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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.19 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2019

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Narrativas e metodologias participativas: Democracia como condição de possibilidade

 

Narratives and participatory methodologies: Democracy as a condition of possibility

 

Narrativas y metodologías participativas: Democracia como condición de posibilidad

 

Frederico Alves Costa*

Universidade Federal de Alagoas - UFAL, Maceió, Alagoas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A discussão sobre estratégias qualitativas de pesquisa encontra-se presente na psicologia social desde a primeira metade do século XX. Entretanto, sob a hegemonia de pressupostos positivistas nesse campo de conhecimento, apenas com a emergência da "crise" da psicologia social, nos anos 1960, que essas estratégias conseguiram alcançar maior legitimação e visibilidade, inclusive na América Latina. Nosso objetivo nesse texto é refletirmos, a partir de uma perspectiva crítica de ciência e da Teoria Democrática Radical e Plural, sobre ser a democracia, como uma forma de sociedade, uma condição de possibilidade para a produção de narrativas e de metodologias participativas. Reflexão feita em torno de dois eixos que se complementam: eixo epistemológico, concebendo o conhecimento como uma prática social; eixo político, abordando o lugar do pesquisador, na relação com os pesquisados, no enfrentamento a relações de dominação.

Palavras-chave: metodologia qualitativa, narrativas, pesquisa ação-participante, epistemologia, política.


ABSTRACT

The discussion on qualitative research strategies hás been presented in social psychology since the first half of the 20th century. However, under the hegemony of positivistas sumptions in this Field of knowledge, only with the emergence of the "crisis" of social psychology in the 1960s the estrategies achieved greater legitimacy and visibility, inclusive in Latin America. Our objective in this textis, from a critical perspective of science and the Radical and Plural Democratic Theory, to reflect on democracy, as a form of society, as a condition of possibility for the production of narratives and participatory methodologies. This reflection is organized around two complementary axes: epistemological axis, conceiving knowledge as a social practice; and political axis, addressing the place of there searcher, in the relation with there searche dones, in the confrontation with relations of domination.

Keywords: qualitative methodology, narratives, action-participant research, epistemology, politics.


RESUMEN

La discusión sobre estratégias cualitativas de investigación se encuentra presente em la psicología social desde la primera mitad del siglo XX. Sin embargo, bajo la hegemonía de supuestos positivistas en este campo de conocimiento, solo com la emergencia de la "crisis" de la psicología social, en los años 1960, que estas estrategias lograron alcanzar mayor legitimación y visibilidad, incluso en América Latina. Nuestro objetivo en este texto es reflexionar, desde una perspectiva crítica de ciencia y de La Teoría Democrática Radical y Plural, sobre ser la democracia, como una forma de sociedad, una condición de posibilidad para la producción de narrativas y de metodologías participativas. Reflexión orientada en torno a dos ejes que se complementan: eje epistemológico, concebiendo el conocimiento como una práctica social; eje político, abordando el lugar del investigador, en la relación con los encuestados, en el enfrentamiento a relaciones de dominación.

Palabras-clave: metodologia cualitativa, narrativas, investigación acción-participante, epistemología, política.


 

 

Estratégias metodológicas qualitativas são utilizadas na psicologia social desde a primeira metade do século XX. É importante, nesse sentido, a referência a pesquisas desenvolvidas na Escola de Chicago, podendo-se ressaltar a obra de Thomas e Znaniechi, "The polish peasant in Europe and America", realizada entre 1918 e 1920 (Fernandes, 2010).

Entretanto, foi a abordagem quantitativa – e não as estratégias qualitativas -, sob fundamentos positivistas, que se tornou hegemônica na psicologia social durante a primeira metade do século XX. Diversos pesquisadores, sobretudo da psicologia social psicológica, aceitaram, assim, a tese da unidade da ciência, considerando a experimentação como método científico privilegiado (Álvaro & Garrido, 2006). Condição que acarretou, por exemplo, a marginalização da proposta de Volker psychologie de Wilhelm Wundtna historiografia da psicologia e da psicologia social, sendo evidenciada apenas a psicologia experimental elaborada pelo autor.

A partir da Segunda Guerra Mundial, as abordagens qualitativas começaram a conquistar maior espaço na psicologia social. Neste contexto, estratégias narrativas (história de vida, história oral) e participativas (pesquisa-ação-participante) passaram a ser introduzidas na América Latina (Brandão, 1984; Lacerda Júnior & Guzzo, 2012). A intensificação do uso destas estratégias na psicologia social, entretanto, ocorreu somente com a emergência da "crise" deste campo de conhecimento no final dos anos 1960, decorrente: a) de críticas produzidas por movimentos sociais, na filosofia da ciência e nas ciências sociais e humanas à hegemonia dos pressupostos positivistas na ciência; b) da afirmação das metodologias qualitativas como estratégias legítimas para a produção de conhecimento (Brandão, 1984; Gergen, 2008; Iniguez-Rueda, 1999; Kuhn,1998; Montero, 2004).

Segundo Iñiguez-Rueda,

A opção por uma metodologia qualitativa não é arbitrária ou fruto de uma preferência casual. As ciências humanas e sociais encontram-se sempre implicadas em processos de compreensão e intervenção de realidades que afetam as pessoas, por isso estão obrigadas a conhecer exaustivamente o contexto em que atuam. Ademais, o fato de estarem orientadas para a intervenção, formando parte da realidade social sobre a qual operam, faz impossível situarem-se em posição de exterioridade. Deste modo, analistas, investigadores e investigadoras, agentes de todo tipo de intervenção, pessoas, grupos, comunidades ou instituições estão incluídas conjuntamente na realidade que estudam, de modo que apenas de "dentro", junto a quem vive na pele a situação, podem captar os significados profundos que estruturam a realidade analisada ou sob intervenção. (Iñiguez-Rueda, 1999, pp. 496, tradução nossa).

Nesse sentido, é interessante demarcar a compreensão de Machado (2017) de que os pressupostos de neutralidade, objetividade, experimentação e generalização, característicos de uma perspectiva positivista de ciência, não se coadunam à análise das práticas psicossociais, na medida em que estas são contingentes, históricas, complexas, opacas e multisignificativas. O que denota a relevância da afirmação e do debate sobre modos plurais de produção do conhecimento, concebendo-os em relação aos fenômenos investigados.

As narrativas e metodologias participativas, foco deste texto, são entendidas como estratégias metodológicas que visam compreender práticas psicossociais que ocorrem na vida cotidiana (Machado, 2017), ou melhor, que constituem as relações sociais, na medida em que indivíduo e sociedade são concebidos não como polos independentes e dicotômicos, mas como objetividades sociais e históricas que se co-constituem. O que implica que não há possibilidade de o pesquisador ser neutro, e nem de o pesquisado ser imparcial. Como sujeitos históricos que constroem conhecimentos sobre o mundo nas relações sociais (junto com outros sujeitos), diferentemente de identificarem "fatos objetivos", interpretam a realidade a partir de determinadas lentes epistemológicas, ontológicas, éticas e políticas disponíveis em um determinado contexto histórico.

Além disso, como estamos falando de estratégias metodológicas construídas no cotidiano e não em ambientes controlados de laboratório, compreende-se que o conhecimento não é fruto da corroboração ou falseamento de hipóteses que buscam antecipar os resultados. Estes resultados são produzidos na relação entre teoria e prática, a partir de caminhos desconhecidos - tendo os participantes, e não apenas o pesquisador, voz e ação no processo de pesquisa –, na busca do enfrentamento a relações de dominação e de construção de "outros mundos possíveis".

A história de vida e a história oral são estratégias metodológicas que visam conhecer como os participantes da pesquisa vivenciam e compreendem os acontecimentos de seu tempo, tendo como pressuposto que se:

Fontes orais são condição necessária (não suficientes) para a história das classes não hegemônicas, elas são menos necessárias (embora de nenhum modo inúteis) para a história das classes dominantes, que têm tido controle sobre a escrita e deixaram atrás de si um registro escrito muito abundante (Portelli, 1997, pp. 37).

Através dessas estratégias metodológicas, busca-se pensar a história de um grupo social não a partir de uma historiografia oficial que privilegia a dinâmica dos vencedores e objetiva revelar "a" história. Mas sim como uma interpretação histórica construída no presente, fundamentada nas particularidades, motivações, crenças e memórias dos participantes:

a pessoa não conta sua vida, reflete sobre ela enquanto a narra, buscando um fio condutor que lhe dê sentido, a partir do presente e projetando o futuro. Portanto, o investigador nunca encontrará a verdade e, sim, a versão situada dos participantes nos episódios narrativos (Minayo, 2006, pp.163).

Constroem-se, assim, narrativas que nos informam sobre um grupo através da articulação entre as particularidades dos participantes e as condições históricas de suas vidas. Os resultados produzidos a partir destas metodologias são, desse modo, contextualizados no espaço e no tempo e potencializadores de reflexões críticas pelos participantes e pelo pesquisador sobre as relações sociais narradas. Segundo Portelli,

Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez... A construção da narrativa revela um grande empenho na relação do relator com a sua história (Portelli, 1997, pp. 31).

Distintamente de uma lógica científica que ampara sua validade na revelação dos "fatos" e na produção de leis gerais sobre os fenômenos pesquisados,

Fontes orais são aceitáveis, mas com uma credibilidade diferente. A importância do testemunho oral pode se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferência em seu afastamento dele, como imaginação, simbolismo e desejo de emergir. Por isso, não há ‘falsas' fontes orais. Uma vez que tenhamos checado sua credibilidade factual (...) a diversidade da história oral consiste no fato de que afirmativas ‘erradas' são ainda psicologicamente ‘corretas', e que esta verdade pode ser igualmente tão importante quanto registros factuais confiáveis (Portelli, 1997, pp. 32).

Neste sentido, ao trabalharmos com narrativas, considerando-as como interpretações de determinados fenômenos, faz-se fundamental entendê-las não como "a" verdade factual, mas como construções discursivas sobre a realidade. A reflexão sobre essa construção, orientada pela visibilidade de vozes negligenciadas pela história oficial, e, assim, pelo reconhecimento de "outras" histórias, permite-nos problematizar politicamente fundamentos legitimadores de relações de dominação, seja na história oficial, seja nessas "outras" histórias.

Com isso, não se trata de defendermos que "tudo vale", pois toda discursividade se constitui no interior de limitações normativas específicas, contingentes a determinados contextos históricos. O que queremos enfatizar é que a "idolatria do factual" presente na tradição positivista é "cega" a outras possibilidades de compreensão do mundo, construindo discursivamente a ordem existente como natural. Assim, o reconhecimento da pluralidade de vozes na história oral possibilita a crítica aos usos políticos das produções discursivas sobre o passado, fomentando modos de organização social mais igualitários.

Também crítica aos postulados positivistas de ciência, a pesquisa-ação-participante concebe a investigação científica como uma ferramenta participativa e política que busca responder às necessidades coletivas concretas de um grupo. Parte, assim como as narrativas, da interpretação dos participantes sobre a realidade, a qual muitas vezes é menosprezada pelos padrões dominantes de saber (Brandão, 1984). A máscara da neutralidade e o disfarce da objetividade da ciência, como nos diz Brandão (1984), ficam explicitados na medida em que

A ciência não pôde escapar entre os artifícios da epistemologia. (...). O conceito de verdade deixa de ser uma qualidade fixa, sendo condicionado por uma função de poder que formaliza e justifica o que é aceitável. E essa aceitação é condicionada a visões concretas da sociedade política e seu desenvolvimento. Por essa razão, ser um cientista hoje significa estar compromissado com alguma coisa que afeta o presente e o futuro da humanidade. Portanto, a substância da ciência é tanto qualitativa quanto cultural; não é apenas uma mera quantificação estatística, mas a compreensão de realidades. O verdadeiro e ativo cientista de hoje coloca-se questões como: ‘Qual é o tipo de conhecimento que queremos e precisamos?'; ‘A que se destina o conhecimento científico e quem dele se beneficiará?'. (Brandão, 1984, pp. 47).

Juntamente com o questionamento dos pressupostos da objetividade e da neutralidade, a dimensão metodológica da pesquisa-ação-participante implica o afastamento de métodos tradicionais fundamentados numa "epistemologia da distância" (Montero, 2004), que se caracterizam pela separação entre sujeito e objeto. Diante do reconhecimento não apenas do pesquisador, mas também dos participantes como sujeitos cognoscentes, concebe-se na pesquisa-ação-participante que o conhecimento se produz em uma relação sujeito-sujeito-objeto (Montero, 2004), numa articulação entre conhecimento científico e conhecimento popular, sendo as relações sociais, e não os indivíduos, os objetos da pesquisa.

Busca-se construir, sob estes pressupostos, procedimentos dialógicos e dinâmicos que incorporam os participantes numa ação crítica e reflexiva de caráter coletivo sobre o problema, situado historicamente, que se investiga e sobre o qual se busca intervir na promoção de transformações sociais (Brandão, 1984; Montero, 2004).

Abordaremos as narrativas e metodologias participativas neste texto, no interior de uma perspectiva crítica de ciência, tendo como foco não a discussão sobre o "como fazer" (produções acadêmicas, como as já citadas, permitem ao leitor acessar este debate), mas a reflexão sobre ser a democracia, como uma forma de sociedade, uma condição de possibilidade para a produção dessas estratégias.

Para tanto, salientaremos dois aspectos que se complementam e que consideramos centrais às estratégias metodológicas narrativas e participativas: (a) em termos epistemológicos, que a produção do conhecimento é uma prática social. O que significa dizer que o conhecimento não é um reflexo da realidade, mas construtor da realidade. Nessa medida, não há motivos para buscarmos uma verdade última, e sim para entendermos como as configurações sociais são constituídas discursivamente; (b) em termos políticos, que a relação do pesquisador com os sujeitos pesquisados não se trata de uma relação de pedagogia ou de imposição, de modo que o lugar do intelectual nesta relação seja o de contribuir para a visibilidade e para a articulação de demandas sociais produzidas por atores sociais historicamente excluídos da esfera política, no intuito de se construir um projeto político orientado para o enfrentamento a relações de dominação.

De maneira a sustentarmos a tese de que a democracia é uma condição de possibilidade para a produção de narrativas e metodologias participativas, antes de discutir esses dois aspectos, delimitaremos o debate no interior da teoria democrática, uma vez que dizer de onde partimos é fundamental para que se compreenda a argumentação proposta.

 

Teoria Democrática Radical e Plural: projeto de expansão da democracia

O debate proposto neste artigo localiza-se sob as lentes da Teoria Democrática Radical e Plural, proposta por Ernesto Laclau e por Chantal Mouffe a partir de meados dos anos 1980 e desenvolvida até a atualidade. Sob esta perspectiva teórica, a democracia moderna é compreendida não simplesmente como um regime político, mas como uma forma de sociedade construída no século XVIII na ruptura com a concepção de poder que norteava o Antigo Regime: o poder incorporado na pessoa do príncipe (Lefort, 1991). O traço revolucionário da democracia é que, nesta, o lugar do poder torna-se um lugar vazio e, consequentemente, na ausência de um fundamento último que ordene a vida social, a constituição da ordem social é dependente da construção de articulações políticas contingentes entre demandas presentes em um contexto histórico específico, sendo o pluralismo de formas de vida constitutivo da democracia moderna.

A democracia é, desse modo, uma forma de sociedade histórica por excelência, que acolhe e preserva a indeterminação, sendo um bom funcionamento democrático aquele caracterizado por um conflito vibrante entre posições políticas democráticas (Mouffe, 2009). Ou seja, posições que se identificam com o ethos democrático (fundado nos princípios vazios da igualdade e da liberdade), que serve de orientação da conduta dos sujeitos no interior de uma comunidade passível de diferentes formas de vida, mas que são conflitantes entre si em razão dos modos que significam e articulam os princípios de igualdade e de liberdade.

Cinco conceitos são importantes para a compreensão desta dinâmica de constituição conflitiva da ordem social: político, política, antagonismo, agonismo e hegemonia. De acordo com Mouffe (2015), enquanto "o" político remete-se ao nível ontológico, à forma em que a ordem social é estabelecida; "a" política refere-se ao nível ôntico, ou seja, às diferentes práticas da política convencional.

"O" político, segundo a autora – influenciada pelo pensamento de Carl Schmitt – caracteriza-se pela dimensão do antagonismo, pela delimitação de uma fronteira entre "amigo" e "inimigo". Dimensão concebida por Mouffe (2015) como constitutiva das sociedades humanas, uma vez que, na ausência de um fundamento último, a formação do "nós" somente é possível através de uma relação de negatividade com outras possibilidades de formas de vida presentes num contexto histórico específico. Isto é, toda identidade é relacional, de modo que a afirmação de uma diferença é pré-condição para sua constituição.

"A" política é entendida como o conjunto de práticas e instituições que organizam a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo político (Mouffe, 2015), sendo toda ordem social uma representação parcial da comunidade política – fundada na negação do "eles" – que se hegemonizou, isto é, que se sedimentou como universal sob a invisibilidade de seu caráter contingente e parcial. Desse modo, toda ordem social é precária, pois existe sempre a possibilidade de ser deslocada a partir da reativação de alternativas que foram reprimidas, visibilizando a contingencialidade e a parcialidade da ordem hegemônica, ou seja, a dimensão do político.

Assim, tal concepção da dinâmica social é crítica a concepções liberais que se fundamentam na possibilidade de construção de um consenso universal baseado na razão, ou seja, num consenso sem exclusão, pois isso somente se faria possível no abandono do antagonismo como constitutivo das sociedades humanas. Contrária à compreensão liberal que o antagonismo seria antitético a um projeto democrático, a teoria democrática radical e plural concebe a dimensão do político como o ponto de partida para se pensar a construção de uma política democrática. Nas palavras de Mouffe:

Apesar daquilo que muitos liberais nos querem fazer acreditar, a especificidade da política democrática não é a superação da oposição nós/eles, mas a forma diferente pela qual ela se estabelece. O que a democracia exige é que formulemos a distinção nós/eles de um modo que seja compatível com a aceitação do pluralismo, que é constitutivo da democracia moderna (Mouffe, 2015, pp. 13).

Diante disso, faz-se importante considerar um princípio normativo para a política democrática expresso por Mouffe (2015): a transformação de antagonismos em agonismos. Segundo a autora, ainda que nunca possamos erradicar o surgimento de antagonismos (amigo x inimigo) – presente em situações em que o "eles" ameaça a existência do "nós" –, é crucial para a democracia o estabelecimento de uma comunidade política que preserve o pluralismo dos modos de vida, ao invés de se constituir na eliminação do inimigo.

Para tanto, segundo Mouffe (2015), faz-se necessário a construção de uma relação entre "nós" e "eles" que ela denomina de agonismo, que se caracteriza pelas partes conflitantes reconhecerem: (a) que não existe nenhuma solução racional para o conflito; (b) a legitimidade de seus oponentes, tomando-os como "adversários" e não como "inimigos". Essa compreensão do oponente como adversário implica a existência de algum vínculo comum entre "nós" e "eles": "a consideração de que partilham um mesmo espaço simbólico dentro do qual tem lugar o conflito" (Mouffe, 2015, p. 19), constituindo canais políticos legítimos, onde o conflito entre projetos hegemônicos de sociedade opostos possa ser visibilizado, sendo o antagonismo "sublimado" em agonismo a partir da regulação de um conjunto de procedimentos democráticos aceitos pelos adversários.

Assim, a derrota de adversários nessa disputa entre representações conflituosas de mundo seria reconhecida por estes não em razão de terem abandonado suas posições, pelo alcance de um consenso universal baseada na razão, mas por ter ocorrido sob procedimentos aceitos por todos. Ademais, essa derrota não é imutável, já que se reconhece que as articulações políticas que constituem a configuração específica de uma sociedade em um determinado momento são contingentes e precárias, sendo passíveis de serem desarticuladas e transformadas através da luta agonística.

O confronto agonístico é, segundo Mouffe (2015), a condição para a existência da democracia moderna, visto que sua especificidade "repousa no reconhecimento e na legitimação do conflito e na recusa de suprimi-lo por meio da imposição de uma ordem autoritária" (p. 28). Desse modo, segundo a autora, a democracia exige que o confronto entre projetos distintos de sociedade seja possível:

Embora o consenso seja necessário no que diz respeito às instituições constitutivas da democracia e aos valores ‘ético-políticos' que caracterizam a associação política – liberdade e igualdade para todos –, sempre haverá discordância quanto ao seu significado e quanto ao modo como devem ser implementados. Numa democracia pluralista, essas discordâncias não são apenas legítimas, mas também necessárias. Elas fornecem a matéria-prima da política democrática (Mouffe, 2015, pp. 30).

Nessa teoria democrática, portanto, igualdade e liberdade são princípios democráticos. Entretanto, não possuem um conteúdo último compartilhado por todos, mas são essencialmente vazios. Laclau (2008) auxilia-nos a compreender a discordância quanto ao significado e ao modo de se implementar os valores ético-políticos da liberdade e da igualdade ao apresentar-nos que ela (a discordância) tem sua raiz na experiência da presença de uma ausência, de uma falta, na distância entre o que é e o que deveria ser, isto é, em uma experiência ética que busca nomear esta distância. Laclau (2008) ressalta que o objeto que preenche essa distância não é um conteúdo próprio, pois a plenitude ausente não se trata de uma abstração, sendo irredutível a um conteúdo conceitual formal pertencente ao simbólico. Esse objeto é o reverso positivo de algo que se havia vivido como negativo, tratando-se de um investimento ético radical, pois os termos são desprovidos de qualquer determinação conceitual.

Dessa maneira, "igualdade" e "liberdade" são termos vazios e não abstrações, e, assim, significados diante de uma situação vivida como negativa – distância entre o que é e o que deveria ser – assinalando a existência de uma plenitude ausente na ordem social hegemônica. É por não terem um conteúdo próprio que estes termos podem desempenhar papéis na argumentação entre alternativas distintas de sociedade. O que não significa, contudo, que "tudo vale" e que não exista a possibilidade de um critério objetivo que permita escolher um curso de ação ou outro, pois o sujeito ético não é jamais um sujeito sem crenças, ele participa plenamente em uma ordem normativa que não é questionada em sua totalidade, apelando a valores compartilhados em um contexto específico. Portanto, "nem todos os investimentos éticos são possíveis em um momento dado" (Laclau, 2008, p. 357, tradução nossa). A escolha do curso de ação encontra sua fonte na interminável negociação entre o ético (distância entre o que é e o que deveria ser) e o normativo (ordem simbólica na qual o sujeito ético encontra-se posicionado): "A experiência ética é a experiência do não-condicionado como falta em um universo completamente condicionado" (Laclau, 2008, p. 360, tradução nossa). Dessa maneira, Laclau (2008) concebe a sociedade democrática nos seguintes termos:

Somente se um conjunto de termos vazios – ‘justiça', ‘verdade', ‘povo', etc. – se transforma em nomes do ético, somente se não estão necessariamente endossados a nenhum conteúdo e em troca recebem sempre conteúdos reversíveis mediante investimentos radicais elaborados coletivamente, somente assim, será possível algo parecido a uma sociedade democrática (Laclau, 2008, pp. 360, tradução nossa).

Retomando o postulado agonístico de Mouffe (2015), podemos assim conceber que na democracia moderna os investimentos éticos são limitados normativamente pelo reconhecimento do "eles" como adversário e não como inimigo, de modo que o conflito e o pluralismo de modos de vida sejam preservados. Consideramos que esse princípio normativo mínimo (agonismo) só se faz possível se, partilhando da compreensão de Laclau (2008), o ético não se encontrar necessariamente endossado por nenhum conteúdo, mas nomeado por conteúdos reversíveis no interior das opções disponíveis em um contexto histórico específico, sendo as sociedades democráticas caracterizadas por um movimento interminável entre as dimensões ética e normativa. Como afirma Laclau (2008), na crítica a Simon Critchley, não seria difícil imaginar as consequências autoritárias e etnocêntricas de um enfoque que defenda que o ético traz necessariamente incorporado um conteúdo desde o início, pois teríamos "que rechaçar de maneira precisa todas as outras concepções como não-éticas" (p. 361, tradução nossa).

Diante da teoria democrática que orienta este trabalho, podemos, assim, conceber que a sociedade democrática é dependente:

a) Da instituição da ordem social como uma representação precária e contingente, fruto de um investimento ético radical limitado pelo princípio normativo do agonismo e pelas possibilidades disponíveis em um contexto histórico específico, preservando-se o movimento interminável entre as dimensões ética e normativa (Laclau, 2008). Nessa medida, a democracia é dependente da manutenção do confronto agonístico e do pluralismo de modos de vida, afastando-se da imposição de uma ordem autoritária (Mouffe, 2015);

b) Da introdução na cena política dos atores sociais que historicamente têm sido excluídos dela – sem a qual a democracia seria mera farsa (Laclau, 2008). O que acarreta afirmar novamente a pluralidade como condição para a democracia moderna e, ao mesmo tempo, reconhecer os posicionamentos desiguais dos sujeitos no que diz respeito às condições para a participação na vida pública da comunidade (Laclau, 2008) na promoção de enfrentamentos a relações de dominação. Compreensão que se distancia tanto de enfoques particularistas extremos, que enfatizam a incorporação dos excluídos na cena política, mas deixam de lado a adesão a valores comunitários mais universais, quanto da proposta dos habermasianos, que sob "a insistência exclusiva nas regras deliberativas abstratas sem nenhuma consideração das especificidades [das posições desiguais dos sujeitos] pode resultar, sob a fachada do universalismo, em um etnocentrismo ocidental" (Laclau, 2008, p. 369, tradução nossa), pois as desigualdades não são invalidadas em razão de um simples acordo de procedimentos deliberativos.

Sustentamos ser esta compreensão de democracia a condição, epistemológica e política, para estratégias narrativas e participativas, na medida em que são dependentes da legitimidade de uma pluralidade de vozes e orientam-se politicamente para a visibilidade e o enfrentamento das relações de dominação presentes em um determinado contexto histórico.

 

Por que a democracia é fundamental para a compreensão do conhecimento como uma prática social?

Trabalhar com narrativas e metodologias participativas em uma perspectiva crítica implica reconhecer que os sujeitos constroem histórias sobre um mundo que só existe como "existência" e não como "essência" (Laclau, 1993). Ou seja, os objetos existem independentemente dos indivíduos, mas o "ser" dos objetos é histórico e mutável, constitui-se no interior de um discurso, não decorrendo de sua mera existência. O mundo dos objetos é apreendido pelos humanos não como entidades apenas existenciais, mas sempre a partir de articulações discursivas no campo de possibilidades de um contexto histórico específico. Uma montanha pode ser interpretada como proteção contra um ataque inimigo ou como um lugar para uma excursão turística, e ela só pode ser estas diferentes coisas porque ela existe, mas é apreendida pelos humanos discursivamente (Laclau, 1993). "O discursivo não é, por conseguinte, um objeto entre outros objetos, e sim um horizonte teórico" (Laclau, 1993, p. 119, tradução nossa).

Desse modo, como pesquisadores e pesquisadoras identificados com metodologias narrativas e participativas, afastamo-nos da "idolatria do factual" e buscamos entender como as histórias narradas pelos participantes da pesquisa são construídas em um determinado momento histórico, como têm delimitado as fronteiras políticas entre "nós" e "eles" e suas implicações para processos de democratização social.

Assim, para intervirmos na história de nosso tempo, sob a delimitação democrática proposta anteriormente, precisamos interrogar o passado, compreender as narrativas sobre ele construídas no presente, estabelecer um diálogo entre passado e presente em torno de continuidades e descontinuidades, de identificações e de rupturas (Laclau, 1993). Ou seja, precisamos fazer "do passado uma realidade passageira e contingente, e não uma origem absoluta" (Laclau, 1993, p. 112, tradução nossa), para entendermos a constituição dos modos de vida no tempo presente.

Essa posição epistemológica, que compreende o conhecimento como uma prática social, construtora da realidade, fundamentada ontologicamente na compreensão de que as posições de sujeito e a ordem social são configurações discursivas, portanto, históricas e contingentes, não é possível no domínio da "fixidez e do papel dominante da ordem do significado" (Laclau, 2008, p. 363, tradução nossa), característico de qualquer absolutismo. Concebemos que ela só é possível em uma forma de sociedade democrática, definida pela presença de significantes vazios, pela autonomia dos significantes em relação ao significado e, assim, pela produção de investimentos éticos, limitados pelo princípio normativo do antagonismo e pelas condições de possibilidade presentes em um determinado contexto histórico, que tornam possível a preservação do conflito e do pluralismo dos modos de vida.

Essa autonomia do significante é o que possibilita visibilizar a ordem social hegemônica como contingente e precária e, ao mesmo tempo, a legitimidade de investimentos éticos radicais alternativos que denunciam, pela negatividade, a plenitude ausente na ordem presente, instituindo outras possibilidades, também contingentes e precárias, de "preenchimento" da brecha entre o ser e o deveria ser. Aquela autonomia permite-nos, dessa maneira, reconhecer a pluralidade de modos de vida em uma determinada ordem social e compreender como diferenças têm sido naturalizadas e transformadas em desigualdades em determinados discursos – estes últimos servindo para impedir a radicalização dos valores de igualdade e liberdade – e que investimentos éticos contribuem para a problematização de relações de dominação.

A autonomização dos significantes sobre os significados, assim, possibilita a ampliação do campo da verdade histórica, se a entendermos não no sentido de um fundamento último que estaria a ser descoberto, mas sim que é a partir de análises de discursos em disputa que se faz possível construir inferências sobre a realidade (Mendonça, 2009).

A necessidade de reconhecer, nessa perspectiva epistemológica, a legitimidade do "outro" na esfera política, condição para a preservação do conflito e do pluralismo de modos de vida, permite a problematização sobre até que ponto o outro pode ser tido como legítimo na disputa pela nomeação da realidade.

Importante frisar, mais uma vez, que essa postura epistemológica não significa afirmar uma posição relativista, pois tal acusação seria um falso problema, na medida em que se compreende que a nomeação da realidade não é possível fora de um contexto discursivo, carecendo o contrário simplesmente de sentido (Laclau, 1993).

Ademais, Laclau (2008) explicita-nos o perigo etnocêntrico e autoritário de um enfoque teórico que pretenda estabelecer um conteúdo específico, desde o começo, para o ético, na medida em que ele acarretaria em rechaçar todas as outras concepções como não-éticas. Deveríamos conceber, por exemplo, discursos fascistas como legítimos, em sociedades democráticas, uma vez que nessa forma de sociedade não há um conteúdo normativo a priori que defina o ético? Certamente que não, pois o discurso fascista, ao fundamentar-se na eliminação do outro, rechaçaria as concepções deste como antiéticas. Estaríamos aqui frente a uma discursividade etnocêntrica e autoritária, pois impedidora da pluralidade de modos de ser constitutiva da democracia. O que nos leva à delimitação do princípio normativo agonístico de Mouffe (2015): que a democracia moderna só se faz possível a partir do reconhecimento do outro como adversário e não como inimigo e, portanto, da compreensão do conflito como matéria-prima da política democrática.

 

Qual o lugar do pesquisador diante da posição epistemológica que caracteriza a democracia?

Juntamente com a dependência relativa à produção de investimentos éticos radicais, a forma democrática de sociedade é dependente da introdução na cena política de atores sociais historicamente excluídos dela em uma determinada sociedade, sendo que, na ausência dessa condição, segundo Laclau (2008), a democracia seria uma farsa.

Essa condição também é fundamental para as metodologias narrativas e participativas, na medida em que se fundamentam no reconhecimento de sujeitos excluídos como produtores de conhecimento e orientam-se para visibilizaras histórias e as demandas sociais produzidas por eles em um determinado contexto histórico, de modo a contribuírem para o enfrentamento das relações de dominação. O que, diante da posição epistemológica defendida anteriormente, traz implicações para se pensar o lugar do pesquisador na relação com esses atores historicamente excluídos.

Uma primeira implicação seria que não há nenhuma consciência crítica privilegiada, nenhum saber verdadeiro capaz de determinar o caminho de libertação no enfrentamento às relações de dominação. Não é suficiente reconhecer, como fizera a psicologia social crítica nos anos 1970 e 1980, que tanto pesquisadores como pesquisados são sujeitos produtores de conhecimento. Há também que se afirmar que não há lugar para um sujeito emancipador definido aprioristicamente, seja ele uma vanguarda intelectual, detentora de uma racionalidade capaz de apreender a história de maneira transparente e de delimitar um lócus privilegiado para a transformação social, seja ele os indivíduos que vivenciam cotidianamente as formas de dominação, como se essa vivência definisse, necessariamente, um privilégio epistemológico para a compreensão da realidade.

Nesse sentido, o lugar do pesquisador não há como ser nem o de pedagogo nem o de legislador na relação com os pesquisados, pois não se trata de ensinar os meios para se alcançar a consciência crítica nem de se apresentar como a consciência a ser alcançada por aqueles que se encontram oprimidos. Será o de compreender as demandas sociais que têm sido produzidas pelos sujeitos, as fronteiras políticas entre "nós" e "eles" presentes em seus discursos, e suas implicações para processos de democratização social.

Uma segunda implicação, diretamente relacionada a esta compreensão, é que este lugar do pesquisador permite concebe-lo no interior da confrontação entre projetos hegemônicos de sociedade, os quais, sob a perspectiva democrática proposta neste texto, são construídos a partir da articulação entre uma pluralidade de demandas sociais presentes em um determinado contexto histórico. Essa articulação se faz possível devido ao fato de que as demandas são, desde sua constituição, divididas em termos de sua particularidade e de sua universalidade (Laclau, 2013). Como elas se constituem na negação de outros discursos presentes em um contexto histórico específico, ainda que cada demanda apresente uma particularidade em relação às outras (por focalizarem discursos específicos), problematizam a própria constituição da comunidade política.

O processo articulatório, assim, caracteriza-se pela construção de equivalência entre as demandas sociais em razão da delimitação de um adversário comum que as impediria de serem satisfeitas. Trata-se de um processo hegemônico na medida em que uma das demandas presentes, de maneira contingente, constitui-se como um "significante vazio", significando uma universalidade mais ampla do que ela própria (um horizonte político de sociedade), pois representa a cadeia total de demandas equivalentes, a plenitude vazia presente na ordem social sedimentada entre o que é e o que deveria ser (Laclau, 2013).

O caráter contingente da articulação hegemônica impossibilita ao pesquisador saber de antemão se e quais articulações ocorrerão e que projeto, portanto, será construído. Entretanto, ao contribuir, através da produção de metodologias narrativas e participativas, para a introdução na cena política de atores sociais historicamente excluídos e para a articulação de suas demandas, estará a ampliar o campo das possibilidades discursivas, não limitando-as às particularidades das demandas, e sob a compreensão dos sujeitos como atores cognoscentes e localizados desigualmente na sociedade.

 

Considerações finais

Nosso objetivo nesse artigo foi refletir sobre a relação entre metodologias narrativas e participativas de pesquisa e a forma democrática de sociedade, entendida sob as lentes da Teoria Democrática Radical e Plural. A reflexão foi pautada em uma compreensão que articula ciência e política tanto em termos da produção de conhecimentos orientados para a democratização social quanto no que diz respeito a implicações da forma de constituição da sociedade nos modos de se fazer ciência.

Defendemos que as estratégias metodológicas narrativas e participativas são dependentes de uma forma de sociedade democrática, pois estão fundamentadas na pluralidade de modos de vida e no conflito em torno da definição da realidade, o que só é possível mediante a instituição da ordem social como uma representação precária e contingente, constituída por investimentos éticos radicais; e no reconhecimento dos sujeitos excluídos da esfera política como produtores de conhecimento, com o pesquisador atuando a favor da visibilidade das histórias e das demandas produzidas por eles, no intuito de contribuir para o enfrentamento de relações de dominação.

A relação entre metodologias e a forma democrática de sociedade faz com que nós, pesquisadoras e pesquisadores, nos perguntemos sobre as possibilidades de produção de conhecimento na conjuntura política atual em que vivemos, caracterizada pelo fortalecimento de governos de direita e de extrema direita que, ao invés de reconhecerem a pluralidade dos modos de vida, defendem a restrição das possibilidades de ser e de viver e, assim, a exclusão de determinadas demandas e grupos da esfera política.

Apenas para efeito de conclusão, tomemos, brevemente, o caso brasileiro. Pudemos observar nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) a construção, sob pressão de movimentos sociais, de espaços institucionais que conceberam como legítimas as demandas de minorias sociais para a construção do Estado brasileiro – como foi o caso das Conferências de Políticas Públicas –, bem como a elaboração de relações entre "nós" e "eles" baseadas no reconhecimento do segundo como legítimo na disputa política – por exemplo, as relações entre PT e PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) nas campanhas eleitorais.

Nas eleições presidenciais de 2018 vivenciamos, entretanto, a vitória de um projeto político fundamentado na construção do PT como um "eles" a ser eliminado (como um inimigo) e na deslegitimação de demandas de minorias sociais. Nesse sentido, um projeto contrário às duas condições necessárias para uma forma democrática de sociedade: a limitação do investimento ético pelo princípio do agonismo, permitindo a preservação do pluralismo e do conflito; e a introdução de atores sociais historicamente excluídos da esfera política.

Sob as dimensões epistemológica e política que sustentam esse projeto político autoritário, as metodologias narrativas e participativas se fazem inconcebíveis, pois estaremos, neste caso, no domínio do "papel dominante da ordem do significado" (Laclau, 2008, p. 363, tradução nossa). Assim, evidenciarmos a condição democrática que sustenta estas metodologias e ampliarmos seus usos em nossas pesquisas é um dos modos de contribuirmos com as tramas das resistências ao autoritarismo. Ao permitirem visibilizar as demandas sociais insatisfeitas em nossa sociedade, e que a articulação entre as demandas em torno da negação da ordem social autoritária é uma condição fundamental para a produção de projetos contra-hegemônicos, tais metodologias ocupam um lugar importante na produção de uma ciência que se pergunta para quê e para quem se produz conhecimento.

 

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Endereço para correspondência
Frederico Alves Costa
Universidade Federal de Alagoas
Campus A.C. Simões – Instituto de Psicologia/IP
Av. Lourival de Melo Mota, S/N, Tabuleiro do Martins, CEP 57072-970, Maceió – AL, Brasil
Endereço eletrônico: frederico.costa@ip.ufal.br

Recebido em: 15/01/2019
Reformulado em: 20/04/2019
Aceito em: 13/05/2019

 

 

Notas

* Professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas.

 

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