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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.16 no.1 Rio de Janeiro jul. 2016

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Adolescentes e uso de drogas na visão do UNICEF

 

Teens and use of drugs for UNICEF

 

Adolescentes y consumo de drogas para el UNICEF

 

 

Flávia Cristina Silveira Lemos*, I; Dolores Cristina Gomes Galindo**, II; José Araújo de Brito Neto***, I; Diego Henrique da Silva Trujillo****, I

I Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, Pará, Brasil
II Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetivou apresentar resultados de pesquisa sobre documentos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), referentes ao tema adolescentes e drogas. Como metodologia, foi realizada uma análise histórica documental, a partir de ferramentas teóricas e metodológicas da História Cultural e da Psicologia Social e Institucional, as quais constituíram os arcabouços deste trabalho. Entre os documentos selecionados da página do UNICEF na internet, durante o período da Nova República brasileira, desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, até 2012, estão relatórios específicos sobre a situação da adolescência brasileira. Foram trabalhadas práticas acionadas por essa agência multilateral frente à questão das drogas e dos adolescentes, sendo interrogadas e analisadas em seus efeitos e delineamentos, na garantia de direitos desse segmento social. Entre os resultados, é possível destacar a tentativa do UNICEF em afirmar uma visão de vulnerabilidade dos adolescentes face às drogas e um conjunto de recomendações ao Brasil para lidar com essa situação.

Palavras-chave: adolescentes, direitos e drogas, políticas públicas, UNICEF, documentos.


ABSTRACT

This article aimed to present research findings on the United Nations Fund documents for Children (UNICEF) on the topic teenagers and drugs. The methodology documentary historical analysis from theoretical and methodological tools of cultural history and social psychology and institutional frameworks were this work was performed. Among the selected documents, the UNICEF website, during the period of the New Brazilian Republic, since the adoption of the Statute of Children and Adolescents, in 1990 through 2012, are specific reports on the situation of Brazilian teens. Practices were worked triggered by this multilateral agency opposite the issue of drugs and adolescents, being interrogated and analyzed in its effects and designs in ensuring rights of this social group. Among the results, it is possible to highlight UNICEF's attempt to assert a vision vulnerability of adolescents in drug and a set of recommendations to Brazil to give you this.

Keywords: adolescents, rights and drugs, public policy, UNICEF, documents.


RESUMEN

Este artículo tuvo como objetivo presentar resultados de investigaciones sobre los documentos del Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia (UNICEF) en los adolescentes tema y drogas. El análisis histórico documental metodología de herramientas teóricas y metodológicas de la historia cultural y la psicología social y los marcos institucionales se llevó a cabo este trabajo. Entre los documentos seleccionados, la página web de UNICEF, durante el período de la Nueva República de Brasil, desde la aprobación del Estatuto de la, Niñez y Adolescencia, en el año 1990 hasta el año 2012 son informes específicos sobre la situación de los adolescentes brasileños. Prácticas fueron trabajados disparados por este organismo multilateral frente a la cuestión de las drogas y los adolescentes, siendo interrogados y analizados en sus efectos y diseños en garantía de los derechos de este grupo social. Entre los resultados, es posible destacar el intento de UNICEF para hacer valer una vulnerabilidad de la visión de los adolescentes en las drogas y un conjunto de recomendaciones a Brasil para darte esto.

Palabras-clave: adolescentes, derechos y drogas, políticas públicas, UNICEF, documentos.


 

 

1 Introdução

Este artigo faz parte de estudos desenvolvidos em pesquisa financiada pelo CNPq, por bolsa de produtividade, a qual opera como um guarda-chuva de estudos a respeito das práticas de organizações multilaterais no Brasil, especialmente o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Essa agência foi criada em 1946, após a II Guerra Mundial, com o objetivo de oferecer assistência às crianças e mulheres vitimadas pelas consequências da guerra.

Após alguns anos de intervenção, ampliou suas práticas para o cuidado com a saúde materno-infantil e, posteriormente, intensificou e aumentou o escopo de suas ações, incluindo o campo de direitos de crianças e adolescentes, em especial, nos países que considerava não desenvolvidos e em desenvolvimento, como o Brasil.

Esta pesquisa busca, na análise de documentos, proporcionar contribuições para as Psicologias, em especial, a Social, a Institucional, a Comunitária, a Educacional e Escolar. A metodologia histórica é usada em articulações com a Psicologia Social e Institucional, no campo teórico. Em termos de definição de espaço e tempo, delimita-se pelo Brasil, durante a Nova República brasileira, emergindo com a abertura política, após o término da Ditadura Civil Militar.

A implantação de um quadro democrático, no Brasil foi bastante significativa, sobretudo no âmbito do panorama jurídico e nas políticas públicas criadas na proteção, promoção e defesa de direitos, que foram fundamentais para a criação de um conjunto de políticas públicas dirigidas às crianças e adolescentes, no país, praticamente durante os últimos 25 anos. Assim, é inaugurada uma tentativa de democratizar a sociedade brasileira e gerar efeitos de atendimento e cuidado, perpassados por uma visão democrática afirmativa de garantias, promoção e defesa de direitos, constitutiva de um sistema em formato de rede de garantias de direitos.

Temos orientado um conjunto de trabalhos de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso, mestrados e doutorados, tanto na área da Psicologia quanto da Educação, com vistas a formular uma rede de pesquisas com o vasto material disponibilizado e publicado, na página do UNICEF, na internet em português. Os relatórios são anuais, a respeito da situação da infância e adolescência brasileiras.

Esses documentos visam fazer circular recomendações, avaliações de monitoramento das políticas e informações de assessorias para subsidiar decisões e criações de atendimentos, almejando implementar e acompanhar programas e projetos que promovam, defendam e garantam os direitos de crianças e adolescentes, no Brasil. Neste texto, apresentaremos alguns resultados da ampla pesquisa, sob o recorte específico do tema adolescente e drogas, de acordo com o UNICEF.

Os relatórios trazem uma variedade de temas capazes de implicar uma agenda de cuidado e proteção às crianças e adolescentes. Cada relatório contempla um conjunto de páginas e seções especiais, divididas tematicamente e também pelo foco em políticas acordadas em pactos e metas internacionais, assumidas pelo país em conferências, declarações, reuniões, nas quais, diplomaticamente, o país se comprometeu a materializar determinadas ações dirigidas a combater e a eliminar violações e violências de direitos, na infância e adolescência.

Desse modo, o UNICEF opera uma intensa articulação política nos países-membros, para estabelecer o cumprimento dos acordos realizados, de sorte a fomentar uma rede de práticas vizinhas, com ONGs, OSCIPs, entidades, institutos, fundações, organismos governamentais e bancos internacionais, com fins de fazer valer a agenda e as metas estabelecidas. Entre os temas e metas selecionados nos documentos, podemos encontrar a política sobre drogas e os usos das drogas entre e por adolescentes. Neste texto, focalizaremos as problematizações feitas pelo UNICEF diante desse objeto, pensando quais são as definições, propostas, recomendações, acordos, encaminhamentos, financiamentos, saberes e agenciamentos mobilizados.

 

2 Metodologia

A análise histórica por meio de documentos, realizada nesta pesquisa se deu com as contribuições de Michel Foucault, na genealogia e arqueologia, a partir da problematização das práticas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Levantaram-se os relatórios dessa agência internacional de proteção aos direitos de adolescentes, tomando o recorte do Brasil e do período de 2000 a 2014, haja vista que toda história deve ter tempo e espaço definidos como elementos principais de um estudo documental.

A genealogia e a arqueologia implicam na descrição e interrogação de relações de poder e saber, dinâmicas, exercidas em correlações de forças, atravessando e constituindo os corpos, políticas, arquiteturas, forjando saberes e se materializando em suportes tais como: registros, dossiês, fotos, mapas, discursos, leis, tabelas, declarações, tradados, pactos e disputas (Foucault, 1979). Essa história é singular e descontínua, rara e agenciada por meio de práticas concretas, múltiplas e heterogêneas (Veyne, 1998).

O trabalho com documentos não é uma mera leitura e citação de recortes. Também não acarreta uma utilização do material somente como literatura. Os documentos são produções históricas, perspectivas, sendo fruto de fazeres e, portanto, resultantes de práticas que os forjam no tempo e no espaço (Veyne, 1998). Um conjunto de documentos se torna um arquivo, que pode ser guardado e conservado em locais públicos e privados, oficiais ou não.

São documentos, por exemplo, fotos, jornais, desenhos, móveis, cartas, registros, quadros, tapetes, arquiteturas, tecidos, selos, relatórios, livros e outros papéis, tais como contas pagas, diários, falas, objetos variados e prontuários, laudos, processos, boletins de ocorrência, registros escolares, paisagens, tantas outras visibilidades e dizibilidades. Uma noção ampliada dos documentos os retirou do lugar de prova e de testemunho apenas de algo que tivesse o estatuto de fato histórico, no positivismo da história tradicional (Burke, 1997; 2004).

Os documentos são práticas discursivas e não discursivas, saberes e poderes. Eles indicam modos de governar pelas prescrições que realizam. Sustentam a condução das condutas, e a maneira de arquivá-los opera efeitos específicos enquanto legado e o que se faz com os mesmos (Castro, 2008). Os acontecimentos são ordens dos discursos; são controladas e, ao mesmo tempo, operam resistência a esses mecanismos de controle, assim como geram efeito de poder e saber (Foucault, 2004; 2009). Nesse sentido, é possível estudar, com a análise de documentos, a produção das subjetividades, práticas culturais e sociais, tal como é organizada a racionalidade política e econômica.

Marcar a singularidade dos acontecimentos em cada documento e enunciado nele presente é importante, em termos de descontinuidade histórica, na afirmação da vida para romper com ressentimentos e modelos a julgar, a reproduzir e a venerar, a imitar, e material a guardar como uma relíquia a ser idolatrada. Além das diferenças, um documento permite assinalar regularidades discursivas e descrever os modos de circulação, de difusão, de consulta e de sua apropriação. O documento é manuseado pelo historiador artesão, em seus artefatos e dispositivos de invenção de si e dos outros (Farge, 2009; 2011).

Na história genealógica de Foucault (1979), os documentos são práticas criadas historicamente e poderão ser problematizados enquanto tais. As pesquisas com documentos possibilitam desnaturalizar acontecimentos, em uma rede de forças múltiplas, heterogêneas e vizinhas, correlatas, sem relações causais entre elas. A análise genealógica implica marcar saberes e poderes, nos processos de subjetivação em jogo, no presente. A subjetivação é um processo histórico, cultural, social, ecológico, econômico e político.

Os saberes são práticas discursivas e os poderes são as práticas não discursivas. Por exemplo, o UNICEF move muitos saberes para legitimar suas ações. Investigar quais e como são utilizados os discursos, nesse caso, nos documentos, oferece pistas que ajudam a problematizar as práticas dessa agência multilateral. Os poderes se materializam pelas recomendações e prescrições dirigidas pelo UNICEF ao Brasil, nos relatórios, tendo em mente os trabalhadores do campo dos direitos, as famílias das crianças e dos adolescentes e toda a sociedade.

O relatório pode ser analisado nas fotos que publica, nas cores, na edição das mesmas, quais crianças e adolescentes são fotografados e em que condições o são. As fotos são em preto e branco, em algum momento? Tais fotos são colocadas em que página do documento e associadas a que textos? Qual o tamanho delas e como estão diagramados, na página? Quais os lugares das fotos? Quais ênfases são criadas para os aspectos dos direitos, em um território vinculado à produção de subjetividades?

E as entidades e equipamentos que compõem a rede de atuação do UNICEF? Quais são e como são acionados, no documento analisado? Que lugar institucional cada organização citada tem, na articulação política efetivada pelo UNICEF? Quais delas financiam a publicação do relatório? O que elas dizem e que ação realizam, no documento? De quais programas e projetos participam? São locais, regionais, nacionais e internacionais?

Quais são os assessores do relatório? De quais áreas? Como participam do relatório? Que saberes lançam mão de suas áreas, para compor os documentos problematizados? Estudaram onde, fizeram pós-graduação? São contratados por projetos, cedidos por outros órgãos ou são funcionários do UNICEF? Que integrantes da ONU compõem o relatório e atuam de que maneira?

Quais são os documentos citados nesse relatório? Em que parte e com quais objetivos? Ajudam a legitimar algum aspecto do documento e qual? Subsidiam decisões importantes, na esfera dos direitos das crianças e dos adolescentes? Fazem remissões a um conjunto de outros documentos? São usados para operar que tipo de pressão e recomendação? Estão divididos como e em que seções? São disponibilizados como impressos, na rede, gratuitamente, distribuídos aos trabalhadores e órgãos? Qual o ano de publicação? Que outros acontecimentos ocorreram nesse período, no país e mundialmente?

Há tabelas estatísticas? Há gráficos ao longo do relatório? Quantas e quantos, em que páginas e têm comentários? Quais e de quem? Quais são os indicadores dessas tabelas e desses gráficos? São coloridos? Foram produzidos por quais entidades e com quais fontes e bases?

A partir dessas perguntas, é possível mapear o documento e analisar sua composição de saber e de poder, nos processos de subjetivação. Os escritos, as fotos e as tabelas são empregados para criar determinados modos de ser criança e adolescente; maneiras de cuidar e atender; formas de garantir seus direitos e de defendê-los. Os relatórios estabelecem o que deve e como deve ser feito, por cada entidade e cada grupo social, no plano de responsabilização dos direitos de crianças e adolescentes. É possível perguntar: como o fazem e que normas prescrevem a esses grupos e a estas entidades?

As perguntas escolhidas como problema de pesquisa estão articuladas à metodologia selecionada, qual seja: a arqueologia e à genealogia, em Michel Foucault (1979; 2009) e também estão vinculadas às preocupações que regem um trabalho histórico-documental através dos eixos analíticos de uma historiografia, de acordo com Veyne (1998) e Farge (2009; 2011). Um dos critérios de escolha dos relatórios, na plataforma, na internet do UNICEF era a exigência de abordar o tema drogas e adolescentes, ser publicado de 1990 a 2014 e está na base da agência multilateral, no Brasil. Entre todos os relatórios publicados pelo UNICEF, de 1990 a 2014, anualmente, em todos há práticas referentes ao tema drogas e adolescentes. Lendo-os, é possível identificar certa recorrência da forma de examinar e atuar, diante dessa situação.

 

3 Resultados e discussões

Grande parte das publicações do UNICEF é apoiada e financiada pelo Itaú Social e pelo Instituto Ayrton Senna. Também há participações nelas de pesquisadores de algumas universidades brasileiras, estatísticos, psicólogos, pedagogos, sociólogos, antropólogos, economistas, cientistas políticos, neurocientistas, biólogos e médicos. Em geral, artistas brasileiros assumem campanhas e se tornam embaixadores do UNICEF, no Brasil. O Banco Mundial é constantemente acionado, em citações nos relatórios, assim como as variadas agências da Organização das Nações Unidas (ONU), entre as quais foram: Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e Organização Mundial da Saúde (OMS). A sede do UNICEF, no Brasil, fica em Brasília, em um prédio do Ministério da Saúde. Há outros escritórios, em quase todas as capitais brasileiras.

O UNICEF financia projetos em todo o país, oferta assessorias a estes e a outros que não subsidia economicamente. Articula igualmente forças políticas diversas, locais, regionais, nacionais e internacionais. Ainda mobiliza campanhas, conferências, congressos, pactos e a formulação de documentos e protocolos de acompanhamento e compromisso com a situação de crianças e adolescentes brasileiros. Publica relatórios anualmente e os distribui para instituições, utilizando-os para criar incidência política e operar a formação continuada de trabalhadores sociais e gestores.

Até 2001, o principal foco de intervenção estava nas crianças de zero a seis anos de idade. Não havia a publicação de documentos voltados especificamente para os adolescentes, pois eles eram vistos negativamente, como problema a governar. Para minimizar ao máximo esses supostos traços negativos, foi dada à categoria: "adolescentes" um foco tão importante quanto o da infância, no que tange a esfera dos investimentos de políticas sociais para o UNICEF.

Essa afirmação é sustentada na experiência de mais de 15 anos de estudos dos relatórios do UNICEF, no Brasil. A leitura sistemática dos relatórios e dos documentos da organização internacional, que era voltada especialmente para a primeira infância como projeto central de atendimento e articulação política. Outras organizações e agências também compactuam com essa visão pelo fato de afirmarem que a primeira infância seria o período mais vulnerável no processo de desenvolvimento e com efeito em cascata para os anos seguintes, em termos de economia e política, de acordo com vários economistas citados nos documentos do UNICEF.

Em 2002, foi a primeira vez que o UNICEF lançou um relatório específico para analisar a situação de adolescentes, no Brasil, intitulado "Situação da adolescência brasileira". No preâmbulo do documento, é apresentada a ruptura com a maneira anterior de enxergar os adolescentes e a nova perspectiva de visualizá-los enquanto potencialidades a ampliar e a considerar como importantes. No capítulo terceiro desse relatório, há especificamente uma descrição da questão do abuso de drogas como risco.

Já no relatório "Adolescentes e Jovens do Brasil: participação social e política", o UNICEF (2007) aborda a temática das drogas como risco em relação à possibilidade de agir com violência e associada à ociosidade, à iniciação sexual precoce, à evasão escolar e à repetência. O tema das drogas aparece na seção "Segurança: mais polícia, menos corrupção", o que denota ainda uma tendência de visualizar a adolescência pela negatividade, ligada à violência, ao crime e à insegurança sexual.

No documento "O direito de ser adolescente: oportunidades para reduzir vulnerabilidades e superar desigualdades", o uso de drogas aparece como um dos nove pontos que o UNICEF (2011a) considera de vulnerabilidade dos adolescentes, nos últimos anos. Já no documento do UNICEF (2011b), "Situação Mundial da Adolescência – caderno Brasil", a adolescência é uma fase de oportunidades de investimentos. O quinto documento estudado foi o "Relatório Participação dos adolescentes em fóruns de saúde mental infanto-juvenil" (UNICEF, 2012).

Os fragmentos de documentos citados neste artigo são um recorte dos relatórios analisados e o critério usado foi a recorrência temática, em todos os relatórios pesquisados, no período proposto pelo estudo, de 1990 a 2014. Toda análise de documentos é seletiva, operando um recorte da empiria e a elaboração de problematizações, de acordo com a perspectiva conceitual, de área e metodologia adotadas pelo pesquisador. Os documentos escolhidos foram lidos e relidos, levantados na base de dados do UNICEF Brasil, na internet, nos ícones: relatórios e publicações. Os documentos foram baixados integralmente, sem custo para o pesquisador; já que são abertos a quem tiver interesse em utilizar essas fontes; são produzidos por assessores e pesquisadores, em parcerias entre o público e privado, em redes de entidades de diferentes âmbitos e seguem certo padrão de edição, organização e escrita do sistema das Nações Unidas.

No capítulo terceiro do documento "Situação da adolescência brasileira" (UNICEF, 2002), descreve-se a questão do abuso de drogas como risco. O retorno à escola, associado a programas de arte, informática e de temas educativos, é uma recomendação dessa agência como modo de lidar com o uso de drogas pelos adolescentes.

São citadas diversas políticas de atenção primária em saúde, no Brasil, que podem atender às encomendas do que o UNICEF denomina dependência química e sua prevenção. As drogas são apresentadas por essa agência como risco individual e coletivo, no âmbito da saúde, da segurança, do trabalho em termos de gerarem doenças, acidentes no trabalho e no trânsito, situações de violência e brigas, degradação das relações familiares e comunitárias, comprometimento da saúde física e psíquica, desemprego e sexo desprotegido (UNICEF, 2011a, p. 47). Apesar dos usos de drogas provocarem inúmeros efeitos de esgarçamentos das relações sociais e familiares, sua utilização não tem uma relação diretamente causal com a quebra das relações, como declara o UNICEF de uma maneira simplista.

Esse organismo das Nações Unidas faz menção a um conjunto de políticas públicas em funcionamento no país que pode ser acionado, tais como: a Política Nacional sobre Drogas, vinculada à Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas; o Programa Nacional de Saúde Escolar e de estudos sobre o tema, efetuados pela Confederação Nacional dos Municípios. O UNICEF reconhece a relevância dessas instituições e equipamentos, dos programas e projetos que os integram, contudo, considera que precisam ser ampliados: em orçamento, oferta de vagas e qualidade do atendimento prestado pelos profissionais.

Assinala dados do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, demarcando que a cultura da sociedade atual é bastante tolerante ao uso de drogas, o que afeta o adolescente no uso e no abuso com dependência e no acesso às drogas. Em termos das políticas públicas já criadas, o relatório cita as conquistas do período de redemocratização brasileiro, durante a segunda metade da década de oitenta do século XX em diante.

Com efeito, ressalta as implicações desse processo de redemocratização para a criação de um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. Contudo, declara que essas políticas devem ser universalizadas, para concretamente materializarem um vetor equitativo de cuidado.

O UNICEF ainda destaca a importância do apoio no campo da educação, como o Programa Nacional do Livro Didático e o Programa Nacional da Alimentação Escolar, as ações do Instituto Nacional de Pesquisa em Educação, o Conselho Nacional de Educação, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico e o FUNDEF. A relação entre educação e saúde é enfatizada pelo UNICEF, em busca de uma visão preventiva ao uso de drogas por adolescentes, bem como visando a promover o desenvolvimento do país, na esfera econômica e social.

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Adolescentes dos Jovens e a Caderneta de Saúde dos Adolescentes foram citadas como referência em cuidado preventivo e de acompanhamento dos adolescentes, paralelamente ao Programa Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa Saúde na Escola, todos vinculados ao Ministério da Saúde e frutos de reivindicações de movimentos sociais e de propostas formuladas nas conferências e conselhos de direitos.

Também aponta a relevância do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, aprovado na gestão da Presidente Dilma Roussef, em dezembro de 2011. Enquanto esse plano foi extremamente criticado pelos movimentos sociais, no Brasil, o UNICEF o elogia, na vertente da política da guerra às drogas (Carvalho, 2013), o que é uma escolha complicada na política de saúde e de segurança, de acordo com os estudiosos da temática: drogas e direitos.

Outro equipamento sublinhado como relevante é o Conselho Tutelar, criado com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Esse órgão é municipal e recebe denúncias e notificações de violação dos direitos das crianças e dos adolescentes, encaminha-os para medidas de proteção e fiscaliza os equipamentos de atendimento à infância e adolescência.

Ademais, descreve a importância do Plano Decenal para os direitos das crianças e dos adolescentes, construído pelas entidades de garantia dos direitos da criança e do adolescente, considerando as propostas das conferências de direitos, articuladamente ao CONANDA. Esse plano irá possibilitar recursos e uma gestão que opere com aumento de cobertura no atendimento.  Outro programa, o Pro Jovem Adolescente, é dirigido aos adolescentes e visa a prevenir a violência, o uso de drogas e fomentar a educação e profissionalização. Esse Programa foi criado durante a gestão do Presidente Luís Inácio Lula da Silva e tem sido alvo de críticas de movimentos sociais, por partir de uma visão negativa dos adolescentes, na medida em que os associa à prática de violência e ao uso de drogas. Todavia, o UNICEF realça a relevância desse programa e recomenda sua extensão.

O UNICEF ainda assinala como o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) e a Bolsa Formação operaram a promoção da seguridade e defesa de direitos dos adolescentes usuários e vulneráveis ao uso de drogas. Uma política importante para o UNICEF é a Unidade da Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro, e sua rede de segurança nas comunidades consideradas por esse organismo como zona de risco e área vermelha, em um estigma claramente estabelecido. Batista (2003), em estudo a respeito das práticas dirigidas aos adolescentes no Rio de Janeiro, problematiza a perspectiva do Estado militarizado, que trata a questão das drogas como uma política de segurança e defesa social, minimizando outros aspectos e operando uma repressão securitária dos corpos de jovens pobres de periferias urbanas. Na mesma linha, Rodrigues (2004) interroga a visão de associar drogas, crime e violência e tratar essa questão como de segurança.

Além dessa rede, a Campanha Nacional do Desarmamento é elogiada como relevante para a desarticulação do tráfico e uso de drogas entre adolescentes e as situações de violência letal. As ações do Ministério Público relacionadas às da Saúde e da Justiça são apresentadas como efetivas, constituindo um exemplo, para a agência, o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte.

Um dos programas considerado interessante, no nível federal brasileiro, sendo bastante elogiado pelo UNICEF é: Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens, que está situado em um quadro das políticas públicas, resultando de uma parceria entre o UNICEF, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, CEDECAS e o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência e Exploração Sexual. Igualmente são mencionadas as propostas de atividades voltadas para os adolescentes, a fim de retirá-los de situações de exposição ao uso de drogas, de cunho educativo, tais como o esporte, a cultura, o lazer, a escolarização e a profissionalização para esses adolescentes e outros, os quais o UNICEF (2002) classifica como em condição de vulnerabilidade.

Ainda há uma preocupação do UNICEF (2002; 2011a; 2011b) ligada à relação entre drogas e diversidade: gênero, raça/etnia, local de moradia e condição pessoal podem favorecer o uso. Por exemplo, a agência afirma que meninos são mais vulneráveis ao uso de álcool, e a ausência de projetos de vida e ocupação potencializa essa situação de exposição. Além do álcool, cita o tabaco, a maconha e os esteroides. Nesse sentido, propõe que o Brasil abra sua agenda e acrescente esses temas como de uma vulnerabilidade dos adolescentes.

No que tange às análises do UNICEF dos adolescentes como vulneráveis ao uso de drogas vale trazer a problematização realizada pelo sociólogo Castel (1987), que desenvolveu um relevante estudo sobre a criação do conceito de risco e vulnerabilidade, apontando que este aciona acontecimentos virtuais, com base em fatores que marcam por meio de rótulos determinados atos enquanto desvios sociais, frente às normas e padrões de uma sociedade específica. Neste sentido, ao colocar uma relação de causa e efeito direta de adolescentes e vulnerabilidade ao uso de drogas, esta agência multilateral acaba caindo em um reducionismo e determinismo mecanicista.

Em acréscimo, o UNICEF (2011b) prescreve projetos esportivos, de cultura e lazer como relevantes para os adolescentes, em seu desenvolvimento; projetos de geração de renda associados ao meio ambiente; projetos de leitura; melhora na qualidade de educação pública e alterações do currículo escolar, para tornar a escola mais atrativa aos adolescentes; acesso às oportunidades. A cartilha do UNICEF parece conter receitas para todas as políticas que, de alguma maneira, atuem na prevenção ao uso de drogas por adolescentes. Contudo, seriam as receitas dessa agência e das Nações Unidas desejadas e importantes para os acontecimentos singulares de adolescer, no Brasil?

As prescrições, em geral, remetem ao trabalho de ONGs como referência. No tema cultura, sugere atravessamentos analíticos e de atendimento baseado na equidade, focando gênero, raça e identidades locais. Tais indicações vêm legitimadas pelas ações de ONGs, por palavras de especialistas (jornalista, economista, a Ministra de Direitos Humanos, a diretora de concepções e orientações curriculares do Ministério da Educação para a Educação Básica, de um psicólogo que atua em uma ONG no Rio e de uma advogada do ILANUD) e por tabelas e gráficos estatísticos.

Em termos de lugar onde se vive, relaciona as regiões da Amazônia e do Semiárido nordestino, além das favelas nos centros urbanos, como os que mais expõem os adolescentes às vulnerabilidades. Aponta como urgente a redução das desigualdades, como as regionais, no Semiárido e na Região Norte e nas periferias urbanas no Sudeste e Sul, o que é relevante na perspectiva de uma vertente equitativa e integral do cuidado em saúde e no plano das políticas sociais como princípio do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Em seguida, apresenta o que denomina boas práticas e, de certo modo, recomenda sua reprodução como modelo de política pública para os adolescentes.

Para o UNICEF, os adolescentes precisam fundamentalmente ter acesso às oportunidades de desenvolvimento de habilidades e competências, atitudes e conhecimentos. Para tanto, incentiva o protagonismo dos adolescentes nas políticas que lhes são dirigidas, na comunidade, na família e na sociedade. O UNICEF (2011b) aponta que, por muito tempo, houve uma interpretação de declarações internacionais que era mais voltada à proteção da infância do que de adolescentes.

Todavia, alerta que as convenções focam também os adolescentes e que estes precisam ter seus direitos garantidos. Enfatiza que a adolescência não deve ser pensada como problema, porém, como fase de oportunidades que, se aproveitadas, reverterão em benefícios para toda sociedade. O relatório indica que o adolescente só traria problemas, caso sua história de vida fosse marcada por riscos e vulnerabilidades. Adolescer é se tornar autônomo, socializar-se e criar identidade, de acordo com o UNICEF (2002). A adolescência não deveria ser vista apenas como fase biológica. O relatório assinala que a escola deveria aproveitar o potencial dos adolescentes e utilizá-lo positivamente.

Para o UNICEF, o Brasil tem um contingente imenso de jovens e deve aproveitar estrategicamente para investir neles, caso queira usar o potencial dos mesmos para seu desenvolvimento enquanto capital humano. Problematizar essa perspectiva é muito importante, porque está eivada de utilitarismos e instrumentalização política dos direitos dos adolescentes, em um mercado da criação do adolescente como problema social, de saúde e de segurança. Ora, a ruptura que o UNICEF efetuou ainda está em processo, pois, ao mesmo tempo em que afirma o adolescer como positividade, apresenta práticas que reiteram uma visão negativa dos adolescentes, associando-os à violência, à criminalidade, ao uso de drogas e à gestação precoce, como fruto de atos sexuais impulsivos, de forma preconceituosa.

Na sequência, o UNICEF sugere que o Brasil tome a adolescência como fase de oportunidades, que olhe para a infância pensando na adolescência, que se preocupe com a equidade e a vulnerabilidade, que reduza a violência contra os adolescentes e a cometida por eles e, por fim, aproveite a escola e a educação para fomentar essas políticas. A vinculação moral entre drogas, violência e crime destaca uma posição do UNICEF criminalizante em antecipar preventivamente que o adolescente pobre, morador das periferias urbanas estaria mais vulnerável ao uso de drogas do que outros, o que assinala um estigma, pois, não há dados que permitam realizar afirmações, a partir dos relatórios analisados.

Por fim, o UNICEF (2012) assevera que, desde 2004, existe o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil. Este é uma articulação do Ministério da Saúde, com o Sistema Único de Saúde, o UNICEF e entidades da sociedade civil. Em 2012, pela primeira vez, puderam se inscrever delegados adolescentes, em um total de vinte e sete, um por estado, representando entidades, comunidades e grupos organizados, em encontro que ocorreu em Brasília, em novembro. O documento sustenta que essa participação foi resultado de estímulo da área técnica de saúde mental do Ministério da Saúde, juntamente com o UNICEF.

O tema drogas aparece associado à reabilitação e reinserção psicossocial pela Rede de Atenção Psicossocial. A sequência de substâncias citadas é crack, álcool e outras drogas. O documento é encerrado com um convite para a participação dos fóruns regionais, em 2013, e as regras para a inscrição nos mesmos. Esses fóruns regionais ocorreriam pela primeira vez. Tal proposta já está mais ligada à política sobre drogas e em saúde mental mais participativa e que opera um reconhecimento de direitos com cuidado integral à saúde, de maneira equitativa. Nesse aspecto, é possível afirmar que há paradoxos nas recomendações do UNICEF, pois modulam o campo dos direitos de adolescentes no tema drogas e cidadania, por diversos matizes políticos.

É possível analisar a existência de políticas importantes para a garantia de direitos de adolescentes referentes à redução de danos e à promoção de saúde voltada aos adolescentes, com forte a preocupação de recomendar ao Brasil a ampliação da qualidade das políticas existentes e o número de vagas disponíveis para o atendimento, além de melhor distribuir a oferta dos serviços pelo território nacional em lugares em que ainda há pouca assistência. Este aspecto é interessante na proposição do UNICEF e deve ser reconhecido como importante em termos das pressões exercidas sobre o Brasil, de modo a efetuar uma incidência política para que este cumpra pactos internacionais de proteção aos adolescentes.

Todavia, vale ressaltar que há paradoxos na proposição, pois, ao mesmo tempo em que o UNICEF (2011a; 2011b) elogia e reafirma as políticas de redução de danos no uso de drogas por adolescentes, indica a presença massiva da segurança pública no que denomina combate às drogas ou guerra às drogas, o que assinala uma vertente contrária aos movimentos sociais, que vêm no Brasil buscando descriminalizar as drogas para que a violência decorrente do comércio das mesmas diminua e que tanto o uso quanto o comércio não sejam tratados como questão de segurança e encarceramento (Batista, 2003).

 

4 Considerações finais

Ao incluir a categoria adolescente nos relatórios, o UNICEF apresenta um novo modo de abordar os direitos de crianças e adolescentes e de apostar nas especificidades de cada processo singular e na trama dos sistemas de repartição das faixas etárias, na sociedade atual. Esse é um aspecto relevante a destacar nesse artigo e como resultados das pesquisas com os documentos dessa agência multilateral.

Não queremos endossar naturalizações da infância e, muito menos da adolescência, ao contrário, assinalar os processos históricos constitutivos de fases da vida estanques aos diversos processos e contextos em que ocorrem. Contudo, a produção social da ideia de um desenvolvimento compartimentado em idades e características supostamente naturais de cunho universal deve ser alvo de críticas e questionamentos.

No que tange às relações entre adolescentes e drogas, violência e prática sexual de riscos, vinculada à gravidez precoce, aquisição de doenças sexualmente transmitidas e ao tráfico de drogas e à violência pode endossar visões pejorativas dos adolescentes e submetê-los aos estigmas e programas de atendimento pouco interessantes em termos de apostas afirmativas de direitos e singularização. Assim, se, de um lado o UNICEF abre uma via de valorização dos adolescentes, de outro, o faz em parte porque ainda escorrega na discriminação negativa da adolescência como momento de risco/perigo, o que implica em julgamentos pela virtualidade e não pelo que ocorre com cada adolescente, nos variados contextos em que se inserem e se constituem.

É possível salientar que, no que tange ao uso de drogas e às políticas de atenção brasileiras relativas a esse tema, o UNICEF ainda opera com ações muito coladas na política de guerra às drogas, as quais acabam por cair em um campo moral e justamente propulsor das várias modalidades de violência, inclusive, as que são letais aos adolescentes por estarem vinculadas ao extermínio de negros, pobres, adolescentes, de baixa escolaridade, nas periferias brasileiras.

As práticas do UNICEF esbarram com certa recorrência no predomínio da prevenção e da repressão, no plano da política sobre drogas. Tangenciam muito superficialmente a questão das drogas lícitas e ilícitas, na complexidade da inserção desse acontecimento e dos seus efeitos. A lógica de indicar políticas repetidas em diversos países acaba por tornar as recomendações do UNICEF da ordem de receituários e modelos prontos, o que pode ser pouco interessante quando se busca a equidade em direitos e a observação das histórias de vida dos adolescentes.

Cada contexto e também a história de cada país, as articulações do âmbito local, regional, nacional e internacional estão bastante marcadas por nuances, diferenças, conexões, forças diversas em jogo que não estão necessariamente materializadas globalmente e muito menos nas mesmas proporções e intensidades quando apresentam alguma proximidade. A mundialização não cria apenas homogeneizações, opera tanto quanto por segmentações, repartições sectaristas, bairrismos, lógicas de inclusão excludentes, desigualdades sócio-econômicas acirradas e ilegalismos variados, em composição com o comércio de tipos diversos de drogas legais e ilegais e os mercados das mesmas, em efeitos recíprocos e correlacionados às outras lógicas de consumo, comércio, contrabando, lucro, genocídios e lavagem de dinheiro. A seletividade penal, o moralismo na saúde, na educação e na política social bem como a militarização, criminalização medicalização e judicialização da vida são processos atuais que se entrecruzam nas práticas vigentes relacionadas ao tema drogas, direitos e adolescentes.

O UNICEF participa desse amplo dispositivo, ora apoiando os adolescentes e abrindo passagem para quebra de estereótipos, ora, se posicionando em composição com organizações ligadas à política de guerra às drogas ilegais e curiosamente, apoiando o uso de drogas, tais como psicofármacos, por adolescentes, em processos de escolarização, na esfera da saúde mental e das internações compulsórias. Um grande paradoxo é instalado e a complexidade da questão em pauta não pode ser reduzida ao simplista modelo sanitário-penal.

Tais prescrições operam como manuais de conduta, visando a controlar os corpos pela educação, saúde e segurança, articulando utilitariamente a diminuição de sua potência política e aumentando sua instrumentalidade produtiva. Esta problemática se relaciona com o que Foucault (2008) designou como biopolítica, pois, a gerência da vida de segmentos da população em busca do fazer viver e do deixar morrer. No caso deste texto, os adolescentes são tomados como parte da população como um dado epidemiológico e estatístico, que generalizam táticas de governo em nome da ampliação da saúde e da vida. Ainda é importante sinalizar que na biopolítica os direitos se tornam um fator utilitarista na busca da ordem e da segurança, o que sustenta o fato do UNICEF se preocupar em gerir o uso de drogas preventivamente como uma economia mais securitária do que de promoção da saúde mental e coletiva.

Em uma sociedade democrática neoliberal e em processo de redemocratização ainda recente e muito abstrata, apesar de avanços na criação de programas de garantia de direitos, há uma paralela tendência ao retrocesso das políticas sociais, de forma a modelar os adolescentes chamados de vulneráveis às drogas, pela pedagogia das habilidades e competências empreendedoras de corpos úteis e produtivos, mais do que cidadãos de direitos, corpos dóceis e dispostos a entrar no mercado como capital humano e social. Este campo de práticas de docilização dos adolescentes para transformar sua potência de questionamento em participação social pode ser uma possibilidade de intervenção no nível de proteção social por um lado e, por outro, opera uma disciplina dos mesmos em nome da defesa da sociedade tal qual destacou Foucault (1999), em Vigiar e Punir.

Por isso, Batista (2003) assinala que há, no Brasil, grupos atravessados e constituídos por uma cidadania negativa, em uma República que mantém excluídos os que não se enquadram na normalização social. Carvalho (2013) tem apontado, em seus estudos que uma política criminalizante do comércio e do uso de drogas está na contramão de um cuidado integral e antimanicomial.

É possível concluir que o UNICEF oscila suas práticas quanto à possibilidade de uso de drogas por adolescentes da esfera de um cuidado baseado em princípios de direitos e de demandas dos movimentos sociais antimanicomiais e, ao mesmo tempo, opera o paradoxo de afirmar a lógica do proibicionismo e guerra às drogas, na perspectiva do encarceramento e da punição, o que tem sido criticado pelos estudiosos das políticas sobre drogas no Brasil, tais como: Carvalho (2013) e Rodrigues (2004).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Flávia Cristina Silveira Lemos
Universidade Federal do Pará
Programa de Pós Graduação em Psicologia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Avenida Augusto Côrrea, 01, Guamá, CEP 66.000-000, Belém - PA, Brasil
Endereço eletrônico: flaviacslemos@gmail.com
Dolores Cristina Gomes Galindo
Universidade Federal de Mato Grosso
Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO
Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367, Boa Esperança, CEP 78060-900, Cuiabá - MT, Brasil
Endereço eletrônico: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
José Araújo de Brito Neto
Universidade Federal do Pará
Programa de Pós Graduação em Psicologia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Avenida Augusto Côrrea, 01, Guamá, CEP 66.000-000, Belém - PA, Brasil
Endereço eletrônico: joseb_neto@hotmail.com
Diego Henrique da Silva Trujillo
Universidade Federal do Pará
Programa de Pós Graduação em Psicologia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Avenida Augusto Côrrea, 01, Guamá, CEP 66.000-000, Belém - PA, Brasil
Endereço eletrônico: diego_silva_25@yahoo.com.br

Recebido em: 05/02/2015
Reformulado em: 12/09/2015
Aceito para publicação: 07/10/2015

 

 

Notas

* Professora Adjunta IV de Psicologia Social na Universidade Federal do Pará. Doutora em História.
** Professora Adjunta III de Psicologia Social na Universidade Federal do Mato Grosso. Doutora em Psicologia Social.
*** Mestrando em Psicologia na Universidade Federal do Pará. Advogado.
**** Mestrando em Psicologia na Universidade Federal do Pará. Psicólogo.

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