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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.15 no.2 Rio de Janeiro jul. 2015

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Elementos do aconselhamento multicultural aplicados à psicoterapia em contexto etnopsicológico

 

The multicultural counseling elements applied to psychotherapy in the ethnopsychological context

 

Los elementos de asesoramiento multicultural aplicados a la psicoterapia en el contexto etnopsicológico

 

Fabio Scorsolini-Comin*

Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, Uberaba, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teórico tem por objetivo refletir sobre os principais aspectos do aconselhamento multicultural que podem ser aplicados às intervenções etnopsicológicas, tendo como cenário as práticas psicológicas ocorridas em um terreiro de umbanda. São enfatizados os elementos típicos do aconselhamento multicultural, adotados pela Association for Multicultural Counseling and Development. No atendimento aos médiuns, embora na maioria das vezes as queixas não se refiram à espiritualidade, há que se considerar constantemente o universo religioso de imersão desses clientes, devendo o profissional não apenas acolher esses registros, como compreendê-los dentro de um modelo complexo de referência que leve em conta a autoconsciência cultural, a sensibilidade ao próprio patrimônio cultural, bem como a necessidade de reconhecer as suas fontes de desconforto com as diferenças que existem entre si e os clientes em termos de etnia e cultura, considerando o propósito de uma prática psicológica mestiça e diversa.

Palavras-chaves: etnopsiquiatria, aconselhamento psicológico, psicoterapia, cultura.


ABSTRACT

This theoretical study aims to reflect on the main aspects of the multicultural counseling that can be applied to ethnopsychological interventions, in the context of the psychological practices occurred in a backyard of Umbanda. We emphasize the typical elements of multicultural counseling adopted by the Association for Multicultural Counseling and Development. The demands do not refer to spirituality, but the professionals must constantly consider the religious universe of immersion of these clients. The psychologist must not only welcome these records, but also understand them within a complex reference model that takes into account the cultural self-awareness, sensitivity to own cultural heritage as well as the need to recognize their discomfort sources with the differences that exist between them and the clients in terms of ethnicity and culture, considering the purpose of a practice psychological mixed and diverse.

Keywords: ethnopsychiatry, psychological counseling, psychotherapy, culture.


RESUMEN

Este estudio teórico tiene como objetivo reflexionar sobre los principales aspectos de la orientación multicultural que se puede aplicar a intervenciones etnopsicológicas, en el contexto de las prácticas psicológicas ocurridas en la Umbanda. Hacemos hincapié en los elementos típicos de la orientación multicultural adoptados por la Association for Multicultural Counseling and Development. Las quejas no se refieren a la espiritualidad, pero los profesionales deben considerar constantemente el universo religioso de inmersión de estos clientes. Estos aspectos deben ser acogidos, sino también entenderlos dentro de un modelo de referencia compleja que tiene en cuenta la auto-conciencia cultural, la sensibilidad a la propiedad del patrimonio cultural, así como la necesidad de reconocer sus fuentes de malestar con las diferencias que existen entre ellos y los clientes en términos de etnicidad y cultura, teniendo en cuenta el objetivo de una práctica psicológica mixta y diversa.

Palabras clave: etnopsiquiatría, asesoramiento psicológico, psicoterapia, cultura.


 

 

1 Introdução

As discussões sobre psicoterapia e cultura não são recentes, mas têm encontrado na contemporaneidade um acesso privilegiado dentro da noção de clínica ampliada, possibilitando uma visão menos elitizada, urbana e, por vezes, excludente, da atuação em Psicologia Clínica, herança de seu processo de afirmação no contexto brasileiro a partir da década de 1960. Decorridos mais de cinquenta anos do reconhecimento da Psicologia como profissão no contexto brasileiro, muitos aspectos ligados à psicoterapia puderam amadurecer, em uma proposta que flexibiliza os settings e permite o encontro fundamental entre quem busca alternativas para enfrentar as suas dificuldades e quem possui os instrumentos básicos para ofertar esse apoio, cada vez mais em um cenário social amplo e comprometido com aspectos históricos, culturais, econômicos e políticos. Considerar os aspectos culturais do processo terapêutico, dos clientes que buscam ajuda, do próprio profissional e do setting construído para os atendimentos pode balizar o modo como se dão os diálogos, as escutas e as formas de interação, suas características, alcances e limites. Reconhecendo a psicoterapia como campo não apenas de aplicação, mas também de pesquisa nas ciências humanas e da saúde, este artigo tem por objetivo refletir sobre os principais aspectos do aconselhamento multicultural que podem ser aplicados às intervenções etnopsicológicas, tendo como cenário as práticas psicológicas ocorridas em um terreiro de umbanda, localizado no interior do Estado de São Paulo.

A proposta de intervenção psicológica retratada neste estudo estrutura-se a partir de três referenciais teóricos distintos e complementares: abordagem centrada na pessoa (Rogers, 2005; 1973; 2012), aconselhamento multicultural (Arredondo & Tovar-Blank, 2014; Fouad, 2006) e a etnopsicologia/etnopsiquiatria (Devereux, 1972; Leal de Barros & Bairrão, 2010; Macedo, Bairrão, Mestriner, & Mestriner Júnior, 2011; Nathan, 1986). Neste presente estudo, serão enfatizados os elementos típicos do aconselhamento multicultural presentes nos atendimentos psicoterápicos, sendo este referencial tomado como modelo que preconiza a cultura como parte essencial das intervenções psicológicas. Desse modo, serão explicitadas algumas das principais competências multiculturais, no contexto umbandista, exemplificando-as com questões observadas nos atendimentos psicoterápicos.

No entanto, a adoção desse percurso, nos obriga a destacar algumas ressalvas, tendo em vista as limitações do estudo. Para aprofundamentos acerca dos demais vértices das intervenções, abordagem centrada na pessoa e etnopsicologia, sugere-se a leitura dos estudos já publicados sobre o tema (Scorsolini-Comin, 2014a, 2014b), que retratam práticas psicológicas desenvolvidas no contexto umbandista e de saúde mental. Para maiores informações sobre a umbanda, deve-se recorrer a estudos específicos que não apenas apresentam essa religião, como elaboram uma complexa análise acerca das questões sociais, culturais e históricas associadas às suas práticas e ao seu panteão no contexto religioso brasileiro (Concone, 1987; Macedo & Bairrão, 2011).

Outra ressalva importante é que os elementos do aconselhamento multicultural serão tomados, aqui, como presentes no espaço da psicoterapia, não sendo o objetivo deste estudo clarificar as aproximações e os distanciamentos entre psicoterapia e aconselhamento psicológico, o que pode ser encontrado em outras publicações (Santos, 1982; Scorsolini-Comin, 2015, 2014c). Para efeitos didáticos, aconselhamento e psicoterapia serão aqui tomados como práticas próximas ou mesmo sinônimas, a exemplo do que propunha Rogers (1942/2005), já que o que se privilegia nesse estudo são as competências multiculturais que devem atravessar e constituir o saber e as práticas profissionais no campo da Psicologia.

 

2 Psicoterapia e cultura

A noção de cultura é deveras complexa e será desenvolvida neste estudo com referência a um modo de ser e de se organizar em sociedade, com permanências e rupturas ao longo do tempo, em uma acepção próxima a de Rogoff (2005), estudiosa norte-americana do desenvolvimento humano que questiona os padrões normativos por vezes estimulado pela ciência psicológica, como a ideia de fases e estágios padrões, que desconsideram os aspectos culturais envolvidos no processo de desenvolvimento. Desse modo, um estágio desenvolvimental nos fala de um padrão observado em determinadas crianças, por exemplo, mas isso nem sempre se mostra válido quando observamos culturas não européias ou norte-americanas, havendo uma multiplicidade que não pode ser resumida em manuais do desenvolvimento. Esse aspecto pode aqui ser aproximado do contato terapêutico com comunidades distantes culturalmente dos profissionais de Psicologia, por exemplo. O respeito pelas diferentes culturas e formas de organização social parece atravessar a maior parte das intervenções psicológicas, ainda que no nível mais teórico que de sua experiência prática: de que modo a cultura pode ser compreendida e incorporada ao modo como um psicoterapeuta coloca-se diante do seu cliente, por exemplo?

A postura empática desenvolvida por Carl Rogers (1973) nos ajuda a compreender a multiculturalidade na medida em que devemos respeitar a realidade do outro, não estabelecendo julgamentos acerca do modo como se comportam, ou, no caso de uma determinada cultura diferente da nossa, não questionando, no contexto de ajuda, o modo como funcionam e se organizam. Segundo Rogoff (2005), as práticas culturais possuem um sentido próprio, de modo que para compreendê-las, é preciso entender uma comunidade "por dentro", resgatando o sentido de determinada prática para aquela cultura de referência. Essa reflexão é fundamental para que o terapeuta, por exemplo, não julgue as regras culturais estabelecidas e que organizam e dão sentido à vida e à convivência nessas diferentes culturas. Quando falamos em cultura também deve estar implícita a ideia de que estamos (profissionais PSI) inseridos em uma dada cultura e falar em diversidade não é tomar nossa cultura como referência, mas o panorama de todas as culturas à baila. Obviamente que levar em consideração a cultura do outro como ponto de partida para a compreensão do sujeito não nos autoriza a um completo relativismo cultural, teórico ou metodológico, como se nada pudesse ser feito ou inferido em função dos aspectos culturais, mas sim a um processo de reflexão que deve incorporar as matrizes culturais como parte do modo como a pessoa se apresenta, comporta-se e experiencia, o que nos permite uma maior aproximação acerca de seu universo de referência.

Um aporte que pode ser útil nessa discussão é a consideração do desenvolvimento humano como algo cultural, ideia esta defendida por Rogoff (2005). Para esta autora, o desenvolvimento é um processo que mostra regularidades, inclusive culturais, cabendo ao pesquisador a necessidade de conhecer essa cultura, suas características e regularidades, a fim de explorá-la de dentro para fora, ou seja, buscando explicações que partam de reflexões elaboradas a partir da sua pertença a essa comunidade. Embora o profissional possa fazer parte de outra comunidade, com outras formas de organização, é importante que seu olhar não seja totalmente externo, mas que se reconheça na cultura do cliente, promovendo práticas menos estereotipadas e preconceituosas e mais abertas à troca, ao diálogo e à proximidade cultural. Nesse processo de reconhecimento de si nas práticas culturais consideradas diferentes ou distantes, o profissional deve estar atento à complexidade inerente a essa tarefa, haja vista que nem sempre podemos controlar o modo como nossos valores sociais são construídos e incorporados em nossas práticas e formas de ser e nos relacionar. Por vezes esse diálogo não é estabelecido de modo automático, de modo que as relações afetivas também devem ser consideradas na base do estabelecimento desses valores, apontando para a necessidade de que reconhecer-se é fundamental para reconhecer o outro.

Pensando nos desafios de se atuar em comunidades e contextos muitas vezes distantes do profissional de Psicologia é que o aconselhamento multicultural passou a ser desenvolvido como forma de instrumentalizar terapeutas, conselheiros e profissionais de saúde para uma atuação que não naturalize a ideia de cultura, mas que a corporifique em suas práticas psicológicas. As chamadas competências culturais podem e devem ser aprendidas, desenvolvidas, testadas e refletidas ao longo de todo o processo de formação e posterior atuação profissional, não representando um conjunto de saberes e práticas dados a priori, mas passíveis de crítica, aprimoramento e redefinição. Os seres humanos, prenhes de cultura, corporificam práticas, ritos, crenças, afetos, formas de compreender e significar o mundo, o que será discutido na seção seguinte a partir das intervenções etnopsicológicas realizadas em terreiro de umbanda.

 

3 Aconselhamento multicultural e intervenção etnopsicológica

Notadamente no contexto norte-americano, as competências multiculturais vêm sendo evocadas como necessárias aos profissionais da área psi como condição para o estabelecimento de uma boa relação entre profissional e cliente, a fim de que os objetivos do processo terapêutico possam ser atingidos a contento. As competências multiculturais compreendem uma série de características e atitudes que devem ser observadas pelos profissionais psi ao longo de suas intervenções, a fim de que as intervenções possam atingir o maior número de pessoas possível (Arredondo & Tovar-Blank, 2014; Berger, Zane, & Hwang, 2014; Fouad, 2006; Sehgal, Saules, Young, Grey, Gillem, & Nabors, 2011). Tais competências estão presentes em disciplinas e práticas desenvolvidas nos diversos centros de formação em aconselhamento psicológico.

Em 2002, a APA (American Psychological Association) adotou orientações específicas sobre educação, treinamento, pesquisa e prática multicultural a serem empregadas nos atendimentos a minorias étnicas e raciais, imigrantes, populações socialmente excluídas, entre outros. Incluem-se no rol das diversidades aspectos como classe socioeconômica, idade, maturidade psicológica (cognitiva e emocional), religiosidade/espiritualidade, identidade sexual, identidade étnico-racial, aspectos familiares e localização geográfica. Esse documento (Guidelines on Multicultural Education, Training, Research, Practice, and Organizational Change for Psychologists) traz a necessidade de que a prática psicológica seja orientada pelo multiculturalismo e pela diversidade. Assim, a cultura deve ser abordada nas práticas educativas desenvolvidas em diferentes contextos, a fim de que possa conhecer diferentes modelos e padrões culturais que regulam o desenvolvimento humano.

O aconselhamento multicultural tem sido expressivamente evocado pela ACA (American Counseling Association) e pela AMCD (Association for Multicultural Counseling and Development). A AMCD busca desenvolver programas e intervenções que melhorem a empatia e a compreensão étnica e racial. Suas atividades são projetadas para avançar e sustentar o crescimento pessoal e melhorar as oportunidades educacionais para os membros de diversas origens culturais, ou seja, incentiva a compreensão da diversidade cultural. Os autores que mais influenciaram a assunção dessa modalidade no aconselhamento, a partir de suas diferentes abordagens, foram Carl Rogers, Robert Carkhuff, Norman Kagan, Alan Ivey e Stanley Baker (LeBeauf, Smaby, & Maddux, 2009).

No cenário norte-americano há cada vez mais a necessidade de que os profissionais do aconselhamento (que não necessariamente são psicólogos) atuem no atendimento a diferentes etnias e culturas, como, por exemplo, nas intervenções com populações de imigrantes que não dominam a língua inglesa ou que possuem padrões culturais bastante distintos da cultura norte-americana. No entanto, no contexto brasileiro, essa realidade tem se mostrado distinta, de modo que os desafios parecem se dar na aproximação com diferentes culturas, com pessoas que não estão acostumadas com a presença de profissionais de Psicologia, ou mesmo em situações nas quais o psicólogo é convocado a intervir em um cenário em que possui pouca familiaridade e no qual o estranhamento parece ser a primeira reação.

Em uma perspectiva de clínica ampliada, que aparece como uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde brasileiro, os antigos limites do consultório privado são remodelados, passando a abarcar intervenções nas próprias comunidades de referência, em instituições, organizações populares e até mesmo nas ruas, por exemplo, nos chamados consultórios de rua (Jorge & Corradi-Webster, 2012). A clínica ampliada busca estabelecer uma rede na qual profissionais, gestores e usuários estejam vinculados, na busca por uma atenção resolutiva e humanizada (Angnes, Romio, Zuchetto, & Dias, 2013). A escuta clínica, portanto, tem atravessado diferentes cenários, não podendo ser mais confundida como um local de aplicação das práticas psicológicas, mas como uma atitude diante das pessoas em situação de sofrimento psíquico. Assim, o desenvolvimento da escuta clínica, independentemente do espaço físico disponível, tem possibilitado uma atenção mais próxima de diferentes realidades nas quais a oferta de ajuda psicológica nem sempre possui uma via de acesso facilitada, como em comunidades religiosas. Desenvolver essa escuta, mais do que espaços em que a mesma possa se dar, parece ser um dos desafios da clínica que se propõe a uma ampliação de cenários e possibilidades de ajuda.

O recorte etonopsicológico aqui proposto retrata uma intervenção psicológica realizada em um terreiro de umbanda localizado na região periférica de uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo. Trata-se de um terreiro pequeno que utiliza alguns cômodos de uma casa considerada simples, como a garagem, uma sala e dois quartos (onde os trabalhadores da Casa se vestem). Embora os relatos de intervenções psicológicas no contexto umbandista ainda sejam escassos na literatura científica (Alves & Seminotti, 2009; Costa-Rosa, 2008; Scorsolini-Comin, 2014a, 2014b), considera-se que a oferta de apoio psicológico nessa comunidade foi uma forma de atender a uma demanda presente entre os frequentadores do terreiro e tendo em vista o acesso possivelmente restrito a serviços de saúde, notadamente de psicoterapia.

As intervenções psicológicas na comunidade em retrato começaram no ano de 2013, com plantões psicológicos realizados nos dias dos atendimentos ao público e também em psicoterapias com médiuns, cambonos (ajudantes dos médiuns durante a incorporação), familiares de médiuns e pessoas que frequentam o terreiro. Dos muitos casos atendidos desde o início, a maior procura pelo serviço ocorre por parte dos médiuns que trabalham no terreiro, tanto homens quanto mulheres, com idades variando entre 20 e 60 anos. Não se tratam de queixas relacionadas à espiritualidade ou à prática mediúnica, mas a problemas de cunho pessoal e familiar, como crises conjugais, dificuldades nos relacionamentos interpessoais, busca por orientação e reflexão acerca de experiências cotidianas. Tais demandas podem ser consideradas clássicas na prática clínica, não havendo, a partir dessa análise, especificidades quanto ao apoio psicológico prestado na comunidade em apreço. No entanto, não se trata apenas de uma mudança de setting: de uma clínica considerada tradicional, privada, por exemplo, para uma clínica em uma comunidade religiosa.

A simples transposição de contexto não se revela tão simples na prática, exigindo um olhar para a complexidade das intervenções realizadas. A iniciar pela busca por ajuda, por parte dos clientes, apenas para citar um exemplo, que tem ocorrido de diversos modos, entre eles: (a) pelo conhecimento dos profissionais de Psicologia que prestam esse auxílio e que também realizam pesquisas na comunidade; (b) por "indicação" do pai de santo do terreiro, que recebe diariamente várias queixas e pedidos de ajuda e acaba fazendo o convite para que algumas pessoas sejam atendidas por psicólogos que fazem pesquisa no terreiro, caso queiram conversar com esses profissionais; (c) por "indicação das entidades" durante os transes de possessão e em consultas espirituais, que aconselham os consulentes (pessoas que estão se consultando com as entidades incorporadas) a buscar a ajuda de psicólogos.

Embora esses "encaminhamentos" para a psicoterapia não se deem de modo formal, usual ou como esperado na maior parte dos serviços, o que pode até mesmo causar um estranhamento inicial, deve-se considerar que a existência do profissional na comunidade, com espaço e disponibilidade para os atendimentos, tem permitido que essa ajuda seja divulgada de modo oral, anunciando o apoio psicológico prestado nesse contexto. Ao profissional de Psicologia cabe apenas receber as pessoas que buscam ajuda e agendar os atendimentos para uma avaliação inicial, podendo o caso ser atendido na própria comunidade ou mesmo ser encaminhado a outro serviço ou equipamento. Tais "encaminhamentos" recebidos devem ser compreendidos como uma forma de apropriação da comunidade acerca do saber psicológico profissional, a partir de elementos como a oferta de apoio psicológico mais próximo (na própria comunidade) e mesmo de componentes etnopsicológicos, como o diálogo com o contexto de ajuda representado pelo terreiro.

Em 2013, o GT Nacional "Psicologia, religião e espiritualidade", ligado ao Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2013), publicou uma nota com o posicionamento do Sistema de Conselhos de Psicologia para a questão de interface entre essas áreas e no que tange à laicidade das práticas psicológicas. Retomando o Código de Ética da Psicologia (CFP, 2005) no que tange a diretrizes como o respeito na promoção de liberdade, eliminação de preconceitos e necessidade de contextualização histórica das práticas profissionais, a nota do GT afirma que "pautar-se na obrigatória laicidade não implica negar uma interface que pode ser estabelecida pela psicologia e a religião, e pela psicologia e a espiritualidade". Os atendimentos psicológicos, apesar de estarem localizados fisicamente em uma comunidade religiosa, não são pautados em uma prática religiosa, mas sim consideram a existência de uma matriz espiritual que pode e deve ser acolhida por meio da escuta clínica, caso essa seja uma demanda do cliente. Trata-se, portanto, de considerar e respeitar a expressão da espiritualidade do cliente nos atendimentos, caso isso seja evidenciado como uma necessidade, sem quaisquer constrangimentos, doutrinações ou induções para essa temática, o que está alinhado ao princípio de laicidade na atuação.

Neste ponto da apresentação, alguns esclarecimentos são necessários. Primeiramente, os profissionais de Psicologia que atendem as pessoas da comunidade na modalidade de psicoterapia são também professores e pesquisadores de pós-graduação e estão inseridos no terreiro como tal há alguns anos, de modo que são reconhecidos como participantes ativos daquele contexto. Os médiuns e os demais frequentadores já estão acostumados à presença semanal desses pesquisadores no terreiro, o que contribui para a identificação dessas pessoas como sendo "da comunidade", embora não residam naquela região e não sejam médiuns. Em segundo lugar, como o terreiro está localizado na própria casa do pai de santo, considerado o chefe do terreiro, sua casa é diariamente frequentada por fiéis e pessoas da comunidade que buscam ajuda para diversas questões. O pai de santo recebe a todos e conversa sobre os problemas relatados, indicando que as pessoas venham até o terreiro para consultas que ocorrem às segundas e sextas-feiras à noite.

Em terceiro lugar, as entidades são guias espirituais (como espíritos de pretos-velhos, baianos, caboclos, marinheiros, boiadeiros, exus e pomba-giras) incorporados por médiuns que atuam no terreiro de modo voluntário, em sessões abertas ao público (giras), ocorridas duas vezes por semana. Cada médium incorporado atende cerca de seis pessoas por noite (segunda e sexta-feira), sendo que cada consulta dura, em média, 15 minutos. Cada entidade incorporada é acompanhada por um ajudante, o cambono, que auxilia nos trabalhos (acender o fumo, buscar água) e também "traduz" as falas dos espíritos aos consulentes, caso estes não compreendam a mensagem.

No atendimento psicoterápico aos médiuns, embora na maioria das vezes as queixas não se refiram à espiritualidade ou ao terreiro, há que se considerar constantemente o universo religioso de imersão desses clientes, de modo que as menções a entidades, rituais e crenças umbandistas são frequentemente evocados nas narrativas dos clientes, devendo o profissional não apenas acolher esses registros, como compreendê-los dentro de um modelo complexo de referência e que o obriga a empregar determinadas competências multiculturais, a fim de considerar a cultura desse outro como essencial no processo psicoterápico, respeitando o princípio da laicidade, tal como apregoado pelo código de ética profissional e pelas atuais discussões na área.

O profissional de Psicologia, a exemplo do que foi descrito no estudo de Neubern (2013), ao tratar da relação entre psicoterapia e espiritualidade, não pode se limitar a dizer que acredita no que o cliente acreditar, mas deve aceitar genuinamente o relato como sendo parte de uma cultura na qual a pessoa está imersa, de modo muito mais complexo que o binarismo "crer" ou "não crer", por exemplo, fruto de uma tradição psicológica considerada mais conservadora e que compreende o psicólogo ético como aquele que aceita, sem se posicionar, relegando a espiritualidade a um campo considerado não científico e, portanto, não passível de incorporação em uma prática profissional nos moldes preconizados pelo Código de Ética Profissional do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005). O código profissional, essencial para a atuação na área, deve ser respeitado no exercício da profissão, mas também ampliado e refletido a partir de discussões mais recentes como as já citadas pelo GT Nacional "Psicologia, religião e espiritualidade", de 2013. É importante reconhecer que, embora não haja no código de 2005 diretrizes específicas sobre essa atuação, seus pressupostos podem e devem orientar uma prática que promova dignidade, respeito e integridade.

É preciso, pois, compreender os significados desses relatos e de que modo esse sistema de referências está cravado no psiquismo do cliente, em suas práticas e formas de ser e estar no mundo, como exemplificaremos na seção seguinte, ao abordarmos especificamente as competências multiculturais. Como será discutido, não se trata de confundir atendimento psicoterápico com elementos de um "atendimento espiritual", mas permitir que a dimensão da espiritualidade do cliente seja acolhida pelo profissional na psicoterapia, possibilitando a construção de um espaço que ofereça ao cliente condições de ser autêntico. A proposta aqui relatada não se propõe a discutir o manejo clínico de cada caso, nem a leitura disponibilizada ou recomendada por cada abordagem teórica, mas de permitir essa expressão da espiritualidade como parte do processo de ajuda e manejar tal elemento dentro dos preceitos éticos que orientam a atuação psicológica.

 

4 Competências multiculturais e a mestiçagem na psicoterapia

As competências multiculturais (Arredondo, Toporek, Brown, Jones, Locke, Sanchez, & Stadler, 1996) referem-se a diversos domínios, tais como: atitudes, crenças, conhecimentos e habilidades que caracterizam intervenções, pautadas no reconhecimento da multiculturalidade e de como isso pode interferir no processo de aconselhamento. Entre as atitudes e crenças destacadas por esses autores e incorporadas pela AMCD, podemos mencionar: (a) A autoconsciência cultural e a sensibilidade ao próprio patrimônio cultural são essenciais; (b) Deve-se considerar sua própria bagagem cultural, tendo consciência que suas experiências, crenças e afetos podem ter influências sobre os processos psicológicos; (c) Necessidade de reconhecer os limites de sua competência multicultural; (d) Necessidade de reconhecer as suas fontes de desconforto com as diferenças que existem entre si e os clientes em termos de raça, etnia e cultura, considerando que os valores sociais são construídos e incorporados pelo profissional em suas práticas e modos de ser.

No cenário dos atendimentos psicológicos realizados no terreiro, deve-se problematizar, a exemplo do que é trazido pela AMCD, sobre as crenças dos profissionais, de que modo os psicólogos chegaram a essa comunidade e quais as suas crenças acerca desse universo, seus ritos, frequentadores, bem como sua própria bagagem cultural no que se refere à espiritualidade. Em nenhum momento isso significa que o psicólogo deve ser umbandista ou mesmo concordar com as práticas e rituais realizados no terreiro, por exemplo. Mas na situação de psicoterapia é importante que se possa acolher os relatos sem estranheza ou desconfiança. Esse acolhimento, no entanto, nem sempre ocorre de modo automático ou a despeito da bagagem de conceitos e valores já trazidos pelo profissional da Psicologia. "Estranhar" as narrativas no sentido de poder refletir acerca das mesmas pode ser muito importante, o que não autoriza o profissional a julgar a sua "veracidade". Nem sempre os valores sociais podem ser modificados, mas há que se estabelecer uma atitude de respeito pelos valores professados, acolhendo-os de modo adequado e permitindo que o cliente os expresse de maneira livre, encontrando um espaço de conforto emocional para essa expressão, o que é possibilitado pela presença do profissional e suas atitudes facilitadoras, tais como afirmado por Rogers (2005). Não se trata, pois, de não permitir que o profissional não elabore julgamentos, mas de que tais processos não atravessem significativamente a psicoterapia e a sua relação com o cliente, exigindo que o profissional aceite o cliente com as suas possíveis incongruências e paradoxos.

Ao suspender os juízos de realidade (não me cabe julgar se aquilo é real ou não) e de valor (não me cabe concordar ou não com aquele universo místico), o profissional acaba aproximando-se do cliente, de modo que a sua espiritualidade pode ser considerada, ou mesmo utilizada em alguma reflexão por parte do psicólogo, desde que seja respeitada como uma visão de mundo e de ser humano, o que é um dos pressupostos de sua atuação. Recomenda-se que o psicólogo deva conhecer a comunidade, seus ritos, costumes, as giras de desenvolvimento mediúnico, bem como os atendimentos espirituais, a fim de que possa recolher informações sobre as crenças professadas, o vocabulário empregado e a própria gramática daquela comunidade.

Embora tenha as suas próprias crenças (ou não), há que se considerar que naquele momento é preciso empatizar com o cliente, a fim de compreendê-lo de modo genuíno. Essa compreensão empática tão destacada na abordagem centrada na pessoa (Rogers, 1973) só pode ser alcançada se o profissional estiver suficientemente receptivo para conhecer os códigos, a religião, sua forma de organização e o arcabouço mítico que envolve aquele cliente e que também pode diferir de suas referências pessoais. Essa postura de abertura nem sempre é facilmente desenvolvida e requer do profissional a capacidade de empatizar-se pelo/com cliente, podendo aproximar-se, reconhecê-lo, ao mesmo tempo em que conserva seu próprio jeito de ser. Desenvolver essa atitude facilitadora é dos principais desafios da abordagem centrada na pessoa (Santos, 1982).

A fim de contribuir no desenvolvimento da empatia neste contexto específico de atenção em saúde, sugere-se que o profissional conheça a comunidade de referência, buscando aproximar-se do modo de vida das pessoas que ali frequentam para reconhecê-las em suas práticas cotidianas. Essa imersão na comunidade não ocorre instantaneamente nem é uma condição sine qua non para os atendimentos, mas pode ser fruto de um contínuo processo de aproximação, de modo que o profissional pode realizar diversas atividades, como ler sobre a umbanda e conhecer seu universo mítico, pode participar dos ritos, observando o trabalho dos guias incorporados, participar da vida da comunidade, quer seja em práticas religiosas ou não, enfim, ampliar seu repertório de experiências e conhecimentos com vistas a amplificar também suas possibilidades de escuta clínica em um universo que, muitas vezes, pode se distanciar do seu.

Ao conhecer os preceitos da umbanda e sua forma de organização, deve estar habilitado a considerar essa cultura como sendo diferente da sua, mas não superior ou inferior, buscando romper com as posturas etnocêntricas. Obviamente que se deve considerar que essa ruptura nem sempre é completa e que esta não se processa apenas por um maior conhecimento do fenômeno, mas também depende de experiências, disponibilidade interna e aspectos que atravessam a subjetividade do profissional, sendo esse um processo complexo e desafiador. O que apresentamos neste estudo, portanto, configura-se como uma possibilidade que tende a repercutir de modo positivo na maneira como o profissional pode ver e compreender a comunidade na qual pretende intervir. Não se trata de modificar suas impressões ou valores, pelo contrário, mas entrar em contato com esses elementos e os advindos da cultura na qual se pretende intervir como forma de promover uma prática ética, responsável e atenta ao outro e sua cultura. Assim, considerar sua bagagem cultural e a sua própria espiritualidade podem ser igualmente importantes, a fim de que se possa considerar e trabalhar com a cultura e as características espirituais da comunidade na qual as intervenções são realizadas.

Em termos dos conhecimentos para a prática do aconselhamento multicultural (Arredondo et al., 1996), podemos mencionar que esses profissionais: (a) possuem conhecimento específico sobre a sua própria cultura e como isso pode afetar suas definições e preconceitos acerca da normalidade/anormalidade e o processo de aconselhamento, o que envolve também considerar todo o arcabouço da formação em Psicologia e o modo como esses elementos orientam práticas e formas de avaliar, julgar e se posicionar; (b) possuem conhecimentos sobre opressão, racismo, discriminação e os estereótipos que podem afetá-los pessoalmente e em seu trabalho. Há o reconhecimento das próprias atitudes, crenças e sentimentos; (c) possuem conhecimento sobre o seu impacto social sobre os outros. Ao profissional, portanto, cabe a necessidade de que, mais do que desenvolver ou dominar as competências multiculturais, deve-se articulá-las de modo integral com a sua formação teórica e os seus pressupostos éticos de atuação.

Aqui diversas questões podem ser retomadas. A primeira delas refere-se ao próprio estereótipo do profissional de Psicologia, o que aparece nos relatos de alguns clientes no contexto em apreço. Por vezes os clientes mencionam experiências anteriores consideradas negativas, em consultórios particulares ou na rede pública de saúde, trazendo uma noção do senso comum do psicólogo como alguém "distanciado", que "fica observando", muitas vezes associado àquele que "lê mentes", cuida de "loucos", "prescreve medicamentos" (Scorsolini-Comin, 2014b), que não oferece respostas ou que parece não entender os problemas relatados. Ao romper com essa imagem socialmente construída e, muitas vezes, difundida de modo errôneo e arbitrário, pode-se buscar uma descrição de profissional que se contraponha a essa imagem deturpada, informando a população sobre as reais atribuições desse profissional, o que vem sendo realizado na comunidade em retrato, mas que também pode ser conduzido em outras experiências e serviços.

Também as noções de normalidade e anormalidade devem ser exploradas. A construção do conceito de normalidade parece intimamente relacionada à de cultura (Rogoff, 2005), de modo que o que é normal ou desviante depende de uma comparação com um padrão específico de comportamentos, fazendo com o que é considerado normal em um contexto não o seja, necessariamente, em outro. Essa distinção parece fundamental na psicoterapia, de modo que as atitudes de acolhimento, aceitação incondicional e empatia têm se mostrado mais importantes que os questionamentos acerca do que é ou não normal, a exemplo do que propõe Rogers (1973). Obviamente que não se trata de naturalizar o patológico ou patologizar o natural, mas compreender as construções culturais sobre normalidade veiculadas nas e através das práticas culturais da comunidade de referência. Daí a importância de se conhecer o que aquela comunidade considera em termos de normalidade/anormalidade, quais as práticas de saúde existentes, o que, no caso, também se relaciona com o fato de ser uma comunidade religiosa adepta da umbanda, que possui especificidades e características que atravessam a constituição de seus seguidores.

Assim, o transe de possessão, por exemplo, que poderia ser considerado exclusivamente uma manifestação de um aspecto psicopatológico, um falseamento ou uma histeria coletiva, possui um significado próprio quando se analisa o seu registro na comunidade e na religião de matriz afrobrasileira, sendo um fenômeno espiritual compreendido, vivenciado e compartilhado pela comunidade de referência. Nesta comunidade, a mediunidade de incorporação não apenas faz parte do imaginário do grupo, mas está presente constantemente no dia-a-dia dessas pessoas. Torna-se natural, portanto, que esses relatos e experiências sejam trazidos à baila na psicoterapia, devendo o psicólogo compreender a profundidade dessas comunicações e suas repercussões na vida do cliente.

No que tange especificamente o conhecimento acerca da opressão, do racismo e da discriminação, podemos recuperar a própria construção da umbanda, considerada uma religião de periferia, já bastante perseguida em outras décadas e que surge como uma representação da miscigenação do povo brasileiro pela mistura de elementos religiosos africanos, católicos e espíritas, bem como por matrizes sociais dos negros africanos, dos brancos europeus e dos índios (Concone, 1987). Justamente por se situar nessa confluência, aspectos relacionados às minorias e à exclusão social fazem parte da constituição da umbanda, de modo que o psicólogo deve estar atento a esses elementos e dimensionar esse aspecto na escuta em psicoterapia, buscando responder a questões como: de que modo o racismo, as práticas excludentes e o pouco apoio social repercutem nas pessoas que estão buscando ajuda psicológica no terreiro? Como a umbanda pode oferecer uma lógica mais inclusiva para essa população? (Bairrão, 2005). Em termos de políticas públicas de saúde e educação: por que essas pessoas, por exemplo, não estão inseridas nos equipamentos de atenção à saúde? Será que esses equipamentos estão suficientemente constituídos para receberem essas pessoas e seus contextos de vida? A sua espiritualidade, por exemplo, poderia ser acolhida por profissionais de saúde que não conhecessem a umbanda, a comunidade de referência e os seus costumes? Assim, a psicoterapia proposta no espaço do próprio terreiro tem se mostrado uma alternativa importante e adequada às necessidades de seus frequentadores. Esses apontamentos, obviamente, são tecidos e manejados nos atendimentos psicoterápicos tendo como base o código de ética profissional (CFP, 2005) e as recentes diretrizes profissionais no que tange à relação entre Psicologia, religião e espiritualidade (CFP, 2013).

Acerca das habilidades necessárias para a prática do aconselhamento multicultural (Arredondo et al., 1996), podemos mencionar que esses profissionais devem: (a) buscar formação profissional para melhorar a sua compreensão e eficácia no trabalho com diferentes populações e culturas; (b) ser capaz de reconhecer os limites das suas competências, o que se alinha ao que é exposto no código de ética profissional, e procurar formação educacional complementar; (c) buscar compreender que os profissionais são seres culturais e que estão ativamente buscando uma identidade não preconceituosa, excludente e elitizada.

A formação profissional atenta à multiculturalidade, embora seja cada vez mais uma necessidade em tempos de ampliação de cenários para a escuta clínica, ainda esbarra em muitos modelos considerados tradicionais e com pouca permeabilidade para questões como a espiritualidade. Também atento à necessidade de congruência ou autenticidade, apregoada por Rogers (1973) como condição básica para a psicoterapia, o profissional deve estar aberto a reconhecer suas dificuldades e limitações que extrapolam o maior conhecimento do contexto de referência, por exemplo. As competências multiculturais ainda são pouco exploradas nos currículos dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia, havendo pouco espaço para as reflexões éticas da profissão e de seus desafios diante da multiculturalidade. As práticas em comunidades, em instituições e em contextos não tradicionais ainda carecem de modelos específicos de atuação, de modo que os saberes multiculturais podem fornecer condições para um trabalho que não apenas considere a cultura do outro, mas que a incorpore no fazer profissional.

As limitações pessoais e de formação devem ser consideradas e respeitadas no exercício profissional, não devendo o profissional adaptar-se a tudo e disponibilizar-se a intervenções com as quais não esteja seguro ou para as quais não apresente disponibilidade e interesse, o que se alinha aos pressupostos éticos que orientam a sua atuação. A busca por formação profissional não deve também incluir apenas os espaços formais, muitas vezes cercados de conteúdos engessados, deveras tradicionais e com pouca flexibilidade em termos das adaptações necessárias para a prática que se almeja. No contexto que ilustra este presente estudo, mostra-se importante e recomendável que o profissional de Psicologia leia sobre religiosidade, espiritualidade, umbanda, converse com seus frequentadores, faça pesquisas acerca do tema e busque elementos que o ajudem a compreender aquele universo de referência. Nas consultas psicológicas, por exemplo, são relativamente frequentes os relatos de conversas com mentores espirituais e entidades, de modo que o psicólogo deve conhecer o contexto dessas consultas, podendo, caso deseje, consultar-se e também e vivenciar essa experiência. O que é receber uma orientação de uma entidade e depois discuti-la com seu psicólogo? Como isso pode ser manejado no acontecer terapêutico? Essa experimentação a partir do próprio corpo, por exemplo, é narrada por Csordas (2008) no âmbito da antropologia psicológica, haja vista que o corpo possui uma concretude e oferece uma base existencial para os sistemas simbólicos daquela cultura. O profissional, desse modo, poderia experienciar para poder conhecer, o que se aproxima do propósito das competências multiculturais.

Para essas questões não há respostas prontas, mas mostra-se muito importante que o profissional tenha uma atitude de abertura para encontrar o outro na sua situação de sofrimento, quaisquer que sejam os elementos que balizem a sua prática e a sua escuta. Encontrar-se com a própria religiosidade também é muito importante (Neubern, 2013), o que pode também ser fomentado em sua psicoterapia pessoal. Embora a formação em Psicologia não incorpore, de fato, os conteúdos e reflexões sobre religiosidade e espiritualidade (Freitas, 2012), o psicoterapeuta pode imbuir-se na tarefa de pesquisar e conhecer mais esse campo, possibilitando que a temática possa emergir em seus diferentes cenários de atuação.

O que ocorre em muitos processos de aconselhamento é a consideração da cultura como algo que possa ser melhorado, comparado, mensurado. Buscando investigar os processos de transformações e as regularidades de cada cultura ao longo do tempo, a exemplo do que propõe Rogoff (2005), pode-se conhecer uma determinada cultura a fundo, a fim de entender o sentido de determinadas práticas naquele contexto específico. O aconselhamento psicológico organizado a partir dessas questões deve estar a serviço dessa compreensão, o terapeuta deve se colocar disponível para refletir sobre culturas diferentes da sua, em uma consideração positiva incondicional sobre essa realidade.

Neste ponto podemos refletir, emprestando as considerações da etnopsiquiatria (Devereux, 1972), sobre o perigo dos posicionamentos etnocêntricos, sobre a necessidade de evitarmos nos posicionar em oposição ou questionamento em relação à cultura do outro. No campo das psicoterapias, é evidente que essa discussão deve considerar aspectos teóricos, profissionais e da prática em Psicologia, de modo a reconhecer uma determinada cultura profissional que se constitui, e também se constituiu, a partir de diversas lutas e rupturas sociais e culturais na história de nosso país (Bock, 2009). Quando nos colocamos de modo exclusivamente etnocêntrico, favorecemos o questionamento sobre esse outro e suas características sociais e culturais de modo unívoco – logo, o crivo passa a ser, essencialmente, a cultura do próprio conselheiro, que julga a pertinência ou adequação desses aspectos culturais no desenvolvimento do cliente. Os riscos de uma visão muito voltada aos próprios valores ou ao que o profissional considera como correto, normal e adequado, sem a tentativa de compreender o repertório cultural do cliente, são justamente a emissão de julgamentos expressos em questionamentos como: "Mas isso não faz sentido!", "Por que fazer/ser dessa forma?", "Você não pode agir assim!", "Por que tem que seguir essa crença?", "Você acredita nisso?". Esses questionamentos fictícios não devem fazer parte do repertório prático do profissional de Psicologia. Uma prática ética, tal como apregoada pelo código profissional em vigência no país, considera essa dimensão, favorecendo uma atuação atenta a formas não excludentes e preconceituosas.

A etnopsiquiatria, como psicoterapia, é necessariamente múltipla, mutável, portadora de nuances e de diferenças, pois seu exercício apoia-se na prática das mestiçagens de universos lógicos, do quadro, das maneiras de pensar o sentido (mais do que a causa) e o tratamento dos transtornos (particularmente no que se refere aos objetivos de intervenção). Ela não é nem uma teoria fechada, etnocêntrica, isto é, à maneira ocidental, nem a aplicação de uma abordagem inteiramente codificada. Diversidade, portanto, da etnopsiquiatria dita "clínica" é condição necessária e resultado de uma prática aberta à mestiçagem dos seres e das habilidades, mas também unidade, pois o ponto comum é, segundo Devereux [...], a aplicação de uma metodologia complementarista (Borges & Pocreau, 2009, p. 235).

Ao afirmar que "ninguém é branco: somos todos mestiços", Neubern (2013, p. 169) destaca a necessidade de uma prática psicológica mestiça, a exemplo da etnopsiquiatria, como destacado por Borges e Pocreau (2009), que não delimite com precisão o "eu" e os "outros", mas que possam encontrar pontos de diálogo e de aproximação entre essas duas polaridades, a fim de promover uma escuta empática, genuína, autêntica, emprestando aqui os termos desenvolvidos sobremaneira por Rogers (1973). A umbanda, elemento místico que costura a identidade dos frequentadores da comunidade, representa de modo basal a mestiçagem de nossa gente, da qual somos fruto, reflexo, não expectadores. A mestiçagem se faz presente em nossa matriz histórica e cultural, de modo que não considerá-la em nossa constituição (dos clientes e dos profissionais) é reafirmar perigosos estereótipos que se relacionam com posturas racistas e excludentes, o que é veementemente condenado pelos pressupostos do aconselhamento multicultural.

 

5 Considerações finais

No aconselhamento multicultural há a necessidade de reconhecer a cultura do outro como constitutiva do seu modo de ser, não cabendo ao profissional levantar questionamentos ou criticar tais características, ainda que estas pareçam, em sua visão, "afetar" o cliente ou "dificultar" o seu crescimento pessoal. Esses elementos devem ser incorporados e refletidos como uma realidade experienciada pelo cliente, devendo o profissional estar aberto para a consideração dessa cultura no processo de aconselhamento como mais um aspecto particular da relação de ajuda estabelecida. Compreender essa cultura, suas regularidades e ressonâncias no indivíduo, a despeito de sua própria cultura, crenças e valores, parece ser o desafio mais premente nesse tipo de atendimento.

Nos Estados Unidos, os parâmetros para atuação no aconselhamento multicultural estão presentes em todos os processos de aconselhamento. A incorporação de diretrizes específicas faz referência ao contexto americano, marcado por populações de imigrantes e com diversidades étnico-raciais que fazem parte do país. Mas, em linhas gerais, tais elementos podem ser incorporados em todos os processos de aconselhamento, a exemplo de atendimentos realizados em uma comunidade religiosa, o que foi apresentado neste estudo. De que modo o psicoterapeuta pode se posicionar em processos marcados por elementos culturais aos quais não cabem julgamentos ou um juízo de realidade? Como absorver esses aspectos na condução do processo psicoterápico? Esses são aspectos que atravessam a constituição do campo do aconselhamento psicológico, da psicoterapia e também da atenção psicológica em contextos comunitários.

Mais que uma articulação entre clínica, comunidade e Psicologia da Religião, o registro aqui endereçado busca fortalecer a necessidade de real incorporação da cultura no fazer profissional. Essa cultura constitui não apenas o cliente, mas o profissional e a própria situação de encontro, já que o modelo de intervenção pode também ser circunscrito àquele determinado contexto, como o aqui relatado. Promover o diálogo entre Psicologia e espiritualidade parece ser um caminho para um maior conhecimento acerca dessas interfaces, o que se materializa na experiência aqui retratada. As competências multiculturais, desse modo, podem ser um elemento importante a ser considerado na formação profissional e também na prática psicoterápica, abrindo a possibilidade de uma escuta que realmente acolha, suporte e ofereça sustentação para o processo de mudança e desenvolvimento que atravessa toda e qualquer prática PSI.

 

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Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Departamento de Psicologia do Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais
Avenida Getúlio Guaritá, 159, Abadia, CEP 38025-440, Uberaba - MG, Brasil
Endereço eletrônico: fabioscorsolini@gmail.com

Recebido em: 19/02/2015
Reformulado em: 21/05/2015
Aceito para publicação em: 25/05/2015

 

 

Notas

* Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado na área de Tratamento e Prevenção Psicológica pela Universidade de São Paulo (CNPq, Processo 501391/2013-4). Professor Adjunto do Departamento de Psicologia do Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, onde coordena o PROSA - Laboratório de Investigações sobre Práticas Dialógicas e Relacionamentos Interpessoais (CNPq).

Agradecimentos: Ao pai de santo da comunidade na qual este estudo foi desenvolvido, Sr. Antônio Henriques Alvarenga (Toninho) e à pesquisadora Alice Costa Macedo, pelo incentivo, abertura e constante contribuição a este trabalho.

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