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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.15 no.3 Rio de Janeiro Nov. 2015

 

CLIO-PSYCHÉ

 

A profissionalização da Psicologia em Angola: um percurso em construção

 

Professionalization of psychology in Angola: a work in progress

 

Profesionalización de la psicologia en Angola: un recorrido en construcción

 

João Manuel Saveia*; António Virgílio Bittencourt Bastos**; Adriano de Lemos Alves Peixoto***

Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, Bahia, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O propósito deste trabalho foi o de descrever as bases históricas do processo de profissionalização da Psicologia em Angola. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, na qual foram entrevistados cinco profissionais que, pelo histórico profissional, pressupôs-se tratarem-se de fontes potenciais de informação sobre a história da Psicologia em Angola. Constatou-se que a profissionalização da Psicologia é um percurso ainda em construção à procura da sua efetiva institucionalização. Nesse processo, alguns desafios apresentam-se, dentre eles: a despartidarização da profissão;a criação de uma entidade que congregue os profissionais e seja reguladora da profissão; a "demarcação das águas" entre o exercício profissional do psicólogo e o do formado em Ciências da Educação; o desafio de alicerçar a atuação em ações e ferramentas que tenham suporte empírico na pesquisa, considerada como base para quaisquer níveis de intervenção e para quaisquer atividades nas várias subáreas de atuação da Psicologia.

Palavras-chave: profissionalização, histórico, Psicologia em Angola.


ABSTRACT

The purpose of this study was to describe the historical underpinnings of the process of professionalization of psychology in Angola. The Data were collected through semi-structured interviews. Five professionals were interviewed by professional background, it is assumed that they are potential sources of information about the history of psychology in Angola. It was found that the professionalization of psychology is a work in progress and looking for its effective institutionalization. In this process, some challenges are presented, as the separation between political parties and the profession, creating an entity that brings together professionals and regulates the profession, the much needed separation between the professional psychologist's and those with a degree in Educational Sciences and the challenge of supporting operations in actions and tools that have empirical support in the research, considered as a basis for any intervention levels and any activities in the various subfields of psychology of action.

Keywords: professionalization, history, psychology in Angola.


RESUMEN

El propósito de este estudio fue describir los fundamentos históricos del proceso de profesionalización de la psicologia en Angola. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semi-estructuradas. Fueron estrvistados cinco profissionales que, bajo sua trajectoria profissional, se consideran fuentes de información sobre la historia de la psicología en Angola. Se encontró que la profesionalización de la psicología es un campo en construcción en busca de su efectiva institucionalización. En este proceso , se presentan algunos retos , entre ellos despartidarização la profesión, la creación de una entidad que reúna a los profesionales y regule la profesión, la " demarcación de las aguas" entre la práctica profesional de los psicólogos y de la Licenciatura en Ciencias de la Educación y el desafío de apoyar el esfuerzo y las herramientas que tienen apoyo empírico en la investigación considerado como la base para cualquier nivel de intervención y las actividades en los diversos subcampos de la psicologia.

Palavras clave: profesionalización, historia, psicologia en Angola.


 

 

1 Introdução

Em Angola o surgimento da Psicologia é recente, e os primeiros cursos surgiram há treze anos. Considerando esse cenário, esta pesquisa partiu do pressuposto de que mapear o campo profissional da Psicologia é condição básica para identificar problemas, discutir questões e prospectar cenários que possam conduzir a um crescente reconhecimento do papel social que a Psicologia, como ciência e profissão, cumpre em Angola.

Assim, com este estudo, procura-se fazer um resgate do percurso da profissionalização da Psicologia em Angola, desde a independência do País até a atualidade. Como afirmam Schultz e Schultz (2012, p. 2), "...o conhecimento histórico organiza a desordem e estabelece um significado ao que parece ser um caos, colocando o passado em perspectiva para explicar o presente".

Vários são os trabalhos que se dedicam a estudar a Psicologia nos países mais desenvolvidos, porém são poucos os que se têm dedicado ao estudo desse campo em Angola. Assim, com esta pesquisa, procurou-se cobrir, de alguma forma, a insuficiência de trabalhos no contexto africano, especificamente em Angola.

Em um primeiro momento, apresenta-se um breve resgate histórico da profissionalização da Psicologia, de modo geral, seguindo-se o método do estudo e os eventos marcantes do percurso da Psicologia em Angola. A institucionalização da Psicologia no país é outro tópico que marca o texto.

Ao longo do texto, procura-se amparar as discussões e conclusões em experiências de outros países, não para copiar, mas como ponto de partida para reflexões sobre a realidade da profissão em Angola. Para tanto, optou-se por dar preferência às experiências de Portugal e do Brasil, não apenas pela proximidade e afinidade cultural e linguística, mas também pela influência que exercem no campo da Psicologia em Angola, quer pelo número de profissionais angolanos formados nesses países, quer pela bibliografia e instrumentos de medida neles produzidos e "importados" pelos psicólogos angolanos (Saveia, 2015).

 

2 A profissionalização da Psicologia

A profissionalização da aplicação do conhecimento produzido pela Psicologia, segundo Malvezzi (2010), ocorreu entre o final do século XIX e início do século XX, em um período aproximado de 50 anos, embora a produção e a aplicação de conhecimentos sobre os processos psicológicos existam desde os primórdios da história humana.

Uma retrospectiva histórica da profissionalização do psicólogo pode ser encontrada em Malvezzi (2010). Segundo o autor, foi em meados do século XVI que apareceu pela primeira vez o vocábulo psychologia, na língua latina, para designar o estudo ou a ciência da alma, que era um campo de saber integrado à Teologia e à Anatomia. Na época, os fenômenos e os eventos estudados incluíam questões como os fantasmas, a transmissão do pecado original, a ação da alma sobre o corpo e a possessão demoníaca. Ainda segundo o autor, a alma era assumida como um elemento essencial da vida e inspirava as explicações sobre o funcionamento psíquico.

Como conceito, a Psicologia surgiu aos poucos, a partir das contribuições de filósofos como Descartes, Malbrache, Leibniz e Locke, entre outros pensadores que estudavam os processos psíquicos, por meio da busca de critérios do conhecimento, das condições produtoras das certezas, da explicação da consciência e da avaliação das transgressões (Malvezzi, 2010). Não obstante o desenvolvimento de tais ideias, que alicerçaram a constituição do campo de conhecimento, ele apenas foi reconhecido como autônomo na segunda metade do século XIX.

Na mesma direção, Schultz e Schultz (2012) advogam que o século XIX é o ponto de partida para o entendimento das questões complexas que definem e dividem a Psicologia atual, por tratar-se de um período em que ela se tornou uma disciplina independente, com métodos de pesquisa distintos e fundamentação teórica. Foi o momento em que os filósofos estabeleceram a justificativa teórica para uma ciência dedicada à natureza humana. O passo seguinte seria a transformação da teoria em realidade, o que ocorreu logo, graças aos psicólogos que proporcionaram o tipo de experimentação que viria completar a fundação da nova Psicologia. Somente quando os pesquisadores passaram a confiar na observação e na experimentação cuidadosamente controladas para a mente humana é que a Psicologia começou a adquirir uma identidade distinta das suas raízes filosóficas (Schultz & Schultz, 2012).

O reconhecimento do campo marcou uma etapa importante, por abrir o espaço necessário à criação da profissão do psicólogo. Percebe-se que foi ainda no século XIX, em concomitância com a reorganização de outras ocupações já tradicionais (médicos, engenheiros, etc.), que surgem os primeiros sinais de uma profissão alicerçada no conhecimento sobre o comportamento humano. Na época, e segundo Koppes (2007), já eram encontrados, em diversos países, laboratórios, revistas, disciplinas acadêmicas, associações e serviços profissionais que levavam o nome de Psicologia.

Não obstante os sinais visíveis dos serviços profissionais focados no comportamento humano no século XIX, somente nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial (1919) é que a Psicologia aparece claramente configurada no quadro das atividades ocupacionais, já sob o formato de profissão institucionalizada.

Em Angola os primeiros cursos de Psicologia surgiram no início da década de 2000, com a criação das primeiras Instituições de Ensino Superior privadas. Não obstante a recenticidade dos cursos, é notório o crescimento e o reconhecimento da importância do campo: tanto pela demanda apresentada pelas organizações, quanto pelo número crescente de cursos e estudantes interessados por essa formação.

Entretanto, no mundo do trabalho, os profissionais do campo vão desenvolvendo atividades fragmentadas e, por isso, não possuem uma visão da totalidade do contexto em que se inserem. Muitos profissionais usam técnicas e concepções pouco conhecidas e de validade incerta, sem a necessária base científica, e a intervenção profissional é orientada mais pelas respostas já conhecidas do que pelo exame cuidadoso das situações (Saveia, 2009). Por esse motivo, a Psicologia em Angola não se tem diferenciado efetivamente de outros campos do conhecimento, e apenas recentemente começou a despertar o interesse pelo seu estudo. Assim, o cenário ainda é incipiente, principalmente para aquelas atividades que vão além das tradicionais.

No país, até ao momento, e provavelmente pelo surgimento recente da formação na área, não há nada sistematizado sobre como a Psicologia surge e se organiza, gerando uma lacuna a ser preenchida, em parte, por este trabalho, que objectiva resgatar o percurso da profissionalização do campo no país.

Ressalta-se que, em Angola, até 1963, não havia ensino superior. Colônia de Portugal por mais de cinco séculos, Angola alcançou a independência em 1975, embora a luta pela independência tenha começado a 4 de fevereiro de 1961, altura em que os angolanos tomaram a iniciativa de se insurgir, com armas, contra o domínio português. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola (Saraiva, 1999).

Após a independência, e com a ascensão ao poder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido de orientação socialista, começou mais uma fase da história de Angola, marcada principalmente pela guerra que a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) levou a cabo contra o Governo do MPLA. Apenas a 4 de Abril de 2002 (após a morte do líder da UNITA, em Fevereiro do mesmo ano) a paz se consolidou em Angola. No poder, desde a independência, está o MPLA sendo José Eduardo dos Santos, o Presidente da República, desde 1979, ano em que faleceu o primeiro Presidente.

Ressalta-se também que a Angola de hoje é o resultado de uma história complexa, na qual se combinam as opções africanas e as pressões europeias. Para Lopes (2000), constata-se a presença de sistemas em conflito. O sistema industrial rígido versus sociedade tradicional africana e seus valores. Há uma coexistência de três sistemas que se podem representar num continuum, cujos extremos são o sistema industrial moderno e o sistema tradicional original e, no intervalo entre eles, situa-se um sistema intermediário.

 

3 Método

Para este estudo, os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, cujo roteiro continha três questões orientadoras:

1. Trajetória profissional dos entrevistados;

Descrever a trajetória profissional dos entrevistados, buscando mapear elementos constitutivos da história da Psicologia em Angola.

2. Possíveis fases de desenvolvimento da Psicologia em Angola;

Caracterizar as possíveis fases da Psicologia em Angola, com destaque para as demandas do contexto e as respostas sobre o fazer dos psicólogos.

3. Institucionalização da Psicologia.

Caracterizar o processo de regulamentação da profissão, destacando os conflitos e alianças, aprovações e questionamentos, bem como as continuidades e rupturas estabelecidas.

Foram entrevistados cinco profissionais que, pelo histórico profissional, pressupôs-se serem potenciais fontes de informação sobre a história da Psicologia em Angola. Os profissionais entrevistados, por ordem alfabética, foram: Antónia Dolbete e Costa: formada em Ciências da Educação na opção Psicologia. Pertenceu à primeira turma de estudantes do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), na opção Psicologia, em 1980. É fundadora do Centro Psicotécnico da Força Aérea. Carlinhos Zassala: Doutor em Psicologia. É considerado como grande referência da Psicologia em Angola. Docente Universitário, foi um dos proponentes e primeiro coordenador do curso de Psicologia da Universidade Agostinho Neto (Universidade pública). Foi o primeiro presidente da Associação Angolana de Psicologia (ANGOPSI), tendo sido proclamado, em 2010, Bastonário Interino da recém-proclamada Ordem dos Psicólogos de Angola. Encarnação Pimenta: Mestre em Psicologia, docente universitária. Foi uma das fundadoras da ANGOPSI e sua primeira Secretária Geral. Tem tido atuação marcante na área clínica e na divulgação da Psicologia nos meios de comunicação social. Félix Mizé: Doutor em Psicologia, docente universitário. Foi um dos proponentes do curso de Psicologia da Universidade Agostinho Neto, e autor do único texto publicado e identificado, com algumas referências, sobre a história da Psicologia em Angola. Narciso Benedito: Doutor em Psicologia, docente universitário. No momento da pesquisa, exercia o cargo de Vice-Ministro da Educação. Fez parte da primeira turma de Ciências da Educação, opção Psicologia, no ISCED, e foi, por alguns anos, Director Nacional para o Ensino Superior.

As entrevistas tiveram duração média de uma hora e meia e foram feitas no local de trabalho dos entrevistados. Em todos os casos, o cenário era propício à realização das entrevistas, sem interferências externas. Com a permissão dos entrevistados, as entrevistas foram gravadas e a seguir transcritas.

Para o tratamento dos dados, foi feita uma análise de conteúdo categorial, inspirada no modelo de Bardin (2004). Segundo a autora, a análise de conteúdo categorial, de modo geral, segue as seguintes etapas: 1) pré-análise, que consiste na seleção do material a ser analisado e sua leitura minuciosa; 2) codificação, que é a etapa de transformação dos dados brutos, fazendo uso de registros a serem futuramente agrupados; 3) categorização, que consiste na organização e classificação de elementos similares, com base em analogias semânticas, de modo a constituir um conjunto ou agrupamento; 4) interpretação, que consiste no processo inferencial.

Na etapa de pré-análise, com base nas transcrições feitas, procedeu-se à leitura minuciosa das entrevistas, buscando identificar temas emergentes que pudessem auxiliar na compreensão dos momentos relevantes da psicologia em Angola, atores, ações, conflitos e alianças.

Passou-se, em seguida, para a segunda etapa, quando com base na análise anterior, faz-se a associação de informações, em cada uma das entrevistas, sistematizando-as para facilitar a categorização.

Numa fase posterior as informações de cada entrevista foram agrupadas em três categorias, de acordo com as questões previamente definidas no roteiro de entrevista, especificamente: trajetória profissional, fases de desenvolvimento da Psicologia e institucionalização da profissão. No que se refere à categorização, Bardin (2004) e Bardin (1977), reconhece que o pesquisador pode recorrer a categorias previamente definidas com base no referencial teórico – indução respaldada em teoria de base definida. Além disso, os roteiros de entrevistas semiestruturadas ou estruturadas, a partir dos quais elas são conduzidas, ao estimularem os participantes a falar de determinados assuntos, disponibilizam, para o pesquisador, categorias apriorísticas para a análise de seus dados, no processo de categorização.

Finalmente, com base na categorização, realizou-se a análise interpretativa e construiu-se o texto, seguindo uma ordem cronológica dos eventos. Para realce de questões específicas, foram transcritas frases dos entrevistados.

A seguir é feita a apresentação dos resultados da pesquisa, estruturada com base nas categorias de análise, especificamente, fases de desenvolvimento da Psicologia e institucionalização da profissão. A categoria trajetória profissional, proporcionou subsídios para os outros dois tópicos, por apresentar elementos constitutivos da trajetória de constituição do campo da Psicologia em Angola.

 

4 A trajetória de constituição: etapas e marcos relevantes

Em Angola, enquanto colônia, a inserção da Psicologia baseou-se na adaptação do homem ao trabalho, reproduzindo a busca de racionalização segundo o modelo característico generalizado nos países ocidentais. A preocupação dos colonizadores com o que percebiam como ócio e preguiça dos africanos os levou à enfatizar o desenvolvimento de mecanismos de controle dos processos produtivos e da força de trabalho, a partir de uma perspectiva clássica, baseada nos postulados e princípios da Administração Científica, objetivando maior racionalização e eficiência econômica. A aplicação dos conhecimentos da Psicologia fazia-se presente nos Centros de Emprego, que tinham como grande objetivo selecionar e encaminhar trabalhadores para as várias organizações, utilizando, para isso, vários testes psicológicos. Segundo Jesuíno (1994), a orientação psicométrica foi adotada na década de 50, ainda que em termos rudimentares. Com o desenvolvimento econômico e a industrialização de Portugal, surgiu a necessidade de uma intervenção mais sistemática de psicólogos e, assim, em 1963, foi criado o Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), instituição pertencente às congregações religiosas, na qual se formou a primeira geração de psicólogos portugueses (Jesuíno, 1994).

No presente trabalho, porém, o foco recai na Psicologia do período pós-independência. A opção por este corte deve-se à recenticidade do processo histórico a analisar, aliado ao fato de não ter sido passado, pelos entrevistados, dados anteriores a esse período, nem se ter identificado na literatura PSI informação sistematizada sobre o assunto. Assim, uma primeira fase tem como marco inicial o ano de 1975.

Os primeiros anos após a independência foram marcados pelo regresso de muitos angolanos que haviam abandonado o país. É nesse momento que também regressam a Angola os primeiros psicólogos angolanos formados, principalmente, na República Democrática do Congo. Esses primeiros psicólogos tinham como área de atuação a Psicologia Escolar e a Psicologia do Trabalho. No entanto, ao chegarem ao país, seus diplomas não foram de imediato reconhecidos, sob a alegação de serem falsos, ideia que se tinha na época sobre os diplomas emitidos na República Democrática do Congo. Desse modo, os primeiros anos de trabalho desses profissionais foram realizados sem o reconhecimento da formação superior, e suas atividades se desenvolveram à margem do campo da Psicologia.

O ensino superior já se fazia presente, na Universidade de Angola como herança do regime colonial, mas a Psicologia não fazia parte dos cursos ministrados na época. Foi um período marcado por uma ausência de psicólogos formados no país e pelo pouco conhecimento do fazer psicológico por parte da sociedade.

Em finais dos anos 70, por conta do elevado índice de analfabetismo protagonizado pelo colonizador português, o Executivo angolano sentiu necessidade de formar professores ao nível superior, que pudessem atuar no ensino de base. Começou, então, a ser planejada a criação dos Institutos Superiores de Ciências da Educação. A cidade do Lubango, na província da Huíla, foi escolhida para a instalação do primeiro Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), por alguma referência em instituições acadêmicas, mas principalmente porque era naquela cidade que funcionava a Faculdade de Letras, da então Universidade de Angola. Era naquela faculdade que se formavam os professores. No entanto, com a independência, era necessário reformular o ensino ali ministrado, de tal forma que pudesse atender às necessidades do país que começava a ser construído, perspectivando a formação de professores para atuarem em todo seu território.

Assim, em 1980, na cidade do Lubango, foi criado o primeiro Instituto de Ciências da Educação e, nele, a opção Psicologia, no curso de Licenciatura em Ciências da Educação.

Essa ligação da Psicologia às Ciências da Educação também marcou a experiência da constituição da Psicologia em Portugal. Segundo Borges (1986), essa ligação, em Portugal, fez-se sentir em função das necessidades imediatas da resolução de questões da educação, em contextos políticos mais ou menos agitados, implicando opções em relação aos modelos psicológicos da época.

Com a criação do ISCED, a principal atividade dos psicólogos passa a ser a docência, exercida, fundamentalmente, por professores estrangeiros, principalmente cubanos, num momento em que o país seguia uma orientação socialista. A opção essencial pela docência explicava-se, em parte, pelo pouco conhecimento, da sociedade angolana, sobre o fazer psicológico, principalmente o clínico. Mas ela também decorre do fato de o país viver em uma economia centralizada, num regime monopartidário, em que o Estado era detentor da maior parte das empresas oficialmente existentes, formadas em consequência das nacionalizações e dos confiscos de empresas abandonadas logo após a independência, juntando-se a elas aquelas empresas consideradas estratégicas, que ficavam sujeitas ao controle do governo (Chuvica, 1997). Naquele cenário, as atividades próprias da Psicologia não eram requisitadas.

Até porque, da altura que estamos a falar, estamos a caracterizar o estado como sendo caracterizado por uma economia centralizada e, por conseguinte, as empresas serem na sua maior parte empresas públicas, estatais, que não tinham no seu quadro de pessoal, o exercício de atividades que fossem compatíveis com as atividades de psicólogo. (Entrevistado P2)

O setor privado era constituído por empresas cujos proprietários permaneceram em Angola após a independência. A atividade dessas empresas dependia das decisões do governo no tocante a licença de importação, atribuição de divisas, fornecimento de matéria-prima, preços e margens operacionais. As empresas mistas (empresas de capital estatal e capital privado) foram formadas, por um lado, a partir daquelas cujos acionistas não abandonaram o país e cuja participação permaneceu intacta e, por outro lado, pelo capital absorvido pelo Estado. Nelas, também não havia espaço para o fazer psicológico, não só pela centralização da economia, já referida anteriormente, mas também pelo fato de não existir, entre os empresários, um conhecimento das possíveis contribuições dos psicólogos para as suas empresas.

Outra aposta do Executivo para superar a fraca qualificação da mão-de-obra, foi o envio de estudantes para o estrangeiro, em países com os quais mantinha boas relações, abrindo oportunidades para que técnicas psicológicas pudessem ser colocadas em prática na seleção e orientação de estudantes bolsistas para o exterior do país. Nesse processo, destaca-se o trabalho da Direção de Recursos Humanos do então Ministério da Indústria e Energia. Naquela Direção, existia o Departamento de Formação Profissional, que tinha a missão de desenvolver as atividades acima citadas, mas também o controle e a orientação metodológica dos centros de formação adstritos ao Ministério. Àquele Ministério estavam adstritos os setores da construção, petróleo, geologia e minas, energia e a própria indústria. A Direção de Recursos Humanos era ainda responsável pelo Programa de Reconversão de Quadros, que consistia na adaptação da formação que os profissionais traziam do exterior às necessidades das indústrias existentes no país. As atividades da Direção ganharam destaque, passando a ser solicitadas por outras organizações públicas e privadas.

Em meados da década de 1980, registra-se um aumento da demanda pelas práticas psicológicas, ainda que restritas à seleção e à colocação de pessoal. Mas começa já a despontar uma preocupação do Executivo com a orientação escolar e profissional, de tal forma que o partido no poder, por meio do seu órgão juvenil, convida psicólogos para proferirem palestras sobre a importância da orientação escolar e profissional.

No entanto, o fato marcante foi a entrada para o mercado, em 1985, dos primeiros licenciados em ciências da educação na opção Psicologia. O saber psicológico passou a ser mais disseminado pelas escolas do ensino primário e médio, passando a fazer parte do diálogo não só entre os estudantes, mas também entre esses e seus familiares e amigos.

Entre 1986 e 1987, é criado o Instituto de Ciências da Educação em Luanda, como um núcleo do ISCED do Lubango. A opção Psicologia aparece, mais uma vez, como uma das áreas de formação, atraindo vários estudantes. Não obstante o crescimento da área, verifica-se uma carência de material bibliográfico e técnico.

A economia ainda é centralizada, com pouca abertura das empresas para o saber psicológico, mas vislumbram-se já algumas mudanças. Em finais dos anos oitenta, em função da crise que o país atravessava e, posteriormente, como reflexo da queda do bloco socialista, começaram a surgir os primeiros sinais de necessidade de mudanças. Assim, visando à democratização do país, à redução do peso do setor empresarial do Estado na economia e à implantação de uma economia de mercado, foram delineados pelo Executivo vários programas de reformas econômicas. Os recém-licenciados pelo ISCED, mesmo não tendo, na sua formação de base, conteúdos que os abalizassem para o exercício da profissão de psicólogo com exercício em empresas, foram respondendo a essa necessidade nos setores de recursos humanos.

É a partir daí que eu considero que os psicólogos, embora ainda não tendo na sua formação de base conteúdos que os abalizassem para o exercício da profissão de psicólogos para trabalharem em empresas, ainda assim, foram respondendo, como puderam, as necessidades das empresas nos setores de recursos humanos, dos departamentos dos recursos humanos. (Entrevistado P2).

Esses fatos sinalizam já uma segunda fase da Psicologia em Angola, marcada pela abertura do mercado, graças à constituição da nova república democrática, fruto da queda do Bloco Socialista em finais dos anos 80 e dos acordos de paz de em Angola no ano de 1991. São criadas novas empresas privadas e, com elas, surge a necessidade de uma gestão de recursos humanos mais eficiente. Os psicólogos são, então, chamados para ocupar esse espaço. A partir desse momento, as instituições de formação passam a tentar dar uma resposta às necessidades de gestão de recursos humanos apresentadas pelas empresas.

Mas foi com a criação do Centro Psicotécnico da Força Aérea, hoje Centro de Psicologia da Força Aérea, em 1991, que a Psicologia ganha o impulso necessário. O centro foi criado para atender ao pessoal navegante, na seleção de pilotos, controladores de tráfego aéreo e outros quadros da Força Aérea. Mas as atividades estenderam-se para a seleção de bolsistas para o exterior do país e a orientação escolar. A psicóloga Antónia Dolbete e Costa e a então estudante Maria Dinah, hoje Directora do Centro, foram as fundadoras daquela instituição.

Com o surgimento do Centro da Força Aérea e com a consolidação da prática de testagem psicológica para a seleção de pessoal, abre-se o debate no ISCED sobre a necessidade de estudar a teoria e prática de testes psicológicos, para que os profissionais pudessem estar habilitados para a sua aplicação.

É assim que em 1993, ainda no tempo do Dr. Difuila, há um grande levantamento no ISCED para se definir a problemática da teoria e prática de testes psicológicos que era importante, e que não era aplicada no tempo em que foi fundada a referida escola. E em 1992 e 1993, eu na altura ainda estava a estudar, já se aventava a necessidade de fazer a cadeira de teoria e prática de testes, para as pessoas estarem munidas de conhecimento para poderem aplicar na prática profissional. (Entrevistado P1).

É ainda nessa fase que começam os debates sobre a necessidade de organização da categoria profissional, que surgem do confronto entre os dois perfis profissionais: os do ISCED e os considerados psicólogos de fato, até então formados no exterior do país. Instala-se a polêmica sobre se os formados no Instituto de Ciências da Educação são psicólogos ou apenas professores de Psicologia. Para ultrapassar essa lacuna, muitos dos profissionais formados no ISCED começam a buscar especialização em Psicologia fora do país. Esses debates mostraram a necessidade de organização da classe profissional. É assim que, em 1994, ocorrem vários encontros de trabalho para a criação da Associação Angolana de Psicologia.

No dia 16 de Agosto de 1995, numa das salas da União dos Escritores Angolanos, foi criada a Associação Angolana de Psicologia (ANGOPSI). Carlinhos Zassala é eleito presidente e Encarnação Pimenta Secretária Geral da Associação.

Com a criação da ANGOPSI, a Psicologia ganha um novo impulso, principalmente na sua divulgação. Vários debates foram promovidos, inclusive pelos meios de comunicação, focando as possibilidades de atuação dos psicólogos num país marcado por conflitos armados e pela desestruturação das famílias. Com isso, o curso de Ciências da Educação na opção Psicologia, que já era um dos mais procurados, ganha também um novo impulso.

Em 1999, é criada a primeira Instituição de Ensino Superior Privada, a Universidade Católica de Angola (UCAN), e abrem-se, então, mais possibilidades de criação de cursos de Psicologia no país. Os psicólogos começam a vislumbrar novos cenários de atuação, ainda que na área de ensino. Nos ISCEDs, onde esses profissionais atuavam, a convivência com os profissionais das ciências da educação era marcada por conflitos, principalmente no âmbito das suas atuações.

No início dos anos 2000, como resultado da política do Executivo de expansão do ensino superior e a consequente abertura do mercado para Instituições de Ensino Superior Privadas, surgem novas instituições de ensino superior e, com elas, o curso de Psicologia em 2000. Esses são os primeiros sinais de uma terceira fase da Psicologia em Angola.

Com o advento das instituições de ensino superior privadas, que vem aumentar a oferta formativa em termos de ensino superior, também apresentam o curso de psicologia menos vocacionado à docência enquanto tal, e mais voltados para responder às empresas e o mundo do trabalho e não só, assim como também as necessidades clínicas. É a partir desse momento que, na minha opinião, estamos numa terceira fase. Portanto, repito, começa com o surgimento das universidades privadas. (Entrevistado P5).

Foram pioneiras, na oferta do curso de Psicologia, a Universidade Jean Piaget de Angola e o Instituto Superior Privado de Angola (ISPRA), atualmente Universidade Privada de Angola (UPRA). Na primeira, ofereceu-se um curso voltado para a área clínica e, na segunda, um curso mais genérico. Mas a Universidade pública também se mobiliza e em 2002 – 2003 é criado o curso de Psicologia na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UAN. A criação desse curso marca a separação, na própria UAN, da formação em Psicologia da formação em ciências da educação na opção Psicologia. Com isso, muitos docentes, psicólogos, e estudantes migram do ISCED para essa nova Unidade Orgânica.

Nesse período, chega ao país um número considerável de psicólogos formados no exterior, com destaque para o Brasil e Portugal. São eles que asseguram o ensino da Psicologia nos novos cursos, tanto nas Instituições privadas quanto na pública. Com a chegada desses profissionais (alguns com pós-graduação no campo da Psicologia), diversifica-se a atuação do psicólogo, com mais impacto nas áreas organizacional e clínica, ao mesmo tempo em que se reabre o debate sobre a necessidade de organização da categoria profissional e a delimitação do âmbito de atuação.

Em 2002, o país conquista a paz definitiva e surge a necessidade de dar resposta aos problemas comportamentais advindos da guerra. O stress pós-traumático aparece como um dos temas nos vários debates, e os psicólogos são chamados a participar. O trabalho da psicóloga Guida Ventura, sobre stress pós-traumático, transformado posteriormente em livro, é um dos exemplos dessa preocupação.

Com o término do conflito armado, o país começou a registrar um considerável crescimento, sobretudo econômico. Diversificaram-se as oportunidades de investimento, surgiram novas empresas privadas e instalaram-se muitas empresas estrangeiras, animadas pelas riquezas naturais do país. Começou, então, uma nova era de debates sobre a moderna gestão de recursos humanos, mais alinhada àquele cenário, num momento em que já se fazia sentir a presença da Lei Geral do Trabalho, aprovada em 2000. Essa Lei vem regular, de forma mais específica, a relação de trabalho entre patrões e empregados, ao mesmo tempo que traz normas sobre a saúde e segurança no trabalho e sobre formação e aperfeiçoamento profissional.

A Administração Pública não ficou alheia a essas mudanças. Foram delineadas novas políticas de gestão de recursos humanos e criadas instituições para a capacitação dos funcionários públicos. Foram criados o Instituto Nacional da Administração Pública (atual Escola Nacional de Administração – ENAD), tutelado pelo Ministério da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social, e o Instituto de Formação da Administração Local (IFAL), tutelado pelo Ministério da Administração do Território.

Ao mesmo tempo, consolida-se o espaço das agências de recrutamento, seleção e formação profissional. A consultoria em gestão de recursos humanos já se faz presente, e a Psicologia, fundamentalmente a Psicologia Organizacional e do Trabalho, ganha mais um impulso. A demanda por esses profissionais cresce consideravelmente.

Em meados da década de 2000, o mercado de trabalho recebeu os primeiros psicólogos formados em Angola.Os novos licenciados formaram-se nas áreas de clínica, organizacional e trabalho, escolar e criminal. No entanto, as grandes oportunidades de trabalho continuavam sendo para a área organizacional e do trabalho, o que fez com que muitos dos profissionais especializados em outras áreas e os formados nos ISCEDs, migrassem para a área organizacional, atuando principalmente em grandes organizações, mas sem as competências necessárias.

Nos ISCEDs, mantém-se a formação do profissional voltada para o ensino da Psicologia. Mas a formação desses profissionais começa a incorporar tópicos, ainda que timidamente, para atender às necessidades do trabalho, das empresas e da clínica.

Em 2007, o subsistema do ensino superior ganha força com a criação da Secretaria de Estado para o Ensino Superior. Novas instituições são aprovadas e, com elas, mais cursos de Psicologia e, consequentemente, mais estudantes nessa área. Com esses novos cursos e com os cursos dos ISCEDs, o campo passa a estar entre os mais ministrados no país.

Em 2012 o país contava com 71 instituições de ensino superior, sendo 26 públicas e 45 privadas, como evidenciado na tabela a seguir.

 

 

Do total das instituições legalmente existentes em 2012, dezoito ofereciam o curso de Psicologia, sendo duas públicas e dezasseis privadas, representando um crescimento considerável, se comparados aos 4 cursos existentes em 2006. Quanto aos formandos em Psicologia no país, estimava-se 700 profissionais.

Os últimos anos têm sido marcados por uma exigência maior das organizações. Os psicólogos começaram a disputar o lugar com outros profissionais formados em Gestão de Recursos Humanos, e muitos sentem necessidade de se especializar nessa área, ao mesmo tempo em que foram surgindo cursos de pós-graduação lato sensu em gestão de pessoas.

Dois outros acontecimentos marcaram o campo, mais especificamente a área organizacional e do trabalho: o lançamento, em 2010, da primeira publicação sobre a área, "Psicologia Organizacional e do Trabalho: leituras em saúde mental, qualidade de vida e cultura nas organizações", da autoria de João Saveia, e a criação do Centro de Saúde e Segurança no Trabalho, órgão vinculado ao Ministério da Administração Pública, Emprego e Segurança Social.

Mas foi a proclamação da Ordem dos Psicólogos de Angola, em Dezembro de 2010, que mais marcou o campo nos últimos anos. Muito contestada pela forma como foi instituída, ainda não foi aprovada pelos órgãos competentes do Estado, mas já começa a se fazer sentir entre os profissionais, que cada vez mais sentem necessidade de regulamentação da profissão.

 

5 A institucionalização da profissão

A primeira tentativa de institucionalização da profissão, como foi mencionado, deu-se com a criação da Associação Angolana de Psicologia, em Agosto de 1995, como uma necessidade de congregar e organizar a classe. Quatro objetivos nortearam a criação da Associação: a) Elaboração de legislação para regulamentação da formação e do exercício profissional do psicólogo em Angola; b) Divulgação das ciências psicológicas em Angola; c) Criação de uma instituição para a formação de psicólogos, no quadro da Universidade Agostinho Neto; d) Criação de um centro de pesquisa com o objetivo de aferir e padronizar os testes de origem estrangeira, e ao mesmo tempo, promover a criação de testes nacionais.

Dos objetivos estabelecidos, apenas o segundo e o terceiro foram alcançados. O que seria considerado principal, regulamentação da profissão, até ao momento não foi alcançado, passados mais de 17 anos. Além disso, a Associação passou por momentos de letargia, não se fazendo sentir entre os profissionais. Os entrevistados da pesquisa apresentaram vários motivos que estariam na base dessa letargia. São eles: a) falta de uma sede; b) fraca participação dos psicólogos; c) preconceito em relação à profissão; d) ausência de renovação de mandatos; e) processo pouco inclusivo; f) regionalização e partidarização da Associação.

Com relação a esse último aspecto, algumas frases dos entrevistados são eloquentes:

Desculpa, estou a ser um bocado regionalista, tribalista, mas é verdade que, a uma dada altura, a Associação ficou baconquizada 1. As outras pessoas que queriam entrar na Associação encontravam este mal-estar (Entrevistado P1).

Então, entendi que um não podia ficar quando o outro estivesse e vice-versa. E fiquei triste, porque conclui que estavam a partidarizar a Associação. Primeiro foi baconguizada, depois foi partidarizada. No país, as relações interpessoais são norteadas pela ideologia partidária (Entrevistado P1).

Muitos profissionais não se identificam com a Associação, pelo fato de ela estar sendo dirigida, desde a sua criação, por alguém de um partido político da oposição. Aliás, em Angola, é comum as instituições funcionarem com base em relações de afiliação partidária e tribal. Kamdem (1996) discute essa filiação a grupos como um elemento característico necessário à compreensão dos fenômenos sociais e políticos em África, o que ele denomina de etnotribalismo, com consequências tanto na formação, quanto no exercício profissional. Trata-se de um fenômeno caracterizado pela preferência excessiva dada a pessoas do mesmo grupo étnico, em detrimento da dimensão profissional. Daí resulta a proteção e a solidariedade de uns em relação aos outros, fazendo com que o grau de engajamento dos profissionais para a resolução dos desafios esteja na dependência do grupo a que pertence quem os identifica e procura resolver. A camisa que se veste, em muitos casos, é determinante para o ingresso e a ascensão em organizações, constituindo um fenômeno que se pode chamar de "partidarização das relações de trabalho". Inserir, no currículo, a trajetória partidária no MPLA, ou possuir cartão de membro do partido, confere vantagem competitiva no processo individual para candidatura a determinadas vagas. Da mesma forma, a afiliação a um partido político de oposição pode constituir desvantagem nessa mesma disputa. Como se pode perceber, o desenvolvimento e a atuação profissional acabam permeados por conflitos que se instalam na esfera política (Saveia, 2009).

Uma segunda tentativa de institucionalização da profissão aconteceu em Dezembro de 2010, com a proclamação da Ordem dos Psicólogos. No entanto, os problemas que marcaram o funcionamento da Associação prevalecem, acrescidos de outros, como a autoproclamação do presidente, a figura de um presidente interino e a demora na aprovação da Ordem pelos órgãos competentes do Estado. Alguns profissionais acreditam que a demora da aprovação deve-se à forma como o processo foi conduzido.

Eu acho que a cautela com que o Estado está a lidar com esta realidade organizacional resulta um pouco de uma certa avaliação de que o processo poderia ter sido suficientemente abrangente e inclusivo, que pudesse refletir dentro dele todas as especialidades, todos os ramos que a Psicologia tem e que pudessem ter contribuído, participado para que a formação da Ordem não fosse conquistada apenas por um lado, mas que todos se revissem e pudessem manifestar um sentimento de pertença. (Entrevistado P2).

Portanto, a análise que faço da Ordem estar a passar por um momento de letargia, uma apatia, de alguma falta de reconhecimento, inclusive dos próprios profissionais, terá sido resultado precisamente da metodologia com que foi proclamada. Como é que nós chegamos até lá? Como é que nós chegamos à proclamação, que deveria ser um momento inclusivo, ainda que depois pudesse ser seletivo no seu funcionamento. Mas tinha de ser inclusivo na origem, podendo ser seletiva no destino. Mas a mim me parece que ela foi seletiva na origem. Daí que, excluiu muitos, e o Estado lida com esta realidade com alguma cautela. (Entrevistado P3).

Já os envolvidos diretamente no processo acreditam que a demora na aprovação está relacionada a motivações partidárias.

Pode-se não gostar da cara de alguém, mas essa é uma Ordem profissional, e não tem nada a ver com problemas partidários ou problemas étnicos ou raciais. Devem-nos dizer o que devemos fazer para que o nosso estatuto seja publicado em Diário da República. (Entrevistado P4)

Bom, eu penso que nós, como cientistas, com a coragem que temos de apontar o dedo, por acaso mesmo o nascimento da Ordem ia quase ser sabotado, porque de todas as Ordens existentes no país, a dos psicólogos é a única em que o Presidente não é membro dos Comités de Especialidade do MPLA. (Entrevistado P4)

Falta de vontade dos órgãos competentes foi outro motivo citado por um dos entrevistados:

Agora, o que é verdade e dá impressão é que não há vontade, não há vontade que nós tenhamos uma Ordem, por parte de quem tem os papéis ou até por parte das nossas autoridades que também levam muito tempo para aprovar, digamos, os estatutos. (Entrevistado P1).

 

6 Desafios da profissão

Os grandes desafios, no percurso da institucionalização da Psicologia em Angola, talvez sejam os da despartidarização da profissão e a criação de uma entidade que congregue verdadeiramente os profissionais e seja reguladora da profissão. No entanto, a sua criação deve partir de um processo participativo, cumprindo etapas específicas e com o respaldo legal. A esse respeito, a experiência recente de Portugal pode servir de referência.

Naquele país, depois de um vasto trabalho de sensibilização da classe profissional e política, para a necessidade da existência da Ordem dos Psicólogos, foi aprovada pela Assembleia da República a Lei nº 57/2008, que cria aquele órgão de classe. Com essa Lei, o Estado delegou competências a uma entidade pública profissional, responsável pela regulamentação e regulação da profissão. No entanto, somente em 2009, por força de um despacho governamental, foi nomeada a Comissão Instaladora da Ordem dos Psicólogos. A partir desse momento, foram acionados os mecanismos necessários para que se desse início à instalação de toda a estrutura necessária ao seu funcionamento, tendo sido estabelecidos prazos legais para que todos os profissionais pudessem efetuar a inscrição naquele órgão, regularizando, assim, sua situação profissional. Só depois desse processo, foram convocadas as primeiras eleições para o primeiro Bastonário e para os Órgãos Nacionais da Ordem.

Outro desafio que a Ordem dos Psicólogos de Angola deverá enfrentar é a difícil missão de "demarcar as águas" entre o exercício profissional do psicólogo e o do profissional formado em Ciências da Educação. Nesse caso, a experiência brasileira talvez possa servir de inspiração. Até 1962, o trabalho que hoje se considera característico do Psicólogo era exercido por profissionais das áreas de Pedagogia, Filosofia e Medicina, além daqueles com formação específica em Psicologia. A lei que regulamentou a profissão reconheceu essa situação e conferiu um prazo para que esses profissionais, desde que comprovassem a prática, optassem pelo registro definitivo na nova profissão, reconhecendo-se, assim, não somente a formação como a atuação prática.

Outro desafio do exercício profissional é o de alicerçar a atuação em ações e ferramentas que tenham suporte empírico na pesquisa, considerada como base para quaisquer níveis de intervenção e para quaisquer atividades nas várias subáreas de atuação da Psicologia. O desafio é o de compreender que uma prática profissional competente e ética é indissociável da absorção do conhecimento resultante da pesquisa científica honesta e bem conduzida. É ela que permite ao profissional articular o como fazer ao por que fazer, não apenas respondendo passivamente às demandas da sociedade, mas pensando sobre elas, problematizando-as, debatendo-as, tornando-se, dessa forma, um profissional diferente.

Finalmente, e em função do atual cenário de atuação do psicólogo e sua crescente inserção em organizações, é importante que, independentemente do domínio específico de atuação, todo psicólogo seja capaz de analisar e compreender os processos organizacionais inerentes ao contexto em que atua. Como afirmam Zanelli e Bastos (2004), mesmo que os contextos organizacionais não sejam o foco da sua atuação técnica, compreendê-los e avaliar seus impactos nos fenômenos sobre os quais interferem torna-se, cada vez mais, um requisito para uma atuação profissional ética e tecnicamente responsável.

 

7 Conclusões

Neste estudo, abordou-se o percurso da profissionalização da Psicologia em Angola, um percurso ainda em construção. Partiu-se de um período em que o psicólogo exercia essencialmente funções docentes, seguindo-se outro em que eles começaram a responder às necessidades das empresas, mas em uma economia centralizada. Quando a economia deixou de ser centralizada, novas empresas implantaram-se no país, abrindo a oportunidade de diversificação das atividades profissionais. Surgiram as universidades privadas e, portanto, o perfil começa a estar mais afinado. A essa altura, chegam psicólogos formados no estrangeiro, trazendo um novo impulso ao exercício da profissão e diversificando o fazer psicológico. Os profissionais sentem necessidade de organização em classe. Essa é a fase em que se encontra a profissão em Angola, ainda à procura da sua efetiva institucionalização.

No entanto, a busca da institucionalização deve ser um exercício cuidado e bem acautelado, produto de uma ação ampla e inclusiva, e não tarefa de um grupo restrito de pessoas e muito menos produto de ações partidárias ou preferências etnolinguísticas. Para tanto, deve estar alicerçada em uma metodologia de trabalho que permita a participação e contribuição de todos os profissionais. Uma profissão, além de ser um conjunto de ideias e conhecimentos, é também uma organização de trabalhadores (Freidson, 1978; Freidson, 1998), uma vez que a unidade do grupo pode alcançar o que a ação individual não consegue. Segundo Bosi (1996), a organização é um aspecto crucial para o sucesso de qualquer profissão, já que é através dela que os profissionais atuam no sentido de reivindicar o monopólio de uma especialidade e de um determinado conhecimento.

Assim, ao terminar este texto, pretende-se, mais uma vez, fazer referência a dois aspectos cruciais para a institucionalização da profissão e que foram debatidos ao longo do texto: o conhecimento e a organização da classe, o que se dá por meio das associações profissionais. Segundo Freidson (1998), há uma dialética entre o saber e a organização, já que o controle do conhecimento e as disputas nessa esfera se realizam mediante estratégias conduzidas pelas distintas categorias profissionais.

No entanto, e como bem destaca Bosi (1996), o conhecimento não deve ser considerado como um objeto estático que, uma vez conquistado, torna-se propriedade indiscutível de uma determinada categoria profissional. Ao contrário, e segundo a autora, a própria expansão do conhecimento e o impulso que ele dá ao surgimento de novas profissões, a partir da constituição de novos objetos e campos de interesse, fazem desse domínio um espaço de lutas, que, a todo momento, são travadas entre interesses opostos. Bosi (1996) ressalta que esses interesses opostos surgem entre profissões, mas também dentro de um mesmo grupo profissional, entendido como um corpo heterogéneo, no interior do qual convivem diferentes concepções em disputa pelo reconhecimento no mercado de trabalho. Assim, o alcance de um status maior para a profissão passa por disputas acirradas, em que são usadas várias estratégias de persuasão da sociedade e de barganha perante o Estado. Nesse sentido, organização e conhecimento surgem como elementos-chave no percurso da profissionalização.

 

Referências

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Endereço para correspondência
João Manuel Saveia
Universidade Federal da Bahia
Instituto de Psicologia - Campus Universitário de Ondina
Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Casa 04, Ondina, CEP 40170-115, Salvador – BA, Brasil
Endereço eletrônico: jmsaveia@hotmail.com
António Virgílio Bittencourt Bastos
Universidade Federal da Bahia
Instituto de Psicologia - Campus Universitário de Ondina
Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Casa 04, Ondina, CEP 40170-115, Salvador – BA, Brasil
Endereço eletrônico: antoniovirgiliobastos@gmail.com
Adriano de Lemos Alves Peixoto
Universidade Federal da Bahia
Instituto de Psicologia - Campus Universitário de Ondina
Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Casa 04, Ondina, CEP 40170-115, Salvador – BA, Brasil
Endereço eletrônico: peixoto@hotmail.co.uk

Recebido em: 14/11/2014
Reformulado em: 19/05/2015
Aceito para publicação em: 15/06/2015

 

 

Notas

* Doutor em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Gestão Estratégica de Recursos Humanos e em Gestão Estratégica de Negócios pela UFMG, Psicólogo, formado pela UFMG.
** Doutor em Psicologia (UnB), Professor Titutlar do Instituto de Psicologia da UFBA.
*** Ph.D em Psicologia (University of Sheffield), pesquisador de pós doutorado CAPES.
1 Trata-se de uma referência ao grupo etnolinguístico bacongo.

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