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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.14 no.1 Rio de Janeiro abr. 2014

 

RESENHA

 

Crianças invisíveis atrás do volante: humilhação social, perversão e confusão de línguas em Linha de passe, de Walter Salles e Daniela Thomas

 

Invisible Children behind the arrow: social humiliation, perversion and confusion of tongues in Linha de passe, by Walter Salles and Daniela Thomas

 

 

Renato Tardivo*

Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Ramos, M. A, Yeldham, R.(Produtores) & Salles, W.(Diretor). (2008). Linha de passe [DVD]. Barueri: Universal Pictures do Brasil.

 

1 Futebol é coletivo

Para o amigo Geraldo Rodrigues

O filme Linha de passe (2008) foi dirigido pela dupla afinada Walter Salles e Daniela Thomas. E, se não há um único diretor, tampouco há um (só) protagonista – apesar da Palma de Ouro em Cannes para (a suposta protagonista) Sandra Corveloni.

Quatro filhos e uma mãe grávida: cinco são as personagens principais; quase seis (além de Corveloni, o elenco principal é composto por João Baldasserini, Vinícius de Oliveira, Geraldo Rodrigues e Kaique Jesus Santos). "Futebol é coletivo", diz, no filme, o técnico da peneira1. Linha de passe também.

O filho caçula, criança ainda, procura o pai; seu irmão, às portas da maioridade, procura uma chance como jogador de futebol; o outro, jovem adulto, procura Jesus numa igreja evangélica; o mais velho (já é pai) é um motoboy (protagonista das ruas paulistanas), e, como os irmãos, procura ser visto.

As quatro histórias se (des)alinham sobre uma São Paulo sombria, caótica, assustadoramente real. Se elas se alinham é porque têm muito em comum – partem e voltam ao mesmo núcleo: a mãe. Mas elas também se desalinham: o filho não encontra o pai, a peneira não deixa passar nada ("só tem lixo", diz o técnico), Jesus trai com armadilhas do destino e a destrutividade represada irrompe, a visibilidade não se encontra. Como a pia da casa da família, sempre entupida, não há vazão nesses caminhos.

Não é aleatória, portanto, a importância da personagem de Sandra Corveloni: espécie de condensação desses destinos, também ela sem vazão, pois ainda presa às marcas do passado e prestes a dar à luz mais uma dor. Tampouco é aleatório o fato de Corveloni, excelente atriz de teatro, ter cumprido tão bem o papel: em que se pese toda a importância da personagem, ela não poderia se sobressair em relação aos demais, ou, paradoxalmente, sua atuação fracassaria; novamente a importância do coletivo – questão cara à linguagem do teatro.

A bola, como na verdadeira linha de passe2, não cai. Desde o argumento até a montagem, é tudo muito equilibrado, além de bem executado. O time possui volume de jogo. Jogo no qual atores e plateia não se veem, excluídos e elites não se veem, patrão e empregado não se veem. Somos invisíveis atrás da viseira do capacete, invisíveis atrás do vidro escurecido do carro. Crianças invisíveis atrás do volante de um ônibus. "Cegos que, vendo, não veem", como escreveu José Saramago (2001, p. 310), mas aqui sem o recurso ao realismo mágico senão o mergulho no dia-a-dia mesmo de uma grande metrópole: "anda, anda, anda", diz a voz over na sequência final3. Expressão que alude à fabula de Esopo. A esse propósito, é Freud quem nos diz:

Respondemos quase como Esopo na fábula, quando o andarilho pergunta pela extensão do caminho e ouve a exortação: ‘Anda!', que é explicada com a justificativa de que é preciso antes conhecer o passo do andarilho, para poder calcular a duração de sua viagem (Freud, 1913/2010, p. 170-171).

Qual a extensão do caminho a ser percorrido pelos andarilhos em Linha de passe? Seus passos são conhecidos/vistos? Qual a qualidade das relações que se estabelecem ao longo da viagem? Que realidade é esta filmada por Walter Salles e Daniela Thomas? O que ela tem a nos dizer? Procurarei encaminhar esses questionamentos por meio de conceitos da Psicologia Social e da Psicanálise, sempre a partir da experiência estética suscitada pelo filme.

 

2 Humilhação Social

A humilhação social é um fenômeno com determinações econômicas e inconscientes; é uma modalidade de angústia disparada pela desigualdade de classes e, nessa medida, um fenômeno psicológico – pois envolve situações de impedimentos reconhecíveis no próprio sujeito – e político – pois envolve situações de impedimentos reconhecíveis em seu mundo (Gonçalves Filho, 1998).

Se pensarmos, ainda em companhia de Gonçalves Filho (1998), os bairros pobres das grandes cidades – e, a propósito, a família de Linha de passe mora em Cidade Líder, bairro da periferia de São Paulo –, então veremos que o crescimento caótico e desenfreado implica, muitas vezes, um "espetáculo feito de interrupção", isto é, "as linhas e as formas estão incompletas, não puderam se perfazer. Os meios, os recursos, sobre os quais o homo faber investe o seu poder inventivo, foram perdidos ou nunca foram alcançados: o resultado destas carências e frustrações é que os poderes mesmos da fabricação humana ficam perdidos ou nunca são alcançados" (Gonçalves Filho, 1998). Eclea Bosi (apud Gonçalves Filho, 1998) nos lembra que a mobilidade extrema e incerta das famílias pobres é um impeditivo à sedimentação do passado. E, nesse caso, "a espoliação econômica manifesta-se ao mesmo tempo como espoliação do passado".

Privado de passado, o sujeito que sofre humilhação social vê suas possibilidades para novas formas de vida ficarem emperradas. Novamente de acordo com Gonçalves Filho (1998):

O rebaixamento político internaliza-se no oprimido com força traumática extraordinária, ao mesmo tempo em que, exteriormente, constitui a exclusão do homem para fora do âmbito do reconhecimento intersubjetivo – a exclusão que se internaliza, ela mesma interrompe as condições pelas quais o humilhado enfrentaria sua condição.

Dessa situação sem passado e sem futuro, sem a possibilidade de estabelecer relações com um outro, resulta um presente violentamente opressivo, paralisante: o humilhado tende à não-existência. O que está em jogo na trama de Linha de passe, diga-se, é justamente a batalha pela existência. Batalha que, no caso do Brasil, remonta às suas origens mesmas e sua elite escravocrata:

O senhor brasileiro dispunha, a um só tempo, da pletora da tradição cultural ocidental à qual suas prerrogativas de classe e sua inserção no campo das trocas gerais lhe davam acesso, sem que isto implicasse a ordem das relações locais, e dispunha também do direito de rebaixar tal ordem simbólica, quando bem entendesse, ao estatuto real do gesto particular qualquer. Este gesto não estava inscrito em nenhuma norma de caráter geral, a não ser a sua própria, em uma espécie de lei particular, o imperativo de um gozo qualquer, fundamento psíquico da generalização do capricho como formação social por excelência (Ab'sáber, 2007, p. 273).

Há, portanto, um lastro histórico que envolve a brutal desigualdade de classes e aponta para um trauma ainda não superado. A matriarca de Linha de passe, grávida, que trabalha como doméstica, na sequência em que conversa com a patroa, assume claramente uma posição inferior. Não se trata de duas mulheres conversando – embora tenham a mesma faixa etária, possuam filhos com idades próximas etc. A humanidade de ambas "diluía-se na simplificação das trocas – paga-se, vende-se" (Gonçalves Filho, 1998). Esta equação manifesta-se, também, na sina do primogênito, que trabalha com motoboy – o anti-herói da São Paulo dos últimos anos. Esparramado pela cidade, tendo de percorrer longas distâncias, as relações que estabelece com o espaço são esmagadas pela equação – "paga-se, vende-se" –, sendo muito possível que compra e venda engolfem sua própria vida.

É esta a São Paulo captada pela lente de Walter Salles e Daniela Thomas – a São Paulo da perspectiva do humilhado social; uma São Paulo em que o sol, à iminência de nascer, nunca nasce de fato e, reversivelmente, à iminência de se pôr, jamais se põe (a propósito, a luz do filme é sombria). A suposta permanência da linha de passe revela-se, pois, um "espetáculo feito de interrupção" (Gonçalves Filho, 1998), visto que sem vazão – sem gol – não há continuidade.

 

3 Crianças que se pensam adultas

Segundo Freud (1905/2007), a sexualidade infantil é perversa e polimorfa. Freud refere-se ao período pré-genital do desenvolvimento da libido, no qual a sexualidade não possui ainda um centro integrador. Nessa fase, a criança experimenta prazer sexual – para o qual busca satisfação imediata – em várias partes do seu corpo, de forma isolada e sem integração. Ocorre que na perversão essas características não se submetem à ação do recalque: elas se mantêm ao longo da vida. Em vez de assumir o estatuto de fantasia – como ocorre na neurose –, elas permanecem enquanto realidade, enquanto ato.

Não se trata aqui de fazer uma psicanálise aplicada às personagens do filme; ao invés disso, parece mais interessante questionar os mecanismos sociais vigentes. Em face do que foi exposto, podemos pensar a conjuntura social estruturada nos moldes da perversão. Nessa direção, há evidências de que se trata de uma sociedade regredida nos termos da sexualidade infantil de que fala Freud (1905/2007).

Freud (1927/2007) postula que, para assegurar-se da recusa da lei, o sujeito perverso vale-se dos objetos-fetiche. Trata-se de objetos que se prestam a substituir a falta implicada na castração. Quando a castração, além de reconhecida, é aceita, o sujeito convive com o amparo da lei (mais ou menos acompanhado de sintomas), ressignificando-a e fundando o seu próprio projeto – este é o campo da neurose. Na perversão, por outro lado, o sujeito burla a lei. Não por acaso, o recurso aos objetos-fetiche é inerente a essa busca, uma vez que – 1) aponta para o registro da falta (pois busca-se um substituto para ela); 2) aponta para a recusa da falta (igualmente, pois busca-se um substituto para ela). Se voltarmos novamente ao Linha de passe, podemos pensar esse objeto como sendo o próprio corpo dos humilhados.

A temática do corpo aparece com destaque no filme. A doméstica – grávida – trabalha com o corpo a serviço de uma elite; o motoboy arrisca o próprio corpo e, muitas vezes, o dos outros em sua luta impossível contra o tempo; o jogador de futebol tem no corpo o instrumento mesmo de trabalho. E, como vimos no início, há o filho caçula, obcecado pela procura do pai; e o segundo filho, que se converte a uma religião evangélica para controlar a agressividade e se redimir do mal (não sabemos exatamente qual) que cometera no passado.

Ocorre que, como um esgoto entupido – e a analogia com os dois grandes rios, Tietê e Pinheiros, que cortam São Paulo vem a calhar –, as consequências caóticas da ausência da vazão atingem todos. Leiamos a seguinte passagem de Frayze-Pereira (2009, p. 322), para quem a cidade "é também uma realidade cheia de sentidos particulares relacionados às pulsões mais profundas do próprio indivíduo. Quer dizer, há uma dimensão biográfica da cidade, que confere à ‘minha cidade' o sentido de meu ‘lugar de vida'". Se retomarmos as questões sobre a sexualidade perversa e polimorfa inauguradas por Freud, podemos pensar a ausência de vazão revelada no filme do ponto de vista da falta de um centro integrador, organizador, das pulsões sexuais. Isto é, talvez mais do que "cegos que, vendo, não vêem" sejamos crianças que se pensam adultas. Disso resulta uma cidade sem sentido e da qual não nos apropriamos porque estamos fechados ainda na própria casca, escondidos atrás de viseiras, carros blindados, invisíveis aos olhos do outro – há uma cena de um assalto na qual tudo o que o assaltante (o motoboy do elenco principal) quer é ser visto pela vítima –, presos a um funcionamento esquizo-paranóide no qual as trocas, as relações intersubjetivas, sofrem enorme prejuízo.

Parece ter lugar, então, uma confusão geracional que se perpetua. Vemos isso na figura da matriarca (personagem de Corveloni) a qual, ao mesmo tempo em que está grávida, é avó de um neto que nunca vê; vemos isso se remontar às origens mesmas do Brasil, nossa terra-mãe. Em que medida os traumas, como os testemunhados pelo espectador em Linha de passe, não foram superados – pelo contrário, são perpetuados – justamente porque não são vistos, reconhecidos, legitimados? Raras são as situações, no filme, em que se vislumbra alguma possibilidade para organizar o caos. Nessa direção, aliás, é bonita a sequência em que os quatro irmãos batem bola, no quintal de sua casa, presentificando a linha de passe – mas uma linha de passe leve, compartilhada com ternura e na qual há continente para, se for o caso, a bola cair. Contudo, momentos como esse, tanto no filme quanto na vida, são exceção.

Com efeito, o esparramamento desordenado das forças pulsionais no campo da cultura – "o espetáculo feito de interrupções" sobre o qual fala Gonçalves Filho (1998) – é, nessa medida, emblema de uma conjuntura na qual jogadores não se entrosam, entes não se conhecem, cidadãos não se veem e a miséria é passada adiante, sem cair, sem o reconhecimento do trauma. Em suma, emblema de uma confusão geracional elevada à máxima potência na qual, literalmente, nascer é sofrer e em que, paradoxalmente, há, a cada dia, menos espaço para viver e elaborar o sofrimento.

Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, tais confusões são trabalhadas, também, por meio da confusão entre ficção e realidade. Linha de passe é ficção, mas poderia ser documentário. Fosse documentário, passaria facilmente por ficção. Mais ou menos como uma de suas últimas cenas – um pênalti aos 45 minutos do segundo tempo. E a grande chance de dar certo – "anda, anda, anda" – na vida.

 

Referências

Ab'sáber, T.(2007). Dois mestres: crítica e psicanálise em Machado de Assis e Roberto Schwarz. In M. E. Cevasco & M. Ohata (Orgs.). Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. (pp. 267-289). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Frayze-Pereira, J. A.(2009). Arte, Psicanálise & cidade. In B. Tânis & M. G. Khouri(Orgs.).A Psicanálise nas tramas da cidade. (pp. 319-330). São Paulo: Casa do Psicólogo/SBPSP-FEPAL.         [ Links ]

Freud, S. (1905/2007). Três ensayos de teoría sexual. In S. Freud. Obras completas (v. 7). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (1927/2007). Fetichismo. In S. Freud. Obras completas (Vol. 21). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (1913/2010). Sobre o início do tratamento. In S Freud. Obras completas (Vol. 10). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Gonçalves Filho, J. M.(1998). Humilhação social – um problema político em Psicologia. Psicologia USP, 9(2). Recuperado em 02 março, 2012, de <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0103-65641998000200002>.

Ramos, M. A, Yeldham, R.(Produtores) & Salles, W. (Diretor). (2008). Linha de passe [DVD]. Barueri: Universal Pictures do Brasil.         [ Links ]

Saramago, J. (2001). Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Renato Tardivo
Rua André Ampére, 153, cj 63, Brooklin Paulista, CEP 04562-080, São Paulo, SP - Brasil
Endereço eletrônico: rctardivo@uol.com.br

Recebido em: 24/07/2012
Aceito para publicação em: 31/07/2012
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo

 

 

Notas

* Mestre e Doutorando em Psicologia Social (IP-USP), psicanalista e escritor. Professor e supervisor do curso de Psicologia no Centro Universitário São Camilo. Autor de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê Editorial/Fapesp, 2012) e dos livros de contos Do avesso (Com-arte, 2010) e Silente (7 Letras, 2012).
1 Termo que designa os testes a que jovens jogadores se submetem buscando vaga em um time. Os aprovados são aqueles que passam pela peneira.
2 Expressão, entre os futebolistas, para designar a sequência de passes entre jogadores em que a bola não cai.
3 Diferentemente da voz off, que se refere à voz fora de quadro cujo local de origem é sabido, a voz over, também fora de quadro, parte não se sabe de onde.