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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versión On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.10 no.2 Rio de Janeiro ago. 2010

 

RESENHA

 

Espelhos urbanos

 

 

Maria Luísa Magalhães Nogueira*

Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

O VELUDO, O VIDRO E O PLÁSTICO: DESIGUALDADE E DIVERSIDADE NA METRÓPOLE(120p.)
BAPTISTA, Luís Antonio

Niterói: EdUFF, 2009.

 

 

O veludo, o vidro e o plástico é um livro feito de interrogações. Um livro indisciplinado que emerge como uma excelente contribuição a diversos campos do conhecimento, aqueles que pretendem pensar relações importantes, mas complexas, tais como cidade e subjetividade; loucura e sujeito; alteridade e urbanidade. Nesse sentido, há que se sublinhar como a Psicologia praticamente tem se ausentado quanto a uma leitura (imprescindível, contudo) sobre os processos de subjetivação que leve em conta a dimensão espacial. Essa lacuna a publicação de Luís Antonio Baptista vem ajudar a preencher.

A introdução da dimensão espacial nas produções da psicologia leva-nos a uma aproximação do vivido, do cotidiano (centro do acontecer histórico), da produção dos "territórios de subjetivação" (GUATTARI, 1985); leva-nos a uma aproximação da espessura simbólica e material (indissociáveis) das subjetividades. Se, trabalhando com o espaço somos conduzidos a uma perspectiva consistente da totalidade da questão social, é justamente esse o trabalho de Luís Antonio Baptista. Nos quatro ensaios principais em que o livro se corporifica, mais do que simplesmente constatar a importância do vivido urbano, mais do que apenas diminuir a distância entre os limites disciplinares postos entre os estudos da produção subjetiva e os da produção de espaço, o que o texto consegue é dotar de gravidade as perguntas que fazemos no campo psi. Neste sentido, o texto as enuncia com o peso de cada palavra, a partir da sensibilidade da escuta comprometida e do olhar atento, portanto, sem perder a leveza necessária à escrita (CALVINO, 1994) e característica da escuta psicológica. Essa escuta, por sua vez, exige tempo. É contra o atropelamento – metáfora da relação ente o sujeito moderno e o tempo, para Maria Rita Kehl (2009) – que este livro nasce, seguindo a via do encontro, no tempo da delicadeza em que, ainda segundo Kehl, é possível amar o transitório. Afinal, se estamos tratando de subjetividades, de cidade, de loucura, é preciso tramar cartografias que alcancem o movimento, que enxerguem o transitório, que falem do vivido.

As interpretações de Luís Antonio Baptista são leituras atentas sobre os tempos e movimentos urbanos, suas regras e horas; suas pausas e recusas. Onde engendram-se a loucura e o disciplinamento e, por isso, onde aparecem também, de forma insistente e não menos desconfortável, os vazios sociais, como o fracasso do intimismo burguês, em suas coleções às avessas (SARLO, 1997). Por meio do veludo, do vidro e do plástico, somos levados a encarar as metrópoles do capitalismo contemporâneo, desmanchando no ar sua aparente opacidade. A partir de objetos e de encontros, passamos a ser irremediavelmente afetados pelo urbano – que não é um cenário, um espetáculo, um receptáculo, nem uma mercadoria. Por isso, o livro nos ajuda a pensar de que são feitas as cidades, a estranhar sua forma aparentemente rígida e petrificada, e a encontrar suas possibilidades, a registrar suas rasuras e buscar, ainda onde moram as resistências.

Sem perceber, somos levados a pensar na cidade como texto que é reescrito a cada dia, caminhando com os olhos do estrangeiro, que segue pelas ruas de cidades-palimpsesto, marcadas por processos de rasuras e colagens diversas. O autor trata de fronteiras múltiplas, não apenas as disciplinares, apontando questões sobre cercas invisíveis e cercas materiais, ao fazer uma leitura do texto da cidade a partir da reescrita que alguns atores urbanos produzem no cotidiano. Esses atores são aqueles a quem Milton Santos chamou de homens lentos, que, dotados de outros tempos, criam o novo no cotidiano congelado da metrópole. São eles, os tempos dos personagens que Luís Antonio Baptista viu, que deslocam os outros atores urbanos a outros olhares. O trabalho do autor, assim, acaba por mapear usos não previstos, novos movimentos, registrando as experiências vívidas e imprevisíveis dos homens lentos nas zonas opacas (SANTOS, 2008, p. 326). É pelo avesso que o autor nos revela o bordado da cidade, evidenciando que as subjetividades são feitas de experiência e invenção, bem como as cidades e seus fluxos diversos, incontroláveis, costurados e puídos.

As vivências que emergem em O veludo, o vidro e o plástico evidenciam que o autor tece interpretações sensíveis e se joga em cada cena, reconhecendo sempre seu lugar de ator-autor-personagem, implicando-se na escuta das vozes que transfere a seu próprio texto. Esse movimento de ir até o que se deseja conhecer, arriscar-se, ser afetado pela busca, é a força do texto de Luís Antonio Baptista. Seu livro é feito de alteridade e literatura.

A alteridade está carregada da materialidade dos encontros: o brasileiro da saia de veludo e o estrangeiro; o peruano que flutua como o saco plástico carregado pelo vento, e o estrangeiro; a italiana que marca a todos com estilhaços de lembranças e palavras que refletem no vidro, e o olhar do estrangeiro. Por isso, outro objeto atravessa o livro: certamente é pelo espelho que o estrangeiro enxerga, fazendo emergir múltiplos duplo do autor, de seus personagens e das cidades invisíveis em que ele caminha. Há, deste modo, o escritor e o psicólogo, o geógrafo e o poeta, o arquiteto e o viajante. Há, ainda, a cidade que eu vejo e a cidade que me vê.

A literatura se apresenta na habilidade do autor em fazer as palavras conspirarem, mas também nos diálogos com Walter Benjamin, Italo Calvino, Roland Barthes, convocados pelo escritor ao longo do texto e que o enriquecem, levando-nos a outras palavras que participam da escrita urbana contemporânea. Palavras, objetos, subjetividades – a cidade é feita um pouco de tudo isso. Portanto, a partir do presente, do cotidiano, podemos, junto com Luís Antonio Baptista, pensar o que faz com que as ruas sejam hoje ocupadas pelo medo e as pessoas serem hoje marcadas pelo individualismo. Nas palavras do autor:

"Nas metrópoles do capitalismo contemporâneo dos parques temáticos, shopping centers, autopistas, a ascese exercitada nos lares do passado, onde o intimismo traduz-se em virtude, é fadada ao fracasso. O jogo juvenil é atravessado por modalidades de cidade em que a carência nunca saciada faz da rua passagem, cenário, nada. A velocidade nesse espaço urbano homogeneizado produz nômades presos ao mesmo lugar, os que acumulam aceleradamente buscas nunca encontradas de coisas ou emoções que perecem antes de serem localizadas. Nessa busca, só restam fotogramas, luzes coloridas e espetáculos, seduzindo solitários consumidores, desatentos aos cantos e ruelas do consumo fracassado. Cantos e ruelas onde o tempo e o espaço insinuam outras texturas de cidades, interrompendo idas apressadas para lugar nenhum." (BAPTISTA, 2009, p. 66)

Resistindo a uma falsa linearidade da história da cidade, é pela mão do presente que a escrita suave do autor persegue o corpo da cidade, lendo-o como texto literário e dele retirando as perguntas mais importantes. Enfim, trata-se de um texto que emociona ao nos conduzir pelos cruzamentos das subjetividades urbanas contemporâneas.

 

Referências Bibliográficas

GUATTARI, F.  Espaço e poder: a criação de territórios na cidade. Espaço e debates, 1985.

KEHL, M. R. Delicadeza. In: Novaes. A condição humana – As aventuras do homem em tempos de mutações. São Paulo: Edições SESCSP/Ed. Agir, 2009.

SANTOS, M. A natureza do Espaço: espaço e tempo: razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 2008.

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

SARLO, B. Cenas da vida Pós-Moderna. Intelectuais, Arte e Vídeo – cultura na Argentina. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

 

 

Endereço para correspondência
Maria Luísa Magalhães Nogueira
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Geografia,  Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha, CEP 31270-901, Belo Horizonte - MG,Brasil
Endereço eletrônico: marilumn@yahoo.com.br

Recebido em: 25/03/2010
Aceito para publicação em: 31/03/2010
Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria Lopes Calvo Feijoo

 

 

Notas

* Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

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