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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.19 no.3 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019

 

RESENHA

 

Da escrita ao toque: Elaborando experiências traumáticas com tutores de resiliência

 

From writing to touching: Elaborating traumatic experiences with tutors of resilience

 

De la escritura al tacto: Elaborando experiencias traumáticas con tutores de resiliencia

 

Arthur Teixeira Pereira*; Edna Lúcia Tinoco Ponciano**

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Smith, R., Halfon, L., Malkovich, J. (Produtores), & Chbosky, S. (Diretor). (2012). As vantagens de ser invisível [DVD]. São Paulo: Paris Filmes.

 

Uma discussão sobre o processo de desenvolvimento de um introvertido na adolescência pode ser elaborada a partir do filme As vantagens de ser invisível, destacando-se fatores como a relação interpessoal e a prática da escrita na elaboração de experiências traumáticas. O protagonista Charlie (Logan Lerman) apresenta traumas no seu desenvolvimento, indicando uma trajetória de sofrimento e elaboração de experiências traumáticas, com a participação, principalmente, dos amigos, de um professor, de uma médica e da escrita. São pessoas que representam formas de tutoria/cuidado que facilitam as respostas resilientes (Cyrulnik, 2015), cuja essência define-se pelo "relacionamento progressivo e constante com um ‘outro significativo' que apoia e ativa a iniciação de processos de resiliência naquele que enfrenta a dor e o trauma" (Yunes, Fernandes, & Weschenfelder, 2018, p. 85), impulsionando fatores de proteção e fortalecendo recursos como o da escrita.

Na escola, Charlie conhece Sam (Emma Watson) e Patrick (Ezra Miller). Cada um, a seu modo, atravessa problemas específicos. Embora Sam seja introduzida como uma jovem comunicativa e popular, revela, após aproximar-se de Charlie, vivências de relacionamentos abusivos, atravessados por suas relações familiares. Sam desperta em Charlie um interesse amoroso quase imediato. Patrick, por sua vez, é extrovertido, desafiador e enfrenta problemas com a expressão de sua homossexualidade.

A solidão é a primeira característica marcante de Charlie (Izbicki, Brandão, Carvalho & Melo, 2015), ao relatar, em uma carta, ter interagido somente com sua família nas férias. Quanto ao início das aulas, escreve: "Só espero que eu faça um amigo". Isto demarca a dificuldade do jovem de se relacionar com as pessoas ao redor, além de revelar a principal forma de elaboração de suas emoções – a escrita –, pois é por meio das cartas que ele narra suas experiências. A escrita pode servir como meio de expressar as emoções, permitindo ao adolescente a construção de um lugar próprio, além de se reconhecer nele (Freitas & Silva, 2014). Desse modo, a solidão pode ser positivada como forma de consciência e de diálogo interno sobre seus problemas. Todavia, Charlie apresenta retraimento social, fenômeno com diferentes faces, dentre elas, a timidez (Nunes, Faraco, & Vieira, 2012), evidente em diversas cenas do filme que apresentam Charlie isolado, sem se comunicar com os demais alunos.

Esse padrão é deslocado quando conhece Patrick. Ainda que sofra bullying e rejeição devido à homossexualidade, Patrick se relaciona amorosamente com Brad (Johnny Simmons), que não assume o relacionamento. Charlie se aproxima de Patrick, vivenciando uma relação de intimidade e de aceitação entre amigos, que permite a ambos a reafirmação de si, a inserção em um grupo e a consolidação da orientação sexualO retraimento da sexualidade é comum em adolescentes homossexuais, devido aos conflitos enfrentados pelo medo de sofrer preconceitos e não ser aceito, tornando a revelação da identidade sexual um desafio (Costa, Machado, & Wagner, 2015; Mata, Silva, Domingos, Jesus, & Merighi, 2018), mas que é vivida com maior facilidade no encontro de amigos, tutores de resiliência. Outra relação importante é a com o professor de inglês, o Sr. Anderson (Paul Rudd), que se aproxima e estimula o aproveitamento de Charlie em sua disciplina, por meio da escrita, reforçando esse recurso.

A problemática dos relacionamentos abusivos está presente ao longo do filme em diferentes personagens. Além dos casos supracitados de Sam e Patrick, que é agredido por ser homossexual, há também a irmã de Charlie, Candace (Nina Dobrev), e sua tia Helen (Melanie Linskey), que também sofriam abusos e agressões de seus namorados. O filme mostra como as relações familiares afetam o desenvolvimento emocional dos(as) adolescentes, perpetuando um padrão de abuso e de violência (Ponciano & Seild-de-Moura, 2016).

Quando Sam e Charlie compartilham um momento afetivo íntimo, em que Sam acaricia a perna dele, algo do passado de Charlie desperta. Esse toque (carinhoso/sexual) ressoa em todo seu corpo e revive a lembrança dos gestos sexualmente abusivos de sua tia Helen, durante sua infância, e ele rememora o que ocorreu durante a convivência com sua tia, demonstrando ter dissociado essa experiência, até então (Harris et al., 2016). Somando-se ao fato de se sentir muito só, com a ida de seus amigos à universidade, Charlie entra em estado de choque e passa a se culpar pela morte da tia, andando sem rumo pela casa e com os pensamentos desorganizados, retomados pelo trauma do abuso. Assim, ele é internado, até conseguir reelaborar todas as memórias em uma conversa com a Dra. Burton (Joan Cusack), outro tutor de resiliência. Após receber alta, Charlie consegue se recolocar na vida, descrevendo que se sente mais preparado para o novo ano letivo; ademais, passa a se comunicar melhor com seus familiares e a disfrutar mais dos momentos com os amigos, demonstrando ter elaborado as experiências vividas.

O filme exibe com leveza e complexidade o desenvolvimento de um adolescente tímido, cujo modo de ser e apreender o mundo vão se transformando ao construir novas relações. Pode-se considerar, a partir da história de Charlie, como o contato com outras pessoas e realidades pode impactar o desenvolvimento e a saúde mental de adolescentes, instrumentalizando-os no enfrentamento de experiências traumáticas, com a ajuda da escrita e de tutores de resiliência. A relação interpessoal é um elemento importante para a compreensão dos processos de desenvolvimento do(a) adolescente. Com ajuda da escrita, uma ferramenta com efeitos terapêuticos, a consciência e elaboração de emoções e de experiências traumáticas tornam-se abordáveis, de modo a diminuir a dissociação, conforme apresentado por Charlie. A partir de vários "toques", que recebe na interação com tutores de resiliência, e ao utilizar a escrita como forma de elaboração, um adolescente pode se transformar positivamente. Tendo no filme um exemplo, trata-se de uma articulação importante, à medida que é um campo de estudo pouco explorado, embora a escrita seja utilizada como uma ferramenta terapêutica (Pennebaker & Evans, 2014). Por fim, enfatizamos que a articulação entre relações interpessoais e escrita constitui um campo promissor para mais investigações empíricas que embasem intervenções com adolescentes, que podem ser utilizadas na prática clínica.

 

Referências

Costa, C. B., Machado, M. R., & Wagner, M. F. (2015). Percepções do homossexual masculino: Sociedade, família e amizades. Temas em Psicologia, 23(3), 777-788. doi:10.9788/TP2015.3-20         [ Links ]

Cyrulnik, B. (2015). Resiliência: Como tirar leite de pedra. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Yunes, M. A. M., Fernandes, G., & Weschenfelder, G. V. (2018). Intervenções psicoeducacionais positivas para promoção de resiliência: O profissional da educação como tutor de desenvolvimento. Educação (Porto Alegre), 41(1), 83-92. doi:10.15448/1981-2582.2018.1.29766        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Arthur Teixeira Pereira
Rua Dário Marques, lote 34, Jardim Metrópole, CEP 25575-060, São João de Meriti - RJ, Brasil
Endereço eletrônico: arthurtp11.2009@gmail.com
Edna Lúcia Tinoco Ponciano
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Endereço eletrônico: ednaponciano@uol.com.br

Recebido em: 30/10/2018
Reformulado em: 27/08/2019
Aceito em: 28/08/2019

 

 

Notas

* Graduando de Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
** Professora Adjunta do Instituto de Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Uerj.

 

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