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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.15 no.spe Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Narrativas de existência: da lepra a hanseníase

 

Existence narratives: from leprosy to Hanse's disease

 

Narrativas de la existencia: de la lepra a el mal del Hansen

 

Anita Guazzelli Bernardes*; Camilla Fernandes Marques**

Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo focaliza modalidades de existência, as quais são constituídas a partir da articulação entre a lepra e a hanseníase. Parte da análise de narrativas de campo, frutos de uma pesquisa em que se objetiva a problematização das relações entre perfil epidemiológico e atenção à saúde. O campo de discussão sustenta-se entre ferramentas conceituais pós-estruturalistas e aquelas da Teoria Ator-Rede. O texto discute a infâmia que caracteriza os efeitos das políticas que compõem modalidades de existência produzidas pela lepra e pela hanseníase. A partir disso, volta-se para considerar outros elementos que também compõem a rede entre a lepra e a hanseníase, mas que engendram outras formas de existência, outras ontologias.

Palavras-chave: hanseníase, narrativa, ontologia, rede.


ABSTRACT

The article focuses on the existence modalities which are formed by the junction between leprosy and Hansen's disease. The analysis started from field narratives, which are the outcome of a research whose aim is the issue of the relations between epidemiological profile and health attentions. The field discussion is sustained by post structuralist concept tools and those tools from Actor Network Theory. The paper discusses the infamy which features the effects of policies which constitute the existence modalities produced by leprosy and Hansen's disease. From that, the article turns to consider other elements which are also part of a network between leprosy and Hansen's disease, but which build other forms of existence, another ontology.

Keywords: hansen's disease, narrative, ontology, network.


RESUMEN

El articulo foca las modalidades de existencia que se constituyen a partir de la articulación entre lepra y mal del Hansen. Parte del análisis de narrativas de campo, frutos de una investigación en la cual se objetiva el problema de las relaciones entre el perfil epidemiológico y la atención a la salud. El campo de discusión sustentase entre herramientas conceptuales post-estructuralistas y aquellas de la Teoría Actor-Rede. El texto discute la infamia que caracteriza los efectos de las políticas que componen modalidades de existencia producidas por la lepra y por el mal del Hansen. A partir de ello, volcase para considerar otros elementos que también componen la rede entre la lepra y el mal del Hansen, pero que engendran otras forma de existencia, otras ontologías.

Palabras-clave: mal del Hansen, narrativa, ontología, rede.


 

 

1 Introdução

Este texto tem como temática modalidades de experiência, nas quais se operam diferentes linhas de composição de sujeitos, a partir de tecnologias humanas e não humanas na saúde. Essas modalidades de experiência são consideradas a partir de um processo de articulação entre a lepra e a hanseníase. Porém, o foco da análise não são as relações entre a lepra e a hanseníase, ou mesmo uma genealogia desse processo. O disparador desta discussão são narrativas de campo e especificamente como operar com elas em um texto científico, dada a intensidade com que certas vidas são narradas. Deste modo, focaliza-se uma rede na qual vidas se performam em narrativas de uma pesquisa. A possibilidade de percorrer uma rede, e de também compô-la, acontece a partir dos tensionamentos que se constituem com o outro com quem pesquisamos.  Considerar as articulações entre a lepra e a hanseníase encontra-se com as narrativas daqueles que tecem e também se tecem nestas relações.

A discussão apoia-se em uma investigação que vem sendo desenvolvida, no campo da saúde e que objetiva a problematização de perfis epidemiológicos com as formas de atenção à saúde. Por perfil epidemiológico considera-se as estratégias de esquadrinhamento da população, a partir das políticas de saúde. Este esquadrinhamento é feito com base em características epidêmicas e endêmicas, idade, renda, sexo, entre outros elementos, que conformam grupos sociais para os quais se direcionam as políticas públicas. Esta pesquisa perscruta diferentes grupos sociais, conformados nas políticas públicas, a partir de perfis epidemiológicos e, neste texto especificamente, focaliza uma população que teve ou tem hanseníase no município de Campo Grande, Mato Grosso do Sul 1.

O fio condutor da análise desta articulação, entre a lepra e a hanseníase, opera-se no texto a partir de ferramentas pós-estruturalistas, mas o encontro com as narrativas produziram algumas hesitações que encontram ressonância, na Teoria Ator-Rede, nas palavras de Latour (2001, p. 39) "como acondicionamos o mundo em palavras?" e o que fazer com a palavra do outro em nossas pesquisas? Nesta linha, o autor aponta que a lacuna entre palavras e mundo, entre linguagem e natureza constituiu, em um dado momento, um domínio em que se tratavam – palavra e mundo – de ontologias totalmente distintas, ou seja, um mal entendido nas palavras de Despret (2011a). A hesitação apareceu na pesquisa justamente neste momento, quando ao tentar trazer as narrativas para o texto, como uma prática científica, deparamo-nos com domínios que, a princípio apresentavam-se totalmente distintos: de um lado o mundo da vida, os relatos da vida; de outro, o texto científico, as tecnologias científicas. Nessa tensão, tornou-se importante considerar como compor uma narrativa da lepra a hanseníase que permitisse uma mistura hibrida entre a ciência e a vida, uma referência circulante.

 

2 Fragmentos de uma infâmia

Construir uma compreensão da articulação entre a lepra e a hanseníase diz respeito, neste texto, às histórias de vidas que narram formas de composição sobre a afirmação e a presença de certos modos de existência. Essas narrativas são fragmentos de existências que em um primeiro encontro com elas nos chocam pelas infâmias das vidas que narram. Esta condição de afetação se dá a partir de um texto de Foucault (2003) no qual o autor se volta para narrar, ou para nos apresentar, vidas que se não fossem pelos rápidos encontros com o poder seriam destinadas a passar sem deixar rastros. Vidas que ao pesquisar com elas nos permitiram que alguma coisa delas chegasse até nós, para "reencontrar alguma coisa como essas existências-relâmpago, como esses poemas-vidas [...] e que do choque dessas palavras e dessas vidas nascesse para nós, ainda, um certo efeito misto de beleza e terror" (2003, pp. 205-206).

É, então, pelo assombro e pela beleza dessas vidas que pensar sobre narrativas em pesquisa nos trouxe algumas interrogações, modificando o foco da análise para as possibilidades de compor um relato de pesquisa com essas narrativas e não sobre elas. Interrogações sobre como articular a vida em uma escrita acadêmica, ou como acondicioná-la na ciência? Como em um exercício de tradução/escrita tornar possível a vida-memória de Francisco?: "eu ando pelo mundo... agora estou aqui, pelo resto dos dias". Como contar em um texto acadêmico "um andar pelo mundo" sem perder o poema-vida que o relata? O deslocamento dessas existências para um texto, a partir dessas narrativas, trouxe-nos um assombro.

O assombro é justamente considerarmos que a migração do ato de pesquisarCOM 2 para escrever SOBRE torna-se, ele mesmo, uma superfície de contato dessas vidas com o poder, mesmo que a escrita seja sempre com o outro e para o outro. O escrever SOBRE a partir do COM essas vidas nos jogou para o encontro com as palavras de Foucault (2003, p. 207): "todas essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com frequência, enigmáticos – a partir do momento de seu contato com o poder". Então nos resta um desafio: como escrever COM por meio do pesquisarCOM? A inquietude é com essas vidas: Seu Francisco, Seu Antônio, Seu Eurico, Seu Laerte, Seu Ronaldo, Seu Daniel, Wagner, Dona Maria. Pesquisamos com eles, toda semana estamos com eles, toda semana nos encontramos com eles, "como dizia o Seu Francisco, hoje a gente tem visita", situa Seu Eurico.

Eles estão lá toda semana nos aguardando, "seu Eurico estava sentado aí desde 12h30 esperando" nos conta seu Antônio. Toda semana fazendo uma roda para nós entrarmos, toda a semana contando suas vidas, mas como escrever COM eles? "eu conheço as letras, eu junto as letras, leio alguma coisa... depois de velho a gente acaba esquecendo. Hoje não faço mais conta, mas eu conheço as letras e digo nome por nome", pistas dadas por Seu Francisco. Juntar as letras desses encontros tornou a escrita uma superfície frágil, uma superfície que se faz pelo que Pelbart (2012, p. 9) escreve: "Essa concepção de encontro é muito singular, pois não implica a valorização da cultura, da erudição, mas do encontro, e não do encontro necessariamente com pessoas, mas com cores, sons, ideias, silêncios, hesitações, balbucios".

Nossas letras tentam se fazer COM as letras deles, com os encontros com eles, com os silêncios, ideias, balbucios. Também tentamos juntar as letras deles, mas como eles escreveriam COM as nossas letras? As narrativas deles, nestes contatos com a pesquisa, migram da roda para o papel, mas no papel não seriam mais eles, mas a nossa escrita? A infâmia de suas vidas sai da memória-vida e vai para a memória-papel: "todo hanseniano tem uma tendência à cachaça. Mas deve ser por causa do desespero" nos conta Seu Antônio, ao traçar algumas linhas da rede que compõe as articulações entre a lepra e a hanseníase. Como escrever o desespero dessas vidas na história da lepra para a hanseníase?

Essa emoção que a narrativa do outro traz para o texto, que faz o próprio texto gaguejar, significa em uma prática científica, tal qual a escrita de um artigo, uma circulação de signos que se transformam, que transbordam e como nos conta Despret:

não se trata somente de multiplicar os repertórios daquilo que podem ser as emoções, trata-se, primeiro e antes de tudo, de aprender a considerar as nossas, de forma diferente, de tornar visíveis coisas que para nós são tão naturais que se tornaram invisíveis. Trata-se de aprender a pensar nos contrastes, o que quer dizer aprender a "nos" pensar nos contrastes. (2011b, p. 30).

A fragilidade da escrita engendra-se dessa superfície singular dos encontros, de contrastes: nós, eles, teorias, afetos, vidas. Fronteiras tênues entre emoção, história, experiências, ciência.

Por que a infâmia em um primeiro momento e não o desespero? Já que nesta opção reside uma aposta, um deslizamento: as narrativas nos contam das emoções, a infâmia relata estas vidas em termos de condição, ambas tornam-se contrastes neste texto, sobretudo, criam a necessidade de uma junção entre a emoção e a infâmia, uma hibridização entre ciência e vida. Não seria negar uma existência, mas afirmar uma presença: Francisco, Antônio, Foucault, Despret.

Neste sentido a infâmia torna-se um mal entendido. O mal entendido promissor da infâmia diz respeito a uma breve história do encontro com essas vidas. Trata-se de um mal entendido, pois foi a primeira forma de atualização destas existências na pesquisa. A pesquisa que fazemos sobre a articulação entre perfil epidemiológico e práticas de cuidado nos levou a um grupo de pessoas, moradoras de um bairro nomeado de Nova Lima, em Campo Grande - MS, que passaram ou passam por tratamento da hanseníase, naturais de Campo Grande ou de outros municípios e Estados. A pesquisa foi iniciada com contatos com a Unidade Básica de Saúde (UBS) e as missões religiosas que atendem esta população. Tanto a UBS quanto as missões religiosas tem parcerias com a Universidade na qual a pesquisa é desenvolvida através de convênios de estágios e de extensão. A pesquisa começou no início de 2013 e continua em andamento. O processo de investigação envolve encontros semanais nas casas de pessoas que tiveram hanseníase e envolvem-se com os cuidados de pessoas em tratamento da doença, como familiares e vizinhos. Estas casas são moradias de missões religiosas cedidas para esta população. O grupo com o qual trabalhamos conta com uma média de 13 pessoas semanalmente. São pessoas que ao narrarem suas vidas, tecem uma história da lepra para a hanseníase: "o prefeito foi falar com a farmacêutica que me viu e disse que eu tinha uma doença grave. Aí ele me chamou para ir para a fazenda dele, acho que já com a intenção de tirar da cidade" (Seu Antônio).

Nesse bairro encontra-se um hospital de referência para o tratamento da Hanseníase, uma entidade filantrópica conveniada ao SUS e uma Unidade Básica de Saúde que foi estruturada em um espaço onde, inicialmente, a Missão Franciscana havia montado um posto de assistência odontológica e cuidados básicos para pessoas com hanseníase. O hospital foi criado especificamente para o tratamento da Hanseníase, mas, atualmente, também atende outras especialidades médicas, "o tratamento é longo, eles falavam. Daqui você não sai, só depois de tratado. E se saísse eles iam atrás. Fiquei dez anos lá, quando sai já estava com idade avançada" alinha Seu Francisco. O Hospital, quando construído, ficava em uma área afastada da cidade, hoje com o crescimento urbano já não está mais tão distante assim, apesar de estar em uma das saídas da cidade.

O hospital possui casas onde moram pessoas que tiveram hanseníase. Mas algumas delas, depois do tratamento saíram do hospital e foram residir em casas de missões religiosas que tem como encargo a assistência aos portadores de hanseníase: "tinha muitos no São Julião que não tinha para onde ir, essa casa foi uma boa. Tem muita gente que já viveu aqui e já faleceu. Foi bom ter chegado essa casa, pois na minha época lá no São Julião tinha muita gente que não tinha para onde ir, tinha repugnado pela família, e não tinha para onde ir, veio para estas casas" segundo Seu Francisco. Essas casas ficam no mesmo bairro do Hospital e da UBS, porém, não abrigam apenas pessoas com hanseníase, mas também idosos e outras pessoas com necessidades de tratamentos de saúde.

A infâmia dessas vidas refere-se a uma clausura no fora, apontada por Dona Maria, como linhas desta história: "Fui acompanhar uma irmã que foi levar comunhão na Sirpha, e fiquei com dó de uma senhorinha que me disse: ‘Você pode sair, né? Eu não posso sair'".  A hanseníase depois de tratada não exige mais internação. Os cuidados são com as lesões cutâneas que muitas vezes marcam os corpos e exigem cuidados sistemáticos para não causar, então, as perdas dos membros do corpo tão características da lepra. Mas as marcas da lepra ficam nessas vidas, como nos explica Wagner: "trabalhava em uma escola e pedi para sair. Pediu o endereço, disse que era Nova Lima. Ela disse que se soubesse não tinha contratado. Hoje todo o emprego que entro dou o endereço da minha mãe". O bairro Nova Lima é uma clausura aberta da lepra que se tornou hanseníase. Vidas infames, tortas, que se atualizam nas linhas de Seu Daniel: "Um rapaz comprou uma casa aqui por 12 mil. Aumentou tudo. Aí trouxe o filho no posto e achou tudo os pés torto. E foi brigar com o cara, que ele não tinha avisado que era um bando de leproso. Vendeu a casa por 2 mil e foi embora".

A saúde cuida do tratamento e da cura da hanseníase, missões religiosas cuidam da assistência com moradias, cestas básicas, transporte e alguns suprimentos médicos. Seus mecanismos contam uma história-memória da lepra para a hanseníase, mas, sobretudo, contam uma história-política da lepra para a hanseníase:

"Me deram uma camisola... vi aquele pessoal, me deu vontade de chorar. A turma chegava e falava: você vai ficar daquele jeito, tudo caindo aos pedaços. Lino Vila Chá não tinha mão, pé, só o corpinho. Entrei aí fiquei uns oito meses sem contato com ninguém. Mandava carta, chegava na portaria, eles rasgavam e queimavam. E também não recebia carta da mulher. Por medo da pessoa fugir do tratamento". (Seu Daniel)

Uma história política de superfícies de contato com o poder, que conta a história de pedaços de vida de Seu Francisco: "Tenho vontade e demais tempo, desde que saí do hospital", pois a clausura não se esgotou com o fim das internações ou da errância dos leprosos fora das cidades, "Eu morei na Sirpha, onde hoje é tudo fechado, antes era república, onde era a casa só para o idoso, quem está fora não entra e quem está dentro não sai".

A clausura aberta é uma descontinuidade da lepra para a hanseníase, outro arranjo das estratégias de poder. Estratégias inéditas em que um dentro da cidade é ao mesmo tempo um fora, uma rede que ao enredar marca um fora – uma infâmia: "tem muitas pessoas que não sabe que hanseníase é lepra, se falo que tem hanseníase tudo bem, mas se falo que tem lepra a pessoa já olha feio, leva um susto" aponta Seu Antônio. Nessas narrativas a lepra produz um campo de experiências distinto da hanseníase, lepra não é hanseníase. Entretanto, esses regimes se cruzam, conciliam nessas vidas afetos e políticas. Conciliam aquilo que não está nas pontas do que se inicia como lepra e encerra-se como hanseníase, mas nos cruzamentos e afetos dos encontros desses dois regimes distintos, infâmia e vida.

Deste modo uma história-política narra a infâmia dessas vidas, mas como escrevê-las na intensidade das palavras que são ditas nos encontros, como trazer o desespero para o papel em um texto científico, nos fez hesitar: "não convido as pessoas para vir em casa. Até porque eles não vem. Só um mas porque o pai era hanseniano" (Seu Eurico).

 

3 Escrita como laboratório

Nos estudos sociais da ciência, o laboratório foi redescrito como prática sócio material onde a realidade é transformada e onde se concebem novas formas de fazer a realidade (Mol, 2007, p. 3).

O laboratório apresenta-se, nestas considerações de Mol (2007), como possibilidade de produção de outras realidades e com isto de outras ontologias. Ao percorrer um campo da infâmia e com ele encontrar-se com as performatividades da lepra para a hanseníase, outra política se constitui. A escrita como prática do laboratório gagueja no encontro da lepra com a hanseníase, e esta hesitação engendra outro domínio de realidade, outras ontologias, ou seja, que a realidade é feita, mas, sobretudo, também é múltipla. No trabalho de performatividade da lepra e da hanseníase produzem-se também outras versões de mundo, relacionados entre si, mas múltiplos, como escreve Mol (2007).

A infâmia não diz mais respeito agora, neste laboratório de escrita, às superfícies de contato com o poder, mas a solidão como efeito destas superfícies,

A emoção não é somente aquilo que é sentido, é aquilo que faz sentir. A emoção, eu diria, não é somente aquilo que nos faz acolher o mundo, é também a maneira como solicitamos ao mundo nos acolher, pedindo-lhe mesmo, às vezes, de nos dar um coração. (Despret, 2011b, p.57).

A solidão, como um poema-vida dessas existências torna-se difícil de juntar com letras em um texto que não é literário. Como uma estratégia de escrita COM traduzir a solidão do que nos diz Seu Laerte? "Passo ano novo, natal, sozinho. Às vezes sinto falta de ter uma pessoa no final de semana, às vezes ligo lá, eles estão fazendo churrasco. Sinto falta disso". Este campo de experiências torna-se um laboratório, juntar letras, juntar emoção e infâmia, juntar ciência e vida, juntar solidão e história.

Uma escrita da solidão que se encontra com as palavras de Blanchot (2001, p.31) sobre Nietzsche: "de que maneira seu pensamento itinerante, que se realiza por fragmentos, ou seja, por afirmações separadas e que exigem a separação, de que maneira Assim Falou Zaratustra teria podido situar-se no ensino e coadunar-se às necessidades da palavra universitária?". E seguindo os rastros de Blanchot (2001) sobre o ensino, atrás de uma possível escrita COM, encontramos a figura do desconhecido. O desconhecido, segundo Blanchot (2001) articula-se em uma relação de infinidade, ou seja, a relação de palavra deve ter um índice de curvatura, tal que as relações entre duas palavras nunca serão diretas, tampouco simétricas e reversíveis. A relação de palavras, ou como diz Francisco, de juntar as letras, não forma um conjunto, ou mesmo uma totalidade de significações. Tampouco se encontram - as palavras - num mesmo lugar no tempo, não sendo contemporâneas e comensuráveis. São redes, cruzamentos de linhas, de regimes, sobretudo de afetos e políticas.

O desconhecido, agora, é trazer para um texto científico uma escrita que tenha a intensidade de uma vida, de encontros, de outra realidade performada, que relembra Dona Maria "Mas o Cirilo era isto... que ele ia no São Julião, voltava com mais uma ferida e dizia que ia beber para morrer logo. E o que matou ele foi a bebida, não a hanseníase". Na história-memória da lepra para hanseníase encontramos um entre, aquilo que se constitui destes encontros. Nem lepra nem hanseníase, mas o desespero, a solidão, os efeitos da multiplicidade de agenciamentos que operam sobre essas vidas. Este entre não se trata de sínteses, mas da proliferação da rede, como escreve Mol (2007, p.2), o "real está implicado no político e vice-versa", o que produz múltiplas versões de mundo e também novas ontologias.

Da infâmia aos poemas-vida nos encontramos com a morte, com a solidão. O desconhecido dos poemas-vida nos narra que "eu tô alegre, que tô uma beleza, que já ei 90 e tantos anos e sei que não vou mais viver tanto assim [...] pois dizem que a vida boa é a outra... a gente não tem que ter medo de morrer" fala Seu Francisco. Assombro novamente: solidão, morte, alegria e beleza. Palavras que não formam um conjunto, uma totalidade, mas dissimetrias, irreversibilidades, relação de infinidade, ontologias, como escrever COM elas?

Acondicionar o mundo em palavras torna-se um exercício do encontro com novas práticas e com isso com novas ontologias. O texto performa certa ontologia – a infâmia, mas também é performado por práticas que da infâmia articulam-se à solidão, à morte, à beleza. Da lepra à hanseníase cria-se um real múltiplo de dissimetrias nas quais se encontram tecnologias científicas, tais como as políticas de saúde, com tecnologias da vida, "Com a ajuda dos amigos a gente vai, mas sem eles dá medo" (Seu Eurico). Os poemas-vida passam a nos contar, então, que da lepra a hanseníase há solidão, mas que também há encontros, realidades que assumem diferentes formas:

Não são perspectivas de diferentes pessoas, pois no curso do trabalho uma mesma pessoa pode passar de uma performance para outra. Também não são construções do passado, alternativas, das quais só uma sobreviveu – emergiram em momentos distintos da história, mas nenhuma delas desapareceu. Portanto, há diferentes versões, diferentes performances, diferentes realidades que coexistem no presente. (Mol, 2007, p.9).

Há outra estética, uma desconhecida sensibilidade que traz aquilo que Deleuze (1992) nos propõe como intercessores. A intensidade da solidão e da morte não conta apenas da infâmia, mas de existências que entre elas não foram relâmpagos, como nas páginas escritas sobre elas, mas sim agregados sensíveis: "agora fico sem saber o que fazer, pois antes eu acordava e ficava esperando para ir lá para o velho. Agora tenho que arranjar outro velho para cuidar" fala seu Ronaldo. A infâmia do fora do dentro da cidade cria outra história-memória, uma história de uma rede COM/entre essas vidas como aponta Seu Daniel: "Eu já crio gatinhos para não me sentir sozinho" ou da menina do bairro que diz "Oi Seu Francisco" e seu Francisco nos diz: "veio só para dar um abraço mesmo". Qual o lugar desta estética em um texto acadêmico? Como escrever COM esta estética? É possível com esta estética uma política ontológica?

Os gatos, a menina, o cuidado do outro, entram em jogo nesta política ontológica, que não se trata de uma questão, como diria Mol (2007), meramente prática. Esta política ontológica na qual a emoção que performa lepra e hanseníase tem efeitos de realidade. Tentar escrever com ela não coloca apenas a narrativa da lepra à hanseníase em jogo, mas outras realidades passam a entrar neste jogo e, sobretudo, a jogar. Trazem consigo gatos, menina, cuidado com o outro, novas modulações, novos campos de experiência, portanto, o próprio laboratório passa a articular-se com estes outros objetos. Deste modo, não só história da lepra à hanseníase, mas maneiras de acolher o mundo e do mundo acolher estas vidas.

Outra estética se forja dentro disto que chamamos de infâmia do fora no dentro, nas relações cotidianas consigo mesmo e com o outro. Nestas/COM estas vidas se constituem novas modalidades de existências, "Ele chega aqui e dá alegria. Tem dia que passa o dia com nós" conta Seu Daniel sobre um vizinho. A rotina que se constitui muitas vezes é solitária neste fora no dentro, mas a relação COM/entre vidas, produzem histórias de relação de vida, história de afetação, contada por Seu Francisco: "Eu era quem comprava tudo para as pessoas que moravam aqui que precisavam, pois não conseguiam sair, agora sou quem estou precisando." Ou a de Seu Ronaldo que "Eu quero cuidar, o que eu puder fazer por ele eu faço [...] A gente sente prazer em fazer".

Estas práticas cotidianas de relação e de cuidado com os outros constituem uma estética que recai no próprio sujeito engendrando, assim, uma história de um cuidado de si, "A coisa que eu mais gosto é de quem cuida de mim" diz Seu Francisco, em outra rede performada por práticas cotidianas. Nesta política ontológica não é apenas a realidade da infâmia que joga, mas a relação com o outro que cuida, que acompanha, que faz companhia. Escrever com essas vidas, com estas múltiplas realidades performadas, é considerar que infâmia, estética, emoções colidem no mundo, ao mesmo tempo em que no texto-laboratório podem colaborar e depender umas das outras.

 

4 Rascunho de outras ontologias: finalizando sem estabilizar

Dentro daquilo que aparece como desespero, que intensifica o assombro com a solidão e com a "morte" para nós, pelas tantas palavras ditas e intensificadas pelas de Seu Eurico: "Eu queria estudar, o meu pai não deixou, tive que pegar no cabo da inchada. Hoje se tivesse estudado seria outra pessoa", irrompe em algum instante na relação COM/entre estas vidas as palavras de seu Ronaldo que "é importante, sair, prosear, não é direto, tô velho mesmo, ficar aqui amoitado não dá". Práticas de liberdade? Emergências de uma produção de vida, produção de novas estéticas de existências, de novas ontologias? Então nos conta Seu Antônio: "Tem que fazer igual eu, quando estou meio arriado, vou lá, no aeroporto, sento lá debaixo das palmeiras e fico vendo os aviões descendo e subindo". A vida nas relações COM trazem novos domínios de experiências, "O dia que você for me convida" pede Seu Eurico. Vidas que se forjam nesses domínios de experiências, de acondicionar, de narrar ou olhar os aviões com Francisco, Antônio, Eurico, Laerte, Ronaldo, Daniel, Wagner, Maria.

 

Referências

Blanchot, M. (2001). A conversa infinita. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34.         [ Links ]

Despret, V. (2011). Os dispositivos experimentais. Fractal: Revista de Psicologia, 23(1), 43-58.         [ Links ]

Despret V. (2011a). As ciências da emoção estão impregnadas de política? Catherine Lutz e a questão do gênero das emoções. Fractal: Revista de Psicologia, 23(1), 29-42.         [ Links ]

Foucault, M. (2003). Ditos & Escritos IV: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Latour, B. (2001). A esperança de Pandora. Bauru, SP: EDUSC.         [ Links ]

Mol, A.(2007). Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas. In J. A. Nunes, & R. Roque (Orgs.) Objectos impuros: Experiências em estudos sociais da ciência. Porto, Portugal: Edições Afrontamento.         [ Links ]

Moraes, M., & kastrup, V. (2010). Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa COM pessoas com deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau Editora/Faperj.         [ Links ]

Pelbart, P. P. (2012). Prefácio: Fio Tênue. Nervura virtual. In Henz, A. de O. (Org.). Estéticas do esgotamento: extratos para uma política em Beckett e Deleuze (pp. 9-12). Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Anita Guazzelli Bernardes
Universidade Católica Dom Bosco – UCDB
Pós-graduação mestrado e doutorado em Psicologia
Av. Tamandaré, 6000, Jardim Seminário, CEP 79117-900, Campo Grande – MS, Brasil
Endereço eletrônico: anitabernardes1909@gmail.com
Camilla Fernandes Marques
Universidade Católica Dom Bosco – UCDB
Pós-graduação mestrado e doutorado em Psicologia
Av. Tamandaré, 6000, Jardim Seminário, CEP 79117-900. Campo Grande – MS, Brasil
Endereço eletrônico: camilla.fmt@hotmail.com

Recebido em: 26/05/2014
Reformulado em: 24/09/2014
Aceito para publicação em: 29/09/2014

 

 

Notas

* Psicóloga e Doutora em Psicologia pela PUCRS, Pesquisadora do CNPq e Docente e Pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade Católica Dom Bosco
** Psicóloga e Mestranda do Programa de Pós-graduação – Mestrado em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco e bolsista da CAPES
1 A pesquisa foi submetida ao CEP da Universidade na qual é realizada e foi aprovada. As pessoas que participam da pesquisa assinaram o TCLE e os nomes ao longo do texto foram alterados para manter o anonimato (Número de aprovação: 415360)
2 Ver Moraes e Kastrup (2010)

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