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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.17 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2017

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Narrativas desenvolvimentais de médiuns da umbanda à luz do modelo bioecológico

 

Developmental narratives of Umbanda mediums from the bioecological model

 

Narrativas de desarrollo de los médiums de Umbanda en vista del modelo bioecológico

 

Fabio Scorsolini-Comin*; Maria Teresa de Assis Campos**

Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, Uberaba, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A mediunidade representa uma prática de cunho cultural presente em diferentes tradições. Este estudo teve por objetivo conhecer os processos desenvolvimentais de pessoas que atuam como médiuns em comunidades umbandistas. A amostra foi composta por cinco médiuns do sexo feminino e com idades entre 26 e 43 anos. Foram empregadas a técnica da história oral de vida e um roteiro de entrevista semiestruturado. A análise foi realizada a partir do modelo bioecológico do desenvolvimento humano. É possível dizer que a umbanda e a mediunidade atuam no macrossistema e no macrotempo, pois inserem as médiuns em uma história social e em um contexto cultural que passa a dar sentido às suas experiências. A umbanda e o trabalho mediúnico apareceram como ferramentas importantes no enfrentamento de momentos considerados críticos, como situações de adoecimento e de maior instabilidade emocional. Tornar-se médium representou uma transição ecológica significativa, de modo que a mediunidade foi um marco no desenvolvimento das participantes ao longo do ciclo vital, oferecendo repertórios simbólicos e culturais para a compreensão de suas histórias de vida.

Palavras-chave: mediunidade, experiências, espiritualidade, Umbanda.


ABSTRACT

Mediumship is a practice of cultural nature present in different traditions. This study aims to know the developmental processes of people who act as mediums in Umbanda communities. The sample was composed of five female mediums aged between 26 and 43 years. The techniques employed were oral history of life and a semi-structured interview guide. The analysis was performed from the bioecological model of human development. It can be said that Umbanda and mediumship work in a macrochronological and macrosystem scale, because the mediums fall in a social history and a cultural context that begins to make sense of their experiences. Umbanda and psychic work appeared as important tools in coping with critical moments such as of illness and greater emotional instability. Becoming a medium represented a significant ecological transition, so the mediumship was a milestone in the development of the participants throughout their life cycles by offering symbolic and cultural repertoires for understanding their life stories.

Keywords: mediumship, experiences, spirituality, Umbanda.


RESUMEN

La mediumnidad es una práctica de carácter cultural presente en diferentes tradiciones. Este estudio tuvo como objetivo conocer los procesos de desarrollo de las personas que actúan como médiums en las comunidades de Umbanda. La muestra se compone de cinco médiums femeninos con edades entre los 26 y 43 años. La técnica que se empleó fue la historia oral de la vida y una guía de entrevista semiestructurada. El análisis se realizó a partir del modelo bioecológico del desarrollo humano. Se puede decir que la Umbanda y el trabajo con la mediumnidad actúan en macro sistema y macro tiempo porque los médiums caen en una historia social y en un contexto cultural que comienza a tener sentido con sus experiencias. El Umbanda y el trabajo psíquico aparecieron como herramientas importantes para hacer frente en momentos considerados críticos, tales como situaciones de enfermedad y una mayor inestabilidad emocional. Convertirse en un médium representa transición ecológica significativa, por lo que la mediumnidad fue un hito en el desarrollo de los participantes a lo largo de sus ciclos de vidas ofreciendo repertorios simbólicos y culturales para entender sus historias de vida.

Palabras clave: la mediumnidad, las experiências, espiritualidade, Umbanda.


 

 

Em meio a um campo polissêmico dominado por diferentes tradições e concepções sobre esse fenômeno, a mediunidade pode ser definida como uma gama de experiências espirituais nas quais os sujeitos alegam estabelecer uma comunicação com seres não materiais, como espíritos de pessoas falecidas ou de outra natureza. Tais experiências estão presentes e descritas em diversas sociedades ao longo do tempo, associadas a diferentes práticas religiosas, tais como as de católicos carismáticos, evangélicos pentecostais, espíritas, espiritualistas e de religiões de matrizes indígenas ou africanas (Alvarado, 2013; Bastos Jr., Bastos, Gonçalves, Osório, & Lucchetti, 2015; Moreira-Almeida, 2013).

Na literatura científica da área médica encontramos reflexões importantes sobre a mediunidade e suas relações com quadros psicopatológicos, associando algumas experiências espirituais e religiosas a determinados transtornos mentais. Tais estudos consideram que os problemas espirituais seriam conflitos envolvendo o relacionamento com questões transcendentais ou provenientes de práticas espirituais, incluindo a manifestação súbita de experiências consideradas paranormais (Lu, Lukoff, Barnhouse, & Turner, 1995; Menezes Jr., Alminhana, & Moreira-Almeida, 2012). Por esse prisma, a mediunidade, em suas diferentes manifestações, poderia ser compreendida em um amplo espectro referente à saúde mental, tradição esta predominante na literatura científica.

Em outra perspectiva analítica, a mediunidade é compreendida para além de seus aspectos relacionados à saúde, permitindo uma compreensão da experiência mediúnica associada a elementos culturais, sociais e históricos cravados no imaginário coletivo e que se perpetuam pela transmissão oral de cultos, tradições e práticas. A mediunidade representa uma prática de cunho cultural presente em diferentes tradições, religiosas ou não, envolvendo diferentes níveis de experiência e de relação com a corporeidade. Nessa perspectiva ganham destaque as pesquisas voltadas especificamente para as pessoas que afirmam possuir alguma característica relacionada à mediunidade, ou mesmo serem reconhecidas pelas suas comunidades de referência como possuidoras de capacidades corpóreas e sinestésicas que as identificam como médiuns (Bowie, 2013; Osborne & Bacon, 2015; Scorsolini-Comin, 2015a). A figura do médium está presente em contextos culturais e religiosos específicos, como em tradições espiritualistas e afro-brasileiras. Na tradição umbandista, por exemplo, os fenômenos mediúnicos e os transes de possessão ganham destaque tanto como crença como possibilidade de contato com o mundo espiritual, invisível e de outra dimensão que não a humana e terrena (Brumana, 2005; Crapanzano, 1977; Scorsolini-Comin, 2015b).

Considerada uma religião híbrida, a umbanda é marcada por elementos de diversas religiões que perpassam a miscigenação brasileira, trazendo consigo traços do catolicismo português, do espiritismo kardecista, do simbolismo indígena e da crença em espíritos ancestrais de matriz africana. Assim, congrega contribuições heterogêneas, de modo que seu culto se apresenta plural, dinâmico e abarca uma diversidade de guias espirituais em seu panteão, entidades estas que representam, além de aspectos espirituais, figuras importantes da constituição cultural do povo brasileiro, como indígenas, escravos e migrantes (Leal de Barros & Bairrão, 2015; Macedo & Bairrão, 2011; Rotta & Bairrão, 2007). Apesar da perseguição e violência sofridas durante anos de sua construção enquanto religião legítima, devido à sua associação com práticas demoníacas e execução de malefícios, a umbanda se consolidou e se difundiu em todo território brasileiro, ainda que a resistência exista até a atualidade (Lages, 2012).

Alguns dos elementos das práticas religiosas no contexto da umbanda são a presença da música e da dança em todos os eventos religiosos, a relação íntima que ela estabelece com elementos da natureza, e a crença de que há um plano superior habitado por entidades capazes de se comunicarem com o plano terrestre por meio de médiuns que emprestam seus corpos para que tais espíritos possam "trabalhar" e "praticar a caridade" (Ferreti, 2014; Gomes, 2013; Macedo & Bairrão, 2011). Para Leal de Barros e Bairrão (2015, p. 127), trata-se de um campo emergente na pesquisa psicossocial justamente pelo fato de que "o mundo dos deuses costuma refletir com maestria os humanos que se lhes devotam". Assim, a íntima relação entre esses espíritos e os médiuns que os incorporam é uma característica evocada classicamente nos estudos da área (Augras, 1983).

A mediunidade na umbanda também se configura como um de seus pilares, sendo a chave para que a comunicação entre o plano do terrestre e o plano do sagrado aconteça. As giras e os rituais têm como base a consulta que ocorre entre os frequentadores do terreiro (chamados de "assistência") e os médiuns que nele trabalham (Scorsolini-Comin, 2014, 2015a). Essas consultas, geralmente públicas, ocorrem a partir do transe de possessão, segundo o qual uma entidade ou um espírito é incorporado pelo médium. Apesar do fato de que  a literatura científica frequentemente investiga o fenômeno da mediunidade, a partir de estudos com os médiuns e seus aspectos biofisiológicos e neurológicos (Bastos Jr. et al., 2015; Osborne & Bacon, 2013), ou de acessá-los a partir do transe de possessão (Rotta & Bairrão, 2007), pouca atenção é conferida aos percursos desenvolvimentais desses sujeitos, bem como ocorre a manifestação e o desenvolvimento da mediunidade ao longo do ciclo vital, seus reflexos na construção da identidade, características e relações com os contextos nos quais os médiuns estão imersos.

Uma possível explicação para esse processo é o fato de que a Psicologia do Desenvolvimento, por muitos anos, esteve associada a uma determinada forma de compreensão do humano, focalizada em elementos como a periodização e a busca pelo desenvolvimento típico e adaptativo, com pouco destaque para uma reflexão mais aprofundada e crítica sobre os processos culturais, por exemplo (Rogoff, 2005). No entanto, autores como Urie Bronfenbrenner (2002), em uma perspectiva mais sistêmica, fluida e dinâmica, buscam conhecer tais processos não como uma forma de padronizar percursos e balizar experiências, mas justamente compreender de que modo tais vivências cravam-se nas histórias de vida a partir das interações constantes entre elementos como contextos, interações, pessoas e tempo. Nesse sentido, compreendendo a importância da umbanda no cenário sociocultural brasileiro e a relevância da atividade mediúnica para sua existência e para a comunidade a qual ela circunscreve, este estudo teve por objetivo conhecer os processos desenvolvimentais de pessoas que atuam como médiuns em comunidades umbandistas.

 

Método

Tipo de Estudo

Trata-se de um estudo descritivo, exploratório e de corte transversal, amparado na abordagem qualitativa de pesquisa, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem dos autores.

Participantes

A amostra foi composta por cinco médiuns atuantes em dois terreiros de umbanda localizados em duas cidades do interior do Estado de São Paulo. Para participar da pesquisa era necessário atuar como médium há pelo menos um ano e exercer atividade mediúnica regular, por meio da incorporação de espíritos e atendimento ao público (ao menos uma vez por semana). Em termos do perfil da amostra, composta por critérios de conveniência, todas são do sexo feminino e com idades entre 26 e 43 anos.

 

 

Instrumentos

Para a coleta de dados foi empregada a técnica da história de vida, que consiste basicamente em pedir que o participante conte sua história de vida até o presente momento, permitindo que ele dê relevância ao que acredita ser mais importante, possibilitando ao pesquisador perceber aspectos significativos dos recursos discursivos utilizados pelos participantes (Portelli, 1997). Posteriormente, a partir da narrativa apresentada, um roteiro auxiliar de entrevista foi empregado, contendo perguntas específicas acerca do desenvolvimento pessoal da participante, caso a mesma não tivesse explorado suficientemente esse aspecto durante o registro de sua história oral. Esse roteiro também continha questões sobre como a participante compreende a mediunidade, sua relação com a religião umbandista e sua atuação como médium.

 

Procedimentos

Coleta de dados

Primeiramente os pesquisadores entraram em contato com três terreiros de umbanda localizados em duas cidades do interior do Estado de São Paulo e um no interior do Estado de Minas Gerais. Como forma de promover a inserção ecológica (Cecconello & Koller, 2003), os pesquisadores passaram a frequentar esses terreiros, acompanhados as cerimônias (giras) semanais abertas ao público. Após um período de frequência às giras e de contato com as comunidades, foi iniciado o recrutamento dos possíveis participantes. Mediante a concordância daqueles que aceitaram participar foram marcadas as entrevistas, considerando a disponibilidade dos participantes no que diz respeito aos horários e lugares em que se sentiam confortáveis para a realização das mesmas. A partir desse primeiro recrutamento, cinco médiuns aceitaram participar, atuantes em comunidades das cidades paulistas. No momento da coleta de dados era solicitado, antes do início da entrevista, que os participantes lessem, sanassem quaisquer dúvidas e assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Feito isso era aplicada primeiramente a Técnica da História de Vida, solicitando que o participante contasse sua história de vida até o presente momento, do modo como considerasse mais adequado. Em seguida, dava-se início à entrevista com base no roteiro de entrevista. Todo esse processo foi audiogravado pelos pesquisadores, o que foi posteriormente transcrito na íntegra e literalmente para análise, compondo o corpus analítico.

Análise dos dados

A organização dos dados deu-se por meio da técnica de análise de conteúdo (Turato, 2003). As entrevistas foram lidas em diferentes etapas (primeiramente uma leitura flutuante, em busca dos sentidos de maior destaque, e posteriormente uma leitura mais minuciosa, buscando semelhantes e diferenças entre os relatos, bem como destacando os sentidos mais frequentes e que organizavam a narrativa). Foram construídas quatro categorias analíticas a partir de sua recorrência e significância nos relatos das médiuns: (a) Do berço à gira: a entrada no universo umbandista; (b) A umbanda costurando narrativas desenvolvimentais; (c) Ser médium: uma nova identidade; (d) Entre a devoção e o receio: diversidade, intolerância e preconceito.

Essas categorias foram analisadas a partir da literatura científica da área e tendo como norteador o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano – MBDH (Bronfenbrenner, 2002, 2005). Segundo esse modelo, pode-se compreender como desenvolvimento o processo pelo qual a pessoa adquire concepções mais ampliadas e válidas do meio ambiente em que vive, tornando-se mais motivada e capacitada para se envolver em atividades que sustentem ou reestruturem esse ambiente em níveis de complexidade. Dessa forma, o desenvolvimento dar-se-ia por meio da relação recíproca entre sujeito e meio, na qual eles são indissociáveis e se modificam mutuamente (Bronfenbrenner, 2002). Para o MBDH, o desenvolvimento se organiza por meio de quatro níveis que se relacionam, sendo eles o Pessoal, o Processual, o Contextual e o Temporal. Nesses níveis, destacam-se conceitos importantes como os de microssistema, mesossistema, exossitema e macrossitema, referentes ao contexto, bem como de micro, meso e macrotempo, que se referem a particularidades de organização do tempo. O modelo bioecológico é uma forma de compreender a interação entre esses elementos, com maior ou menor presença e envolvimento da pessoa em desenvolvimento. A compreensão do modelo deve levar em conta não cada nível isoladamente, mas a interação entre os mesmos, de modo dinâmico e complexo. Além disso, um conceito relevante na compreensão dos processos desenvolvimentais é o de transição ecológica, que pode ser definida como a mudança de papel do indivíduo, do ambiente ou em ambos, produzida por uma alteração na posição do sujeito no meio ambiente. As transições ecológicas podem ocorrer ao longo de todo processo desenvolvimental dos sujeitos e caracterizam tanto uma consequência do desenvolvimento quanto uma motivação para o mesmo.

 

Resultados e Discussão

Do berço à gira: a entrada no universo umbandista

O primeiro aspecto importante que surge ao longo das entrevistas é o modo como cada participante ingressa no universo umbandista, marcado por acontecimentos que podem ser caracterizados como divisores de águas em suas histórias. Apesar de algumas já conhecerem e frequentarem alguns eventos umbandistas, há um marco em suas trajetórias de vida que as leva a dedicarem-se e a se reconhecerem como participantes efetivas dos terreiros que frequentam.

Esses acontecimentos variam entre crises familiares (participantes 1, 3 e 5), adoecimentos físicos ou psicológicos (participantes 3 e 4) e, em um caso, da participante 2, a maternidade. Mesmo sendo eventos diferentes, todos eles carregam consigo a necessidade colocada às participantes de reconfigurar seu modo de estar no mundo e de interagir com o ambiente que as cerca, ou seja, há a necessidade de uma mudança nos modos de estabelecer seus processos proximais. Com isso, pode-se afirmar que o ingresso na umbanda não ocorreu necessariamente pela manifestação da mediunidade, mas por um evento de vida que promoveu mudanças e também a necessidade de buscar ajuda na resolução dessas problemáticas.

Inserir-se na umbanda revela-se uma possibilidade de ressignificação de si mesma e do mundo. Seus rituais, giras, crenças e valores, principalmente o de evolução espiritual (Leme, 2006), apresentam um novo discurso capaz de dar sentido às experiências vivenciadas pelas participantes. O seguinte trecho da entrevista da participante 1 ilustra a entrada do discurso umbandista como uma possibilidade de compreender e ressignificar o momento difícil pelo qual passou antes de desenvolver sua mediunidade:

Eu tive uma fase que eu já não queria saber de nada, sabe assim quando você não, você não se interessa por nada? Você perde, eu acho que o prazer de viver? Eu tinha minha filha, mas abandonei pra lá, abandonei casamento, abandonei família, abandonei tudo e fui pra rua né, quase virei andarilha [...] eu realmente estava com um encosto, né, diz que tinha um acompanhamento, para falar a verdade tinha o que eles fala um acompanhamento era uma pomba-gira que estava ali e era ela que estava causando [...] hoje em dia eu posso falar que quem me tirou da rua, quem me livrou, quem me salvou daquilo tudo que eu estava passando foi realmente, foi o terreiro, a umbanda, foi os Orixás...

O ingresso na umbanda, neste caso, ocorre pela necessidade de buscar ajuda para resolver uma questão de adoecimento mental. A explicação para este adoecimento é dada pela manifestação de uma entidade, a pomba-gira, que promove na futura médium a decisão por procurar acolhimento e a aplacamento do seu sofrimento. A modificação nos modos de estabelecer os processos proximais das participantes possibilitou que elas desenvolvessem novas formas de perceber sua interação com o ambiente em que vivem, bem como ressignificassem os sistemas (sejam eles micro, exo, meso ou macro) nos quais atuam direta ou indiretamente (Bronfenbrenner, 2002).

Outra questão importante a ser considerada quando se observa o início da participação ativa das participantes na umbanda é a influência da família nesse processo. Todas as participantes têm em seus relatos de vida ao menos um familiar que foi significativo em sua entrada na umbanda, como pode ser observado na fala da participante 5:

A irmã da minha vó, mãe do meu pai, ela era umbandista, e desde que eu nasci meus pais casaram na umbanda, eu fui batizada na umbanda logo que eu nasci, e antes dela morrer meu pai trabalhou com ela quarent... quase quarenta anos de cambono dela, e antes dela morrer ela me falou algumas coisas que ficaram na minha cabeça, sabe?

A partir dessa fala pode-se recuperar que a umbanda é uma religião sustentada, basicamente, na transmissão oral, de modo que muitos dos seus conceitos e práticas são comunicados culturalmente. Nesse escopo, a família representa um sistema potencialmente transmissor desses conhecimentos de mundo. Além disso, a família também representa um cerne a partir do qual há a transmissão de práticas, valores e experiências, por exemplo, as ligadas a alguma religião. Assim, no caso narrado, a umbanda já fazia parte do repertório familiar da médium, sendo suas práticas conhecidas desde a infância. O ambiente no qual essa médium se desenvolveu já estava narrado a partir da umbanda, sendo que a sua própria atividade como médium na vida adulta, incorporando espíritos e atendendo à comunidade, faziam ressonância com a atividade mediúnica dessa tia-avó. A transmissão psíquica familiar na umbanda representa mais do que a continuidade de práticas e crenças (Leal de Barros, 2015), no caso, da tia-avó para a participante 5, mas também a construção de uma identidade na qual a mediunidade é uma expressão legitimada no ambiente proximal e valorizada como uma herança positiva naquele contexto interativo.

Para Bronfenbrenner (2002), há três características muito importantes que permeiam as relações familiares, sendo elas o afeto, a reciprocidade e o poder. O afeto é essencial o bom desenvolvimento dos membros da família e está relacionado às relações positivas e atenciosas. A reciprocidade refere-se à influência mútua dos membros entre si. E o poder está relacionado ao equilíbrio necessário para lidar com as relações de poder, e é negociado constantemente, oferecendo ao indivíduo em desenvolvimento maior ou menor controle nas situações as quais está implicado.

A importância atribuída à família ao longo do processo de inserção no microssistema umbandista incorpora também a comunidade do terreiro, tendo suas relações regidas por fatores muito semelhantes, haja vista que as participantes classificam as relações estabelecidas como positivas, como, por exemplo, na fala da participante 2, em que ela diz que na comunidade"A gente é família, todo mundo é irmão, todo mundo procura se ajudar".A reciprocidade também aparece nas entrevistas, em que o bom funcionamento do terreiro está relacionado ao cumprimento das regras e valores por todos que frequentam as giras, a relação entre médium e cambono ajuda a ilustrar esse aspecto. E, por fim, as relações de poder ficam evidentes principalmente no que diz respeito à relação com as mães e pais de santo, que são compreendidos como figuras de referência e sabedoria, que devem ser respeitadas e estabelecem uma hierarquia nos terreiros.

Desse modo, é possível pensar que a entrada no universo umbandista como participante ativo, ou seja, aquele que trabalha nos terreiros como médium, é marcada por uma importante ressignificação dos processos proximais, demandando que as participantes reconfigurem seus modelos de explicação do mundo e os seus modos de estar nas relações, porém carregam consigo fatores do nível pessoal, ou seja, características aprendidas ao longo de suas histórias de vida, que são tanto produto quanto produtoras dos novos meios em que se inserem (Bronfenbrenner, 2002). Esses aspectos ficam evidenciados quando elas buscam em seus repertórios de compreensão e comportamento sentidos referentes à família para significar os terreiros que frequentam e os novos papéis que assumem. A imagem de uma organização familiar aparece como frequente em contextos de terreiros, representando um modo de pensar hierarquias, atribuições e papéis para cada membro.

A umbanda costurando narrativas desenvolvimentais

Em todas as entrevistas o universo umbandista transpassa os muros do terreiro, estando presente em todos os ambientes aos quais as participantes fazem parte. É possível dizer que o microssistema do terreiro, no qual encontra-se o palco para as manifestações da umbanda, caracteriza um mesossistema com todos os outros microssistemas em que as médiuns estão inseridas (Bronfenbrenner, 2002). Para exemplificar a presença da crença umbandista em outros microssistemas para além do terreiro serão utilizados dois trechos de duas entrevistas, o primeiro referindo-se ao ambiente familiar e à maternidade e o segundo ao ambiente de trabalho:

Só que aquilo, se eu for analisar pelos médicos eu nem andava dentro de casa, porque eu não posso nada, se eu faço assim no olho perto deles eles já começa a ficar doido comigo, se eu levo um tropeção, Nossa Senhora, Deus me livre e guarde, eu não posso arrastar nada, só que se eu for olhar tudo isso que eles fala eu não andava mais, entendeu? Então eu acho que a fé que eu tenho é muito grande, então é aonde eu tenho certeza que logo logo eu vou engravidar, eu vou, e por mais que vai ser difícil, eu vou conseguir. (Participante 3).
Quanto mais você trabalha, mais te abre os canais sensoriais, então por exemplo, você conversa com a pessoa, é como meio se você já fizesse uma ficha dela ali, você tem essa percepção, que mais, é... se ela tá muito carregada você capta tudo aquilo, você sente tudo aquilo e sem contar também que é como se eles colocassem um óculos na cara da gente depois que você começa a trabalhar na umbanda, tudo aquilo que você não via começa a ver, então eles te dão, eles te mostram o mundo, isso enquanto você estiver trabalhando, porque se você parar perde tudo... (Participante 4).

Esses trechos representam o modo como a umbanda, sua fé e seus valores acompanham e norteiam as participantes em suas práticas e tomadas de decisão, sejam elas de cunho pessoal ou profissional. É possível dizer que a instituição do discurso umbandista como uma nova possibilidade de interpretação do mundo costura os microssistemas pelos quais as médiuns transitam, atuando por meio de uma reconfiguração tanto no nível proximal quanto no pessoal, já que há uma nova forma de se relacionar com os componentes desses sistemas e essa nova organização demarca espaços internos nos indivíduos, influenciando em suas subjetividades (Bronfenbrenner, 2002). A participante 4 revela que a sua mediunidade interfere no modo como estabelece seus relacionamentos interpessoais, como interpreta as pessoas e suas intenções em seus contatos cotidianos, de modo que a umbanda parece atravessar o modo como ela se coloca no mundo e se relaciona com os outros sociais. A participante 3 revela que a sua mediunidade e consequente vinculação à umbanda fazem com que ela transponha algumas limitações físicas, como a baixa acuidade visual. Por ser médium interpreta que seu problema físico pode ser contornado, o que reforça a sua fé na sua futura gestação, mesmo com os impedimentos e recomendações médicas. A umbanda, dessa forma, costura seu desenvolvimento, ampliando suas possibilidades em meio às limitações de ordem natural e abrindo caminho para que possa realizar outras atividades cotidianas, não se privando do contato social.

Outro aspecto importante é o modo como a umbanda e a mediunidade atuam no nível temporal das participantes. Além de costurar os seus contextos ambientais, os discursos possíveis a partir do ingresso na umbanda e do desenvolvimento da mediunidade também parecem dar sentido a acontecimentos do passado da vida das médiuns, ou seja, a umbanda e a mediunidade oferecem subsídios para que o mesotempo, por exemplo, os anos da infância, ganhem novos sentidos e significados no microtempo, no momento atual em que ocorre o desenvolvimento das participantes (Bronfenbrenner, 2002).

Para ilustrar esse ponto é possível utilizar a fala da participante 1, na qual ela relata que após a perda de sua avó na infância, de quem era muito íntima e próxima, ela continuava visitando-a, conversando com ela e sentando à beira de sua cama a noite para desejar-lhe boa noite. Também a participante 2 conta sobre sua habilidade em acertar o sexo dos bebês apenas conversando com as mães ainda grávidas, dizendo que muitas mães ligavam para ela ainda criança para que ela lhes dissesse qual seria o sexo do seu bebê, e a partir de sua afirmação montavam todo o enxoval. Ambos os discursos pareciam descolados de sua experiência de vida, até a entrada na umbanda e o desenvolvimento da mediunidade, que ofereceram material para uma nova leitura, capacitando as participantes para agregarem esses episódios ao seu desenvolvimento, tornando suas histórias mais coerentes e instrumentalizando com sentidos seus processos desenvolvimentais (Bronfenbrenner, 2002).

Não é apenas com relação ao passado que a umbanda e a mediunidade atuam no desenvolvimento das participantes, mas também no que diz respeito ao planejamento de suas rotinas, no microtempo, e de seus futuros, no mesotempo. Um exemplo possível já foi citado anteriormente, em que a participante 3, mesmo avisada pelos médicos de que caso engravide correrá sérios riscos à sua saúde, planeja a maternidade confiante de que estará resguardada por sua crença. Neste caso existem dois discursos possíveis dentro da história de vida e dos ambientes em que ela está inserida, mas a médium opta por depositar sua confiança no que faz mais sentido segundo seu desenvolvimento até o presente momento, influenciada pelos níveis pessoal e proximal, ou seja, pelos sentidos que agregou à sua subjetividade e pela reconfiguração em seu modo de estar no mundo após o contato com a umbanda e com a mediunidade.

É possível dizer que a umbanda e a mediunidade atuam no macrossistema e no macrotempo, pois elas inserem as participantes em uma história social e em um contexto cultural que passa a dar sentido às suas experiências subjetivas e ao modo como interagem com os ambientes em que atuam, modificando-os e sendo modificadas por eles. Esses movimentos ocorrem em um processo de desenvolvimento que proporciona sentido ao unir suas histórias de vida com seus presentes e norteando o planejamento de seus futuros (Bronfenbrenner, 2002).

Ser médium: uma nova identidade

Tornar-se médium caracteriza-se como uma mudança de papel na comunidade de referência, ou seja, no próprio terreiro. Tornar-se médium é um processo que se encaixa no conceito de transição ecológica, que implica uma mudança de papel no terreiro e uma alteração no sentido que aquele ambiente possuía em sua história até então (Bronfenbrenner, 2002). As transições ecológicas ocorrem tanto por uma consequência do desenvolvimento quanto por uma motivação para que ele continue. É possível dizer que tornar-se médium foi um reflexo da demanda por sentidos ainda mais específicos dessa vivência para a adaptação ao ambiente em que estavam (motivação), após a inserção no universo umbandista que já havia oferecido um novo repertório para interpretação do mundo e de suas histórias de vida (consequência).

As transições ecológicas demandam tempo para a reconfiguração do papel do indivíduo para que se adapte às novas exigências do meio ambiente (Bronfenbrenner, 2002). É importante lembrar que uma transição ecológica opera em todos os níveis do desenvolvimento: no nível proximal, exigindo novos modos de se relacionar com o meio e com os elementos que o compõem; no nível pessoal, quando desperta a necessidade de que o indivíduo prossiga com o desenvolvimento, adquirindo novos modos de estar no mundo em consonância com o que traz de bagagem de todo seu desenvolvimento, além de novos meios ambientes e novos modos de circular entre eles; e temporal, no sentido de que uma transição ecológica demanda tempo e investimento emocional, psicológico e físico dos indivíduos para que ocorra.

O processo que antecede a transição ecológica fica bastante evidente nas entrevistas, quando as participantes são questionadas sobre como foi tornar-se médium. Elas relatam que foi um desenvolvimento difícil, repleto de complexidades que foram desvendadas com muito aprendizado e com o auxílio principalmente das mães e pais de santo, tidos como orientadores desses processos. No trecho a seguir a participante 1 deixa claro que foi um processo difícil no qual precisou de auxílio dos que a rodeavam:

Ah, eu precisei de muita ajuda, viu? Não vou mentir, eu precisei assim, de muito conselho, de muito tempo pra pensar, sabe, porque tem hora que você tá bem aí de repente você já não quer mais, sabe você quer largar, fala ‘mas eu não tô entendendo, por que eu tô aqui então?' Pra lidar com a mediunidade se você não, igual se diz, não estiver firme com o seu pensamento firme, com a fé sabe, se não for mesmo o que você quer, ter fé naquilo, acreditar naquilo que você tá fazendo, você não consegue nada! Então é difícil lidar...

Já as participantes 2 e 3 falam sobre a insegurança em assumir um novo papel no terreiro, sobre os medos que as acometeram e sobre a dificuldade em ter certeza de que estavam prontas para começar a "trabalhar" (atender aos consulentes nas cerimônias públicas). Passar a atender à comunidade é um processo que envolve renúncia e responsabilidade por parte do médium, bem como a necessidade de seguir com muita disciplina as regras do terreiro. Alguns desses elementos são retratados a seguir:

Ai é... foi um pouquinho complicado porque assim, a gente tem muito medo daquilo que a gente não conhece, então a gente já tem um pouco de dificuldade, chega lá na hora você precisa tá com a cabeça firme, você tem que é... você tem que prestar atenção no que eles tão falando, porque tão te ensinando, então você acaba às vezes ficando com medo, até que você se solta pra conseguir trabalhar... (Participante 2).

Mas aí depois eu não tenho, eu te juro, eu não tava preparada pra trabalhar, eu não achava que eu tava preparada, eu tinha medo [...] Eu achava que eu tinha que estudar pra poder passar as coisas pras pessoas que tava lá, eu achava que, porque a consciência ela atrapalha muito nessa parte, eu falava pro X. ‘Nossa X., eu vou pesquisar na internet o que é bom pra isso e praquilo, a pessoa tá perguntando'... (Participante 3).

Como demonstrado nos trechos das entrevistas, passar pela transição ecológica demanda tempo, investimento e mudanças no modo de se relacionar e até mesmo em suas subjetividades, porém todas as participantes relatam em suas entrevistas que assumir a identidade de médium nos terreiros, ou seja, concluir a transição para esse novo papel, é muito gratificante e amplia suas possibilidades de estarem no mundo (Bronfenbrenner, 2002). É possível dizer que esse processo ajudou na melhor adaptação das participantes a seus meios ambientes, e estando mais adaptadas as médiuns encontraram-se mais satisfeitas e deram novos sentidos aos seus processos desenvolvimentais. Nesse percurso desenvolvimental, o apoio do meio e de pessoas mais experientes como médiuns também se mostrou importante, sobretudo de figuras de referência como pais e mães de santo.

Uma questão importante refere-se à firmeza da cabeça, relatada em algumas entrevistas e que se relaciona com a mística desse membro no repertório linguístico e cultural das religiões afro-brasileiras (Brumana, 2005; Rotta & Bairrão, 2007; Scorsolini-Comin, 2015a). Estar com a cabeça firme, na umbanda, pode corresponder a não titubear, a estar preparada não apenas para incorporar as entidades, mas também atuar em prol do outro e exercer com responsabilidade e comprometimento o que se chama de caridade (atendimento à comunidade). A cabeça firme é compreendida como sinônimo de estabilidade, engajamento pessoal, disciplina, confiança, de maturidade para a nova identidade. Na tradição das religiões afro-brasileiras, é na cabeça (ori) que está o comando, o controle, atribuído a um determinado orixá, considerado o pai de cabeça. Assim, ao longo da transição ecológica, essas médiuns precisaram "firmar a cabeça", desenvolvendo o senso de responsabilidade necessário para o desempenho do novo papel, ou seja, o de médium. As transições ecológicas tornam clara a interdependência e a reciprocidade na relação entre indivíduo e meio ambiente, pois elas representam um conjunto de alterações no sujeito e no meio ambiente que exigem de ambos reajustes para uma mútua acomodação. Toda transição ecológica é uma experiência natural e conveniente aos indivíduos, mediante a qual há um planejamento integrante antes-depois, podendo ser, cada sujeito, controle de si mesmo (Bronfenbrenner, 2002).

A atuação como médium acabou trazendo alguns benefícios para as entrevistadas. As repercussões positivas da mediunidade são relatadas, por exemplo, pela participante 4:

Então cada vez que você vai lá, trabalha, faz a caridade, você vai resgatando o seu passado, você vai melhorando seu estado fluídico, você vai mudando sua cabeça, porque os guias, eu falo que cê aprende por osmose, porque eles te passam essa... eles são tão elevados que um pouquinho ali cê já vai pegando eles, eles te influenciam no dia-a-dia, você muda a postura, você passa a ser uma pessoa melhor...

Tendo em vista essa fala da participante 4 é possível notar que o trabalho na umbanda e o exercício do papel de médium são aspectos importantes nos processos desenvolvimentais das participantes, já que, como definido por Bronfenbrenner (2002), o desenvolvimento caracteriza-se como o processo pelo qual a pessoa adquire concepções mais ampliadas e válidas do meio ambiente em que vive, tornando-se mais motivada e capacitada para se envolver em atividades que sustentem ou reestruturem esse ambiente. Nas entrevistas fica evidente que o universo umbandista oferece subsídio para que as médiuns desenvolvam concepções mais ampliadas sobre seus ambientes e mais coerentes com suas histórias de vida, e a mediunidade oferece ferramentas para que elas se percebam mais motivadas e capacitadas para lidar de forma adequada com os meios ambientes em que estão inseridas. Envolve aprendizado constante, transmitido oralmente por meio de conselhos, orientações e mesmo a partir de observações e modos de ser e de comportar em determinadas situações dentro da comunidade.

Entre a devoção e o receio: diversidade, intolerância e preconceito

A umbanda é caracterizada como uma religião perpassada pela diversidade, tendo suas múltiplas possibilidades de existir como um dos aspectos mais marcantes de sua identidade. Essa multiplicidade aparece nos modelos de organização das giras, dos terreiros, nos rituais e, como evidenciado nas entrevistas, nos modos de se manifestar e de se exercer a mediunidade (Capranzano, 1977; Leal de Barros & Bairrão, 2015; Macedo & Bairrão, 2011).

Nas entrevistas, cada uma das participantes descreve de modo diferente como o transe de possessão ocorre em seu corpo, quais as sensações tanto psíquicas quanto corporais e de que modo esse fenômeno influencia nos outros sistemas nos quais as médiuns estão inseridas. A diferença na percepção do mesmo fenômeno por médiuns diferentes retrata a complexidade do desenvolvimento humano, já que toda experiência é perpassada pelos níveis pessoal, proximal, contextual e temporal à medida em que as participantes interagem com o ambiente (Bronfenbrenner, 2002). Dessa forma, destacam-se aqui as particularidades de cada processo desenvolvimental que demarca o mesmo fenômeno.

Para exemplificar uma demarcação importante sobre a diferença entre os modos de exercer a mediunidade, recorremos às narrativas acerca do transe de possessão, ou seja, com destaque para essa forma de expressão mediúnica. As participantes 1 e 2 relatam não se lembrarem de nada enquanto estão incorporadas, contam que quando voltam a si precisam de um tempo para se reestabelecerem, já que não estavam ali, na gira, durante toda sua duração. As participantes 3 e 5 contam sobre uma mediunidade consciente, sobre conseguirem ouvir e perceber o que ocorre durante o transe de possessão, porém não têm autonomia para interferir nas falas e ações da entidade incorporada. E, por fim, a participante 4 compreende que os médiuns carregam um pouco de si para as consultas, ou seja, o que o médium estudou, sabe e até mesmo a qualidade do seu vocabulário podem ajudar ou dificultar o trabalho da entidade durante a consulta, e inclusive relata que caso o médium acredite necessário ele tem autonomia para interromper o atendimento.

A diversidade acerca do transe de possessão revela que há diferentes formas de compreender, reconhecer e aceitar as manifestações mediúnicas. Há que se reconhecer que cada comunidade acaba acolhendo ou não as manifestações emergentes, validando-as como mediúnicas, como no caso das participantes deste estudo, ou atestando sua nulidade e até mesmo sua relação com outros fenômenos que não os espirituais. Com isso, abre-se a possibilidade de atestar que a validação social da mediunidade ocorre em função não apenas do ambiente imediato no qual o sujeito está inserido, mas também do modo como o transe de possessão é assumido pela comunidade e transmitido em termos da prática religiosa, de sua importância no ritual e nos trabalhos da casa. Assim, não se trata de balizar as manifestações da mediunidade, mas de reconhecer que cada comunidade, baseada em aspectos macrossociais da religião professada, interpreta e reconhece tais eventos em uma gama ampla de possibilidades de leituras, movimentos, gestos e usos em função de um microssistema e sua organização.

Toda a diversidade que perpassa o universo umbandista, e principalmente concepções que partem do senso comum sobre suas crenças e rituais, geram um quadro de intolerância que se revela em uma cultura que aparentemente é capaz de sustentar as diferenças culturais, mas que possui uma história marcada pela intolerância religiosa (Lages, 2012). Apesar da intolerância transitar por entre as relações interpessoais de modo velado, muitas vezes resguardada pela máxima da cultura da diversidade que impera no Brasil, as médiuns demonstram senti-la em seu cotidiano e relatam a necessidade de desenvolver ferramentas para lidar com o que elas chamam de preconceito. Cada uma das médiuns lida com essas questões de maneira coerente com seu desenvolvimento, mas todas sentem a resistência social que circunscreve a umbanda e aqueles que a frequentam. Para ilustrar esse aspecto muito marcante nas entrevistas, são expostos alguns trechos das falas das participantes:

Bom, eu procuro assim, como diz, tem hora que eu até tento assim um pouquinho sair fora do assunto, sabe? Porque é chato, é ruim, tem muita gente que não entende, igual eu te falei, é muito preconceito, sabe, então às vezes eu procuro nem tocar no assunto pra não ficar constrangido, sabe? Dá um certo constrangimento na pessoa, ah em mim quer dizer, nas pessoas não, em mim mesmo, não é, como se diz, um assunto muito bem entendido, apesar que tem muita gente que gosta, mas tem muita gente que não assume que gosta (risos), e tem muita gente que realmente não gosta. (Participante 1)

Às vezes eu brinco, tem gente que esconde que é da umbanda tudo, eu escondia até pouco tempo, da onde eu frequentava, porque, porque muita gente não entende, acha que a umbanda é candomblé, magia negra, essas coisa e a pessoa não sabe diferenciar uma coisa da outra [...] Teve um dia que ela (manicure) ouviu eu conversando com o X. no telefone, que eu tinha começado a trabalhar, tava dando passagem, ela virou e falou assim pra mim ‘eu não acredito, você tá recendo os capeta?' Aí eu falei assim ‘tô, mas é os capetinha do bem esses que eu recebo, eles são tão bonzinho!' Eu vou falar o quê pra ela? (Participante 3)

A intolerância e o preconceito permeiam o macrossistema e o macrotempo que envolvem as médiuns, já que a história de formação cultural brasileira e o modo como a sociedade se estrutura até a atualidade exercem influência direta nas experiências das participantes, modulando seus níveis processual e pessoal, pois elas relatam mudanças nos modos de se relacionar com aqueles que as cercam desde que iniciaram seu trabalho mediúnico. Ao mesmo tempo, internalizam novos valores e aprendizagens sobre como colocar-se no ambiente enquanto médium de umbanda (Bronfenbrenner, 2002).

É possível compreender que o ingresso na umbanda e o exercício do trabalho mediúnico demarcam passos importantes no desenvolvimento das médiuns, oferecendo novos recursos para interpretação do mundo e das próprias experiências. Ao assumir um novo papel (transição ecológica), o de médium, as participantes encaram um novo modo de relacionar-se com o meio em que vivem, internalizando as vivências de formas diferentes e particulares, porém sempre perpassadas por desafios, ganhos, adaptações e satisfações, ou seja, demarcando processos desenvolvimentais que ampliam suas possibilidades de atuação e seu nível de adaptabilidade com os meios ambientes nos quais estão inseridas.

 

Considerações Finais

Ao final do estudo foi possível compreender que o universo umbandista e a mediunidade foram marcos determinantes no desenvolvimento das participantes ao longo do ciclo vital, oferecendo repertório simbólico e cultural para a compreensão de suas histórias de vida desde a infância até a vida adulta, em que se tornaram médiuns. A umbanda e o trabalho mediúnico também aparecem como ferramentas importantes no enfrentamento de momentos considerados difíceis pelas médiuns, como situações de adoecimento e de maior instabilidade emocional.

Dar início aos trabalhos nos terreiros não só faz parte do desenvolvimento das participantes, como caracterizam por si só o desenvolvimento, ou seja, nesse processo elas adquiriram concepções mais ampliadas e adaptadas do ambiente, motivaram-se a desenvolver novas atividades e sentiram-se mais capacitadas para lidar com as experiências e desafios constantes que aparecem em seu dia-a-dia, sejam eles relacionados à mediunidade ou não. É importante ressaltar que o trabalho como médium na umbanda demanda das participantes o envolvimento dos quatros níveis nos quais o desenvolvimento humano acontece, dessa forma os níveis pessoal, processual, contextual e temporal estão constantemente implicados no exercício da mediunidade, modificando o ambiente em que elas se encontram e modificando-as para que estejam cada vez mais adaptadas ao meio que as circunscreve.

Por fim, este estudo compreendeu que os processos desenvolvimentais das médiuns de umbanda se dão de forma gradual, capacitando-as para atuarem nos ambientes em que estão inseridas, bem como oferecendo repertório para que suas vivências e histórias façam cada vez mais sentido. Explorar as experiências de mediunidade tendo como norte o modo com que cada terreiro ou comunidade de referência interpreta essas manifestações pode ser útil para compreender a multiplicidade desse fenômeno e a influência dos microssistemas, bem como suas possíveis repercussões no desenvolvimento dos filhos de santo. Ampliar e adensar a produção científica nessa área, permitindo novas reflexões, apresenta-se como um desafio.

Como se trata de um estudo exploratório, considera-se importante que novos estudos sejam realizados neste contexto, seja para compreensão aprofundada dos fenômenos que permeiam a umbanda quanto para investigar de que forma ela retrata ou influencia os estudos psicossociais que envolvem a cultura brasileira. Abordar outras comunidades e formas de organização pode ser um processo importante no sentido de comparar experiências e percursos desenvolvimentais, bem como acessar médiuns com diferentes idades e tempos de trabalho em suas comunidades de referência. Investigar outros contextos interativos dos médiuns pode ser um caminho no sentido de uma visão mais integrada de suas trajetórias, em uma perspectiva mais sistêmica e que também possa ser acessada ao longo do tempo, ou seja, buscar suas expressões para além do universo religioso e atravessando diferentes etapas do ciclo vital. Por fim, recomenda-se maior diálogo teórico com as produções no campo da etnopsicologia, por exemplo, a fim de ampliar o repertório construído acerca do fenômeno da mediunidade, aqui abordado sob a égide específica da Psicologia do Desenvolvimento.

 

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Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM
Programa de Pós-graduação em Psicologia
Rua Conde de Prados, 155, Abadia, CEP 38025-260, Uberaba - MG, Brasil
Endereço eletrônico: fabioscorsolini@gmail.com
Maria Teresa de Assis Campos
Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM
Programa de Pós-graduação em Psicologia
Rua Conde de Prados, 155, Abadia, CEP 38025-260, Uberaba - MG, Brasil
Endereço eletrônico: mtassiscampos@hotmail.com

Recebido em: 05/09/2016
Reformulado em: 11/10/2016
Aceito em: 23/10/2016

 

 

Notas

* Doutor em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Tratamento e Prevenção Psicológica pela mesma instituição. Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
** Psicóloga e mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Bolsista de mestrado da CAPES.

Agradecimento: Este estudo recebeu o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da concessão de bolsa de Pós-doutorado Júnior ao primeiro autor (Processo 405915/2015-2).

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