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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.15 no.1 Rio de Janeiro abr. 2015

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Cartografias de exclusão e inclusão de pessoas com sofrimento mental nos processos de territorialização da Política Nacional de Saúde Mental

 

Cartographies of exclusion and inclusion of people with mental suffering the territorialization processes of the national politics concerning mental health

 

Cartografías de exclusión e inclusión de las personas con sufrimiento mental en casos de territorialización de la Política Nacional de Salud Mental

 

Patrícia Fátima Mendes Guedes*, I; Maria Celeste Reis Fernandes de Souza**, II

I Centro Universitário do Leste de Minas Gerais – UNILESTE, Coronel Fabriciano, Minas Gerais, Brasil
II Universidade Federal de Sergipe – UFS, São Cristovão, Sergipe, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta reflexões acerca dos processos de exclusão/inclusão de pessoas com sofrimento mental grave em um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II) no contexto de territorialização da Política Nacional de Saúde Mental. O campo de pesquisa é o CAPS II e o referencial teórico teve como base os estudos de Michel Foucault e de Doreen Massey. O material empírico é constituído por documentos e prontuários de cinco usuários do CAPS II. Para a análise desse material a ferramenta utilizada foi o discurso, na perspectiva analítica de Michel Foucault. O artigo problematiza o enunciado – "lugar de louco é no hospício" – que interpelao discurso da desospitalização e da reinserção psicossocial.  Os resultados mostram que a hospitalização ainda é uma prática recorrente e um desafio a ser vencido para se construir uma Política que ultrapasse as barreiras da exclusão.

Palavras-chave: exclusão, inclusão, saúde mental, território.


ABSTRACT

This article presents reflexions concerning the processes of exclusion/inclusion of people with severe mental suffering in a Center of Psychosocial Care II (CAPS II) on the context of National Politics of Mental Health territorialization. The research field is the CAPS II and the theoretical framework has as basis Michel Foucault and Doreen Massey's studies. The empirical material is constituted of documents and records of five CAPS II users. The tool used for the analysis of this material was the speech, on Michel Foucault's perspective. The article problematize the statement – "place for crazy is the asylum" – that challenges the speech of deinstitutionalization and psychosocial reintegration. The results show that hospitalization is still a common practice and a challenge to be won, so that a politic that exceeds the barriers of exclusion can be built.

Keywords: exclusion, inclusion, mental health, territory.


RESUMEN

Este artículo presenta reflexiones sobre los procesos de exclusión e inclusión de las personas con trastornos mentales graves en un Centro de Atención Psicosocial II (CAPS II) en el contexto de la territorialización de la Política Nacional de Salud Mental. El campo de investigación es el CAPS II y la referencia teórica tiene como base los estudios de Michel Foucault y de Doreen Massey. El material empírico esta constituido por documentos y registros de cinco usuarios del CAPS II. Para el análisis de este material las herramientas utilizadas fue el discurso, en la perspectiva analítica de Michel Foucault. El articulo discute la declaración (lugar de loco es en el hospicio), que desafía el discurso de la desinstitucionalización y la rehabilitación psicosocial. Los resultados muestran que la hospitalización aun es una práctica recurrente y un desafío que hay que superar para construir una política que supere las barreras de la exclusión.

Palabras claves: exclusión, inclusión, salud mental, territorio.


 

 

1 Introdução

Neste artigo, apresentamos reflexões construídas em uma pesquisa que buscou compreender os processos de exclusão/inclusão das pessoas com sofrimento mental grave em um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II). O CAPS II está inscrito no contexto de territorialização da Política Nacional de Saúde Mental 1, cujas diretrizes são a desospitalização, o tratamento em serviços substitutivos e a reinserção social.

Ao analisar os mecanismos de constituição do saber da medicina e da loucura, Foucault (2010) acaba por fazer uma cartografia da loucura e do louco desde a época clássica até a modernidade. Ele se dedica a compreender o surgimento do saber sobre a loucura e sua relação com a prática de enclausuramento e de exclusão do louco. No artigo intitulado "Outros espaços", Foucault (2001) trata das heterotopias, ou seja, lugares demarcados socialmente que comportam vários espaços, diferentes posicionamentos e que supõem um sistema de abertura e fechamento, tornando-se, por vezes, isolados e impenetráveis. Neste artigo, nos servimos da noção de heterotopia para delinear as cartografias dos usuários do CAPS II. E, nesse delineamento, tomamos como referência as discussões acerca do território empreendidas por Doreen Massey (2008), pois elas dão a noção de movimento, de territorialização, de assujeitamento, de multiplicidades; enfim, relações de força e saberes presentes no território.

O referencial teórico e metodológico, deste artigo, é ancorado em Michel Foucault 2 e estabelece um diálogo com as contribuições de Doreen Massey, o que permite estabelecer um diálogo interdisciplinar entre o campo da Psicologia e o campo da Geografia na análise da territorialização de uma política e os efeitos sobre os usuários.

Nosso campo de pesquisa foi um Centro de Atenção à Saúde Mental II (CAPS II) de uma cidade do interior de Minas Gerais, e o material empírico foi produzido pela análise de documentos sobre o processo de territorialização da Política Nacional de Saúde Mental. Utilizamos prontuários de cinco usuários com quadro de sofrimento mental grave em tratamento desde 1995, ano em que o CAPS II foi implantado.

No processo de análise foi objeto de atenção tanto os processos de exclusão/inclusão das pessoas com sofrimento mental grave bem como os discursos materializados nos prontuários, que demarcam práticas de exclusão/inclusão dessas pessoas.

Tendo como referência a análise do discurso, como propõe Michel Foucault, buscamos capturar os enunciados que atravessavam os textos dos prontuários. Para Foucault (2005), o enunciado não se constitui em uma unidade porque ele se encontra na transversalidade de frases, proposições e atos de linguagem; ele é "sempre um acontecimento, que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente" (Foucault, 2005, p.32). Ou seja, o enunciado é "uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que [estas] apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço" (Foucault, 2005, p.99).

Ao analisarmos os prontuários, identificamos três enunciados que nos permitiram demarcar processos de exclusão e de inclusão, tanto na territorialização da Política Nacional de Saúde Mental quanto nas relações que esses usuários estabelecem com o contexto social: o enunciado da medicalização ("louco precisa de remédio"), o enunciado da hospitalização ("lugar de louco é no hospício") e o enunciado da perda de autonomia ("louco não é dono da sua própria vida").

Na primeira seção deste artigo apresentamos a noção de heterotopia e como a utilizamos para compreender os processos de exclusão/inclusão das pessoas com sofrimento mental grave no contexto de territorialização da Política Nacional de Saúde Mental. Na segunda seção, selecionamos o enunciado "Lugar de louco é no hospício". A escolha deste enunciado é intencional, pois ela permite problematizar a hospitalização – que é uma prática combatida pela Política de Saúde Mental do Brasil – e evidenciar, sobretudo, a exclusão e o controle das pessoas com sofrimento mental.

Para finalizar, nossas discussões nos permitem refletir que a ruptura com o modelo manicomial e o fortalecimento de uma rede constituída por serviços abertos e de base territorial são diretrizes do movimento da Política. No entanto, a hospitalização continua sendo uma prática recorrente na saúde mental. No contexto da Política de Saúde Mental, romper com o modelo hospitalocêntrico significa a "contraposição à negatividade patológica construída na observação favorecida pela segregação e articuladora de noções e conceitos como a incapacidade, a periculosidade, a invalidez e a inimputabilidade" (Aboud-Yd & Silva, 2003, p.42). Para eles, essa ruptura "significa ainda mirar a cidade como o lugar da inserção" (Aboud-Yd & Silva, 2003, p.42), ou seja, a possibilidade de ocupação, produção e compartilhamento do território a partir da garantia dos direitos à cidadania.

Segundo Foucault, os discursos que se difundem na sociedade são controlados e perpassados por relações de poder. Foucault não constrói uma teoria sobre o poder. O que ele propõe é uma ‘analítica do poder', ou seja, uma análise que possibilite mostrar as "formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente" (Machado, 2011, p.10).

Desta forma, a contribuição de Foucault para este artigo é pautada na análise das relações de poder/saber que se inserem, de forma dinâmica, no contexto da saúde mental, determinando práticas que ora excluem, ora incluem "o louco". O manicômio ocupa lugares tanto de exclusão como de inclusão para as pessoas com sofrimento mental; estes lugares são encontrados nas situações vividas pelos sujeitos e se constituem em meio a relações de poder e de produção de saberes marcadas pela normalização – dos sujeitos e dos corpos.

 

2 Heterotopias

Massey (2008) afirma que para os geógrafos a cartografia remete ao estudo, à elaboração e à leitura dos espaços geográficos delineados por meio de mapas, representações gráficas do espaço. De acordo com a autora, os mapas se referem à posição, distância, tamanho, enfim, aspectos que se relacionam não com movimento, mas com inércia, estagnação e paralisação. Inspirada na crítica da autora, neste artigo a noção de cartografia é utilizada para designar o movimento dos sujeitos no território.

Para a autora, a cartografia não diz respeito apenas à superfície, ao espaço que se pode atravessar, conectar linhas e pontos, e que nos é apresentado como um produto pronto e acabado. A cartografia nos aponta para outra compreensão de espaço. Espaço dinâmico, onde novas relações são construídas, onde as histórias estão em curso, onde "há sempre conexões ainda a fazer, justaposições ainda a florescer em interações ou não, elos potenciais que podem jamais ser estabelecidos" (Massey, 2008, p.161, grifo da autora).

Ao tratar das heterotopias, Foucault (2001) também aborda uma visão diferenciada de espaço, lugar de justaposições, de histórias que se entrecruzam no tempo, dando-nos a ideia de movimento e da possibilidade de ocuparmos lugares diversos e heterogêneos.

As narrativas capturadas nos prontuários dos usuários do CAPS II mostram o quanto eles circulam entre o hospital psiquiátrico, o CAPS II, o convívio familiar e comunitário, e a rua. Essas narrativas nos possibilitam pensar "mapas" diferentes daqueles traçados pelo movimento de "Luta Antimanicomial" 3.

Com o conceito de heterotopia, Foucault (2001) apresenta uma abordagem espacial que confere uma interpretação plural da sociedade, levando em conta atores e fenômenos que anteriormente seriam descartados devido ao seu caráter marginal, inconstante e apolítico. Nesse sentido, o espaço se relaciona ao dinamismo social, às mudanças, aos confrontos de ideias e à eminência de novas representações. O tempo, por sua vez, se atrela à consolidação dos discursos, ganhando valor com a estabilidade e com a permanência dos arranjos de poder.

Tecendo uma crítica a essa temporalidade histórica linear, que consolida significados e narrativas que adquirem "status de verdade", Foucault (2001, p.13) acreditava que a sociedade contemporânea vive a época do espaço, "do próximo e do distante, do lado a lado, do disperso".  Para marcar distanciamento com relação ao tempo e à uniformidade espacial, o autor utiliza o conceito de heterotopia para designar espaços marcados por justaposições de espacialidades e por relações de competitividade que se desenvolvem no tempo (Foucault, 2001).

Em seu texto "Outros Espaços", Foucault (2001, p.413) não desconsidera o tempo, apesar de tratá-lo apenas como um "um jogo de distribuição possível entre elementos que se repartem no espaço". O espaço não é fixo, ele comporta relações de proximidade e justaposições; sendo assim, ele é heterogêneo. Segundo o autor, "não vivemos em um espaço vazio que se encheria de cores com diferentes reflexos, vivemos no interior de um conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente impossíveis de ser sobrepostos" (Foucault, 2001, p.414). Foucault define este espaço como heterotopias, que são:

[...] espaços reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade - que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade (Foucault, 2001, p.415).

Para Foucault (2001), não existe no mundo sociedade sem heterotopias, sem outros lugares ou espaços diferentes. Para descrevê-las, ele aponta cinco princípios. No primeiro, Foucault afirma que não há uma forma de heterotopia universal, ou seja, toda cultura se constitui de heterotopias. Elas assumem formas variadas e são classificadas de duas maneiras: as "heterotopias de crise" e as de "desvio". As primeiras se referem a "lugares privilegiados, ou proibidos, ou sagrados", que nas sociedades primitivas são ocupados por indivíduos em estado de crise. As heterotopias de desvio substituíram as de crise, que se referem aos lugares ocupados por indivíduos que se desviam da regra e das normas (Foucault, 2001, p.416). A "História da Loucura" (Foucault, 2010) situa o louco em diversos lugares: ele já foi objeto de fascínio, de relação com o místico e com a desrazão. Nesse sentido, podemos situar o louco nas heterotopias de crise. O manicômio e o CAPS II, como heterotopias de desvio, são lugares cujos habitantes se desviam das regras e das normas impostas pelos discursos construídos socialmente. Porém, ressaltamos que tanto a concepção de loucura quanto a de tratamento, por serem lugares heterotópicos, também se modificam ao longo da história, incluindo e excluindo pessoas.

O segundo princípio diz respeito às heterotopias que sempre existiram, mas que sofrem mudanças ao longo dos tempos. Foucault (2001) utiliza o cemitério como exemplo desta espécie de heterotopia. O autor relata que no século XVIII, na cultura ocidental, o cemitério era construído no centro das cidades, ao lado da igreja, onde existia um sistema de hierarquia de sepulturas. Haviam ossários, algumas sepulturas eram individuais no próprio cemitério e outras se localizavam no interior das igrejas. A partir do século XIX, os cemitérios passam a se localizar no limite exterior das cidades, pois a morte passou a ser encarada como possibilidade de causar doenças aos vivos. Daí o distanciamento dos cemitérios das casas, igrejas, das ruas no interior das cidades: "os cemitérios constituem, então, não mais o vento sagrado e imortal da cidade, mas a ‘outra cidade', onde cada família possui sua morada sombria" (Foucault, 2001, p.418, aspas do autor).

Nos parece que o hospital psiquiátrico é uma heterotopia que pode ser comparada ao cemitério, uma vez que sua existência sofreu mutações ao longo da história. Se antes acolhia todo e qualquer indivíduo que aos olhos da sociedade deveria ser retirado do convívio social, o hospital psiquiátrico, em seguida, foi destinado aos loucos apenas com a finalidade do enclausuramento. Atualmente ele é ainda o espaço da loucura, porém como um lugar de passagem onde se acolhe para depois retornar com o louco ao convívio familiar. Essa transformação pela qual os hospitais psiquiátricos passaram pode ser atestada nos textos da Política que defendem: o não asilamento, a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, a substituição destes por serviços abertos e o acolhimento da crise em hospitais gerais.

O terceiro princípio da heterotopia é o de poder justapor um único lugar em vários outros espaços, ou seja, vários posicionamentos que se contrapõem em si mesmos. Um exemplo deste tipo de heterotopia é a internação, prática que se tenta abolir do campo da saúde mental. Nos relatos dos prontuários dos usuários do CAPS II verificamos que ela ainda é um procedimento recorrente no cotidiano dos serviços: a internação é indicada por profissionais diante de casos graves, quando os recursos do CAPS II não são suficientes para estabilizar uma crise; ela é solicitada por familiares e, também, por pacientes diante da impossibilidade de fazer laços sociais, afetivos e com o próprio tratamento. No entanto, a legislação sobre saúde mental defende o tratamento em serviços abertos, reservando a internação para casos extremos, mas, a prática nos serviços substitutivos, muitas vezes, ainda privilegia a internação (Ministério da Saúde, 2004).

Existem também as heterotopias que visam acumular e perpetuar o tempo. As bibliotecas e os museus são exemplos deste quarto princípio. Segundo Foucault, elas nos remetem a

[...] ideia de tudo acumular, a ideia de constituir uma espécie de arquivo geral, a vontade de encerrar em um lugar todos os tempos, todas as épocas, todas as formas, todos os gostos, a ideia de constituir um lugar de todos os tempos que esteja ele próprio fora do tempo, e inacessível à sua agressão, o projeto de organizar assim uma espécie de acumulação perpétua e infinita do tempo em um lugar que não mudaria (Foucault, 2001, p.419).

Os prontuários dos usuários do CAPS II são exemplos deste tipo de heterotopia: eles narram histórias que se perpetuam no tempo; são uma espécie de arquivo das muitas histórias que circulam neste Serviço.

O quinto e último princípio são as heterotopias que "[...] supõem sempre um sistema de abertura e fechamento que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis" (Foucault, 2001, p.420). As prisões e as casernas são heterotopias dessa espécie; só se pode entrar nelas quando se é permitido e após o cumprimento de certos rituais.  Segundo Foucault (2001), também são exemplos delas os quartos das grandes fazendas que existiram no Brasil, cuja porta dava para o interior da casa onde a família se reunia; o indivíduo ao entrar por essa porta tinha a ilusão de proximidade, porém, jamais conseguia se incluir no núcleo da família.

Os espaços por onde os loucos e, em particular, os usuários do CAPS II circulam, supõem sempre esse sistema de abertura e fechamento. Eles nos remetem aos espaços que incluem e excluem essas pessoas: são eles o hospital, o CAPS II, a família, a rua; enfim, todos os lugares por onde transitam.

A noção de heterotopia e os princípios apontados por Foucault para descrevê-las permitem capturar os lugares ocupados pelos usuários da saúde mental e demonstrar que não existe uma fixidez desses usuários no território. O hospital psiquiátrico continua sendo um espaço que abriga pessoas e, também, simbolismos que remontam tempos passados.

As trajetórias construídas a partir da análise dos prontuários de Lúcio, Pedro e André 4, usuários do CAPS II, nos permitiram capturar os lugares heterotópicos que não são dados a priori, mas são construídos nas relações sociais e se materializam nos discursos. Iremos demonstrar este fato, dando ênfase ao discurso da hospitalização.

 

3 "Lugar de louco é no hospício"

Durante muitos anos, a única concepção de tratamento concedida à loucura foi a reclusão em hospitais psiquiátricos. O tempo passou e chegamos ao século XXI com mudanças na forma de pensar e tratar a loucura. Essas mudanças incentivaram novas práticas de atuação dos profissionais da saúde e influenciaram a implantação de uma legislação específica sobre a atenção psicossocial. No entanto, a internação ainda continua sendo um dispositivo de tratamento e segregação da pessoa com sofrimento mental.

Em muitos casos constatamos que o recurso da internação é uma prática comum nos dias de hoje, solicitada por técnicos dos serviços de saúde mental e por familiares, como foi possível identificar nos prontuários analisados. Seguem alguns recortes do prontuário de Lúcio 5 que confirmam tal afirmação.

Paciente agitado, agressivo, coloca dedo em minha cara e ameaça de agressão. Não aceita o tratamento proposto. Grita e manda ir para o inferno. Insone. Conduta: Informar a irmã. Internação no Hospital Galba Veloso. [...] Compareceu ao Serviço Dona T. (mãe de Lúcio) solicitando internação para o mesmo. A mãe disse que o filho não está agressivo, mas está com o hábito de tirar toda a roupa e correr atrás dos vizinhos e parentes, e está ameaçado de morte.

No caso de Pedro 6 - "O paciente foi conduzido a Belo Horizonte para internação no Hospital Psiquiátrico, pelo atendente de enfermagem".

Por outro lado, a internação é uma prática contestada pelos profissionais do CAPS II, conforme se verifica na fala do psicólogo em relação ao atendimento de Pedro:

Após reunião de equipe foi proposto que procurássemos alguma pessoa da comunidade que tivesse algum relacionamento e conhecimento do caso de Pedro. Procuramos o Sr. JD e expusemos sobre a proposta de tratamento do caso, explanando, portanto, que não se fazia necessária a internação hospitalar em BH.
[...] manifestamos contrários à internação, uma vez que o paciente não se encontra agressivo (observações retiradas de contato mantido com o próprio paciente no terminal rodoviário). É importante ressaltar que já fora feito guia de internação para o paciente e que o mesmo permanecerá detido até a hora em que for mandado para BH. Esta decisão não tem o aval da equipe, mas é desejo do irmão do paciente, que não demonstra interesse em acolhê-lo.

É interessante notar que diante de tantas situações que dificultam a inserção do louco na sociedade e a vinculação em um serviço de saúde mental, ele próprio solicita sua internação: "Quero voltar para o hospital, lá todos me tratam bem, já acostumei a viver com os doidos". E ainda: "Paciente vem ao serviço procurando a psicóloga, confuso, fala que o homem do bar tomou seu dinheiro todo. Fala que tem medo de dormir e o irmão ou o goiaba o matar. Quer ser internado no Serra Verde (Clínica Psiquiátrica localizada em Belo Horizonte) - "Se precisar você pode me internar...".

O espaço do hospital e do CAPS II são espaços heterotópicos: eles se contrapõem ao promover, ao mesmo tempo, a inclusão e a exclusão. O louco antes asilado no hospital passa a ser incluído nos serviços abertos – como o CAPS II – que, por sua vez, excluem esse mesmo indivíduo quando o encaminha ao hospital, que o inclui novamente em um sistema denominado "tratamento".

A família, muitas vezes, recorre à internação como forma de afastamento dos problemas característicos da loucura, como a agitação e a agressividade, principalmente. Isso se verifica nas falas de familiares de Lúcio:

Irmão do usuário procura o Serviço, faz alguns relatos de agressão e solicita internação para o usuário (pelo menos um prazo para ele dar algumas reformas na casa, que está toda quebrada). [...]. Irmã do usuário faz contato com o Serviço disse que ele está muito agressivo, quebrou uma sorveteria perto de sua casa, agrediu o vizinho de frente, tem roubado cigarro nos bares do bairro e não deixa seu irmão dormir em casa. Família pede internação.

A mãe de André 7 também solicita internação diante da dificuldade de lidar com o filho: "Compareceu ao Serviço Dona T. solicitando internação para o mesmo. A mãe disse que o filho não está agressivo, mas está com o hábito de tirar toda a roupa e correr atrás dos vizinhos e parentes, e está ameaçado de morte".

A internação, por sua vez, não garante a estabilização de um paciente como se espera. O médico psiquiatra do CAPS II faz essa observação no prontuário de André e o reencaminha para a internação: "Paciente pior que antes da internação. Heteroagressividade. CD: Internação".

Diante disso, podemos interrogar: a desinstitucionalização, como pretende a Política Nacional de Saúde Mental, tem sido promovida pelos atores (trabalhadores, profissionais, gestores, usuários e familiares) que configuram o campo da saúde mental? Os serviços que compõem a rede de atenção à saúde mental garantem a inserção e o resgate da cidadania de seus usuários? Há uma produção de saber nestes espaços que seja capaz de dizer algo sobre a loucura? Essas são interrogações difíceis de serem respondidas.

Para Alverga e Dimenstein (2006), apesar dos diversos avanços evidenciados, a Reforma Psiquiátrica ainda apresenta muitos desafios e impasses na gestão de uma rede de atenção em saúde mental.  Os pontos destacados pelos autores são: a forma de alocação de recursos financeiros do Sistema Único de Saúde e suas repercussões no modelo assistencial proposto para os serviços substitutivos; o aumento considerável da demanda em saúde mental, desproporcional à oferta de ações e serviços nesse campo; a diminuição importante, mas ainda insuficiente, dos gastos com internação psiquiátrica; as fragilidades em termos de acessibilidade, diversificação das ações, qualificação do cuidado e da formação profissional; bem como o preconceito e a rejeição em relação à loucura.

Talvez possamos enveredar por um caminho já bem conhecido neste trabalho - o poder da norma. Enquanto estivermos colocando a loucura como contraponto à razão, inserindo-a em sistema de regras que normatiza e estandardiza o comportamento dos indivíduos, estaremos mais distantes de uma saída razoável para as questões acima levantadas. Foucault (1984, p.208-209) nos diz que os

[...] graus de normalidade [...] são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras.

A questão da norma e da disciplina se estende, também, ao espaço urbano, aos locais públicos, onde a maioria das pessoas tem o direito de ir e vir. Pedro, um dos usuários do CAPS II, ao ser encaminhado para internação pelo fato de estar constantemente nas ruas, diz a seguinte frase: "O fato de estar na rua, não quer dizer que sou louco".A afirmação de Pedro nos convoca a problematizar o espaço urbano: seria ele reservado apenas às pessoas que não sofrem de um adoecimento psíquico? Esse espaço também não escapa às relações de poder e, consequentemente, de controle dos indivíduos.

Foucault (2001) diz que, na sociedade contemporânea, a noção de espaço ainda não está totalmente "dessacralizada". Ele afirma, ao contrário, a sacralização dos diferentes espaços que comandam nossa vida. O autor faz referência aos espaços que se opõem, como por exemplo, o espaço público e o privado, o espaço do lazer e o espaço do trabalho. Nesse sentido,

o espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo (2001, p.414).

Com isso, o autor apresentou um interesse pela ideia de heterotopia ao procurar uma forma de classificação espacial que nos permitisse compreender a conflitualidade espacial, na qual estamos imbricados. Tal conflitualidade pode ser identificada na trajetória dos usuários, que apresentam diferentes posicionamentos em relação à internação. Na maioria das vezes, eles a repudiam e, em outras, como no caso de Pedro, a solicitam pela dificuldade de viver com os outros e pela identificação com os loucos internados em hospitais psiquiátricos. Pedro nos leva a pensar no espaço público como um espaço de tensões, um espaço conflituoso, um espaço de regulação. Segundo Massey (2008, p.217), "todos os espaços são, de algum modo, regulados socialmente, se não por regras explícitas (são proibidos jogos de bola, vagabundagem), então por regulações [...] que existem na ausência de controles explícitos (coletivos? públicos? democráticos? autocráticos?)".  Pedro evidencia este mesmo ponto da seguinte forma: "O fato de estar na rua, não quer dizer que sou louco". A autora nos desafia a pensar em outras relações sociais, pois "o acaso do espaço pode nos colocar junto ao vizinho inesperado. A multiplicidade e o acaso do espaço [...] nos fornecem [...] aquela inevitável contingência que é a base da necessidade da instituição social [...]" (Massey, 2008, p.215).

A internação é um dispositivo de poder que, atualmente, exclui o louco de um espaço onde não tem lugar para a heterogeneidade, como nos mostra a recorrência do enunciado "Lugar de louco é no hospício".O discurso da desospitalização, muitas vezes, aparece mais como retórica do que como prática real. A substituição do modelo asilar por uma rede de serviços territoriais, um dos pilares da Reforma Psiquiátrica e uma diretriz da Política Nacional de Saúde Mental, continua sendo um desafio. O manicômio, mesmo que no imaginário social, ainda é um espaço de endereçamento da loucura.

Sob as lentes de Michel Foucault em "A História da Loucura" (2010), os manicômios foram analisados como "um espaço de poder, de elaboração de saberes relacionados com a gestão e o disciplinamento da população e não como espaço de cura do doente mental e compreensão da doença" (Campos Marín & Huertas, 2008, p.473). A maneira como se ergueram e se instrumentalizaram durante os séculos XIX e XX, não representaram nenhum avanço em termos científicos, mas sim uma ordem ética dominante. "O manicômio foi visto [...] como um instrumento regulador das tensões sociais e protetor da sociedade frente às ameaças de seus membros" (Sacristán, 2005, p.174).

Os trabalhos acerca da psiquiatria e da loucura desenvolvidos nas décadas de 1960, 1970, e princípios da década de 1980, estudaram os modelos assistenciais existentes na época e estabeleceram quadros legislativos e socioculturais. Eles foram importantes para delinear novos modelos assistenciais, dando ênfase ao papel das instituições manicomiais – e às várias problemáticas relacionadas a esse campo – que transparece nas análises contemporâneas a que nos referimos no início deste artigo.

No Brasil, avançamos na forma de conceber a loucura e tratar o "louco", pois o discurso da Reforma Psiquiátrica defende a inclusão social e o tratamento digno para usuários dos serviços de saúde mental.

[...] as propostas de reforma visaram extrapolar o ambiente hospitalar, localizando um novo objeto e causando uma verdadeira revolução no entendimento (conceito) e tratamento (prática) da loucura: não mais "doentes mentais" com lesões cerebrais, mas promoção da saúde mental dos acometidos junto ao aumento da rede assistencial extra-hospitalar, sendo o hospital psiquiátrico não mais que um centro referencial do sistema de saúde que visa a gradual desospitalização dos internos e a redução de leitos em hospitais psiquiátricos, bem como a instalação da tríade prevenção/tratamento/reabilitação (Tílio, 2007, p.198-199).

À Reforma Psiquiátrica, sucede uma série de Leis e Portarias que instituem uma Política de Saúde Mental, com destaque para a Lei 10.216/2001 e a Portaria 336/2002 (Ministério da Saúde, 2004), em âmbito nacional. Elas acarretam a mobilização de profissionais, familiares e usuários da saúde mental, principalmente, em torno das Conferências de Saúde Mental. Estes foram momentos importantes no campo da saúde na medida em que causaram entusiasmo e uma aposta em mudanças na forma de organização dos serviços de saúde mental, no tratamento e na reabilitação dos usuários, bem como na inclusão dos familiares no cuidado com os mesmos.

Se antes o louco era visto como um "possuído", hoje é considerado um sujeito de direitos. Em relação ao tratamento, passamos por momentos diferentes ao longo da história. No livro "História da Loucura" (2010), Foucault nos mostra que houve um período no qual não se cogitava a possibilidade de tratar o louco, a fogueira era o seu trágico destino; mais adiante, o louco foi excluído, enclausurado nas casas de internação juntamente com todos aqueles que não se incluíam nas regras instituídas socialmente; das casas de internação, voltavam ao convívio social; em seguida, foram novamente reclusos, porém, em um lugar destinado apenas a eles - o hospital psiquiátrico; e, por fim, passaram do hospital psiquiátrico aos serviços abertos e ao convívio comunitário.

As conquistas alcançadas no campo da saúde mental – que podem ser comprovadas nos Relatórios das Conferências Nacionais de Saúde Mental e na legislação que institui a Política de Saúde Mental –, propõem uma forma diferente de tratar a pessoa com sofrimento grave. A diferença no tratamento incide, principalmente, na substituição gradativa da internação psiquiátrica pela assistência em serviços abertos e de permanência dia, dispositivo de tratamento no serviço de saúde mental que visa o acolhimento do paciente em crise, o ajuste medicamentoso e o esclarecimento do diagnóstico (Ministério da Saúde, 2004).

Mas a abolição dos manicômios não teve fácil adesão dos gestores da saúde e, principalmente, dos hospitais psiquiátricos, de profissionais da saúde, de pessoas da comunidade e, até mesmo, de alguns familiares de pessoas com sofrimento mental. Por vezes, percebeu-se nos relatos veiculados na mídia, na comunidade, no meio acadêmico e na prática dos serviços de saúde que os hospitais psiquiátricos, tanto privados quanto públicos, não queriam abrir mão da tutela que possuíam das pessoas internadas, uma vez ela lhes garantia ganhos, sobretudo de ordem financeira.

Ao contrário dessas instituições, a família muitas vezes não queria assumir a tutela de seus familiares internados, porque isso representava responsabilidade e sacrifícios. Além disso, como nos mostram os prontuários analisados, com frequência não haviam condições financeiras para tal.

De modo geral, a questão da periculosidade foi uma das justificativas utilizadas para se defender a manutenção da internação em instituições psiquiátricas; muitas pessoas consideravam que a internação seria uma proteção para as próprias pessoas com sofrimento mental grave e para sua família.

A comunidade, por sua vez, percebia a pessoa com sofrimento mental como um problema, pois ela a considerava como uma pessoa incapaz de produzir e de conviver socialmente. Mas, como nos diz Barreto, "a periculosidade não é própria da loucura [...]. É verdade que os loucos podem tornar-se homicidas, mas está bem provado que os normais matam muito mais" (Barreto, 1999, p.194, grifos do autor).

 

4 Para concluir

Neste artigo procuramos evidenciar os movimentos, os deslocamentos e, também, a estagnação e a inércia dos usuários no próprio CAPS, no hospital psiquiátrico, na família, na comunidade e em tantos outros espaços. Para isto nos servimos do conceito de heterotopias, cunhado por Foucault. As heterotopias – embora sejam efetivamente localizáveis – são espécies de lugares que, embora estejam fora de todos os outros, podem estar, ao mesmo tempo, representados, contestados e invertidos. Esta característica nos permite afirmar que a inclusão e a exclusão estão presentes em todos os lugares, ou seja, nos diversos posicionamentos discursivos do indivíduo em sua relação coma a sociedade.

Os discursos da medicalização e da ciência buscam tutelar a vida dos sujeitos por meio da racionalização e da normalização de condutas. O discurso da saúde mental, por sua vez, critica o poder da medicina e da ciência, que controla e reprime a loucura e o louco, defendendo uma prática atravessada pelo discurso da humanização. Mas, se constata que a passagem do hospital psiquiátrico para os serviços substitutivos não garantiu a tão esperada desospitalização. Os usuários que frequentam o CAPS II continuam sendo internados, segregados nos serviços abertos e estão longe de serem reinseridos socialmente.

As diretrizes e a rede de cuidados desenhada pela Política Nacional de Saúde Mental não conseguem garantir a inclusão dessas pessoas em função da multiplicidade de discursos que perpassam o tecido social e da impossibilidade de criar lugares eternamente fixos, onde não se permite a movimentação no território.

Considerando as diretrizes da Política, a territorialização dos usuários da saúde mental significa inseri-los em um serviço de saúde mental aberto, na família, na comunidade, locais onde possam usufruir de todos os direitos que garantam sua cidadania. Porém, como a história dos usuários do CAPS II e os enunciados nos mostraram, territorializar, na perspectiva de Haesbaert (2004), implica também desterritorializar e reterritorializar. Dessa forma, podemos afirmar que, no campo da saúde mental, os territórios são construídos, desconstruídos e reconstruídos, nos direcionando a uma multiplicidade de territórios e sua articulação na forma de territórios-rede.

O território, diferente da forma como é concebido no campo da saúde, não é fixo; nele estão presentes os fluxos e os movimentos de coisas, pessoas, ideias e práticas. Os usuários circulam no território, ora incluídos em um lugar, ora excluídos desses mesmos lugares ou de outros novos, porque esses lugares são heterotópicos; eles são heterogêneos, complexos, passíveis de inúmeras relações que circunscrevem a totalidade daquilo que existe, abrangendo a malha de toda experiência possível, tanto interior como exterior.

Concluindo, a territorialização implica sempre a exclusão e a inclusão, concomitante ou simultaneamente; ela nos conduz para além dos muros das instituições, dos textos da Política, do ordenamento social e da individualidade. Ela é um processo inacabado, descontínuo e com rupturas. Novos saberes são produzidos acerca da loucura que, também, nos fazem erigir "outras verdades" sobre a concepção e o tratamento da loucura. O que prevalece nos dias atuais, no contexto da Política, é o discurso da desospitalização e da reinserção psicossocial. Porém, mesmo diante de novos saberes e "outras verdades" não nos desprendemos de velhas concepções. O enunciado "lugar de louco é no hospício", que coexiste com outros que atravessam a história dos usuários do CAPS II, e de tantas outras pessoas com sofrimento mental, demonstra que ainda temos desafios a vencer para se construir uma Política de Saúde Mental que ultrapasse as barreiras da exclusão.

Mesmo assim, temos de continuar seguindo em frente e, como nos diz Foucault (1984, p.334), "temos que ouvir o ronco surdo da batalha" nesta tessitura social que centraliza e submete corpos e forças por meio de complexas relações de poder. Com a frase anterior e com a que segue, extraída de um dos prontuários analisados, finalizamos este artigo, demonstrando que, às vezes, o ronco surdo da batalha é ouvido:

Paciente apresentando bom nível de socialização. Comparece sistematicamente nas oficinas, é solidário com os colegas [...]. Quer comemorar seu aniversário aqui. Estabilizado, bem aderido ao Serviço, entendeu a importância da manutenção do seu tratamento e comemora um ano sem internação psiquiátrica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Patrícia Fátima Mendes Guedes
Centro Universitário do Leste de Minas Gerais – UNILESTE
Avenida Tancredo Neves, 3500 B, Bairro Universitário, CEP 35170-056, Coronel Fabriciano - MG, Brasil
Endereço eletrônico: patriciaguedes7@uol.com.br
Maria Celeste Reis Fernandes de Souza
Universidade Federal de Sergipe – UFS
Avenida Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze, CEP 49100-000, São Cristóvão – SE, Brasil
Endereço eletrônico: celeste.br@gmail.com

Recebido em: 11/04/2014
Reformulado em: 20/12/2014
Aceito para publicação em: 01/02/2015

 

 

Notas

** Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de Coronel Fabriciano/MG, Docente do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais - UNILESTE, Coordenadora do Curso de Pós Graduação em Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais - UNILESTE, Especialista em Psicanálise e Saúde Mental pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais - UNILESTE, Mestre em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE.
** Pedagoga, Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Pós-Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CPNq).
1 Os textos da Política Nacional de Saúde Mental são constituídos por portarias, leis e relatórios das Conferências Nacionais de Saúde Mental. Editados a partir dos anos de 1987.
2 Michel Foucault, filósofo, tem sido amplamente utilizado em diferentes campos de conhecimento como o campo da Psicologia, da Linguagem, do Direito, por exemplo. Recentemente é incorporado ao campo da Geografia possibilitando outras releituras do espaço. Ao analisar a territorialização de uma política pública, ou seja, a espacialização da mesma, tendo como fio condutor o discurso, pretendemos contribuir para a ampliação de olhares sobre a fixidez dos espaços que se adota nas políticas públicas, de modo geral, mostrando que o mesmo se constitui na provisoriedade, na contradição, na justaposição que trazem efeitos sobre as políticas e os sujeitos a quem elas se destinam.
3 As recorrentes denúncias de ordem trabalhistas e da política de saúde mental nos anos 1980 impulsionaram, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica e, a partir dela, surgiu núcleos, centros, associações de médicos, psicólogos, e outros profissionais da área da saúde que protagonizaram a luta em defesa da desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos, ou seja, "a inclusão do entendimento de cidadania e cultura, denominado Movimento da Luta Antimanicomial, com envolvimento de pacientes a partir de então chamados de usuários dos serviços de Saúde Mental e seus familiares" (Tenório, 2002, p. 27, grifo do autor).
4 Nomes fictícios.
5 Lúcio frequenta o CAPS II desde setembro de 1995, tinha 33 anos de idade na época. O primeiro surto aconteceu aos 16 anos de idade. Desde então, passou por várias internações psiquiátricas.
6 Pedro foi levado ao CAPS II em dezembro de 1995 por moradores do bairro onde passou a sua infância e que retornava com frequência, permanecendo na rua e sem referência de familiares. Tinha 32 anos de idade quando chegou ao CAPS II, era egresso de hospital psiquiátrico, com relato de três internações psiquiátricas anteriores ao atendimento no serviço de saúde mental.
7 André começou a frequentar o CAPS II em março de 1996, foi levado por uma irmã que, dos três irmãos, apenas ela assumia a responsabilidade pelo acompanhamento dele. Têm história de várias internações psiquiátricas, algumas de longa permanência devido à dificuldade de estabilização da crise.

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