.

São muitas as leituras que se pode fazer dos sentidos das imagens e concepções que o Estatuto associa à velhice. Qualquer leitura, no entanto, parte necessariamente de um rastreamento das imagens que o estatuto veicula sobre a velhice e o idoso. Que idoso é esse? Um velhinho de bengala? Um senhor sábio e sereno talhado para o comando e o exercício do poder? Homens e mulheres que necessitam de cuidados especiais, proteções e amparos?

Foram, precisamente, as retratações básicas da velhice que procuramos mapear no presente trabalho, mediante uma análise de conteúdo exaustiva de todo o texto que compõe o Estatuto do idoso. Cabe advertir que o procedimento de análise utilizado não tem a pretensão de esgotar as possibilidades de exame do documento em questão e nem uma suposta objetividade que isente o pesquisador de qualquer interferência na produção dos resultados. As categorias de análise, formuladas na presente pesquisa, mediante as quais os conteúdos foram classificados e organizados por unidades de sentido, não podem ser tomadas como intrínsecas ao Estatuto e independentes de qualquer chave de leitura. Devem sim ser consideradas como o resultado de uma ação de análise dos pesquisadores, instruída por procedimentos que, mesmo estando explícitos e sendo perfeitamente replicáveis, podem gerar resultados diferentes.

Feitas tais ressalvas e ponderações, cabe destacar que o Estatuto, enquanto a mais recente e importante tecnologia de diferenciação da velhice, gera uma visão de velhice como uma fase bastante desvitalizada. A maior proporção de categorias que atribuem à velhice uma condição de dependência, fragilidade e carência em relação àquelas categorias que a vincula à independência, autonomia e realizações sustentam a tese da desvitalização.

A categoria de maior freqüência ("Fragilidade") indica que a velhice é significada, pelo Estatuto, como uma categoria social estigmatizada por imagens de um corpo frágil, limitado, debilitado e adoecido. Este relevo contribui significativamente para a representação do idoso como necessitado de inúmeros cuidados e medidas de proteção. A demasiada referência à saúde, registrada nesta categoria, dá a impressão de que a velhice é vista como doença, como um corpo "doente", corroborando o olhar clínico da geriatria clássica sobre a velhice, que enxergava esta fase da vida, como uma doença crônica.

Mesmo na tentativa exacerbada, de garantir o acesso à "cidadania", sendo esta a segunda categoria mais frequente, concedendo aos idosos diversos direitos, sem estabelecer-lhes deveres como aos demais cidadãos, o Estatuto acaba atribuindo à velhice um sentido básico de inferioridade e despotencialização que demanda a tutela da sociedade. As categorias que mostram o idoso como dependente, inválido e carente completam o quadro de corrosão de sua condição de sujeito, retratando o idoso como incapaz de prover sua própria existência, necessitado de recursos financeiros e conseqüentemente de alimentação e assistência social.

A classificação da velhice como um público específico, foi confirmada pela aparição da categoria "Tecnologias de Diferenciação", baseada em Katz (1996, apud Groisman 1999), como a terceira categoria mais freqüente. Tais tecnologias criam serviços especializados, conhecimentos específicos e se apropriam de determinados públicos classificando-os e exercendo sobre eles ações que os enquadram sob determinados modos de subjetivação. Por exemplo, o idoso invalidado e adoecido é submetido aos saberes e práticas, produzidos pela gerontologia, que domina praticamente todas as esferas de sua vida, determinando desde o tipo de alimentação até as atividades de lazer consideradas saudáveis.

A atual transição do atendimento asilar – centralizado e totalizante - para entidades de atendimento específicas – descentralizadas e organizadas em rede -, é demonstrada pela tabela 4. Esta transição somente camufla novos "campos de concentração" reservados à velhice. Na verdade tais mudanças só assimilaram as exigências do sistema capitalista, capitaneadas por políticos, empresários, corporações de cientistas e profissionais da área de serviços, entidades assistenciais e filantrópicas que operam no sentido de incorporar a velhice ao mercado consumidor, criando produtos específicos devidamente justificados por regimes de saber e serviços especializados. Com isso, até o asilo passa a ser mais um produto disponível no mercado, enquanto as demais instituições destinadas aos idosos não deixam de guardar certa semelhança com ele, mesmo sendo mercadorias mais sofisticadas, ao se tornarem lugares especializados de segregação e administração da velhice.

As duas categorias que representavam a velhice como uma fase da vida de realizações, autonomia e potenciais (Autonomia e Realizações/Potência) foram menos freqüentes que as demais. As imagens da velhice como uma fase ativa da vida e apta a diversas atividades físicas e intelectuais, estão sim presentes no conteúdo do Estatuto, porém, de forma secundária e ofuscada pelo sentido geral de tutela que paira sobre o idoso.

Mesmo as categorias que procuram retratar o idoso como cidadão, assegurando-lhe canais de participação política, não conseguem se sobrepor ou ocupar o mesmo espaço e ter a mesma importância daquelas que o tratam como objeto da caridade do Estado e do conjunto da sociedade benevolente. A figura dos Conselhos de idosos, prevista como forma de participação política, protagonismo e controle social se desvanece diante de um razoável rol de proteções e serviços, presumivelmente assegurados por lei, e diante da falta de assento para os próprios idosos nos Conselhos que os representam. Os Conselhos do Idoso são compostos paritariamente por representantes do poder público e da sociedade civil, na maioria das vezes, indicados, respectivamente, pelos órgãos da administração púbica e por instituições, entidades, ONGs e clubes prestadores de serviços a idosos. Mas, mesmo diante desta estrutura aparentemente democrática de controle social, representada pelos conselhos, notamos que são poucos, ou inexistentes, os idosos que ocupam cadeiras nestes conselhos, como representantes de usuários de programas, projetos, serviços, benefícios, enfim, como beneficiários das políticas públicas. 

Desqualificado para gerir a própria vida, o idoso, com as feições que recebe do Estatuto, passa a integrar um contingente específico da população para o qual o Estado destina um lugar específico, devidamente equipado com instituições e serviços capazes de ordenar a subjetividade e a presença desses atores no cenário da sociedade.

 

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Endereço para correspondência
José Sterza Justo
UNESP, Av. Dom Antonio, 1200,  CEP 19800.000,  Assis-SP, Brasil
Endereço eletrônico: justo@assis.unesp.br
Adriano da Silva Rozendo
UNESP, Av. Dom Antonio, 1200,  CEP 19800.000,  Assis-SP, Brasil
Endereço eletrônico: rozendoadriano@aol.com

Recebido em: 29/06/2009
Aceito para publicação em: 19/11/2009
Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria Lopez Calvo de Feijoó

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