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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.15 no.spe Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Seguindo as políticas de ação afirmativa no ensino superior pelas redes tecnossociais

 

Following the affirmative action policies in higher education by the techno-social networks

 

En lo seguimiento de las políticas de acción afirmativa en la educación superior por las redes tecno-sociales

 

Zuleika Köhler Gonzales*; Neuza Maria de Fátima Guareschi**

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo abordar a política de ação afirmativa para o ingresso no ensino superior, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através da rede de associações que se faz em nome da igualdade e que se compõe por argumentos e controvérsias materializadas em diferentes formas. Para isso delineamos alguns procedimentos que formam o caminho de acesso à universidade através da reserva de vagas pelo quesito social e étnico racial. Consideramos esses procedimentos como redes que conectam tecnologias, resoluções legais, instituições e candidatos ao vestibular e, portanto, performadoras de realidades e versões de ensino superior. Para a discussão nos valemos dos estudos cosmopolíticos da ciência sobre as redes tecnossociais realizados por Latour, Stengers e Despret. Esperamos com este estudo, fomentar o debate de enfrentamento das desigualdades sociais pela via das ações afirmativas nas universidades, entendendo que é um debate que gera sempre controvérsias e está sempre agregando outros argumentos e ações.

Palavras-chave: políticas de ação afirmativa, redes tecnossociais, ciência cosmopolítica.


ABSTRACT

In this article we approach the affirmative action policy for entry into higher education in the Federal University of Rio Grande do Sul through the network of associations composed of arguments and controversies in its implementation in the name of equality. For this we outline the procedures that form the access path to college through reservation of vacancies for social and ethnic racial aspect. We consider these procedures as the networks that connect technology, legal settlements, institutions and candidates for the entrance exam and therefore enacted realities and versions higher education. For the discussion we make use of cosmopolitics science studies on techno-social networks made by Latour, Stengers and Despret. We hope with this study, stimulating debate to face social inequalities by means of affirmative action in universities, understanding that is a debate that always generates controversy and is always adding other arguments and actions.

Keywords: affirmative action policy, tecnosocial network, cosmopolitic science.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo abordar la política de acción afirmativa para ingreso a la educación superior en la Universidad Federal de Rio Grande do Sul a través de la red de asociaciones compuestas de argumentos y controversias en la aplicación de la política. Para ello se describen los procedimientos que forman el camino de acceso a la universidad a través de la reserva de sitios vacantes para los estudiantes a través de los aspectos sociales y étnico-raciales. Consideramos estos procedimientos como las redes que conectan a la tecnología, acuerdos legales, las instituciones y los candidatos en el examen de admisión y por lo tanto performadoras de realidades y versiones de educación superior. Para la discusión hacemos uso de los estúdios cosmopolíticos de la ciencia acerca de las redes tecno-sociales a cargo de Latour, Stengers y Despret. Esperamos que con este estudio, se fortalesca el debate para enfrentar las desigualdades sociales por medio de la acción afirmativa en las universidades. Se entiende que es un debate que siempre genera controversia y siempre adiciona otros argumentos y acciones.

Palabras clave: políticas de acción afirmativa, redes tecno-sociales, ciencia cosmopolítica.


 

 

1 Nos rastros das políticas de ação afirmativa no ensino superior

É possível seguir os rastros e o percurso de uma política pública nos seus embates e acordos locais através das redes tecnossociais? Tenho o propósito com este texto, de seguir a implementação das políticas de ação afirmativa no ingresso ao ensino superior, delineando os agentes que se associaram e teceram a rede do acesso às universidades federais pela reserva de vagas étnico raciais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Importa dizer que as ações afirmativas nas universidades federais são implementadas em busca de uma maior igualdade de oportunidades para os grupos sociais que tradicionalmente não acessam o ensino superior, como negros e indígenas e alunos de escolas públicas.

O percurso que faço no rastro dos procedimentos que se inscrevem nas ações afirmativas nas universidades será pela via da ANT (Actor-NetworkTheory), ou de uma leitura das redes tecnossociais como diria Latour (1994, 2001, 2012) e seus colegas 1 envolvidos no campo dos estudos cosmopolíticos da ciência.

 

2 Um ponto de partida: o acesso ao ensino superior na UFRGS

"Todos farão o mesmo vestibular! O concurso deverá ser igual em cada uma das salas em que houver uma prova do vestibular. Este é um concurso público e todos têm o direito aos mesmos procedimentos e condições em cada local em que houver provas. Para isso temos que ter uma atuação padronizada! Nada pode sair diferente do que está previsto nas orientações e procedimentos para a realização do concurso". Inquietou-me essa fala, feita por um técnico da universidade, que deu início às preparações e treinamento dos profissionais que iriam fiscalizar as salas de aula durante a realização das provas a serem feitas pelos 46.000 mil candidatos inscritos no concurso vestibular da Universidade Federal do RS em janeiro de 2013. Todos os alunos da universidade, tanto da graduação como da pós-graduação, podem se candidatar a uma vaga de fiscal no vestibular. Como doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFRGS, me candidatei a uma das vagas querendo seguir de perto o caminho dos candidatos ao ingresso no ensino superior no momento em que a lei 12.711/12 entrava em vigor. No ano de 2013, oficialmente todas as universidades federais brasileiras teriam que se adequar ao decreto 7.824/12 – regulamentado pela lei 12.711/12. Tal decreto dispõe sobre o ingresso nas universidades e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio instituindo reserva de vagas sociais – para alunos que estudaram em escolas públicas – e reserva de vagas étnico-raciais – para alunos autodeclarados negros, pardos ou indígenas. Além disto, a questão das reservas de vagas pelo programa de ações afirmativas da universidade constituía meu ponto central de estudo de tese, por conta de meu exercício profissional na docência encontrando-me com teorias e técnicas europeias e norte-americanas e alguns poucos alunos negros e indígenas em sala de aula que se perguntavam: como é mesmo que toda esta parafernália psi se remete às formas de ser indígena, negro ou não-branco em nosso país? Com esta convocação de sala de aula, fui desenhando questões para um estudo de tese que me levaram à UFRGS e às políticas de ações afirmativas. Nesta trajetória, um ponto de partida, foi participar do processo de ingresso dos alunos na universidade no concurso vestibular/2013 como fiscal em uma das salas de aula. Depois, percorrendo os espaços da instituição, fui me valendo das indicações deixadas em cartazes afixados nas paredes e corredores dos prédios e dos pátios, bem como das divulgações e chamadas oficiais para ingresso de alunos e para o programa de ações afirmativas pelo site da universidade. A chamada para uma igualdade se apresentava em todos os caminhos que eu me dirigia buscando as ações afirmativas, a começar pela declaração oficial sobre sua concepção no primeiro artigo do Estatuto da Igualdade Racial: "programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades". Nesta trajetória, o tensionamento e os debates sobre os ingressantes negros, indígenas e de alunos egressos de escola pública nas instituições federais estiveram sempre acirrados, com defensores e críticos crentes de seus posicionamentos. Foi aí que as formas da almejada igualdade se colocaram como uma questão a ser delineada em seus movimentos e transformações. Como colocou Latour (2012) ao falar sobre a circulação das coisas de local em local, as formas se evidenciam em primeiro lugar. De um plano ideal, abstrato presente nas teorias sociais e regulamentações jurídicas, elas se deslocam para a concretude permitindo que alguma coisa seja transportada de um lugar para outro. Portanto, neste artigo, vou delimitar como ponto de análise, as conexões e transladações estabelecidas em nome da igualdade promovida nas ações afirmativas presente nas associações e agenciamentos realizados pelo concurso vestibular de 2003 da UFRGS.

Ao percorrer a rede de acesso à universidade, este estudo indaga a rede em que o próprio pesquisador se faz pesquisador e também se faz objeto de pesquisa. Fazer este estudo é, portanto, incorrer em um mundo controverso e sempre instável das associações entre os coletivos que se dão entre a ciência, a política, a economia, o campo jurídico e assim por diante. Portanto, é saltar de um quadro de referência a outro, enfrentando as situações conturbadas e quentes em que as controvérsias se desdobram. Neste sentido, Latour (2012) nos adverte que "controvérsias não são um mero aborrecimento a evitar, e sim aquilo que permite ao social e às várias ciências sociais contribuírem para sua construção" (p. 46). Por isto, esses detalhes ou elementos que compõem os procedimentos de uma questão interessante para uma ciência do social se mostram nos embates da instabilidade. Mostram-se também, nos agenciamentos que mobilizam os atores para estabilizar esses embates.

 

3 Desdobrando a rede entre cadastros e procedimentos de comprovação

Enfatizando os detalhes que vão circulando nas conexões materiais que vão se fazendo no concurso vestibular vamos dando concretude material à igualdade prescrita nas orientações do vestibular. São conexões realizadas por agentes em ação e movimentos que transformam e formam outros agentes em seus deslocamentos. Neste caso, os agentes são humanos e não-humanos que atuam na transformação de outros agentes, mas, não como causas naturais. É por isto, que são chamados de mediações ou 'meios em ações', os movimentos que vão mobilizando outras ações no seu deslocamento.

Pois bem, dirigindo-me para as salas do concurso vestibular/2013, com a preocupação de que todos os procedimentos orientados e prescritos no treinamento de fiscais estivessem à altura da exigência imposta nas recomendações do técnico instrutor, inicio a trajetória de mais um agente em ação para o acesso de alunos no ensino superior. A igualdade – essa forma abstrata, prescrita e decantada na legislação das ações afirmativas – toma concretude em "exigências contraditórias do formalismo" segundo Latour (2012, p. 321). Encontro-a na forma de controle rigoroso de horários com sinais sonoros em todos os ambientes do prédio local nos tempos pré-determinados, traduzindo-se em portões fechados para os retardatários e o fim dos exames para os que não acessaram a sala pré-fixada a tempo, ao mesmo tempo em que, por toda a cidade o trânsito de veículos rumo aos locais de prova se intensificava e se regulava pelos sinais sonoros que seriam acionados sincronicamente em cada uma das salas de aula em que houvesse o exame. Para os que acessaram em tempo hábil a sala de aula, a igualdade se faz no controle detalhado de carteiras de identificação e da assinatura do candidato na folha de papel com a lista de presenças que eu apresento para cada candidato na porta do recinto; sem identificação e sem assinatura comprovadamente semelhante na lista de presenças, o acesso ao exame termina por aqui.

A forma igualdade também se desloca para a abertura de envelopes lacrados que se encontram sob a máxima segurança dos fiscais de prova e sob o olhar atento dos candidatos na sala de aula. Como ser igual sem a evidência comprovada dos procedimentos práticos para que todos tenham os mesmos direitos de acesso?

Da evidência igualitária o traçado se movimenta para a coleta individual de impressões digitais em fichas de respostas. Cuidadosamente, eu devo utilizar as técnicas de coleta datiloscópica orientada no treinamento para fiscais, sob o risco de invalidar o acesso à universidade, se o campo milimétrico do dedo polegar a ser marcado e previsto nas orientações, não estivesse igual ao campo que a máquina analisadora de marcas digitais posteriormente apresentará como um resultado fiel. Das máquinas que comprovam a similitude das marcas datiloscópicas movemo-nos para a vigilância atenta dos ouvidos dos candidatos. Como detectar uma possível presença de fones de ouvido no recinto?

Na igualdade de condições para todos os candidatos, nenhuma informação poderia ser privilegiada ao dispor-se de recursos de informação disponíveis no mundo. Neste momento, as conexões de informação são restritas àquelas que os fiscais viabilizam localmente nos procedimentos práticos e operacionais de realização das provas. Com isto, seguem-se orientações para que as mesas individuais permaneçam livres de qualquer outro objeto que não fosse uma caneta, um lápis e uma borracha além do caderno de questões e da ficha de respostas. Com todas estas descrições materiais e procedimentais, a marca de um ingresso em nome da igualdade foi se traçando. Mas, o que poderia haver de inquietante em uma convocação para a igualdade de direitos nas condições estipuladas para o ingresso nas universidades federais, e pela vigilância atenta a este mandato em cada uma das salas em que o exame seria prestado? Possivelmente o embate no acesso ao ensino superior pelas ações afirmativas aconteça porque uma rede estabilizada de acesso para alguns poucos privilegiados em condições para se candidatar como um anônimo ‘universal', se movimente com novos agenciamentos e novas configurações pela entrada de alunos que afirmam uma diferença e uma peculiaridade no campo da estável hegemonia universal.

São com estas indagações que este estudo sobre as ações afirmativas no ingresso às universidades federais se faz. É uma empreitada indagando sobre as associações e controvérsias que se apresentam localmente no acesso às cotas sociais e étnico raciais, mas também se firmam e se estabilizam em concepções hegemônicas e por isso mesmo, concepções que se desvinculam do plano local da rede que compõe o ingresso dos alunos cotistas. Em outros momentos, os objetos mobilizados pelas associações vão disputando posições que se traduzem em novos agenciamentos e controvérsias no ingresso por reserva de vagas.

Para continuar seguindo as trilhas do acesso ao ensino superior, eu proponho acompanharmos os procedimentos para a inscrição de um cotista (candidato que se inscreve pelas cotas sociais ou étnico raciais) para o exame seletivo do vestibular.

No período de inscrição para a seleção de ingresso (vestibular) na graduação, as controvérsias em torno dos critérios e procedimentos adotados para acessar as instituições federais se intensificam. Antes da Lei 12.711/12, cada universidade estabelecia os seus critérios de acesso. Os mais usuais eram os de acesso universal e por reserva de vagas – para alunos provenientes de escola pública e alunos auto declarados negros, pardos e indígenas. Encontrávamos, também, o critério por deficiência física – um critério adotado já na constituição de 1988 para ocupação de vagas no trabalho e estendido a muitas instituições de ensino.

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma das universidades brasileiras a adotar desde 2007 o sistema de reserva de vagas para ingresso de alunos, ou seja, antes mesmo da Lei 12.711/12, por exemplo, 70% (setenta por cento) das vagas eram destinadas a todos aqueles que queriam se inscrever independente de sua proveniência social, étnica ou racial, caracterizando-se como acesso universal; já os outros 30% (trinta por cento) das vagas eram reservadas para o denominado Programa de Ação Afirmativa da Universidade. Com a promulgação da Lei de reserva de vagas, a instituição continuou com a reserva de 30% de suas vagas para as cotas sociais e raciais, apesar de neste primeiro ano - 2013, a exigência de conformidade legal ser de apenas 12,5% de vagas reservadas às cotas. Pelo Programa de Ações Afirmativas, em cada curso de graduação da UFRGS, estão garantidos 50% (cinquenta por cento) para candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio e 50% (cinquenta por cento) para candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio que se auto declararem negros no ato da inscrição ao Concurso vestibular, isto no ano de 2013. Se, por ventura, o aluno for aprovado no vestibular, no momento da matrícula os egressos do sistema público de ensino devem apresentar o certificado de conclusão e o histórico escolar de todo o ensino fundamental e médio que comprovem a sua proveniência de escola pública, tanto como aluno regular como do EJA (Educação de jovens e adultos). Os aprovados que além de serem egressos de escola pública ainda se inscreveram no vestibular como negros devem assinar uma auto declaração étnico-racial.

A UFRGS concede também outros incentivos econômicos vinculados ao Programa de Concessão de Benefícios para ingresso de alunos em seus cursos. Neste caso, o aluno que não tiver condições financeiras para arcar com o valor da inscrição, pode requerer dois meses antes de se inscrever, a isenção total ou parcial – 50% (cinquenta por cento) – na taxa do vestibular.

Segundo o edital de isenção, o descontode 50% será concedido ao solicitante que comprovar que cursou, com aprovação, pelo menos a metade de seus estudos de ensino fundamental e a totalidade do ensino médio em ESCOLA PÚBLICA (as letras maiúsculas de 'escola pública' estão formatadas no próprio edital). Já a isenção é concedida ao solicitante, oriundo de qualquer sistema de ensino, que comprovar, nos termos do Decreto nº 6.593/2008 – que dispõe sobre a isenção de pagamento de taxa de inscrição em concursos públicos realizados no âmbito do Poder Executivo federal – uma das seguintes situações:

a) estar inscrito no Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), de que trata o Decreto nº 6135/2007 – que dispõe sobre o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal; ou
b) ser membro de família de baixa renda, sempre nos termos do Decreto nº 6135/2007, e com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo ou com renda familiar mensal de até três salários mínimos.

Interessantes são as definições do que se estipula para ser considerado de baixa renda, segundo o Decreto nº 6135/2007 – que trata do CadÚnico. Então, um candidato considerado de baixa renda se conforma em duas condições: 1. ele está cadastrado nos Programas do Governo Federal ou, 2. ele é membro de alguma família. Se ele está cadastrado nos Programas estatais, já estará pré-concebida a sua situação de baixa renda, e todas as definições a priori já encontram-se dadas pelos Programas que lhe conferem uma identidade/lugar de pobreza. Já para a condição de ser 'um membro de família de baixa renda', precisa-se estipular o que vem a ser essa família. Encontramos, portanto, nas definições do CadÚnico que família seria: "uma unidade nuclear composta por um ou mais indivíduos, eventualmente ampliada por outros indivíduos que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas atendidas por aquela unidade familiar, todos moradores em um mesmo domicílio". Se família está atrelada a um domicílio, bem, então na definição de domicílio encontramos: "local que serve de moradia à família". E por fim, a definição de renda familiar mensal e renda familiar per capita: a primeira seria a "soma dos rendimentos brutos auferidos por todos os membros da família, não sendo incluídos no cálculo aqueles percebidos dos programas: a) Programa de Erradicação do Trabalho Infantil; b) Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano; c) Programa Bolsa Família e os programas remanescentes nele unificados; d) Programa Nacional de Inclusão do Jovem – Pró Jovem; e) Auxílio Emergencial Financeiro e outros programas de transferência de renda destinados à população atingida por desastres, residente em Municípios em estado de calamidade pública ou situação de emergência; e f) demais programas de transferência condicionada de renda implementados por Estados, Distrito Federal ou Municípios. A segunda forma de renda familiar – per capita – seria a razão entre a renda familiar mensal e o total de indivíduos na família.

Tiramos daí que o candidato de baixa renda é aquele que tem um domicílio e uma família, e toda a sua subsistência vai girar em torno deste local de moradia – devidamente cadastrado – e desta família – também devidamente codificada nos programas estatais.

Pois bem, depois que o aspirante ao benefício para ingresso na UFRGS conseguiu se enquadrar numa das condições acima relativas à baixa renda, ele deve comprovar a sua condição com os seguintes documentos: a) cópia do Cartão do CadÚnico; b) cópia de um documento de identificação e de comprovação de renda de todos os participantes da família; c) um atestado de residência: cópia de uma conta de luz – ou IPTU, conta de telefone, conta de água, recibo de aluguel ou recibo de condomínio. Após todo esse percurso de identificação e comprovação de que se encontra na condição de uma pessoa de baixa renda e domiciliada – em algum lugar inscrito nos sistemas codificados de energia, telefone, água e taxas tributárias –, se o candidato não se vê contemplado com o benefício, ele ainda pode recorrer da sentença, e pedir um recurso de revisão do seu pedido à própria universidade que anteriormente negou-lhe a inscrição neste quesito, por não reconhecer os comprovantes de identificação do candidato.

Conclui-se que mesmo sem condições financeiras para acessar o vestibular no pagamento da taxa de inscrição, é possível se candidatar a uma das vagas da universidade. O aspirante trilha o caminho dos cadastros e comprovações de uma identificação de pobreza ou 'de baixa renda' e vê-se habilitado a concorrer a uma das vagas reservadas para quem sempre estudou em escola pública ou ainda para os que estão na condição de se autodeclarar negro ou índio.

Mas, e se o candidato se encontrar em situação de pobreza e, não estiver inscrito em nenhum dos Programas Federais destinados a pobres (ou de transferência de renda) inscrito no CadÚnico? Como fazer para se inscrever? Se ele não estiver inscrito no CadÚnico certamente espera-se que ele seja membro de uma família domiciliada. Mas, e se ele viver sozinho e não tiver formalizado um domicílio nos parâmetros oficiais e legais da vida contemporânea? Bem, daí este mundo acadêmico, aquele que se instituiu como o campo da formulação das verdades científicas não é para ele... ou, pelo menos, não é para ele transitar sem o devido aparato legal, formal que o autoriza a ser um sujeito acadêmico passível de produzir conhecimentos! A produção do conhecimento é para aqueles prósperos autorizados no jogo dos vínculos acadêmicos, de codinome 'universal', ou podemos também pensar que seria o jogo dos iguais em condições e oportunidades, desde que devidamente enquadrados no aparato legal de reconhecimento público para um certo lugar previamente autorizado. É um jogo repleto de versões e indagações. Como se autodeclarar negro, pardo ou índio? Que condições estipulam um determinado lugar no acesso às chamadas políticas de ingresso nas universidades? Perante esse percurso resta o questionamento de como é que uma política que preconiza a busca de uma maior igualdade social e racial pela via educacional demanda tanta precaução?

 

4 O programa de ações afirmativas na UFRGS: argumentos e materialidades

Para nos situar um pouco mais em como foi se compondo a trama das políticas de ação afirmativa no ensino superior cabe visualizar em que embates políticos sociais as ações afirmativas foram se dando e quais as concepções que foram se firmando como estatuto que as diferencia das demais propostas políticas de escolarização vigentes no país.

Correntemente, as ações afirmativas vêm se inscrevendo nos processos de inclusão e democratização para o acesso aos direitos sociais, sobretudo os que se referem à educação e ao trabalho. Elas são concebidas como "políticas públicas que têm como objetivo corrigir distorções históricas responsáveis pelo sofrimento de determinados grupos sociais ou étnico-raciais como, por exemplo, mulheres, pessoas portadoras de necessidades especiais, negros e índios" (Barbosa, Silva & Sousa, 2010, p. 71). No Estatuto da Igualdade Racial vem impresso que as ações afirmativas são "os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades".

Segundo o sítio eletrônico da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – a história das cotas étnico raciais no Brasil tem um marco em 1968 que se estabeleceu através dos funcionários do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho. Na ocasião, os técnicos dessas entidades, posicionaram-se a favor da criação de uma lei que exigisse que os empresários destinassem uma parcela mínima de suas vagas de emprego destinadas a trabalhadores negros. No entanto, esta lei não foi efetivada.

Mais tarde, em 1980, ainda segundo o sítio da UFSC, houve a primeira formulação de uma lei nesse âmbito, pretendendo formular políticas de caráter compensatório mediante as lutas dos movimentos negros com a intenção de combater a discriminação racial. Entre as medidas elaboradas constavam: a reserva de 20% de vagas para mulheres negras e de 20% para homens negros na seleção de candidatos ao serviço público; bolsas de estudos; incentivos às empresas do setor privado para a eliminação da prática da discriminação racial; bem como introdução da história das civilizações africanas e do africano no Brasil. Esse projeto não foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas as mobilizações em torno desta pauta continuaram através do Movimento Negro buscando denunciar o mito da democracia racial.

Hoje, após pelo menos quatro décadas de debates sobre a discriminação racial no Brasil, já estão promulgados a lei 10.639/2003 que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira"; temos também o estatuto da igualdade racial e um ministério federal (o SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) para dedicar-se ao combate da discriminação racial e ao mesmo tempo promover igualdade de oportunidades a grupos étnicos e raciais. Sob muita polêmica e controvérsias sociais para se conseguir pautar o enfrentamento da discriminação racial no Brasil, os passos para a efetivação de políticas de ação afirmativa foram demarcando novas discussões e visibilidades acerca das posturas assimétricas e discriminatórias que se estabilizaram no país. No entanto, sabe-se que o embate social neste campo continua intenso, haja vista os currículos escolares brasileiros ainda não contemplarem o conhecimento da história africana na programação escolar, mesmo com uma lei estabelecendo como obrigatório o estudo desta temática, só para dar um exemplo. É através desses movimentos, principalmente do movimento pela igualdade racial, que as políticas de ação afirmativa se firmaram em Lei para o ingresso nas universidades federais.

O programa de ações afirmativas na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – é apresentado no sítio eletrônico da universidade. No link específico para o programa, encontramos que as ações afirmativas referem-se a um conjunto de políticas públicas para "proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado. A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de liderança".

Com isto, o Programa de Ações Afirmativas instituído na Universidade Federal gaúcha tem como objetivo ampliar o acesso a todos os seus cursos de graduação e seus cursos técnicos redimensionando teorias e metodologias acadêmicas na produção de conhecimento; promover um espaço plural, resultado de diferentes trajetórias; garantir a permanência dos alunos ingressantes por esse sistema, através de programas de bolsas, ampliação dos restaurantes universitários e moradia estudantil, aumento do acervo bibliográfico, entre outras ações. (Sítio eletrônico da UFRGS).

O Programa de Ações Afirmativas da UFRGS declara ainda que ele "não se configura numa política de favorecimento assistencialista, (mas sim, que) é produto de uma história de desigualdades, de luta e resistência dos movimentos negro e indígena". Declara ainda que "esta política de forma alguma cria o racismo, mas sim explicita o já existente em nossa sociedade" e acrescenta que "acreditamos que a pluralidade étnico-racial e social no espaço acadêmico possa contribuir para a construção de uma educação e sociedade sem preconceito e discriminação". O sítio da UFRGS declara ainda que aconteceu no ano de 2005, amplos debates promovidos por estudantes, técnicos, professores, em parceria com os movimentos sociais, principalmente, os movimentos negros e indígenas deflagrando o caminho para a implantação da reserva de vagas étnico raciais na universidade.

Segundo divulgação do próprio portal da UFRGS, em 2006, a Universidade, em diálogo com os movimentos sociais, iniciou oficialmente o debate sobre a implementação de uma política de ações afirmativas. O resultado deste debate foi a constituição da Comissão Especial formada por membros do Conselho Universitário (CONSUN) e do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), cujo objetivo era formular uma proposta de política de ações afirmativas a serem adotadas pela UFRGS. Em 2007 a proposta do ingresso por reserva de vagas foi aprovada pelo Conselho Universitário para vigorar a partir de 2008. No vestibular de 2008/1 522 alunos entraram na universidade pelas cotas, sendo 88 auto declarados negros, 434 egressos do ensino público e 09 alunos indígenas. Já em 2008/2 matricularam-se 795 por reserva de vagas, sendo 167 auto declarados negros e 628 egressos do ensino público. Com esses registros, os argumentos foram se materializando no debate para a implementação da lei que atualmente vigora, movendo-se dos dados estatísticos locais da universidade para argumentos de combate nas audiências públicas do Sistema Judiciário nacional e para uma formalização legal sobre a igualdade preconizada nas ações afirmativas das universidades federais brasileiras, ou em nosso caso, na UFRGS.

Após esta descrição do que a Universidade apresenta em seu sítio eletrônico sobre o que vem realizando em seu Programa de Ações Afirmativas, cabe dizer que as redes tecnossociais também vão se associando nos embates das argumentações controversas. Aqui, os argumentos são armas que fomentam o calibre da disputa. Portanto, que argumentos foram colocados para o fortalecimento das ações afirmativas na educação superior? Um importante argumento na composição das ações afirmativas foi segundo Moehlecke (2002) o de que a educação é um instrumento que possibilita a ascensão social através de dados que demonstram o escasso acesso da população pobre e negra no ensino superior brasileiro. Entram nessa questão razões históricas, como a escravidão e fatores que contribuíram para efetivar as desigualdades que configuram uma dívida do Poder Público em relação a esses setores da sociedade.

Outro argumento que justifica a implementação de ações afirmativas encontra-se no texto do historiador Luiz Felipe de Alencastro encontrado em seu blog eletrônico 2, e elaborado para a Audiência Publica do STF sobre cotas para negros em 2010, o qual diz:

Os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema politico de nosso país. Nascidas no século XIX, a partir da impunidade garantida aos proprietários de indivíduos ilegalmente escravizados, da violência e das torturas infligidas aos escravos e da infracidadania reservada aos libertos, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o país inteiro.
Por isso, agindo em sentido inverso, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afro-brasileiros -, hoje majoritários no seio da população -, consolidará nossa democracia.
Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica, como foi o caso, em boa medida, nos memoráveis julgamentos desta Corte sobre a demarcação das terras indígenas. No presente julgamento, trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da nação [grifo dos autores]. Tais são os desafios que as cotas raciais universitárias colocam ao nosso presente e ao nosso futuro.

Vemos, nesta trajetória que os argumentos vão se constituindo ora com uma crítica ao universalismo – do acesso universal que se constituiu privilegiando a entrada do branco favorecido economicamente – ora articulando ações afirmativas e peculiares no espaço da Universidade, ou seja, no campo que se instituiu como Uno. Também se movimenta pelo valor da igualdade – a igualdade de oportunidades – inscrita no embate ético político que se impõe na pauta do dia, ao mesmo tempo em que, promove e afirmação dos diversos grupos étnicos e raciais.

Pelo menos dois argumentos que se associam à noção de igualdade nas ações afirmativas no ensino superior justificaram a implementação da política, tais como: 1. A educação é um instrumento que possibilita a ascensão social e, portanto, "com maiores chances de melhorar as condições de vida" como assinala o jornal Extra-Classe publicado pelo Sinpro – Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul – em matéria de abril de 2012, intitulada "a igualdade não é branca", um texto que denuncia atos de discriminação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, principalmente no tradicional curso de medicina contra alunos indígenas e negros cotistas. 2. As políticas de ação afirmativa irão aperfeiçoar a democracia, como na tese 3 de direito intitulada ‘A Democratização Racial Na Universidade: A Legitimidade e os Limites das Ações Afirmativas no acesso ao Ensino Superior' defendida por Altemar Constante Pereira Jr.. 2010 na Universidade do Vale do Rio dos Sinos/RS em 2010.

Considero que tais argumentos se estabilizam por ora nas políticas de acesso ao ensino superior, favorecendo outras associações e conectando-se a outros argumentos ou tecnologias que compõem a rede sempre móvel da concretização de uma política social. Podemos dizer com isto que, as dispersões deste mundo formatado em procedimentos visíveis e previsíveis não estão dadas numa outra dimensão para além da rede que constitui o acesso à universidade. Presente na rede está a política de ações afirmativas que vai associando novos componentes ao que já estava estabilizado como universal.

Desta forma, o que nos resta é seguir o embate que se dá na própria rede através dos agenciamentos que vão mediando argumentos e procedimentos que ora se estabilizam no embate e ora se agregam a outros argumentos agenciando novos procedimentos, sempre no movimento da rede. Apresento aqui argumentos que se fazem no embate político de novos agenciamentos entre pessoas, coisas e, sem dúvida, interesses que por um lado fazem a rede estabilizar o valor da igualdade para alguns em procedimentos de formalização e mesmo obstáculos para o fluxo de uma igualdade mais simétrica entre os diferentes grupos sociais, e por outro, são agenciamentos que possibilitam uma concretização de formas da igualdade que não se encontravam no espaço universitário anteriormente sem a presença dos movimentos demarcados pelas ações afirmativas no ensino superior.

 

Referências

Barbosa, J. L., Silva, J. S., & Sousa, A. I. (2010). Ação afirmativa e desigualdade na universidade brasileira. (69–81). Col. Grandes Temas. Rio de Janeiro: UFRJ.

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Latour, B. (2001). A esperança de pandora. Bauru: EDUSC.         [ Links ]

Latour, B. (2012). Reagregando o social – uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador: Edufba, São Paulo: Edusc.

Moehlecke, S. (2002). Ação afirmativa: História e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa. [online]. 117, (197-217). ISSN 0100-1574. Recuperado em 19 de Janeiro, 2013, de http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000300011        [ Links ]

Mol, A. (2007/no prelo). Política ontológica. Algumas idéias e várias perguntas. In J. A. Nunes, & R. Roque (Org.). Objetos impuros – experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Edições Afrontamento. Recuperado em 19 de Janeiro, 2013, de http://dare.uva.nl/document/2/77537

Stengers, I. (2002). A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Zuleika Köhler Gonzales
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós Graduação Psicologia Social - PPGPSI/UFRGS
Rua Ramiro Barcelos, 2600, 3º andar sl 300c, CEP 90035-003, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência: zuleika3012@yahoo.com.br
Neuza Maria de Fátima Guareschi
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós Graduação Psicologia Social - PPGPSI/UFRGS
Rua Ramiro Barcelos, 2600, 3º andar sl 300c, CEP 90035-003, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência: nmguares@gmail.com

Recebido em: 03/06/2014
Reformulado em: 07/10/2014
Aceito para publicação em: 17/10/2014

 

 

Notas

* Doutoranda do PPGPSI/UFRGS. Porto Alegre/RS/Brasil.
** Professora do PPGPSI/UFRGS. Porto Alegre/RS/Brasil.
1 Como Stengers, I.(2002); Despret, V. (2002); Moll, A. (2007).
2 Recuperado em 18 de Janeiro, 2013, de http://sequenciasparisienses.blogspot.com/2010/04/cotas-e-democracia.html
3 Recuperado em 18 de Janeiro, 2013, de http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=20102542007011005P9 Pereira, Jr. A. C. (2010). A Democratização Racial Na Universidade: A Legitimidade e os Limites das Ações Afirmativas no acesso ao Ensino Superior. 2010. Tese de Doutorado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil.

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