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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.16 no.1 Rio de Janeiro jul. 2016

 

RESENHA

 

Como arrancar a alma de crianças e torná-las sujeitos supostamente desalmados

 

¿Cómo desarraigar el alma de los niños y hacerlos sujetos supuestamente sin alma

 

How to extract the soul of children and make them subjects presumably soulless

 

Rita Maria Manso de Barros*

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Altoé, S. (2014). Infâncias perdidas: o cotidiano nos internatos-prisão. Rio de Janeiro: Revinter, 277 p. ISBN 978-85-372-0517-4

 

O prêmio Nobel da Paz, anunciado em setembro de 2014, foi dividido por dois lutadores pelos direitos da criança: a jovem Malala Yousafzai, paquistanesa de 17 anos, e o ativista indiano Kailash Satyarthi, de 60 anos. O que ambos têm em comum? A primeira fez sua bandeira o direito das meninas terem acesso à educação, proibido pelos talibãs no Paquistão; o segundo, o combate ao trabalho infantil, que em mais de trinta anos de luta, libertou milhares de crianças da escravidão.

O livro que acabo de ler, e recomendo, é um precioso e atual documento para pesquisadores e interessados na questão da Psicologia, da Educação, da Psicanálise; saberes essenciais no apoio à construção do futuro dos cidadãos que comporão nosso país e o próprio planeta. Escrito pela professora e psicanalista Sonia Altoé, Infâncias perdidas: o cotidiano nos internatos-prisão, corresponde à terceira edição revista, ampliada e publicada em 2014, a partir de sua Tese de Doutoramento, defendida em 1988 no Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris VII publicada em 1990, pela Xenon Editora, tem como consequência principal a constatação do quanto a infância era, e ainda hoje é, jogada no lixo das produções perversas da humanidade. Esse é um livro de memória de um tempo recente e mais atual do que nunca, transmitindo um conhecimento que vai para além das mudanças das leis (Código/ ECA). Ele vem a calhar no momento em que a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PEC 171/93) que reduz a Maioridade Penal de dezoito para dezesseis anos. Agora cabe ao Senado votar e promulgar ou não a Lei 1. De todo modo, tal projeto desresponsabiliza o Estado pela proteção e promoção de direitos de crianças e adolescentes. Como o livro demonstra, o próprio Estado fere esses direitos e não quer arcar com as consequências desse abandono cujas causas têm sua origem na infância que ele próprio negligenciou, no mal que ele próprio cultivou.

Pelo que deixa claro em sua introdução, a fonte de pesquisa jorra da experiência prévia da autora em um conjunto de sete internatos, que buscavam acolher "menores carentes e abandonados", de recém-nascidos até a idade de dezoito anos. Abandona o termo ‘menor' por considerá-lo estigmatizado: são crianças, meninos e meninas, que por diversos motivos são depositados nesses internatos. É preciso ressaltar que a grande importância de sua pesquisa vem do olhar eminentemente clínico, sustentado na teoria psicanalítica, pois sensível ao sofrimento da criança, a partir de uma clinica que a autora já sustentava. Ou seja, uma descrição de uma situação que transmite um saber, um olhar do pesquisador que vai para além da roupa limpa, do alimento no prato, que observa as relações, ou ausência delas, e o quanto a aridez da situação impingida pode ser massacrante para as crianças.

Tendo trabalhado por treze meses como psicóloga contratada, nos anos 1980, foi demitida por carta - coisa comum de acontecer no mundo do trabalho, sendo que em nossos dias a via preferencial é o e-mail. Após seis meses, solicita autorização para realizar ali, em internatos filantrópicos e filiados à Fundação Estadual de Educação do Menor (FEEM) e à Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), a pesquisa que redundaria em sua tese, mas agora em outra posição, com a liberdade de pesquisadora. Descobre que o que "perpassa todos os internatos indiferentemente é a disciplina, a mesmice, o determinismo, o massacre, o não reconhecimento, a vitória da morte psicológica" (p. 2).

A ‘Fundação', como é identificada por Altoé, é composta por sete internatos, que recebem crianças pobres, não necessariamente abandonadas por suas famílias, mas de quem essas últimas dependem para deixar seus filhos e ir ganhar seu salário no trabalho. São escolas casernas ou internatos prisões. O Internato I, ou a creche, recebe crianças de zero a dois anos, de ambos os sexos, e tem capacidade para receber oitenta crianças. Talvez este seja o momento mais cruel de seu relato, uma vez que é quando separam os bebês, que nada entendem do que está acontecendo, de suas mães, sem que haja nenhuma preparação para essa situação traumática.

O Internato II recebe duzentos internos, sendo que as meninas têm a faixa etária de dois a dez anos e os meninos de dois a seis anos. Aqui já há recursos para entender o abandono, o que pode acarretar mais sofrimento quando a criança começa a perceber a sua situação. A transferência de um internato para outro não preserva os laços consanguíneos: irmãos podem ser separados, famílias podem não ser avisadas (p.55). "Assim, a cada mudança, sempre um novo início, não há passado" (p.57).

O Internato III recebe 200 internos, apenas meninos na faixa etária de seis a oito anos. O enquadramento na disciplina é o principal eixo da relação dos auxiliares de disciplina com as crianças. Enquadradas, elas devem apenas submeter-se sem questionamento, que são sempre mal recebidos.

O Internato IV recebe 400 internos, também apenas meninos na faixa etária de oito a dez anos. Nesse, como nos demais internatos que se seguirão, a exigência de obediência cega às ordens dos inspetores, sempre homens, é exigida, e é, ao que tudo indica, condição de sobrevivência. O sentimento de desamparo, abandono, aprisionamento já estão inculcados e alimentam o desejo de fugir desse lugar de horror.

Nos internatos seguintes a violência amplifica-se. O Internato V recebe 360 alunos (o termo muda), somente meninos de dez a doze anos. A hipótese de Altoé para ali não haver meninas, já que estas saem e vão pra outros internatos, é que com as questões da sexualidade é melhor manter as meninas longe após certa idade. O Internato VI recebe 250 alunos internos, meninos e meninas, na faixa etária de doze a quatorze anos. Foi fechado durante a realização da pesquisa. O Internato VII recebe 460 alunos, de quatorze a dezoito anos, e apenas do sexo masculino. A negação da subjetividade de cada criança e adolescente se acirra. Não há sujeitos, apenas corpos a serem domesticados, maltratados, vilipendiados, humilhados, preparados para ingressar nas ‘Forças Armadas'. Até mesmo jogos e esportes, que poderiam servir como válvula de escape à agressividade sempre despertada e contida, são controlados, uma vez que despertam, em cada adolescente, a possibilidade de se reinventar. Daqui para a frente, colhe-se o que se plantou desde a entrada desses sujeitos em um sistema perverso. Ninguém se salva dessas marcas (p. 267).

Instituições como as que foram alvo da pesquisa de Sonia Altoé, realizada, como já apontamos, nos anos 1980, antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, promoveram o sofrimento fabricado com o objetivo de resguardar, proteger e educar as massas abandonadas de crianças pobres. O que a pesquisa demonstra é que nenhum dos objetivos é perseguido por aqueles que se ocupam dos internos! As crianças não são resguardadas nem em seus corpos nem em suas almas! A proteção necessária para que uma criança cresça em segurança inexiste e à educação, que necessita fundamentalmente de amor, falta este ingrediente que em sua radicalidade é essencial para o desenvolvimento de cidadãos que prezem o laço social.

No posfácio escrito para a nova edição, a autora, que fez de sua vida profissional uma forma de escutar essas crianças e jovens, despertando os órgãos públicos para a real situação deles e as consequências para essas vidas do sistema, levanta possibilidades novas após a implantação do ECA e do tempo de adoção. Vemos, através da leitura de Infâncias perdidas, que muito mudou, esses internatos não mais existem. Mas ainda há muito por fazer para que aqueles que estão numa situação de desamparo possam ser salvaguardados pela chamada ‘civilização'.

Embora a situação devastadora que Infâncias perdidas nos apresenta, sem maquiagem, tenha mudado, o número de internos diminuiu com a situação de abrigamento. Contudo, a qualidade do atendimento continua deixando muito a desejar. É preciso ressaltar que a  pesquisa de Altoé foi crucial para autoridades fecharem essas instituições na época, sendo citada e servindo de base para que as políticas públicas se comovessem. Pois, como escrevemos no início, que o prêmio Nobel da Paz, anunciado em setembro de 2014, tenha sido dividido por dois lutadores pelos direitos da criança, só nos demonstra o quanto a criança é ainda vítima da perversão do semelhante.

Este livro bem poderia ser um manual de como arrancar a alma de crianças e torná-las sujeitos supostamente desalmados. Digo supostamente pois muitos resistem a todo o sofrimento e são capazes de criar suas próprias famílias pautados pelo avesso do que viveram. Parece milagre alguém escapar, não incólume, mas com alguma esperança em fazer diferente. Contudo, não podemos julgar aqueles que sucumbem!

 

 

Endereço para correspondência
Rita Maria Manso de Barros
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Psicologia
Rua São Francisco Xavier, 524, sala 10006, bloco B, 10° andar, Maracanã, CEP 20550-013, Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Endereço eletrônico: ritamanso2008@gmail.com

Recebido em: 13/05/2015
Reformulado em: 29/10/2015
Aceito para publicação em: 04/11/2015

 

 

Notas

* Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Psicanálise (especialização, mestrado e doutorado), do Departamento de Psicologia Clínica. Professora Associada II da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
1 http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/camara-aprova-em-2-turno-reducao-da-maioridade-penal-para-16-anos.html. Em 19/08/2015.

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