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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.10 no.3 Rio de Janeiro dez. 2010

 

ARTIGOS

 

A etimologia inspirada: a busca da língua original através da semiosis introvertida

 

The inspired etymology: the search of the original language through the semiosis introverted

 

 

Walter Melo*

Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei – UFSJ, São João del Rei, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda a busca pela língua original efetuada pelo primeiro cliente da Casa das Palmeiras, clínica em regime de externato fundada, em 1956, por Nise da Silveira. A liberdade para empreender essa busca somente é possível com o advento da proposta de novos modelos de tratamento, em especial o de se acompanhar a série de imagens do inconsciente, sejam elas pintadas, modeladas, encenadas ou escritas. O método de conscientizar as palavras, empregado nessa busca pela língua original, encontra-se, portanto, inextricavelmente unido à novidade, na época, de se tratar as pessoas em locais que não cerceiam a liberdade e que incentivam a livre expressão.

Palavras-chave: Nise da Silveira, Saúde mental, Etimologia.


ABSTRACT

The present article approaches the search for the original language spoken by the first customer of the House of the Palms, clinic in established day-school regime, in 1956, for Nise da Silveira. The freedom to undertake this search is only possible with the advent of the proposal of new models of treatment, in special following the series of unconscious images, painted, shaped, staged or written. The method to acquire knowledge the words, used in this search for the original language, meets, therefore, inextricably joined to the newness, at the time, in treating the people in places that do not prevent freedom and that stimulate the free expression.

Keywords: Nise da Silveira, Mental health, Etymology.


 

 

Introdução

Durante a ditadura Vargas, a psiquiatra Nise da Silveira esteve presa e pôde constatar a importância das relações afetivas e a necessidade de participar de atividades para não sucumbir psiquicamente, além de verificar o evidente caráter de exclusão ao se encontrar trancada. Pensou, então, que ao sair da prisão teria que oferecer um tipo de tratamento pautado no afeto e, mais ainda, que se desse em um local com as portas abertas. Mas, ao voltar a trabalhar no hospital psiquiátrico, não conseguiu levar adiante esta proposta. Se, por um lado, construiu no hospital um ambiente afetivo calcado na livre expressão em diversos setores de atividades, por outro lado, as pessoas continuavam internadas.

Todos os seus esforços se voltaram, então, para criar condições de alta para os internos. No entanto, de cada 25 pessoas internadas 17 eram casos de reinternação, ou seja, a grande maioria dos que recebia alta retornava para o hospital psiquiátrico. Para Nise da Silveira havia algo de errado no tratamento, pois bastava que cessassem os sintomas mais aparentes para que a pessoa retornasse ao convívio social, sem se tomar os devidos cuidados com quem passou pela experiência psicótica, que "abala as próprias bases da vida psíquica" (SILVEIRA, 1986, p. 9). Pensou, então, num setor intermediário entre a internação e a vida em sociedade, uma espécie de clínica sem as características desindividualizantes do hospital e que possibilitasse um ambiente de aceitação para quem se encontrava estigmatizado pelo círculo de preconceitos que cerca o egresso de instituições psiquiátricas.

A proposta de Nise da Silveira de se criar um setor intermediário não foi aceita pela direção do hospital e não havia condições financeiras para se criar uma instituição nesses moldes fora do serviço público. Com a entrada da Maria Stela Braga como médica da Seção de Terapêutica Ocupacional dirigida por Nise da Silveira no hospital de Engenho de Dentro, foram criadas condições para se estruturar um trabalho com a intenção inicial de evitar, ao máximo, as reinternações psiquiátricas. Maria Stela Braga apresentou Nise da Silveira à educadora Alzira Lopes Côrtes, que entendeu, de imediato, a importância da proposta. Dona Alzira, diretora do Instituto La-Fayette, já havia cedido o andar térreo de um casarão na Tijuca para a APAE e ofereceu o andar superior para a nova instituição.

Desta forma, Nise da Silveira e Maria Stela Braga se juntaram à assistente social Lygia Loureiro e à artista plástica Belah Paes Leme e passaram a traçar as diretrizes da instituição. Como na frente do casarão havia um grupo de palmeiras centenárias, Belah Paes Leme sugeriu o nome Casa das Palmeiras, fugindo de qualquer alusão às doenças mentais. As quatro mulheres, com o auxílio de Alzira Côrtes, elaboraram uma instituição que modificaria, de maneira radical, as bases do tratamento psiquiátrico1. A Casa das Palmeiras surge, desta forma, como "um degrau intermediário" (SILVEIRA, 1986, p. 11; 1992, p. 21), "como espécie de ponte" (SILVEIRA, 1986, p. 9), como uma câmara de descompressão.

O depoimento de Milton Freire, que passou por diversas internações psiquiátricas, confirma a necessidade dessas mudanças na psiquiatria: "Só a partir de uma renovação da psiquiatria, pude me reestruturar" (FREIRE, 1989, p. 36).

O trabalho desenvolvido na Casa das Palmeiras tem como base o método estipulado por Nise da Silveira na Seção de Terapêutica Ocupacional no hospital de Engenho de Dentro, mas que, por se tratar de uma clínica em regime de externato, possui a finalidade, de acordo com artigo 2º de seu primeiro estatuto, "a recuperação de egressos de estabelecimentos psiquiátricos" (CASA DAS PALMEIRAS, 1956, p. 1).

A pessoa que passa a viver o interminável ciclo de reinternações encontra-se apartada do convívio social e, quando passa a freqüentar a Casa das Palmeiras, é aberta a oportunidade de circulação pelo espaço urbano, ocorrendo uma intensificação das trocas afetivas, além de ser estimulada a liberdade para expor idéias e sentimentos. Muda-se, desta forma, a concepção de uma doença que precisa ser controlada à força para a possibilidade de expressão do ser. Ao contrário de tentar uniformizar as pessoas em padrões de comportamento e em maneiras de sentir, passa-se a estimular a diversidade, ou seja, são valorizados os inumeráveis estados do ser.

Mas, como conseguir valorizar a expressão de si, as vivências pessoais, enfim, a multiplicidade, em locais que regulam os horários de sono e de alimentação, que possuem limites demarcados por grades e muros, que despersonalizam através do uso de uniformes. O hospital psiquiátrico apresenta-se, de acordo com as observações de Nise da Silveira, como inadequado para se levar a termo um tratamento eficaz, constituindo-se, antes, como local de controle e exclusão.

No período de elaboração da Casa das Palmeiras, Nise da Silveira já trabalhava há anos no hospital psiquiátrico e, ao final de mais um dia de trabalho, pegou carona com Carlos Alberto Teixeira Basto, seu colega no hospital de Engenho de Dentro que, antes de seguir para casa, faria uma visita ao irmão que se encontra em sua 13ª internação psiquiátrica numa clínica na Tijuca. Nise da Silveira desconhecia a existência desse irmão de Carlos Alberto. Os dois médicos seguiram juntos e, ao chegarem à clínica, fizeram a visita ao paciente que se encontrava deitado. Nise da Silveira disse: "Levanta José. Vamos sair daqui". No mesmo dia seguiram para a Casa das Palmeiras que já se encontrava em funcionamento. A Casa das Palmeiras teria sua assembléia de fundação marcada para alguns dias depois, sendo realizada em 23 de dezembro de 1956. José passou a freqüentar a Casa das Palmeiras e nunca mais foi internado.

Um dos primeiros trabalhos feitos por José na Casa das Palmeiras, uma peça em gesso, representa um homem sentado dentro de um cubículo cercado por grades. As barras da cela encontram-se vergadas para cima, representando a liberdade. Para quem só conhecia o caminho de entradas, saídas e novas entradas em hospitais psiquiátricos, a Casa das Palmeiras surge como dispositivo de manutenção da liberdade alcançada e como maneira de ampliar, gradativamente, a autonomia. Esta situação de egresso de hospitais psiquiátricos é das mais difíceis, tendo de enfrentar um complicado jogo de preconceitos sociais e precisando suprir, através do afeto, uma gama enorme de anseios não realizados. José apresenta, em duas estrofes do poema Paixões Humanas, a dualidade, típica da condição do egresso, que contrapõe às dificuldades no convívio social à liberdade de freqüentar uma casa que, invariavelmente, encontra-se com as portas abertas:

É triste colhermos rosas... e não termos a quem dar...
Como também é triste colhermos amor de paixões passadas...
e não termos a quem dar...! A quem as entendam...!
É alegre, é profundamente alegre.... colhermos rosas e
termos a quem dar...! Como também é alegre...
é profundamente alegre... colhermos o amor de paixões
passadas...! E encontramos quem as entendam...!

 

A semiosis introvertida

José nasceu em 1920 e, na juventude, queria ser frade, mas não foi aceito pelos religiosos. No início da década de 40, formou-se como instrutor de pilotos de avião. Dizia com orgulho que, em vários anos como instrutor, nunca sofreu um acidente. Para José, o avião não era apenas uma engenhosa máquina mais pesada que o ar. Representava um dos principais fatores de integração da nacionalidade: Santos Dumont, o pai da aviação, é brasileiro.

A defesa das idéias nacionalistas fez com que José se interessasse pelos intensos embates travados entre comunistas e integralistas, que pregavam, respectivamente, o internacionalismo e o nacionalismo. José passa, então, a se dedicar à política, defendendo as idéias integralistas. Trata-se de um nacionalismo extremado que pregava, por exemplo, a substituição da figura do Papai Noel pela do Vovô Índio, e que, pouco a pouco, aproximou-se do nazismo. Plínio Salgado, líder dos integralistas, convocava seus adeptos a vestirem o uniforme verde, portando no braço a letra sigma e gritando a saudação anauê, caracterizando uma estética nazista. A identificação entre integralistas e nazistas se fez, principalmente, a partir da noção de eugenia. O apuro da raça tornou-se a marca registrada do discurso político que invadiu as ciências, notadamente a psiquiatria (cf. COSTA, 1976).

O período que antecedeu à Segunda Guerra Mundial foi de intensa angústia para José, pois o governo de Getúlio Vargas, que chegou a flertar com os nazistas, posicionou-se, posteriormente, a favor dos aliados e decidiu enviar tropas à Europa com a finalidade de evitar o avanço de alemães e italianos e, se possível, contribuir para a derrota do nazi-fascismo. Com o fim da guerra veio à tona uma série de barbaridades efetuadas pelos nazistas e José "sentiu sua vida subitamente ameaçada" (ALMEIDA, 1993, p. 42). José passou, então, a defender as idéias comunistas, que se encontravam no pólo oposto. Pode-se dizer que um processo de compensação fez-se necessário para que pudessem emergir fatores negligenciados pela posição unilateral do campo da consciência.

Neste estado de intensa mobilização dos conteúdos inconscientes, os nazistas, tidos como antigos aliados, passam a ser vistos, por José, como opositores e, como tal, tornam-se seus perseguidores em suas fantasias. As idéias de cunho persecutório, presentes desde 1945, intensificaram-se a partir de 1948. José se refugiou numa fazenda de frades, mas as idéias de perseguição continuavam e se evidenciavam através da programação da rádio da cidade onde se encontrava. José sentia-se lido pelo seu rádio de cabeceira que controlava cada atitude que tomava: quando tirou o pijama ouviu o anúncio indicando uma loja que vendia pijamas; quando pegou os sapatos ocorreu o anúncio de uma determinada sapataria; o mesmo acontecendo com propagandas de marcas de escova e de pasta de dente. José se trancou no quarto com as luzes apagadas, pois pretendia se defender da suposta vigilância, que permaneceu viva em sua lembrança por toda a sua vida. José somente saiu do quarto uma semana depois, quando seu irmão Carlos foi buscá-lo, junto com um colega de medicina. José sofreu, então, a sua primeira internação psiquiátrica.

Além de passar a valorizar os ideais comunistas e de se posicionar de maneira contrária ao nazismo2, José começou a exaltar a raça negra, que anteriormente considerava como inferior. No início da década de 1950 passou a freqüentar terreiros de umbanda, prática que manteve até 1958. José passou por um processo de enantiodromia, ou seja, os valores anteriormente rejeitados passaram a ser considerados como os mais válidos e, como no conto A Igreja do Diabo de Machado de Assis, José de tanto pregar o mal acabou fazendo o bem, mas sempre sob a sombra do nazismo:

Se é constante a presença dos opostos bem/mal na psique, constata-se que os contrários nem sempre se diferenciam entre si no comportamento humano, predominando ora um ora outro, misturando, sem que o indivíduo tenha clara consciência de tais ocorrências. Mas se um homem é capaz de olhar seu próprio interior, poderá ver, com nitidez, o embate dos contrários que ali se desdobra. (SILVEIRA, 1993, p. 2).

Quatro anos depois da primeira internação de José, ou seja, em 1952, seu irmão passou a trabalhar como psiquiatra no hospital de Engenho de Dentro. Neste local, com tratamento pautado pelo eletrochoque, coma insulínico, lobotomia e com a novidade da medicação psicotrópica, utilizada em doses massivas, Carlos travou contato com o recém fundado Museu de Imagens do Inconsciente, dirigido por Nise da Silveira e nascido dos ateliês da Seção de Terapêutica Ocupacional, incrustado como um espaço de liberdade em meio a este pesado arsenal.

A partir do contato de Carlos com o trabalho desenvolvido por Nise da Silveira uma nova perspectiva se abriu no tratamento de José que, em 1956, se encontrava em sua 13ª internação em onze anos de tratamento. Quando José passou a freqüentar a Casa das Palmeiras e pôde expressar numa peça de gesso o sentimento de liberdade conquistado, além de se dedicar à marcenaria e a escrever poesias, deu forma aos seus pensamentos, elaborando o que denominou por arquitetura mental. Dessa maneira, ocorreu uma singular reorganização psíquica de José que o manteve fora do ciclo de internações.

As primeiras poesias de José são anteriores à sua entrada na Casa das Palmeiras: Janela Amada foi escrita em 1953 (Janela... de meus / Amores Passados... já não sei... mais / fazer a diferença também entre / tu... e a da minha Amada); a já citada Paixões Humanas aparece com o título Bondade com a data de 1954; e, no mesmo ano, escreve Mulher Preta (Grita de cabeça erguida / o teu direito o direito que tens / também perante aos teus semelhantes / de ser Humana... de ser a rainha da Humanidade...). Estas poesias são divulgadas de diversas maneiras até a morte de José, sendo, por vezes, declamadas e, inúmeras vezes, copiadas e dadas de presente a alguma pessoa. Por vezes, essas poesias são modificadas, principalmente após elaborar o método de conscientizar as palavras, ao qual faremos referência mais adiante. No caso da poesia Mulher Preta, um dos símbolos de sua radical mudança de visão de mundo, recebeu também uma versão no barro, sendo esculpida uma mulher preta no setor de modelagem da Casa das Palmeiras.

O tema da mulher foi diversas vezes trabalhado em poesias e textos em que fala ou faz uma dedicatória às mulheres que considera suas três Marias. Três mulheres com o primeiro nome de Maria: Maria Stela Braga, médica; Maria Alice, cliente; e Maria Senhoria, cozinheira. As três ele conheceu na Casa das Palmeiras e tornaram-se mulheres inatingíveis, altamente idealizadas e que se aproximam dele através do texto. Como Cyrano de Begerarc3, escrevia cartas e poesias amorosas para mulheres que se apaixonariam por outros homens, apesar de suas belas palavras. A poesia Foi Assim começa com um encontro marcado pelo destino (Em um salão fomos apresentados, / Muito me olhaste e fixaste o olhar. / Compreendi que, desde êsse momento / Nossos destinos estavam a se encontrar). No entanto, a poesia segue com novos encontros casuais e o tempo passando, expressos nas seguintes estrofes: (Tempos depois, nos vimos numa praça e Passamos muito tempo sem nos vêr). O destino que se configura não é o do encontro, mas o da impossibilidade de concretizar o amor (Já vai bem longe que isto aconteceu, / E vejo os dias um a um passar... / Mas sempre lembro a primeira vez / Em que me olhaste e fixaste o olhar!).

O amor pela mulher nunca se concretiza. Trata-se do amor desencarnado e, como tal, sobrevive à morte. Na poesia O Amôr Infinito, dedicada à Maria Stela Braga, o perfume mantém o amor vivo (A Morte poderá vencer... destruir este Amôr? / Sacrifica-lo... por Ventura? / Não...! Não porque Desaparecerá... / Mas deixando seu Perfume... a Gloriosa). A idealização da mulher faz com que ela se torne inatingível e, quando se afirma o contrário, como na estrofe de O Misterio do Amôr, na qualdiz que este deve ser vivido e nunca fantasiado..., dedica a poesia não a uma mulher, mas à humanidade.

Numa poesia dedicada a uma mulher e outra à Maria Stela Braga, surge a dicotomia entre o frio e o quente. Em Mãos Frias temos o mundo interno revelado por uma alteração corpórea (Mãos frias... exteriorizam a / nossa preocupação guardada / em nossa mente...! // Um coração aflito... / em busca de seu grande / objetivo o Amôr...). O impossível encontra-se bem perto, representado pelas três Marias. A preocupação guardada, trabalhada e lapidada em inúmeras poesias, pode queimar sob o calor de um sol de meio dia, como na poesia Olhos de Amôr (Teus Olhos iluminam o meu Futuro... / O calor desta grande luz aquece-me... do frio das / incertesas...! // Lagrimas correm de meus / olhos... quando o Sol de teu / Amôr... alcança o Meio dia...! // Então... tenho que procurar / a sombra... e onde encontra-la?). O perigo do frio é de denunciar o mais íntimo desejo. O perigo do calor é queimar o próprio desejo. Nesta situação de duplo perigo, como juntar masculino e feminino? Ainda na poesia Olhos de Amôr encontramos a resposta (Oh...! donzela de meus / mais profundos desejos...! / tenho-a sempre em meu / Coração... ja completamente / fundida nele... são dois / Corações... num só...! / Duas Consciencias Completas / fundidas... numa Aurora interior...!).

José, o carpinteiro da Casa das Palmeiras, encontra três mulheres chamadas Maria que, idealizadas, transformam-se nas Marias de José e, santificadas, permanecem à distância, como virgens. O amor carnal é substituído pelo relacionamento com àquela que traz à vida o Salvador. Outras duas mulheres altamente valorizadas foram a mãe e Nise da Silveira, sendo esta denominada como A Mãe da Humanidade Conscientemente Livre. O apego apresentado por José aos símbolos maternos confere duas características à sua personalidade: o amor carnal é substituído por uma espécie de retribuição amorosa às mulheres que lhe propiciaram afeto em momentos cruciais de sua vida; e, enquanto sua mãe é tida como exemplo de bondade e dedicação, as Três Marias e Nise da Silveira possibilitaram que parte das necessidades afetivas tolhidas pelos longos anos de internação fossem satisfeitas.

Os intensos sentimentos amorosos que, no entanto, não se concretizam, encontraram três vertentes que lhe conferem contorno: o símbolo da rosa, os entalhes em forma de coração elaborados na marcenaria e o árduo trabalho de escrever e reescrever poesias. A rosa, flor que simboliza os sentimentos amorosos quando oferecida pelos namorados, tem seu nome substituído por José para Amor Perfeito, pois a rosa seria apenas o vermelho da paixão que, com o tempo, fica desbotado, enquanto o amor perfeito representa a perenidade do sentimento. A idealização da mulher se faz acompanhar pela perfeição do sentimento amoroso. José chega a plantar uma roseira na varanda de seu apartamento, mas a rosa, além de possuir imperfeição sonora, é dotada de espinhos, sinal de defesa, típica do medo, sentimento contrário ao amor. O amor para ser perfeito tem que se livrar do medo, então, José retira cuidadosamente todos os espinhos da roseira4.

A atividade de marcenaria foi a mais importante tarefa desenvolvida por José na Casa das Palmeiras, a ponto de ser convidado por Nise da Silveira para trabalhar como monitor desta atividade. Todos os trabalhos feitos por José na marcenaria possuem forma de coração: o assento e o espaldar de uma cadeira para criança5; a caixa de correio da Casa das Palmeiras; o pedestal para a escultura Mulher Preta; além de corações com objetos significativos esculpidos em seu centro – balança, coruja, livro –, sendo o coração com o livro no meio ofertado para Nise da Silveira, pois, de acordo com José, o livro, o conhecimento, a razão, de nada valem sem o sentimento.

O ato de elaborar textos, por sua vez, se faz como elo com as pessoas através do sentimento. As poesias são dedicadas a diversas pessoas as quais se refere com bastante carinho. São feitas dedicatórias aos diversos membros da equipe da Casa das Palmeiras: Nise da Silveira, Alice Marques dos Santos, Oswaldo Santos e, principalmente, Maria Stela Braga. Pode-se observar que José oferece seus poemas para alguns homens da equipe, mas, notadamente, às mulheres. Existem também dedicatórias para pessoas de fora da Casa das Palmeiras, dentre essas, as de seu círculo de relacionamento constituem a maior parte, mas, como a idealização do feminino é a principal característica apresentada, surgem poesias para a milenar Maria Madalena, símbolo da bondade do Cristo e da conversão do pecado para o bem.

O labor diário da escrita faz parte da construção da arquitetura mental de José e seu esforço nesse sentido foi imenso, sendo estimado que ele tenha escrito cerca de dois mil poemas em aproximadamente sete mil páginas (cf. ALMEIDA, 1993). A livre expressão era considerada por diversos psiquiatras como contraproducente, pois, de acordo com este tipo de pensamento, daria margem para que o sujeito se perdesse ainda mais em suas idéias delirantes. O método desenvolvido por Nise da Silveira contradiz esta hipótese, pois a pessoa, ao se expressar livremente através de diversos tipos de atividades, estabelece, aos poucos, uma reorganização da psique cindida. No entanto, demonstrando que as mudanças de mentalidade ocorrem de maneira muito lenta, em 1976, depois de José recorrer à prática da escrita como método terapêutico por vinte anos, um médico particular recomendou a ele "parar de escrever". Esta recomendação se deve à idéia de considerar que o ato da escrita estivesse "soltando o pensamento de José de maneira exagerada", mas a equipe da Casa das Palmeiras se posicionou de maneira contrária6. A escrita foi de suma importância no tratamento de José, que dizia: Eu me livro ao escrever.

Algumas características são bem peculiares nos textos de José, das quais destacamos a pontuação e a prática da conscientização das palavras. José se vale de reticências que substituem vírgulas e pontos, o que possibilita que o texto se delineie num fluxo contínuo ao mesmo tempo em que cada final de frase se apresente de maneira pausada. Júlia de Almeida, em trabalho desenvolvido sobre a linguagem utilizada por José, afirma que a principal marca de seus textos é de constituir "uma obra que não tem ponto final" (ALMEIDA, 1993, p. 59). Enquanto as reticências estão presentes desde as primeiras poesias, a prática de conscientização das palavras possui algumas idéias subjacentes que estão presentes tanto na dicotomia tópico-política direita/esquerda quanto na intensidade valorativa dos pólos amor/medo7.

A divisão do mundo entre direita e esquerda é remetida à oposição entre integralistas e comunistas, caracterizando a prepotência dos primeiros por se considerarem os donos da verdade (direita = direi a tu) e a prática solidária dos segundos (esquerda = eis quer dar). A escolha pelo pólo da palavra esquerda é evidente: José cumprimenta a todos com a mão esquerda, a mão do coração. O amor se aproxima dos valores estipulados por José para a esquerda e o medo para a direita, principalmente pelo fato de o amor ser o símbolo da união (o amor une) e o medo determinar a separação (o medo separa).

Outra característica do amor é de revelar o que o medo ocultou. José diz que o amor é luz e revela, enquanto o medo é cego e esconde. Desta forma, o amor é fundamental no ato de conscientizar as palavras: "'Conscientizar' é, para ele, uma palavra fundamental e uma prática rigorosa" (ALMEIDA, 1993, p. 48). A importância da palavra consciência (com ciência) encontra-se na possibilidade de corrigir o passado e preparar o futuro da humanidade (humana idade).

O ato de conscientizar as palavras encontra-se estreitamente relacionado com a concepção de tempo de José. Uma das primeiras palavras conscientizadas por ele foi presente8. Em 1974, José inicia um jogo de palavras na poesia O Símbolo da Castanhola ("O presente é um presente"). Num segundo momento, José escreve que o presente pressente o medo. No tempo presente existe a possibilidade de pressentir uma ação passada causada pelo medo: "A arquitetura mental, longe de ser um campo pacífico de idéias, é um processo ativo de criação, que valoriza e direciona os acontecimentos da vida" (ALMEIDA, 1993, p. 49). Através da conscientização das palavras praticada no tempo presente é possível corrigir o passado (o passado não deve ser esquecido, mas profundamente corrigido), tendo como finalidade alcançar um futuro melhor:

A concepção de língua que subjaz à prática da 'conscientização das palavras' remonta a um passado longínquo, quando (...) o medo ainda não interferia no destino das palavras. A história das línguas é degenerativa, por um lado, e progressiva, por outro. Se deixada ao trabalho livre do medo, as línguas se 'inconscientizam' e deixam de dizer aos homens a verdade. A estes, no entanto, é dada a possibilidade de 'conscientizar' os signos e de os reconduzir a seu sentido original. (ALMEIDA, 1993, p. 53).

O árduo trabalho de conscientizar as palavras supõe um estado de clareza inicial na comunicação que, pela ação do medo, foi tornando inconsciente o sentido das palavras. No entanto, nesta Babel na mesma língua, é possível recuperar o sentido original de cada termo, não para se dirigir ao passado, mas para apontar possibilidades futuras. Algumas características do método empregado por José podem ser identificadas: as palavras são divididas; o significado original é geralmente encontrado em "similares sonoros" (ALMEIDA, 1993, p. 76); muitas vezes são utilizados jogos de palavras; e ocorre a conversão de "signos em símbolos" (idem, p. 91). O valor das palavras, neste caso, não pode ser encontrado em nenhum método lingüístico estabelecido por estudos acadêmicos, mas por uma espécie de semiosis introvertida9.

Esta verdadeira etimologia inspirada aproxima-se, por um lado, da maneira popular de procurar o significado original das palavras e, por outro, do método etimológico apresentado no Crátilo de Platão. O que existe em comum nos três métodos é o fato de se valer da proximidade sonora entre algumas palavras para elucidar o sentido original. O subtítulo do livro de Platão é sobre a correção dos nomes. A linguagem "correta" apresentada no Crátilo faz a palavra herói (héros) derivar de amor (eros), levando em consideração unicamente a sonoridade10.

Além de utilizar a sonoridade como base etimológica, José tenta restituir a capacidade de comunicação numa linguagem direta, que ocorre sem as interposições provocadas pelo medo. Com o método de conscientização das palavras José nos apresenta uma sociedade do medo, sociedade inconsciente das próprias palavras. Nesta sociedade afastada do sentido do que fala, a loucura é identificada com a doença pela ação do medo, mas José relembra com seu método que, na origem, louco cura. Procura, então, restabelecer a linguagem imediata numa "obra de ruptura" (ALMEIDA, 1993, p. 37).

Podemos encontrar a idéia de busca por uma linguagem original, diversa dos enganos que as palavras passaram a provocar, em dois livros de Rousseau: no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; e, principalmente, na obra póstuma Ensaio sobre a Origem das Línguas. Para abandonar os gritos esporádicos e elaborar uma linguagem, foi necessário, de acordo com Rousseau, que se criasse o gesto, a palavra e a inflexão de voz. Qual a origem das línguas? Quais os fatores que impulsionaram a utilização dos gestos na comunicação? A que se deve a criação das palavras? Segundo Rousseau, os gestos provavelmente nasceram das necessidades e as palavras das paixões: "sendo a palavra a primeira instituição social, deve ela sua forma apenas a causas naturais" (ROUSSEAU, 2003 [1782], p. 99). Nesta linguagem que traduz a natureza das necessidades e das paixões, não há qualquer convenção gramatical, cabendo "a cada palavra o sentido de uma proposição inteira" (ROUSSEAU, 2002 [1754], p. 182).

A linguagem original que Rousseau nos oferece não possui o como se das metáforas. Neste sentido, Rousseau nos apresenta os erros da linguagem mesmo em sua forma inicial. Para ele não haveria como conscientizar as palavras e recuperar a similitude perdida entre as palavras e as coisas, pois a linguagem das paixões, primária, diz aquilo que vê. Mas o que se vê? A linguagem direta das emoções distorce, amplia:

Um homem selvagem, ao encontrar outros, a princípio se terá assustado. Seu terror ter-lhe-á feito ver esses homens maiores e mais fortes do que ele; ter-lhes-á dado o nome de gigantes. Após muitas experiências, terá reconhecido que, não sendo esses pretensos gigantes nem maiores nem mais fortes do que ele, sua estatura não convinha à idéia que ele ligara a princípio à palavra gigante. Inventará, portanto, um outro nome comum a eles e a si mesmo, como por exemplo a palavra homem, e deixará a palavra gigante para o objeto falso que o impressionara durante sua ilusão (ROUSSEAU, 2003 [1782], p. 107-108).

Grifamos as palavras pretensos, falso e ilusão, para evidenciar que, em Rousseau, a linguagem traz, desde o início, o erro como marca constitutiva. De acordo com Michel Foucault, "pode-se dizer que as palavras foram figuradas antes de serem próprias" (FOUCAULT, 1995, p. 131-132), concordando com Rousseau que, antes de se designar o homem, o gigante foi pronunciado11. A linguagem mítica que faz do gigante o homem original, estabelece que "nenhuma língua pode repousar sobre um acordo entre os homens" (idem, p. 123).

No entanto, Rousseau não se satisfaz com o erro e com a ilusão. Mesmo reconhecendo que, "longe de ser o maravilhoso espelho da Razão, o lugar da verdade, a linguagem seria sempre o lugar do mal-entendido e do engodo, um biombo interposto entre os homens" (PRADO JR, 2003, p. 18), sonha com a possibilidade de a palavra informar ao invés de deformar e que o receptor possa, pela linguagem da emoção ou pela linguagem convencional, compreender perfeitamente o emissor. Este sonho faz com que Rousseau escreva: em abril de 1776, morando em Paris, quatro anos após ser processado e de ver O Emílio e O Contrato Social queimados em praças públicas de Genebra, distribuiu pelas ruas um texto intitulado A Todo Francês que Ainda Ama a Justiça e a Verdade. Este sonho faz com que Rousseau confesse: em junho de 1770, faz leituras privadas de As Confissões e, no ano seguinte as leituras tornaram-se públicas. Rousseau inicia As Confissões exprimindo a possibilidade de dizer a verdade sem nenhum subterfúgio: "Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade de sua natureza, e esse homem serei eu" (ROUSSEAU, 1986, [1770], p. 13).

Rousseau ao mesmo tempo em que crê numa linguagem direta e tenta praticar este sonho, não acredita nos homens e no uso que estes fazem da linguagem. Considera-se uma espécie única, um sujeito singular que, com As Confissões, tomou "uma resolução de que jamais houve exemplo e que não terá imitador" (ROUSSEAU, 1986, [1770], p. 13), pois, mesmo não sabendo se para o bem ou se para o mal, afirma: "a natureza [...] quebrou a fôrma em que me moldou" (idem). Qual foi a recepção que as leituras de As Confissões provocaram? Rousseau responde: "todos ficaram calados" (idem, p. 426). Em Rousseau temos o silêncio frente à verdade e ao engodo. Ninguém quer, ou ninguém pode, pronunciar a verdade como ele. Então, diante da verdade, todos se calam. Então, na impossibilidade da verdade e diante da mentira, todos também se calam:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: 'Evitai ouvir esse impostor. Estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!’ (ROUSSEAU, 2002 [1774], p. 203).

Mais do que os erros das palavras, a filosofia de Rousseau nos aponta os erros do silêncio. As palavras podem criar interposições entre os homens, favorecer o desacerto, constituir um desaforo. Mesmo assim, pode-se chegar a uma linguagem direta e, mais ainda, verdadeira, pois a linguagem original estava baseada numa ilusão, mas não numa mentira: era o gigante o que se via. No entanto, a verdade da paixão não corresponde necessariamente à verdade da razão. O homem pode se desfazer de uma ilusão criando parâmetros, fazendo acordos, estabelecendo convenções. Desta forma, o gigante passa a ser simplesmente o homem:

[...] a grande utopia de uma linguagem perfeitamente transparente onde as próprias coisas seriam nomeadas sem confusão, quer por um sistema totalmente arbitrário mas exatamente refletido (língua artificial), quer por uma linguagem tão natural que traduzisse o pensamento como o rosto quando exprime uma paixão (é com essa linguagem feita de signos imediatos que Rousseau sonhou) (FOUCAULT, 1995, p. 135).

Em linhas gerais, a mesma crença numa linguagem imediata que acalentou os sonhos de Rousseau passou a constituir o cerne do labor diário de José com as palavras. Nas duas concepções de linguagem temos não só a verificação de que as palavras trazem mais desacertos do que acordo entre os homens, como também existe um esforço para superar este desajuste: José conscientiza as palavras e escreve o seu mundo interior; Rousseau traz a potência da verdade, emocional ou racional.

Lembremos, porém, de algumas palavras já citadas de Rousseau em relação ao homem original que não chegam a contradizer as idéias de José, mas delineiam uma diferença: "Seu terror ter-lhe-á feito ver esses homens maiores e mais fortes do que ele" (grifo nosso). Enquanto na concepção de José o medo degenera a língua, modificando-lhe o sentido original, em Rousseau o terror cria a ilusão como cerne da linguagem. José inicialmente utiliza os jogos de palavras para iluminar o sentido intrínseco delas, Rousseau nos aponta a metáfora como uma forma inicial de o homem tentar corrigir o defeito provocado pela ilusão. José quebra as palavras para restituir-lhes o sentido original, Rousseau presume que a necessidade, além de impulsionar os gestos, confere maior especificidade às palavras através das consoantes, favorecendo que o raciocínio seja desenvolvido ao levar o homem para além das vogais que expressam as paixões: "A princípio falou-se somente em poesia; só se começou a raciocinar muito tempo depois" (ROUSSEAU, 2003 [1782], p. 107).

Esta sequência descrita por Rousseau se apresenta nos textos de José que, das poesias, segue para a conscientização das palavras e, em seguida, redimenciona as poesias, alterando as palavras, como nas mudanças que imprimiu no poema Mulher Preta, onde se lê no lugar de lição, sentimento e humanidade, respectivamente, li a ação, sentemente e humana idade. A utilização do método de conscientizar as palavras nos faz compreender a frase Eu me livro ao escrever de duas maneiras complementares: o ato de escrever é libertador, deixando-o à distância das idéias carregadas de afeto que são, pouco a pouco, despotencializadas; e José, que chegou a se sentir lido pelo rádio que invadia suas idéias descobrindo seus atos, pode, através da escrita, ser novamente lido, mas, desta vez, nas palavras que traduzem suas idéias. José denomina as poesias que escreveu no ano de 1961 e início de 1962 pelo título O Meu Mundo Interior. José se transforma em livro.

Esta produção, no entanto, enfatiza a riqueza do mundo interior que se contrapõe às dificuldades de concretização. Além de mundo interior, José utiliza expressões como flores interiores e aurora interior. A comunicação de sua experiência é o testemunho de que é possível corrigir o passado e escrever novas formas de vida para o futuro. Para esta linguagem utópica José não encontra interlocutor: suas idéias são organizadas sob a sigla O.M.N. (Ordem Materialista Naturalista), que passa a escrever ao lado da assinatura. A ordem fundada por ele não conseguiu nenhum adepto. Entretanto, seus textos se mantêm: "O poder espoliador que a sociedade exerce [...] parece ter encontrado resistência neste tecido sutil, pura linguagem, com que [...] conseguiu proteger seu pensamento e sua palavra" (ALMEIDA, 1993, p. 50).

Conservar as palavras de José pode fazer com que a linguagem figurativa (tropos) possa um dia encontrar um lugar (topos). A linguagem direta espera por ações diretas. A materialização das palavras não se inscreve no campo das representações, mas das ações convergentes, fruto dos sentimentos amorosos. A utopia da linguagem empregada por José pretende as ações futuras. José não escreve simplesmente para comunicar, mas, a exemplo de Rousseau, para guardar a potência de "uma fantasia universal" para que a humana idade possua "uma língua do coração, uma língua de perfeita transparência e lucidez, uma língua que pode dizer tudo, sem jamais nos enganar ou enredar" (SACKS, 1998, p. 30).

A utopia da linguagem de José faz coro com a utopia de Nise da Silveira em ver o tratamento psiquiátrico prescindir das internações. José, o primeiro cliente da Casa das Palmeiras, escreve um Recado para a Humanidade, no qual pede a criação de uma Casa das Palmeiras em cada bairro. O medo é que impede que se leve esta idéia adiante. O medo que enclausura é pai dos manicômios e a Casa das Palmeiras, nas palavras de José, "está enfrentando desde o princípio do século o medo" (apud SILVEIRA, 1986, p. 84 – grifo no original), através da língua do coração, transparente e imediata. Todavia, não se deve simplesmente abrir casas com portas abertas, mas que tragam nas práticas da equipe de saúde as interposições das discórdias lingüísticas, que se evidenciam na sobreposição de teorias e conceitos díspares. As portas nunca serão totalmente abertas pelo homem-máquina.

José escrevia e reescrevia, pausava as frases com reticências no lugar das vírgulas e nunca usava o ponto final. Na definição de Nise da Silveira, José é infinito (cf. ALMEIDA, 1993). Assim como o infinito, José traz sempre o novo e nos convida a mergulhar no desconhecido. Para tal, devemos nos preparar: restituir a verdade das palavras para que nos libertemos do medo traiçoeiro e possamos nos tornar pessoas que, em sua mais alta expressão, definiu por conscientemente livres...!

 

Referências Bibliográficas

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FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.         [ Links ]

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____. [1770] As Confissões. Rio de Janeiro: Ediouro, 1986.         [ Links ]

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____. Introdução, Quaternio, n. 6, mimeo, p. 1-4, 1993.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Walter Melo
Praça Dom Helvécio, 74, Dom Bosco, CEP 36300-000, São João Del Rei – MG
Endereço eletrônico: wmelojr@gmail.com

Recebido em:18/11/2009
Aceito para publicação em: 15/03/2010
Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria Lopez de Calvo Feijoo

 

 

Notas

*Professor Adjunto II da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ); Coordenador do Núcleo de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS); Doutor em Psicologia Social pela UERJ; Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-RJ; autor dos livros Nise da Silveira (Imago/CFP, 2001) e O Terapeuta como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica (Espaço Artaud, 2009); organizador do livro Quando Acabar o Maluco Sou Eu (Espaço Artaud, 2010).
1É bastante significativo que a Casa das Palmeiras, que enfatiza o tratamento com as portas abertas e as relações afetivas, tenha sido formulada por mulheres, modificando totalmente a abordagem no campo da saúde mental, predominantemente masculina, que se pauta pelas internações e em métodos como o eletrochoque.
2Em 1961, José escreveu a poesia Culto Á Humanidade, dedicada à Nise da Silveira (A maior Expressão da Vida / Humana... é a nossa Consciencia / Completa... que minhas Mãos / em tempos idos... a feriram / com a Pedra do Nazismo... !).
3No início da década de 1990, os cinemas brasileiros exibiram uma versão de Cyrano de Begerarc, tendo como protagonista Gérard Depardieu. José se recusou a ver o filme por considerar que poderia ter uma emoção muito forte e que o seu frágil coração não agüentaria.
4Esta atitude de José arrancar os espinhos das rosas, transformando-as em amores perfeitos, ocorreu depois de iniciar a sua grande tarefa lingüística de conscientizar as palavras, provavelmente no ano de 1973 (cf. ALMEIDA, 1993). Em 1961, José escreve a poesia Flores Naturaes, tendoa rosa como grande símbolo do amor (A Rosa é a Flôr mais Bonita do Mundo... / seus espinhos... Defendem sua Belesa...).
5De acordo com Oswaldo Santos, as cadeiras em forma de corações feitas por José na marcenaria caracterizam uma produção ao mesmo tempo utilitária e expressiva, pois se encontram carregados de intensidade afetiva, possuindo uma significação. A cadeira, por exemplo, nas palavras de José, é destinada ao futuro da humanidade. Trata-se de "uma composição do amor" (SANTOS, 1962, p. 78). Em 1961, ano anterior ao do texto de Oswaldo Santos, José escreveu a poesia O Espelho da Consciencia Natural: "Meu Coração de Madeira... / que é a imagem da Perfeição Humana... / o Amôr!".
6Livro de Ocorrências da Casa das Palmeiras dos anos de 1976 e 1977, dia 04/10/76.
7Júlia Almeida (1993) denomina a oposição direita/esquerda por patamar político e a polaridade amor/medo por patamar ético.
8De acordo com Júlia Almeida (1993), em 1973 José conscientizou as duas primeiras palavras: inveja (in veja / não veja) e agosto (a gosto).
9Júlia Almeida (1993) utiliza a expressão semiosis introvertida tendo como base um estudo de R. Jakobson sobre a poesia de Holderlin.
10De acordo com Junito Brandão (2002), a palavra herói (héros) provém de servã (indo-europeu) que, por sua vez, deriva de haurvaiti (avéstico) e de servãre (latim), significando o que nasceu para servir.
11É o próprio Rousseau que afirma ser "a linguagem figurada a primeira a nascer" (ROUSSEAU, 2003 [1782], p. 107).

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