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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.17 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2017

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Entre embaraços, performances e resistências: a construção da queixa de violência doméstica de mulheres em uma delegacia

 

Among embarrassments, performances and resistances: the development of women's domestic violence complaints at a police station

 

Entre vergüenzas, actuaciones y resistencias: la construcción de una denuncia de violencia doméstica de la mujer en una estación de policía

 

Ana Pereira dos Santos*; Roberta Carvalho Romagnoli**

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma discussão sobre a construção da queixa de violência doméstica de mulheres em uma delegacia de polícia da cidade de Viçosa (MG). Pretendeu-se compreender como é construída a queixa de violência doméstica de mulheres levando em consideração as diferentes variáveis que incidem no momento da denúncia e para as pessoas nelas envolvidas. Os dados para estudo foram colhidos a partir de uma etnografia realizada durante o período de seis meses e que constituiu em uma pesquisa de mestrado. Compôs o conjunto de métodos a pesquisa participante, entrevistas em profundidade com mulheres acompanhadas durante suas queixas e com os policiais, registros em diário de campo e análise de documentos produzidos pela instituição. Os resultados demonstram que, mesmo após a lei Maria da Penha, o atendimento às mulheres e a compreensão da violência de gênero por parte dos policiais permanece sendo circunstanciado a partir de valores patriarcais e normativas de gênero que privilegiam a dominação masculina.

Palavras-chaves: violência, Lei Maria da Penha, subjetividades.


ABSTRACT

The article presents a discussion of the development of women's domestic violence complaints at a police station in the city of Viçosa-MG. The objective is to understand how women's domestic violence complaints come about, while analyzing the different variables that affect the denunciation moment along with the parties involved. The study data was collected from an ethnography performed during six months and which formed part of a master's research. This study considered a set participatory research methods, monitored in-depth interviews with women during their police complaints and with the police officers, field diary records and document analysis produced by the institution. The results demonstrate that, even after the Maria da Penha Law, the women-granted assistance and police understanding of gender-based violence remains substantiated from patriarchal values and gender normative that favor male domination.

Key words: violence, Maria da Penha Law, subjectivities.


RESUMEN

El articulo presenta una discusión sobre la construcción de la denuncia de violencia domestica de mujeres en un estación de policía de la ciudad de Viçosa-MG. Se pretendió comprender como es construida la denuncia de violencia domestica de mujeres llevando en consideración las diferentes variables que inciden en el momento de la denuncia y las personas envuelta en ellas. Los datos para el estudio fueron recogidos a partir de una etnografía realizada durante el periodo de seis meses y constituyo una investigación de maestría. Compuesto por el conjunto de métodos de investigación participante, entrevistas en profundidad con mujeres acompañadas durante sus denuncias y con los policías, registros en diario de campo y análisis de documentos producidos por la institución. Los resultados demostraron que, mismo después de la Ley Maria da Penha, el atendimiento a las mujeres y la comprensión de la violencia de género por parte de os policías permanece siendo circunstanciado a partir de valores patriarcales y normativos de género que privilegian la dominación masculina.

Palabras clave: violencia, Ley Maria da Penha, subjetividades.


 

 

1 Introdução: conceito de violência contra a mulher e normativas legais

O trabalho a seguir problematiza a construção da queixa de violência doméstica de mulheres tendo como cenário de pesquisa a Delegacia de Polícia Civil da cidade de Viçosa, região da zona da mata do Estado de Minas Gerais. Procurou-se observar os efeitos causados no encontro entre policial e mulher diante do novo cenário técnico-normativo que orienta o trabalho de atendimento à violência de gênero. Levando-se em consideração, sobretudo, as desestabilizações trazidas pela Lei Maria da Penha, realizou-se uma etnografia na tentativa de descrever as novidades do cotidiano de uma instituição tão importante no atendimento, como também as repetições e engessamentos que ainda definem a forma como a violência contra a mulher é compreendida.

A violência contra a mulher tem índices alarmantes em nosso país. Conforme indicam Gomes, Minayo e Silva (2005) para cada cinco mulheres, pelo menos uma já sofreu algum tipo de violência, sobretudo dos 15 aos 45 anos de idade. Souza & Adesse (2005) declaram que o Ministério da Saúde reconhece que menos de 10% dos casos de violência sexual é notificado, o que indica que esse número é ainda superior. Pesquisando a relação entre violência doméstica e álcool, Fonseca, Galduróz, Tondowsky e Noto(2009) também verificaram que a maioria das mulheres não procura ajuda nos serviços de saúde e nas delegacias.

Embora apresente números significativos, o atendimento à violência contra a mulher é recente na pauta das políticas públicas brasileiras. Fruto de mobilizações que surgiram a partir do movimento feminista, o processo que culminou na criação da Lei Maria da Penha, que trouxe um aumento do rigor das punições contra esse tipo de violência, passou por diversos momentos e progressos até a incorporação definitiva desta agressão no cenário dos crimes com penalidade prevista, e adequada à sua gravidade, na legislação brasileira. Antes da década de 1970, esta não era uma preocupação das políticas públicas como um todo. Somente a partir do tensionamentos do movimento feminista que as políticas de saúde e segurança pública, num primeiro momento, e esta última a partir da criação da Delegacia da Mulher, fez com que o debate emergisse no espaço público configurado como uma grave violação de direitos. Uma experiência que era concebida como eminentemente privada e que dizia respeito apenas ao casal, foi finalmente reconhecida em seu teor político e coletivo. Para Angelim (2009) a forma como o Estado ignorou a violência contra a mulher legitimou a violência perpetrada por homens e sustentou a configuração básica do patriarcado dentro do espaço doméstico.

Em 1985, foram criadas, no Brasil, as primeiras Delegacias Especializadas para Mulheres. Segundo Pasinato (2012), a mobilização dos movimentos feministas, a partir da década de 1970, impactou de forma bastante significativa na elaboração de legislações e de documentos internacionais de proteção aos direitos das mulheres. No curso da história, entre os mais importantes, está a Convenção de Belém do Pará, de 1994, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Esse foi um dos primeiros documentos a reconhecer a situação em que viviam muitas mulheres da América Latina, sem distinção de classe, raça, religião ou idade. A Convenção apontou a necessidade de se abolir leis discriminatórias e estabeleceu procedimentos jurídicos eficazes para as mulheres vítimas de violência, propondo a criação de serviços especializados.

Em Minas Gerais, especificamente, foi criado em 1983, com o governo de Tancredo Neves, o Conselho Estadual da Mulher e, em 1985, a primeira Delegacia de Mulheres. Em Belo Horizonte, durante toda a década de 1980, a política de enfrentamento à violência contra as mulheres estava resumida à Delegacia Especial de Crimes Contra a Mulher (DECCM) e aos atendimentos que eram ali oferecidos. É interessante ressaltar que, embora as Delegacias especializadas tenham surgido em função das reivindicações dos movimentos feministas, sua efetivação revela a ausência de uma abordagem feminista. A relação entre essa demanda e aquelas relacionadas aos crimes contra o costume, à proteção à família, à criança, ao adolescente, ao idoso e ao portador de deficiência contribuem para atrasar a compreensão da mulher enquanto sujeito de direitos, autônoma e livre para tomar suas decisões (Pasinato, 2012).

A Lei Maria da Penha (Lei n˚. 11.340, 2006) é conhecida como uma importante ação afirmativa no legislativo brasileiro. Considerada fruto de um paradigmático caso de atenção aos Direitos Humanos, foi reconhecida pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher como uma das três mais avançadas no mundo, dentre noventas legislações sobre o tema (Bianchini, 2013). Proposta como uma ação afirmativa, a referida lei possui, entretanto, um caráter transitório: ela vigorará até quando for necessário e até que seus objetivos, de coibir e prevenir a violência de gênero, sejam plenamente alcançados no cenário brasileiro.

Bianchini (2013) aponta a Maria da Penha como uma lei que considera a complexidade da violência contra a mulher, bem como a subjetividade feminina. A relação da mulher consigo mesma é mediatizada por crenças e por tradições que a subjugam e a colocam em um permanente estado de culpa. Tais expressões subjetivas poderiam favorecer a crença de que há algo de errado consigo mesma e possibilitar condições de fragilidade emocionais propícias para o acontecimento da violência íntima e afetiva.

Uma das mais importantes seria garantir a segurança necessária para que a mulher possa refletir sobre sua relação amorosa (Bianchini, 2013). A lei contempla, de forma indireta, algumas particularidades desse tipo de violência como, por exemplo, a característica cíclica desses relacionamentos. Dessa forma, suas atribuições garantem à mulher condições de manter-se protegida enquanto reflete sobre sua história e sua relação. Por ter um caráter também assistencial, a lei contempla, em seu corpo, "normas de discriminação positiva", as quais são medidas especiais, de caráter temporário, visando a proteção da saúde, integridade física, psíquica, moral, sexual e patrimonial da mulher e de seus filhos.

A criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, objetivo principal dessa legislação, traz consigo uma série de novidades. Entre as principais estão a tipificação e a definição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Dessa forma, a violência baseada no gênero caracteriza-se como aquela praticada no âmbito doméstico, familiar ou em relação íntima de afeto. Nesse sentido, só se enquadram na lei agressões que tenham como pano de fundo as diferenças culturais atribuídas ao homem e a mulher, na condição de estabelecer uma relação de dominação na qual o masculino prevalece sobre o feminino. Nesse cenário, estão consolidados papéis rígidos e pré-definidos impostos aos homens e às mulheres, reforçando sempre uma tradição patriarcal e prejudicial a autonomia feminina.

Além da motivação, o contexto em que ocorreu a violência é decisivo para enquadrar o crime na Lei Maria da Penha. São três definidos pela lei: doméstico, familiar ou em uma relação íntima de afeto. Tal delimitação considera o espaço privado da casa como o lugar em que a mulher encontra-se mais vulnerável, pois há uma maior exposição ao agressor e um menor controle público do que aconteça com o casal. A relação de convívio, intimidade e privacidade, no caso de violência no espaço doméstico, contribui para a perpetuação das atitudes violentas. A Lei Maria da Penha também estabelece as formas de violência contra a mulher, sendo elas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Tal distinção é muito importante, já que a maioria das mulheres desconhece, ou não nomeia como violência, insultos, xingamentos e destruição de bens pessoais.

O Registro de Evento de Defesa Social (REDS), chamado comumente de Boletim de Ocorrência (BO), a Representação Policial e o pedido de Medida Protetiva compõem, geralmente, a queixa que a mulher faz na Delegacia. Por receio de punir legalmente seu companheiro, não é raro encontrar mulheres que optem apenas pelo Boletim de Ocorrências. Ele nada mais é do que o registro da queixa feita pela vítima ou até mesmo pelo seu representante legal. O BO, como é chamado, possui um fim em si, já que para aquele que denuncia não há nenhum desdobramento que garanta sua proteção. O denunciado, por sua vez, nem mesmo fica sabendo do registro feito contra ele.

O Boletim de Ocorrências só produz efeitos quando aliado à Representação. No caso específico da violência doméstica contra a mulher, essa é uma inovação da Lei Maria da Penha. Representar é manifestar a vontade da vítima no sentido de permitir que a polícia faça as investigações necessárias, constituindo o Inquérito Policial e, posteriormente, o repasse ao Ministério Público da denúncia. São ações penais públicas incondicionadas à representação o homicídio e a lesão corporal grave. Já a ameaça e a violência sexual estão condicionadas à autorização por parte da mulher. Nos crimes condicionados à Representação, a lei determina que só será admitida a renúncia perante o Juiz, em Audiência Preliminar, especialmente designada para tal finalidade e com a participação do Ministério Público. No caso de Viçosa, por uma decisão do Juiz local, todas as denúncias, não só aquelas condicionadas à Representação, podem ser revogadas nesta Audiência.

A partir deste novo cenário político-institucional, este estudo apresenta e problematiza as incidências que determinam a forma como a denúncia da mulher, dentro da delegacia, é interpretada, construída e encaminhada, levando em consideração não só as normativas instituídas, como também a cultura, a linguagem, os aspectos de raça, classe e, sobretudo gênero, que orientam o saber policial e a disposição da mulher em narrar sua história. Compreendemos o encontro entre mulher e polícia como um dispositivo de produção de subjetividades, momento que masculinidades e feminilidades são remodeladas, refeitas, tensionadas, podendo enrijecer processos de assujeitamentos e alienação, ou provocando possibilidades de emancipação e autonomia.

 

2 Metodologia

Campo de Estudo

O município de Viçosa está localizado na região da Zona da Mata do Estado de Minas Gerais e possui população de, aproximadamente, 72.220 habitantes, segundo o censo demográfico 2010, sendo considerado de médio porte conforme classificação desse órgão (IBGE, 2010). Por ser uma cidade universitária, parte deste contingente é flutuante e composto por estudantes.

Os municípios com menos de cem mil habitantes, como é o caso de Viçosa, não são, na maioria das vezes, contemplados com uma série de programas e serviços governamentais especializados e, consequentemente, com garantia de contratação de recursos humanos adequados para atender a essa demanda. Diante dessa restrição, os casos ficam referenciados em delegacias comuns, muitas vezes tendo como contingente de recursos humanos policiais que nunca tiveram acesso às formações sobre o atendimento de mulheres em situação de violência.

Nesse sentido, um grande diferencial no cenário da pesquisa foi a existência do Projeto Casa das Mulheres e sua parceria com a Delegacia de Polícia da cidade e a Defensoria Pública. O Programa Rede Protetiva às Mulheres Vítimas de Violência, conhecido como Projeto Casa das Mulheres, é uma atividade de extensão do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa, vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero - NIEG. Entre seus objetivos, pretende articular a rede protetiva às mulheres vítimas de violência no próprio município e também estender tal rede às cidades que pertencem à Comarca de Viçosa. Além disso, o Projeto oferece acolhimento e encaminhamento dos casos visando não só à informação sobre os direitos garantidos para mulheres que sofrem violência, como também apoio para as políticas públicas parceiras no que tange capacitações e troca de informações. Além de funcionar em sede própria, o Programa possui uma sala para acolhimento dentro das dependências da Delegacia de Polícia Civil da cidade.  Com o advento do Programa Casa das Mulheres, um dos efeitos observados nas instituições de atendimento foi o aumento do número de registros de casos de violência contra a mulher, seguido da necessidade das instituições se organizarem e se especializarem para conseguirem responder a tal demanda.

Métodos de pesquisa

Sobre os procedimentos metodológicos, durante os seis meses de pesquisa várias mulheres foram acompanhadas no seguinte percurso dentro da instituição: sala de boletim de ocorrências, sala de atendimentos do Programa Casa das Mulheres, atendimento com o escrivão, eventuais conversas com o Delegado ou outros profissionais dentro da delegacia. Tal trajetória compreende o trânsito necessário para se constituir uma queixa de violência doméstica. Para desenhar este trânsito, utilizamos de métodos da microssociologia, campo de estudo da sociologia que possui como objeto de análise as interações humanas cotidianas (Corcuff, 2001) além de técnicas de trabalho que, juntas, proporcionaram a realização de uma etnografia.

Utilizamos amplamente da observação participante (Minayo, 2008), o que nos permitiu criar condições de estabelecer uma relação próxima com a instituição, possibilitando uma situação de pesquisa em que pesquisador e sujeitos estão continuamente em interlocução e sendo modificados. Tal proposta configura, portanto, em uma pesquisa eminentemente indutiva, onde não houve nenhuma categoria ou hipótese que não tenha sido construída em diálogo com o campo de pesquisa, estando, a todo momento, sendo revistas a medida que transcorreu o trabalho de campo.

Além da observação participante, o acompanhamento de indivíduos em redes, método advindo da microssociologia, colaborou para a reconstituição dos casos que ora utilizaremos para ilustrar a discussão proposta. Tal método investiga e acompanha as movimentações feitas pelos indivíduos e grupos na tentativa de mobilizar e influenciar apoios para realizarem seus objetivos e, nesse sentido, influenciar atitudes e ações de seus seguidores (Feldman-Bianco, 1987). O conceito de redes sociais, na perspectiva do acompanhamento de indivíduos em redes, surge como uma forma de compreender a sociedade através de uma imagem de interdependência, questionando seus possíveis efeitos para a construção da queixa de violência doméstica.

O diário de campo se tornou, durante a pesquisa, um importante aliado para registro e, posteriormente, interpretação dos dados. Como instrumento de registro diário, nele era documentada impressões, conversas informais, além de análises provisórias, as quais eram posteriormente confrontadas com o aporte teórico. Além disso, o uso de entrevistas semiestruturadas em profundidade colaborou na interpretação dos dados apresentados. O mesmo roteiro padronizado orientou todas as entrevistas, mas outros assuntos relacionados ao cotidiano da instituição surgiram durante a interação. As entrevistas com os policiais aconteceram dentro da instituição, nenhum se dispôs a conversar fora do ambiente de trabalho. Era o momento para questioná-los sobre o atendimento e a condução de alguns casos. Tais perguntas foram fundamentais para se acessar o conjunto de saberes que fundamentam as atividades policiais desse grupo.

Por outro lado, as entrevistas com as mulheres que registraram queixas na Delegacia foi a maior dificuldade encontrada no trabalho. Como elas passavam muito tempo dentro da instituição para fazer a denúncia, ao final já não tinham disposição para mais um questionário. Essa mesma realidade foi encontrada por Romagnoli (2015) ao efetuar uma pesquisa sobre violência contra as mulheres em Montes Claros – Minas Gerais. A pesquisadora não conseguiu com que as mulheres dessem as entrevistas pois, em muitos casos, de antemão, elas se sentiam afastadas da delegacia, achando que a intervenção judicial não era suficiente para a inibição dessa violência.

Dessa forma, respeitando o momento de cada uma, quando encerravam o processo de registro da queixa, tentava-se agendar um dia para a entrevista. Na análise qualitativa, foi dado ênfase à violência sofrida, ao atendimento que receberam na delegacia, aos sentimentos e impressões que surgiram durante o registro da queixa, sobre a organização da vida e das relações depois do registro policial. Em relação às entrevistas com os policiais, foi questionada a forma como o trabalho é desenvolvido no dia a dia, a concepção de violência doméstica, se o atendimento às mulheres em situação de violência se diferencia dos outros públicos atendidos e quais os desafios encontrados na execução do trabalho. Para uso desse material, foi solicitado a assinatura de termos de consentimento àqueles que se dispuseram a contribuir com a pesquisa.

Nesse contexto, pesquisamos três mulheres que sofreram violência doméstica e efetuaram registro policial  na delegacia. Os sujeitos, assim como suas queixas, são descritos em detalhes mais adiante. Duas delas eram mães e a outra, embora não estivesse ainda vivendo a maternidade, já tinha passado por dois abortos. Eram negras, moradoras dos bairros de periferia da cidade, beneficiárias de diferentes programas de apoio do governo e tinham idade entre 25 a 40 anos.

Os policiais que participaram voluntariamente da pesquisa eram funcionários públicos da Polícia Civil e ocupavam diferentes cargos que ia desde investigador, escrivão a delegado de Polícia. Chamou a atenção a facilidade com que a pesquisa foi aprovada pelo Delegado chefe, além da disposição dos policiais em contribuir com o trabalho. A parceria firmada entre Polícia e Programa Casa das Mulheres nos permite compreender minimamente a receptividade dos atores da instituição para com a pesquisadora já que, na perspectiva deles, a pesquisa já era uma das ações previstas pelo Programa.

Os casos selecionados e analisados neste artigo favorecem a compreensão da cultura institucional que, muitas vezes, determina e captura a atuação policial, fazendo com que pouca inventividade emerja do saber-fazer. Foram escolhidos para discussão aqueles que, durante a pesquisa, apresentaram mais elementos, e contradições, no momento da construção da queixa. E, ainda, foram as três situações nas quais foi possível acompanhar todo o percurso da mulher na delegacia no movimento de constituir sua denúncia.

Ressaltamos que os nomes encontrados no texto são fictícios, assim como foram resguardadas algumas características que possibilitariam o reconhecimento dos sujeitos que contribuíram com a pesquisa. Salientamos ainda que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Viçosa.

 

3 Resultados da pesquisa e discussão

Três casos nos permitem problematizar a construção da queixa de violência doméstica no âmbito da Delegacia de Polícia pesquisada, tendo como referência as ideias de Michel Foucault, filósofo que estuda as relações de poder em três eixos analíticos que se correlacionam: saber, poder e subjetivação e cujos conceitos usamos a seguir. O primeiro deles é a história de Catarina, uma jovem de vinte e dois anos, negra, desempregada, grávida e com uma situação financeira delicada. Morando na mesma rua da delegacia, sua vida e a de sua família já era bem conhecida pelos policiais, inclusive a suspeita de que poderia ter sido prostituta. Catarina possuía oito boletins de ocorrência contra o mesmo agressor. Entre as queixas, estava o descumprimento da Medida Protetiva estabelecida pelo juiz, que impedia a aproximação entre ela e o ex-companheiro, ameaça, agressões verbais, psicológicas, violências físicas e, por último, sexuais. A tentativa de registrar o último crime foi acompanhada durante os seis meses de duração de nossa pesquisa.

Catarina relatava que o ex-namorado invadia sua casa quando queria e a forçava a manter relações sexuais com ele. Em alguns episódios, chegava com uma arma que ficava em cima do guarda-roupa enquanto mantinham o ato. Ele a perseguia na rua e impedia que tivesse outros relacionamentos. Com uma relação de muita proximidade com a polícia, o agressor tinha acesso liberado às dependências da Delegacia e mantinha uma forte relação de amizade com os policiais. Nos corredores, ouvia-se que ele era um bom informante, já que morava em um dos bairros mais violentos do município. Por outro lado, Catarina e sua família tinham pavor de confrontá-lo, pois sabiam da série de crimes violentos já cometidos por ele.

O deboche, a ironia e o cinismo marcavam a forma de tratamento que ela recebia dos policiais. Ainda assim, a instituição policial era a única saída apontada por Catarina para resolver a situação. Ela, diante desse tratamento, reagia com risos, embaraços, alguma raiva e pouca consistência em seus discursos. Sua irmã (que já havia tentado matar o próprio companheiro, fato que suscitava muitas reações machistas no cotidiano da delegacia) e sua mãe tinham ataques de fúria com os policiais sempre que seus pedidos não eram atendidos. No entanto, o fato delas serem consideradas "barraqueiras" na cultura institucional garantia pouca possibilidade de escuta e proteção.

Catarina engravidou duas vezes do seu agressor. Nenhuma gestação foi levada adiante. O fato de ter ficado grávida sustentou, com ainda mais força, a tese policial de que não poderia haver violência em uma relação conjugal que não era interrompida por parte da mulher vítima. Nas conversas com Catarina nenhuma outra possibilidade de vida e proteção surgia que não fosse recorrer à polícia. Não conseguia se desapegar da mãe e nem mesmo projetar para si alternativas criativas que a fizesse se distanciar do ex-companheiro, como sair da cidade, trabalhar, estudar. Nesse cenário de dúvidas apareceu, tempos depois, em uma reportagem no jornal local,  uma notícia dizendo que o ex-companheiro de Catarina  havia sido preso depois de uma denúncia de tortura dela. Com ele encontraram uma arma, instrumentos de choque e algemas.

Já Maria chegou à Delegacia através de um flagrante. Os policiais foram até sua casa quando ela havia acabado de ser machucada, estava com alguns hematomas no rosto, inclusive, e com o laudo médico atestando as agressões. Segurava com força o documento para ser entregue ao policial que a ouviria.  Entretanto, havia na Delegacia um conhecimento prévio sobre Maria que a colocou num lugar de muito descrédito. Os policiais compartilhavam a ideia de que ela era usuária de crack há alguns anos. O marido, por sua vez, tinha uma reputação respeitada como vigia esporádico de festas de estudantes.

A cena que se viu no momento da chegada do casal na Delegacia colocava em dúvida os lugares de vítima e agressor: Maria, acuada em um canto, estava muito suja e arredia. Seu companheiro, muito à vontade, gesticulava e repetia, a exaustão, que Maria era usuária de drogas e que havia abandonado os filhos em função do vício. Ainda salientava que ela fazia uso junto com homens do bairro e sempre isolados em um matagal. Quando chamada a depor, Maria reagiu com agressividade à ironia do policial que a atendia. Questionando o fato de ter passado de "vítima a ré" gritava e colocava em xeque as perguntas e insinuações feitas pelo escrivão. Sem tocar na questão da violência, o policial insistia no uso de drogas, a questionava sobre o cuidado dos filhos e a reputação como esposa. Maria tirou da bolsa uma sacola de remédios, ação que tentava atestar seu adoecimento psíquico. Além disso, mostrou os braços cortados e disse que se ela usava drogas era porque esta era a única maneira de continuar vivendo.

Levantando e ignorando os pedidos de Maria para saber o que aconteceria com seu marido, o policial tentou sair da sala sem explicar as medidas que havia tomado. Impedindo-o com o próprio corpo, ela exigia a prisão do companheiro já que havia sido feito o flagrante. Não atendida, começou a gritar pelos corredores da Delegacia, chamando a atenção do delegado que logo exigiu que a confusão se desfizesse. Maria suplicava que alguém a acompanhasse até o delegado para ajudá-la. Desolada, abandonou a sua queixa e saiu gritando pela rua, enquanto o companheiro era consolado por policiais e outras pessoas que estavam no local no momento.

E, por fim, Leila, que, quando a conhecemos, já estava separada havia dois anos do ex-companheiro que era usuário crônico de crack. Era beneficiária do Programa Minha Casa Minha Vida e havia ganhado recentemente uma casa para morar com os três filhos em um dos condomínios da cidade. Já era conhecida pelos policiais e, quando se remetia ao agressor, o chamava, por todo o tempo, de "traste". Esse era, inclusive, o codinome que o mesmo recebia em seu celular (ela fez questão de mostrar para os policiais). Repetia que ele havia tentado matar a sua filha mais velha, ocasião em que houve registro do boletim de ocorrências, mas não havia tido prisão.

Muito coerente em seu discurso, repetia que era uma mãe zelosa com os filhos e que o fato de pedir sua proteção tinha mais a ver com eles que com ela própria. Dias antes Leila havia recebido algumas mensagens misteriosas do ex-marido. Nenhuma delas remetia diretamente a uma ameaça, mas o enredo contado por Leila para dar sentido às mensagens e a forma como ela encaixou o fato em seu histórico de violência rapidamente convenceu os policiais de sua situação de vulnerabilidade. Quando titubeavam, Leila os embaraçava insinuando a função da polícia e o quanto era importante para ela contar com esta proteção.

Embora sua classe social e raça fossem as mesmas de Catarina e Maria, a forma como Leila decodificava a gramática policial, utilizando termos adequados e que valorizavam seu relato, foi fundamental para que seu atendimento fosse bem sucedido. Era comum em seu discurso termos como "sou trabalhadora", "cuido dos meus filhos sozinha", "aquele traste", "estou separada e não quero voltar para ele", "estou aqui para fazer a minha parte". Tinha muita clareza de que sua queixa sustentava um pedido de Medida de Proteção para que o companheiro se mantivesse afastado duzentos metros. Das três mulheres, foi a única que teve seu pedido atendido.

Catarina, Maria e Leila prestaram suas queixas em uma Delegacia onde as  dependências se mostram ineficientes para o volume da demanda que recebe. Referência não só da cidade de Viçosa como também de algumas outras cidades do entorno, inclusive os próprios policiais se queixam repetidamente do acúmulo de trabalho, da falta de infraestrutura e de capacitações. Muitas das vezes o primeiro acolhimento, feito na recepção, expunha e categorizava as mulheres: se bem vestida e  com um cargo importante na cidade teria acesso ao delegado e a uma atenção diferenciada. Àquelas que afrontavam as normas de gênero, raça e classe já instituídas como prioritárias, ou seja, a grande maioria das mulheres que ali chegavam, era exigido um imenso esforço de paciência e perseverança para que  a burocracia e outros empecilhos do fluxo da delegacia não se tornassem fortes o suficientes para que elas desistissem de prestar a queixa. Elas eram, em sua maioria, negras, pobres, donas de casa ou empregadas domésticas, mantinham um histórico longo de violência (algumas já haviam dado queixa de mais de um companheiro) e titubeavam em suas reclamações, ora decidindo em responsabilizar o companheiro, ora defendendo-o diante dos policiais. Essa mesma realidade foi discutida por Silva (2010) ao associar a violência com a discriminação contra a mulher, apontando para um processo que não é somente de desqualificação da mulher, mas também um processo de exclusão social. O preconceito se dissemina na sociedade de massa por meio de estereótipos em que "[...] as categorias sociais subalternas no Brasil são essencialmente constituídas por mulheres, negros, pobres e crianças, nas quais, hierarquicamente, a mulher negra e pobre está em último lugar, e o homem branco rico e adulto está no topo [...] (Silva, 2010, p. 565).

Assim, não havia nenhum cuidado especial com os casos de violência contra a mulher. Todas as pessoas eram ouvidas na sala do boletim de ocorrências a partir de um mesmo padrão de acolhimento. Tal fato constrangia e tornava o atendimento, na maioria das vezes, muito impessoal e intimidador. As mulheres sempre apresentavam grande dificuldade para falar do histórico de violência sofrida. E os policiais, por sua vez, não proporcionavam condições ambientais e humanas para que fosse possível relatar uma experiência tão dolorosa. Algumas falas ilustram a forma como os policiais compreendem a violência de gênero, entendida neste texto como a execução do projeto de dominação-exploração sustentado pelo patriarcado onde a categoria social "homens" exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência (Saffioti, 2001). No cotidiano da delegacia, o conceito de violência contra a mulher não reconhece o patriarcado como lógica dominante:

Acaba voltando àquele ciclo de violência: registrou, foi à frente, desistiu, ocorre de novo, registra de novo, vai à frente, desiste. Que aí eu já não considero mais um caso de polícia, e sim um caso de assistência social. Seria um caso de assistência psicossocial até. De ter um estudo social do caso, ir lá e visitar aquela família e tal, um psicólogo acompanhar o casal mesmo que seja para chegar num ponto de falar "Olha, vocês dois não dão certo"! Embora o psicólogo não possa fazer isso, mas, pelo menos, pode abrir caminhos para que os dois enxerguem "gente, nossa relação não dá certo, é melhor ir cada um para seu canto". (Delegado).

Nas entrevistas foram comuns, por parte dos policiais, as falas que tiram do campo judicial a violência doméstica, conquista a tão pouco tempo alcançada, para psicologizar o fenômeno. A simplicidade com que os policiais ainda enxergam a violência doméstica não permite compreender os casos em que a mulher é agredida por várias vezes e, em muitas delas, pelo mesmo companheiro. Há um histórico de vida longo e bastante desafiador para que os operadores da segurança pública possam lê-lo a partir dos mesmos saberes cristalizados e institucionais que possuem para outros crimes. Incluir as teorias de gênero, categoria de análise que permite investigar a construção social do feminino e do masculino no saber-fazer policial, é o grande desafio que precisa ser inserido no cotidiano de atendimento de mulheres. No entanto, não é uma novidade, já que desde o início das Delegacias de Mulheres, na década de 1980, é um apelo constante dos movimentos feministas que se incorpore uma leitura feminista a este crime e ao fazer policial (Pasinato, 2012).

A dificuldade de elaborar a queixa, reconhecer-se agredida e com seus direitos violados é um efeito da própria violência de gênero. A sofisticação exigida para as mulheres na construção dos seus relatos se torna, no cotidiano da Delegacia, uma estratégia institucional que poupa a polícia de se debruçar e investir na construção de outro tipo de compreensão e outra forma de atendimento às violências de gênero. Tal posição pode provocar uma experiência de culpabilização na mulher, já que ela se torna, a partir desta visão, a única responsável para lutar e garantir sua proteção. Uma luta que se fez no coletivo, através do movimento feminista, de tornar o pessoal político, se torna uma experiência particular e solitária dentro da delegacia para as mulheres que precisam se esforçar para construir sua queixa negociando com o poder hegemônico.

A sexualidade e a maternidade são duas categorias principais e que definem o tratamento das três mulheres na instituição. Enquanto Leila satisfaz, a partir de seu discurso, o padrão de boa mãe e mulher contida, Catarina e Maria não alcançam, com os estigmas de "barraqueira" e "drogada", o status de vítima passível de receber o apoio e a proteção policial. Se de antemão não há condições institucionais que garantam o mesmo acolhimento a todas as mulheres, elas precisariam, assim como fez Leila, identificar o jogo de poder que ali se estabelece, se dispor a negociar com ele e utilizar da astúcia para ter seu pedido atendido.

Em um visível prejuízo, às mulheres sempre é exigido um exercício de confronto individual e também político. No entanto, mesmo diante do descrédito, Foucault (2003) nos lembra que "[...] não há relações de poder que sejam completamente triunfantes e cuja dominação seja incontornável" (p. 232). De acordo com Magalhães (2013), Foucault não defende a ideia de que o poder é um sistema de dominação que controla tudo e não deixa nenhum lugar para a liberdade, mas sim que não há sociedade sem relações de poder e com relação de força é possível assujeitamentos, mas também resistências. Assim, a submissão não é uma fatalidade incontornável, pois como tarefa política, inerente a toda existência social, temos o dever de contestá-la enquanto impedimento à liberdade, à possibilidade de sustentação de uma existência que afirma outras formas de subjetividade, novas experiências de si. Para Foucault (2004) a liberdade está associada à experiência de si, à possibilidade de ser ético. A liberdade traz, dessa maneira, a marca da relação consigo e é essencialmente política, uma vez que pressupõe um desvencilhamento dos jogos de saber e poder. Para o referido autor, o cuidado de si implica também no cuidado com os outros, no sentido da não dominação, uma vez a relação com os outros é uma maneira de exercitar nosso eu político. Ou seja, para cuidar bem de si é necessário se relacionar com os outros.

Essa parcela de liberdade, prevista nos objetivos das relações de poder, é dada a todos: policiais e mulheres. No entanto, como já foi dito, critérios de raça, gênero e classe exigem mais ou menos esforços das mulheres que se queixam de serem agredidas. A cada uma cabe driblar as expressões de regulação que encontram e que as impedem de apresentar o que possuem de singular, o que foge a qualquer tentativa de controle e de coerção. Fica clara, portanto, a exigência de um processo de individuação para que a mulher assuma junto o jogo político de construção da sua queixa. Se falamos de relações de poder e não de violência, a margem de manobra das mulheres na Delegacia, embora restrita e com determinadas codificações, é possível de existir, mesmo que haja, continuadamente, jogos de dominação.

Tomamos o conceito de "resistência" para problematizarmos o que os casos anunciam como criações possíveis diante da verdade jurídica que facilmente se instaura em um cotidiano como esse. Resistência, nas palavras de Garcia (2013), pode ser entendida como uma experiência de subjetivação que se conforma em um combate particular, não há a tentativa de tentar uma derrota, mas uma batalha processual onde o inimigo é desarmado com suas próprias armas, desorganizando uma guerra que ele havia imposto. Nesse contexto, a "resistência" é tecida junto com os processos de dominação, ela existe com e a partir das relações de poder e não pode ser lida desagregada das conjunturas que a produziram. Nesse sentido, seria preciso que as mulheres conseguissem enxergar ali um jogo de poder, motivado por verdades institucionais que, necessariamente, não estão a favor delas. Precisariam, então, diferenciar uma relação de poder de uma relação de violência. Se uma relação de poder não age diretamente sobre os outros mas sobre sua própria ação, articulando com o outro, seu interlocutor necessário, para que se abra um campo de efeitos, a relação de violência age sobre um corpo exigindo passividade, tentando envergar qualquer "resistência" (Magalhães,  2013). Nesse sentido, a violência força, submete, quebra, destrói e fecha todas as possibilidades, não tem, portanto, junto a si, outro polo senão aquele da passividade. E, se encontra resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis. É preciso que o outro (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.

Assim como fez Catarina e Maria, a maioria das mulheres tomam o encontro com a polícia como mais uma relação de violência. Muitas se omitem para evitar um necessário e importante mal estar. Quando elas evitam assumir a experiência da denúncia como uma ação política da qual podem participar, e optam em concebê-la como uma violência da qual precisam, novamente, defender-se, as mulheres deixam de construir junto o atendimento, disposição fundamental em uma realidade social heteronormativa e de culto à masculinidade hegemônica, como a Delegacia. A relação violenta vivenciada com o companheiro faz eco com aquela compartilhada com o policial homem, de quem esperam proteção. Estão novamente desamparadas e a espera de um outro que vai realizar por elas a tentativa da experiência de emancipação.

Nesse sentido, será a performatividade de gênero que determinará o lugar do discurso da mulher dentro da delegacia. Butler (2003) compreende que as categorias de identidade são efeitos de discursos difusos e problematizou a forma como é dada sincronização do sexo biológico, gênero e desejo. Para Butler (2003) gênero é " a estilização repetida do corpo, conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser" (p. 59). Rompida com qualquer discussão essencialista, a autora pondera que ser homem ou ser mulher responde, em nossa cultura, a um conjunto de normas instituídas. A cristalização do gênero é uma prática insistente cuja regulamentação e controle são constantemente exercidos por vários meios sociais. Sendo assim, a performatividade não é um ato singular, ela é sempre uma reiteração de normas ocultando, em seu status de presente, as convenções das quais ela é uma repetição (Butler, 2001).

As "performances" de gênero emergem dentro de sistemas regulatórios. Segundo Sinhoreto (2005), a perspectiva de Judith Butler considera a "performance"como uma espécie de identidade corporal que não prima pela originalidade, já que imita um modelo considerado ideal. O corpo vai desempenhar um feminino ao se referenciar a um mito de feminilidade, sendo este último a própria expressão da norma e dos discursos de saber-poder. Assim, as "performances"dizem, ao mesmo tempo, da produção de ações, de verdades, em contextos de relações de poder que, por sua vez, produzem formas de subjetivação. Gênero, portanto, não é uma identidade fixa, mas uma conexão em aberto que se faz-refaz dentro de conjunturas específicas.

As "performances" produzidas por processos de subjetivação são completamente mutáveis. Só podemos situar a ideia de "performance" levando em consideração uma subjetividade composta por agenciamentos que se enlaçam e produzem efeitos de interioridade psicológica. Regimes de signos sempre presos a outros agenciamentos ou a organizações de poder, sujeitos que se metamorfoseiam à medida que expandem suas conexões com as quais estão associados (Silva, 2001).

Embora atingidos pelos efeitos da Lei Maria da Penha, as pessoas que compõem os casos estudados perpetuam a repetição de performances que de várias maneiras sustentam o poder hegemônico masculino: por parte dos policiais, a defesa da imagem da mulher que tem a sua sexualidade preservada e sua segurança não está ligada a ela enquanto sujeito, mas a um projeto de maternidade e família. E as mulheres ainda bailam por códigos de gênero que não as favorecem: o enrijecimento nas relações violentas e a dificuldade para assumir movimentos de desestabilização que as façam mudar de máscaras, ir delineando o corpo de maneiras diferentes, de forma a compor um plano de consistência para seus afetos (Rolnik, 2011).

Uma subjetividade rizomática (Deleuze & Gattari, 1995) se configura como o oposto do enrijecimento, pois ela sempre vai estar disponível para a multiplicidade dos encontros e dos agenciamentos, sobretudo com outros territórios existenciais, com outros processos de subjetivação e também com relações de poder a partir de linhas de fuga e de intensidades, as quais formam variadas territorialidades. O agenciamento, a partir da teoria de Deleuze e Guattari, coloca em um campo de relações e desestabilidade o que, a priori, não mantinha relação alguma, causando a possibilidade de novas configurações de identidade. Para se formar contínuos e novos territórios, ou seja, para a construção de outros laços existenciais que possuam em si a invenção de novas formas de ser mulher, esposa e mãe - não fidelizadas aos padrões e aos engessamentos contidos nos modelos padronizados - é preciso que as linhas flexíveis ou de fuga (Deleuze & Guattari, 1995) estejam mais à disposição do que as linhas duras ou molares. As linhas de fuga promovem agenciamentos a favor da vida e dos encontros, as linhas duras impedem a circulação, promovem a repetição de padrões e, portanto, sofrimentos. A rigidez em nome do projeto de amor com aquele homem, e de uma determinada maneira, dificulta que as mulheres invistam em estilos de feminilidades e masculinidades que as protejam do patriarcado e da violência.

Enquanto as linhas duras organizam a vida dentro de um tempo marcado e que detém a divisão binária dos sexos, as linhas flexíveis produzem condições para o estabelecimento de zonas de indeterminação e agenciamentos (Romagnoli, 2012). A subjetividade é constituída neste campo de forças que pode se fixar em processos nômades, com a potência de desnaturalizar práticas discursivas de controle e de poder, ou em processos rígidos que compõem, junto com as normas de regulação, reiteradas formas de manter, sob aprisionamento, as formas de existir no mundo.

Arriscar-se em um papel ativo no seu próprio encarceramento é colocar minimamente em xeque, para as mulheres que procuram a Delegacia, o status natural da heteronormatividade e das ideias universais que defendem uma essência feminina e outra masculina. Dos três casos, talvez Leila seja a que possui linhas flexíveis mais potentes que, quando enlaçadas com os discursos rígidos do poder policial, provocam efeitos de liberdade. Tal condição, é preciso esclarecer, acontece sem nenhuma vantagem a priori, já que, em termos de classe e de raça, possuía os mesmos prejuízos que Catarina, também negra e pobre. Isso nos mostra que, apesar da inflexibilidade com que a Delegacia e os policiais lidam com a produção de saber sobre a violência doméstica, a mulher, enquanto sujeito, não é apenas uma superfície inerte sobre a qual as regras sociais incidem. Contudo, se existe um esforço que pode fazer valer sua queixa, por outro lado, é incompreensível constatar que a polícia não precisa e ainda não saiu do seu lugar de conforto quando se trata da compreensão dos casos de violência contra a mulher.

 

4 Considerações Finais

Novas normativas no cenário brasileiro favorecem a existência de condições de liberdade e autonomia para as mulheres, sobretudo àquelas que sofrem violência de gênero, como é o recorte desta pesquisa. No entanto, o que vemos no encontro entre polícia e mulher são repetições de lógicas, por parte dos policiais e também das próprias mulheres, que desqualificam a queixa de violência. Às mulheres fica a necessidade de se construir "resistências" e "performances" que negociem e burlem o poder policial, contornando a rigidez da polícia ao mesmo tempo que faz valer sua palavra, sua proteção e o registro da sua queixa.

Os projetos de amor, casamento e feminilidade sustentam um legado feminino que não garante autonomia e poder de decisão, distanciando as mulheres das possibilidades de constituírem processos emancipatórios e inventivos. O fato de "ser mulher", no âmbito da delegacia, apresenta-se como um processo sustentado por normas sociais instituídas sob a lógica da dominação e da submissão, sobretudo em uma situação interiorana e em uma delegacia não especializada, realidade encontrada nas cidades mineiras com menos de cem mil habitantes, característica da região onde foi realizado este estudo.

Nesse contexto, percebemos que quando as mulheres arriscam assumir a forma prevista na Lei Maria da Penha, ou seja, a de alguém decidida e dona de si, elas precisam, a partir da astúcia, criar meios de "resistência" que driblem e negociem com o poder e com o despreparo policial. O poder hegemônico que impera na instituição não compreende as vacilações de mulheres embaraçadas entre a possibilidade de liberdade e o legado de lealdade ao masculino, até então determinante e definidor.

Apesar da Lei Maria da Penha proporcionar condições de emergência de novas formas de "ser mulher", lidar com a violência e com a própria queixa, para as mulheres, em sua maioria, é transitar pelos mesmos marcadores de gênero que há tanto as controlam. Quando se arriscam a assumir a "performance" do feminino que está prevista na lei, precisam lançar mão de uma atenta e firme posição de decisão para conseguirem negociar e burlar o poder policial. Constituem, na maioria das vezes, "resistências"que não conseguem confrontar o poder, nem tampouco negociar seus interesses levando em consideração a lógica masculinista e o esforço de onipotência e controle que marcam a atuação da segurança pública brasileira. Os policiais, por outro lado, também não demonstram o desafio de construírem outros arranjos subjetivos e saberes da prática que questionem o já consolidado aprendizado advindo da Academia de Polícia e do lugar social que ocupam. Quando precisariam construir referenciais diferenciados, utilizam a mesma gramática de compreensão dos outros crimes do código penal para ouvir e, na maioria das vezes, culpabilizar a mulher.

Categorias de compreensão são repetidamente utilizadas para a constituição de atendimentos e saberes compartilhados pelo grupo de policiais pesquisado. Tais distinções repetem e privilegiam determinados grupos sociais em detrimento daqueles que comumente são discriminados e marginalizados. Nesse sentido, sobretudo na discussão dos três casos descritos e problematizados neste texto, a perspectiva da análise interseccional, ou seja, evitar a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de gênero, classe, raça, etnia, idade, entre outras, para compreender, a partir da interação destas categorias, a reprodução da desigualdade social (Bilge, 2009), nos possibilitou uma leitura abrangente dos acolhimentos e o desenho dos marcadores que constituem um padrão institucional: a atenção do policial para com o caso não está, necessariamente, determinada pela gravidade da situação ou pela reincidência da violência, mas por avaliações que dizem respeito a status social, vinculação de classe, raça e etnia. Os casos, portanto, sinalizam a insuficiência da lei para garantir o atendimento adequado e humanizado a todas as mulheres em situação de violência. Existe uma clara hierarquização entre mulheres onde algumas, pelas questões listadas acima, tem mais garantia das suas vidas serem protegidas. Merecem uma atenção policial mais qualificada, portanto, aquelas que menos afrontam as normas de gênero já instituídas pelo poder policial.

 

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Endereço para correspondência
Ana Pereira dos Santos
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas
Avenida Itaú, 525, Dom Cabral, CEP 30535-012, Belo Horizonte - MG, Brasil
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Roberta Carvalho Romagnoli
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas
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Endereço eletrônico: robertaroma@uol.com.br

Recebido em: 10/03/2015
Reformulado em: 08/11/2016
Aceito em: 18/11/2016

 

 

Notas

* Psicóloga, mestre em Educação pela Universidade Federal de Viçosa e doutoranda em Psicologia pela PUC Minas.
** Doutora em Psicologia pela PUC São Paulo, professora do Programa de pós-graduação em Psicologia da PUC Minas e bolsista produtividade PQ2 do CNPq.

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