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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.19 no.spe Rio de Janeiro  2019

 

ARTIGOS

 

Ambientalidade, Co-existência e Sustentabilidade: Uma Gestalt em Movimento

 

Environmentality, Co-existence and Sustainability: A Gestalt in Motion

 

Ambientalidad, Co-existencia y Sostenibilidad: Una Gestalt en Movimiento

 

Jorge Ponciano Ribeiro*

Universidade de Brasília - UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo propor e discutir a noção de ambientalidade, colocando-a em diálogo com as noções de sustentabilidade e co-existência, visando promover, no âmbito da Gestalt-Terapia, discussões acerca de nossa implicação ética e existencial com o Planeta Terra. Ambientalidade é um termo inexistente no dicionário e que está aqui proposto como derivação da palavra ambiente para, juntamente com animalidade e racionalidade, constituir a definição da estrutura de nossa essência humana. Animal-racional, o ser humano tem sido definido, frequentemente, de uma maneira inadequada, pois falta-lhe o terceiro existencial: ambientalidade, que estou constituindo e definindo a partir dos modos de existência que constituem a experiência humana de ser pessoa. Ambientalidade é uma dimensão da essência humana, através da qual somos co-constituintes do universo, somos partes fundantes consubstanciais de uma totalidade através da qual tudo muda, tudo está ligado a tudo. Considerando a noção de Campo organismo/ambiente da Gestalt-Terapia como um construto central na abordagem, o desenvolvimento da noção de ambientalidade pode contribuir para ampliar o escopo da perspectiva gestáltica na direção de discussões que englobem de modo mais efetivo as relações das pessoas com o mundo e coloquem em relevo sua implicação com a sustentabilidade do planeta.

Palavras-chave: ambientalidade, ambiente, campo, sustentabilidade, ecologia profunda.


ABSTRACT

The article aims to propose and discuss the notion of environmentality, placing it in dialogue with the notions of sustainability and co-existence, aiming to promote discussions in the Gestalt Therapy field about our ethical and existential implications with Planet Earth. Environmentality is a non-existent term in the dictionary which is here proposed as a derivation of the word environment to, together with animality and rationality, constitute the definition of the structure of our human essence. Animal-rational, the human being has often been defined in an inadequate way, for he lacks the third existential: environmentality, which I am constituting and defining from the modes of existence that constitute the human experience of being a person. Environmentality is a dimension of the human essence, through which we are co-constituents of the universe, we are consubstantial founding parts of a totality through which everything changes, everything is connected to everything. Considering the notion of Field organism / environment field as a central construct in the approach, the development of the notion of environmentality can contribute to broaden the scope of the gestaltic perspective towards discussions that more effectively encompass people's relationships with the environment, highlighting their implication for the sustainability of the planet.

Keywords: environmentality, environment, field, sustainability, deep ecology.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo proponer y discutir la noción de ambientalidad, colocándola en diálogo con las nociones de sostenibilidad y coexistencia, para promover discusiones en el ambito de la Terapia Gestalt sobre nuestras implicaciones éticas y existenciales con el Planeta Tierra. La ambientalidad es un término que no existe en el diccionario y que se propone aquí como una derivación de la palabra ambiente para, junto con la animalidad y la racionalidad, constituir la definición de la estructura de nuestra esencia humana. Animal-racional, el ser humano ha sido muchas veces definido de manera inadecuada, ya que carece de la tercera existencial: la ambientalidad, que estoy constituyendo y definiendo a partir de los modos de existencia que constituyen la experiencia humana de ser una persona. La ambientalidad es una dimensión de la esencia humana, a través de la cual somos co-constituyentes del universo, somos partes consustanciales fundadoras de una totalidad a través de la cual todo cambia, todo está ligado a todo. Teniendo en cuenta la noción de campo organismo / ambiente de la Terapia Gestalt como una construcción central en el enfoque, el desarrollo de la noción de ambientalidad puede contribuir a ampliar el alcance de la perspectiva gestáltica hacia discusiones que abarquen más efectivamente las relaciones de las personas con el mundo y destacar su implicación en la sostenibilidad del planeta.

Palabras clave: ambiental, ambiente, campo, sostenibilidad, ecología profunda.


 

 

Ambientalidade, palavra inexistente nos dicionários e originária da palavra ambiente, está aqui sendo usada, juntamente com animalidade e racionalidade, para constituir e definir um modo estrutural de ser de nossa essência humana. Frequentemente definido como animal-racional, o ser humano vem, ao longo dos séculos, sendo visto de maneira incompleta, fragmentada e dualista, uma perspectiva que consideramos inadequada. Falta-lhe o terceiro existencial:ambiental, do qual decorre o conceito ambientalidade que estou definindo a partir dos modos de existência que constituem a experiência humana.

Embora possa parecer metodologicamente prematura a utilização da citação que se segue, na qual uso uma analogia conceitual para especificar formalmente meu pensamento, utilizo-a porque desejo deixar claro que, como Jan Smuts, ao longo de toda essa reflexão adotamos uma perspectiva gestáltica, holística, sistêmica e de campo, na qual o conceito de totalidade prevalece.

Uma das grandes lacunas do conhecimento foi ter separado matéria, vida e mente como fenômenos isolados. Uma profunda diferença e separação entre eles produz uma quebra no conhecimento, separa o conhecimento em três reinos ou três universos. De fato, eles são três mundos experienciais e não podem ser vistos como alheios um ao outro e, ao contrário, eles, de fato, se inter-relacionam e coexistem no ser humano, o qual é feito de matéria, vida e mente. (Smuts, 1996, p. 2).

Smuts está falando, na citação acima, de matéria, vida e mente e, pedindo vênia para usar esta mesma citação como uma analogia, proponho substituir matéria, vida e mente por ambientalidade, animalidade e racionalidade,que considero os três existenciais da estrutura de essência humana. A substituição de um pelo outro torna possível a analogia do que estou chamando de estrutura da personalidade, ao definir o ser humano como ambiental-animal-racional. Desse modo, a citação de Smuts poderia ser adaptada para os fins desta discussão e ficaria assim: Uma das grandes lacunas do conhecimento foi ter separado ambiental, animal, racional como fenômenos isolados. Uma profunda diferença e separação entre eles produz uma quebra no conhecimento, separa o conhecimento em três reinos ou três universos. De fato, eles são três mundos experienciais e não podem ser vistos como alheios um ao outro e, ao contrário, eles, de fato, se inter-relacionam e coexistem no ser humano, o qual é feito de ambientalidade-animalidade-racionalidade.

A Gestalt-Terapia considera que o ser humano é inseparável do mundo e a noção de campo, na relação ambiente/organismo, expressa claramente essa concepção que remete à totalidade. Prosseguindo no diálogo com Smuts, podemos compreender que o campo está para além dos contornos imediatos da experiência.

Eu devo agora acrescentar que por 'Todo' eu entendo o 'todo' mais o seu campo, seu campo não é algo diferente dele e adicional a ele, mas uma continuação dele além de contornos sensíveis da experiência. O 'Todo' está no tempo e no espaço. (Smuts, 1996, p. 110).

Neste artigo, busco trazer como figura a dimensão ambientalidade, lembrando que, assim como não podemos pensar o ambiente separado do sujeito-organismo, não podemos pensar o sujeito sem implicar o ambiente que o co-constitui. Ambientalidade é a dimensão original deste trabalho, cujo conteúdo estou constituindo e formulando como um conceito estritamente ontológico e como o componente ignorado de nossa humanidade essencial.

Como afirma Bimbenet: "Nossa relação ao animal é postulada segundo uma gradação em três termos: a pedra é 'sem mundo' (weltlos); a animalidade é 'pobre de mundo' (Weltarm); o homem é 'configurador de mundo' (Weltbildend)." (Bimbenet, 2011, p. 94).

Vivemos, assim, um profundo desencontro, dualidade e fragmentação em nossa relação com o universo, apesar de sermos apenas um pequeno grão de areia ante a infinitude do deserto.

A não-consciência do existencial ambientalidade, lembrado por Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 42) com a expressão "organismo/ambiente", gera desequilíbrios e prejuízos enormes à vida e ao planeta, com os quais não nos comprometemos, permanecendo via de regra, indiferentes ao que acontece à mãe-terra e ao universo no sentido mais amplo.

A consciência de que somos, estruturalmente, por essência e por natureza, ambientais desperta em nós uma habilidade, uma capacidade de nos condoermos com o sofrimento do planeta, como uma dor que é nossa e um desejo de sermos guardiões da substancial relação que nos liga à mãe-terra. É esta experiência que estou chamando de ambientabilidade, um "proprium", que decorre de nossa dimensão Ambientalidade.

Ambientabilidade é uma vivência que decorre da awareness de nossa umbilical relação com o meio-ambiente, do qual devemos cuidar como cuidamos do nosso corpo e com o qual compartilhamos da mesma carne.

Cuidar do meio ambiente e garantir sua sustentabilidade é cuidar de nossa preservação, de nossa interação ambiente-corpo, é repetir o mais perfeito ajustamento criador, pois somos co-criadores de nossa própria existência no mundo. Temos vivido, ao contrário disso, um dualismo, nós e o mundo, que nos dá a ilusão de sermos separados, individualizados, fechados sobre nós mesmos, conduzindo-nos a uma postura de dominação do planeta e do outro com o qual coexistimos.

A Gestalt-Terapia, como uma abordagem que nasce na passagem de modernidade e pós-modernidade, traz no seu corpo conceitual e em sua proposta de ação no mundo uma concepção holística, ecológica, social, comunitária e política, que nos sinaliza para a integração ao campo e ao pertencimento ao todo como fundamento ontológico do cuidado, forma essencial do estar no mundo.

O campo é a força . . . que precisa ser utilizada para que possamos ficar curados. Estamos conectados e envolvidos com o nosso mundo, somos inseparáveis dele, e a nossa única verdade fundamental é o nosso relacionamento com ele. O campo, como Einstein certa vez o chamou sucintamente, é a única realidade. (McTaggart, 2008, p. 16).

Nossa dimensão ambientalidade provoca em nós um processo de conscientização, uma convocação a que nos sintamos, pensemos, façamos e falemos de nossa ontológica conexão com o cosmo, de nossa filiação, de nossa consanguinidade com a mãe-terra como uma experiência de pensamento sistêmico, constituinte de nossa humanidade.

De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em elementos isolados. (Capra, 1996, p. 40).

Como dissemos, é da natureza de nossa abordagem ser clínica, política, social e comunitária, pois, de maneira simples e real, isto é o que chamamos de Gestalt, de configuração: um todo cujas partes convivem como um cosmo ontologicamente um, em uma metafísica co-existencial. Assim, tudo me diz respeito, sou um rio poluído, sou uma pessoa que morre de frio numa noite gelada, sou uma floresta pegando fogo, sou um lixão que "sustenta" pessoas famintas, sou uma multidão que não sabe ler, somos pessoas amedrontadas pela escalada da violência. Isto coexiste em mim tal como a água, o fogo, o ar, a terra, elementos fundantes de nossa hominização.

O social, o político, o comunitário e o clínico nascem, portanto, do fato de sermos uma configuração, uma totalidade onde tudo está ligado a tudo, diz respeito a tudo e cujas partes nos lançam na dor do mundo, não como uma abstração, mas como um ser em ação, filho biológico de nossa dimensão original ambientalidade.

Temos muito pela frente. Como experienciar e vivenciar esta realidade é o nosso mais radical aprendizado. Pretendemos aqui colocar em cena no campo da abordagem gestáltica a dimensão da ambientalidade, compreendendo que nossa abordagem tem uma grande contribuição a dar a um pensamento psicológico que implique de modo mais contundente sujeito e mundo, corpo e terra, numa perspectiva ecológica e sustentável.

 

Ambientalidade: caminho de co-existência e sustentabilidade

Estamos diante de um conceito novo, estranho, original, que constitui, junto com nossa animalidade e racionalidade, nossa estrutura de personalidade pela natureza de seu conteúdo. Este conceito, entretanto, pode parecer-nos familiar, dada sua relação e semelhança com a palavra ambiente.

Neste contexto, ambientalidade é uma das dimensões estruturais que compõe, com as dimensões animalidade e racionalidade, a essência humana tal como discutimos. Seguindo a perspectiva da espacialidade e da temporalidade, isto é, o aqui-agora humano, nossa definição de humanos é: somos ambientais-animais-racionais. Esta é a essência humana, consequentemente ambientalidade-animalidade-racionalidade são os existenciais que compõem a estrutura constituinte de nossa personalidade.

Entendo que estou trabalhando dentro de uma perspectiva de campo, na perspectiva de Kurt Lewin (1973, 1975). Garcia-Roza (1974) sintetiza a proposta de Lewin a partir de seis atributos que a caracterizam:

a) a utilização de um método de construções e não de classificações; b) um interesse pelos aspectos dinâmicos dos acontecimentos; c) uma perspectiva psicológica e não física; d) uma análise que começa com a situação como um todo; e) uma distinção entre problemas sistemáticos e históricos; f) uma representação matemática do campo. (Garcia-Roza, 1974, p. 20).

Estes atributos explicitam o que entendo por perspectiva de campo e constituem-se em fundamentos da forma como estou elaborando, neste trabalho, a constituição de um conceito a partir do qual poderemos operacionalizar outros construtos.

Tudo aquilo que, ao ser retirado de um objeto, faz com que este objeto desapareça, faz parte da essência deste objeto primeiro. Quando, do ponto de vista essencial e/ou operacional, retiramos do ser humano seu atributo (chamamos assim) animal ou racional, ele simplesmente desaparece. Estes dois conceitos ou atributos, portanto, fazem parte de nossa essência humana.

Ar, calor, minerais e água fazem parte da composição física dos organismos vivos humanos. Quando retiramos de nossa estrutura, de nosso ser, de nosso existir cotidiano o ar (respiramos 6 litros de ar por minuto), o calor (somos 36% de fogo), a terra (somos 25% minerais), a água (somos 75% água), componentes constitutivos também do universo, desaparecemos da mesma maneira como desapareceríamos, se de nós fossem retirados nossa animalidade e racionalidade.

Podemos, portanto, afirmar que somos constituídos pelo meio-ambiente, possuímos os mesmos elementos que o constituem, ar, fogo, terra e água, e os mesmos elementos de que o cosmo é feito. Entretanto, não nos parece estranho sermos animais-racionais, mas nos parece estranho, sem jeito, se somos definidos como ambientais-animais-racionais.

Essa estranheza decorre de um modo de pensar dicotômico instaurado no pensamento moderno e que separou radicalmente o orgânico e o espiritual, a substância material e pensante. Esse pensamento conferiu ao pensamento abstrato a primazia absoluta sobre a verdade do mundo e decretou, com isso, uma espécie de apagamento do corpo e da dimensão animal. Tal como discute Hans Jonas (2000), um filósofo do campo da bioética, esse momento histórico, dado na modernidade filosófica, rompe com uma ontologia universal da vida, onde prevalecia a comunidade ontológica de todos os entes. Esse rompimento reflete uma "renuncia à inteligibilidade da vida" (p. 41). Ele compreende que "O problema da vida, e com ele o problema do corpo vivo, devem estar no centro da ontologia (e até certo ponto também no da teoria do conhecimento)." (Jonas, 2000, p. 41, tradução nossa).

Nós nos damos conta de sermos animais através das sensações corporais, dos sentimentos, dos afetos, das emoções; nós nos damos conta de que somos racionais através da memória, da vontade, da inteligência, do pensamento, mas não nos damos conta de que somos ambientais por causa da dicotomia, da fragmentação, de uma divisão clássica de que eu sou eu e o mundo é o mundo, como se fôssemos duas realidades distintas, fragmentadas, de um lado eu, do outro lado o mundo, o meio ambiente. Funcionamos como se fôssemos duas realidades: eu e o mundo, negação ontológica de nossa estrutura humana. Este é o erro histórico, ontológico, cultural, operacional que nos tem separado ou criado uma falsa identidade e uma separação total entre o ser humano e o meio ambiente.

Daí surge um universo real: físico, biológico, psíquico ou mental. Esta conexão é baseada nos fatos da existência e da experiência e não em pensamento. Estes três (matéria, vida e mente) [grifo do autor] não são alheios um ao outro, ou irreconhecíveis, existe um ponto cósmico que os une [grifo do autor], do contrário teríamos de admitir que a experiência humana é uma caótica mistura de elementos desconectados. (Smuts, 1996, p. 3).

Nesse trecho, Smuts, anos antes de McTaggart (2008), está falando do conceito de Totalidade como síntese metafísica da co-existência de matéria, vida e mente e que, por extensão, aplico ao tema da ambientalidade-animalidade-racionalidade que ora está sendo apresentado, por entender que o fundo teórico que nos sustenta é o mesmo. Ao discutir elementos da física quântica, McTaggart (2008) traz outro ponto de vista sobre a mesma questão, a da interligação e da totalidade.

Vários deles repensaram algumas equações que sempre haviam sido descartadas na física quântica. Essas equações correspondiam ao 'campo de ponto zero', um oceano de vibrações microscópicas no espaço entre as coisas. Eles perceberam que se o campo de ponto zero fosse incluído em nossa concepção da natureza mais fundamental da matéria, o suporte do Universo seria um agitado mar de energia, um vasto campo quântico. Se isso fosse verdade, tudo estaria interligado por algo como uma teia invisível [grifo nosso]. (McTaggart, 2008, p. 20).

Nós caminhamos, vemos o mundo fora de nós, ele está lá e nós aqui, e isto nos dá a firme sensação de que somos dois. Na verdade, somos um só: eu sou o mundo, o mundo sou eu, sou ambiente, o ambiente sou eu, sou a natureza, a natureza sou eu. Assim como uma árvore nasce do mundo, da terra, nós também, sendo ar, fogo, terra e água, elementos de que o mundo é feito, também nascemos do mundo, e, como uma planta, somos através de um longo processo evolutivo, filhos legítimos do ar, do fogo, da terra, da água.

Não somos dois, somos um só. Somos constituídos dos mesmos elementos de que o planeta é feito. Somos, portanto, ambientais-animais-racionais e qualquer uma destas dimensões que forem retiradas do ser humano, provocará o nosso desaparecimento.

Ambientalidade é a matriz de nossa hominização. Do mesmo modo, no mesmo sentido, nas mesmas circunstâncias em que somos animais, em que somos racionais, somos também ambientais, embora não façamos atenção a esta dimensão, talvez pela nossa necessidade de ter controle sobre tudo aquilo que pensamos, como desconexão de nossa realidade ambiente-organismo. O homem queima, corta, suja, polui o meio ambiente, sem se dar conta de que isso é um autoextermínio, um "ecocídio", sem se dar conta de que a sustentabilidade do planeta passa pela satisfação das mesmas necessidades do ser humano.

Somos uma só realidade, nós-mundo, somos a mesma carne, o mesmo sangue, nascemos do ventre, da barriga do universo, só nos falta o mesmo espírito, porque agimos como se fôssemos donos do mundo, dualidade responsável por todo o estrago da não consciência de que qualquer ofensa ao meio ambiente é ferida causada a cada um de nós, porque somos um só corpo, um só espírito com o universo. Falta-nos a experiência de uma awareness corporal, de uma consciência corporal de que a terra é um campo de presença, de que a terra é um ser vivo, gera seres vivos, e de que vivemos uma fraternidade com vegetais e animais, com outros humanos com os quais coexistimos.

Perdemos a dimensão de que somos uma Gestalt, uma configuração, um todo cujas partes estão organizadas e articuladas para funcionarem como uma unidade ontológica, de que tudo está ligado a tudo, de que somos um só corpo, de que tocar em uma parte é tocar em tudo e no todo, perdemos a dimensão de que tudo muda, de que tudo está em movimento e, não obstante, Tudo é Um.

Ambientalidade-animalidade-racionalidade são dimensões ontológicas da essência humana, a qual é uma totalidade existencial que brota, que nasce da totalidade maior, o Universo. Não existem o universo e nós. Somos partes fundantes, constituintes do universo. A totalidade-universo se revela, se faz visível através da pedra, das plantas, dos animais, do ser humano, numa consubstancialidade metafísica, ontológica. Assim, também não existem corpo e alma, existe eu, totalidade inteiramente-alma-inteiramente-corpo. Não existem eu e o mundo, ambos coexistimos como uma unidade consubstancial, estrutural, ontologicamente um ser que se faz visível através de entes e, consequentemente, da percepção visual, ilusória, de que são duas realidades distintas. O ser humano é totalmente ambiental, totalmente animal, totalmente racional, três naturezas na unidade de um ser, a pessoa humana, e nele não existe uma prioridade, se quer ontológica, de uma característica com relação à outra, pois estes três atributos são ontologicamente Um.

Três naturezas, a ambiental, a animal e a racional numa consubstancialidade humana chamada ser humano. Elas se distinguem uma da outra, mas co-existem intrinsecamente sem nenhuma antecedência espaço-temporal na sua essencialidade. Estou dizendo que nossa dimensão ambientalidade, que nasce de nossa unidade ambiente-corpo, foi esquecida, não sabida, devido ao fato de estarmos no mundo aparentemente como realidades separadas, ambiente e corpo.

Não existe uma dualidade 'eu' e 'não-eu' do nosso corpo em relação ao Universo, mas apenas um único campo fundamental de energia. Este campo é responsável pelas funções superiores de nossa mente, a fonte de informação que orienta o crescimento do nosso corpo. Ele é o nosso cérebro, o nosso coração, a nossa memória - na verdade, ele é um projeto do mundo para toda a eternidade. (McTaggart, 2008, p. 15).

Proponho definir "ambientalidade" como: "Dimensão humana que, juntamente com as dimensões animal e racional definem a pessoa como ambiental, isto é, parte igualmente constituinte da essência humana e que se expressa na relação mundo-corpo".

É a ambientalidade que nos permite pensar em co-existência e também em sustentabilidade, visto que é a consciência de ser ambiental e de estar em relação de co-existência que permite aos sujeitos um tipo de ação que seja sustentável.  Do ponto de vista do desenvolvimento conceitual é importante distinguir ambientalidade de meio-ambiente e de sustentabilidade ambiental e ecológica, como desenvolveremos a seguir. São três dimensões diferenciadas, do ponto de vista ontológico, embora próximas do ponto de vista operacional.

 

Ambientalidade, ambientabilidade e sustentabilidade: noções fundamentais para pensar uma perspectiva ontológica da totalidade

Distingo ambientalidade, que é uma dimensão da essência humana, de ambientabilidade, que é a capacidade, a habilidade de lidar com o ambiente como uma consequência direta que procede de nossa dimensão ambientalidade. Proponho definir "Ambientabilidade" como: "Dimensão que decorre do existencial ambientalidade e através da qual me percebo como um dos guardiões do universo, ser capaz de cuidar do planeta como cuido de mim mesmo através de ações eficazes de proteção e de preservação".

Nesse sentido, somos ambientais e podemos, se nos percebemos como tal, sentirmo-nos responsáveis pelo cuidado do meio ambiente como parte de nós. Fiorillo (2008) distingue o meio ambiente natural e físico do meio ambiente artificial. O primeiro é composto por solo, água, ar, flora e fauna; o segundo pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico; compondo o espaço urbano. Compreendemos "Meio ambiente" como o conjunto de fatores naturais e artificiais, físicos, biológicos, químicos que afetam a vida humana, bem como a outros ecossistemas existentes e que são também afetados por eles.

O tema da sustentabilidade implica o modo como nos relacionamos com o meio ambiente. Ramos (2010) discute o problema a partir de uma reflexão sobre as diferentes concepções filosóficas de natureza. Descreve a influência do dualismo cartesiano e do mecanicismo no desenvolvimento de uma perspectiva a partir da qual sujeito e natureza se separam e se distanciam, e onde a razão tem primazia e domínio sobre a natureza. O mecanicismo é, segundo a autora, uma revolução da razão que objetifica a natureza.

Uma característica fundamental da revolução mecanicista foi atribuir à razão humana um poder nunca antes pensado. E, desse modo, o domínio sobre a natureza ganhou força na medida em que esta deixa de ser um objeto mítico ou uma realidade metafísica para a contemplação teórica. Uma vez desvendado o mecanismo da natureza, ela pode ser dominada, manipulada e usada em proveito dos seres humanos. Com os modernos, a natureza se transforma em objeto de explicação prática do conhecimento humano que, associando as leis da ciência a uma aplicação técnica, se traduz em poder tecnológico. (Ramos, 2010, p. 81).

Atualmente, lidamos com uma situação que parece não ter alterado o problema da dominação do homem sobre a natureza. O modo de agir técnico dos sujeitos na sociedade ocidental foi objeto das discussões do filósofo Martin Heidegger (2002). Tal como discute Critelli (2002) a técnica é a modificação de um modo de fazer humano, uma nova forma de agir e de olhar o mundo.

Como olhamos para o mundo e para o existir desde essa ótica técnica, tudo o que faz parte do mundo fica subordinado a ela. Os elementos naturais, por exemplo, ficam compreendidos e disponibilizados para esse tipo de agir. Assim, uma floresta perde a sua condição primordial de floresta e se restringe a ser reserva de madeira para a indústria; as plantas ficam disponibilizadas como reserva para a produção de remédios; os rios tornam-se reservas para o uso das hidroelétricas e a produção de energia, e assim por diante. (Critelli, 2002, p. 85).

Vivemos uma crise política e ética onde não assumimos nossa parte e responsabilidade na administração e gestão dos recursos naturais. E cuja essência envolve o rompimento de nossa unidade com a natureza, levando à possibilidade de destruição do planeta.

Busco, neste trabalho, resgatar a ambientalidade como essência do humano e pensar a ambientabilidade como capacidade que deve e pode ser resgatada para que o planeta seja salvo da destruição. Como discutirei adiante, a Gestalt-Terapia tem ferramentas para contribuir com a formação dos sujeitos e com uma reflexão que permita transformar esse estado de crise planetária que pode ser conotado como uma espécie de suicídio, movimento de autodestruição que envolve a negação da unidade do humano com a natureza.

Corroboro a compreensão de Ramos (2010) de que:

O grande desafio para a humanidade nos dias atuais é a construção de um novo conceito de natureza, o que significa buscar novas formas de relação entre a sociedade e a natureza e dos homens entre si. Uma natureza em que os seres humanos se reconheçam como parte integrante dela e, por isso, como responsáveis por ela. (p. 82).

Proponho definir "Sustentabilidade Ambiental e Ecológica" como: "Processo de cuidar dos recursos naturais, antecipando-se às necessidades futuras, de modo que a vida possa se manifestar no fluxo de uma consciência ética e amorosa, para que o planeta possa se tornar auto-sustentável, baseando-se no fato de que, por natureza e por essência, somos mundo, somos com e através do outro." Somente uma coexistência real e afetiva entre ambientabilidade e sustentabilidade nos permitirá uma era de uma ecologia profunda, duradoura e sustentável para nosso planeta.

Dentro do contexto de ecologia profunda, a visão segundo a qual esses valores são inerentes a toda natureza viva está alicerçada na experiência profunda, ecológica e espiritual de que a natureza e o eu são um só. Esta expansão do eu até a identificação com a natureza é a instrução básica da ecologia profunda. (Capra , 1996, p. 28).

A natureza sou eu, eu sou a natureza, o ambiente sou eu, eu sou o ambiente, não somos duas realidades, somos uma só, meu corpo sou eu, eu sou meu corpo. Sou um corpo-pessoa e nele coexistem minha ambientalidade-minha-animalidade-minha-racionalidade, constituindo uma totalidade de carne e osso, chamada pessoa-humana e cujas partes estão intra ligadas, intra conectadas de uma maneira ontologicamente inseparável.

 Esta definição, este posicionamento revela uma ética holística e ecológica de dimensões e consequências novas e originais. Esta visão introduz a unidade, a cumplicidade, a co-responsabilidade de se sentir guardião do universo.

Percebermo-nos como seres ambientais-animais-racionais e, nos sentirmos como tais, cria uma profunda sensação de pertencimento, de aconchego, de carinho e de cuidados mútuos entre nós e o universo, e nos retira do sentimento de solidão tão comum hoje em que, muitas vezes, os aparelhos eletrônicos, físicos, químicos, sem vida, se tornaram a companhia substitutiva e fria de grande parte da humanidade.

Estamos dizendo que a natureza, o meio-ambiente são partes constituintes e constitutivas da estrutura da personalidade humana. Experienciar o sentir, o pensar, o fazer-agir, como ambientais-animais-racionais, é uma com-vocação de todo o nosso ser para experimentar e vivenciar a mais harmoniosa relação corpo-ambiente, em ação, no mundo. Estamos falando de um ajustamento criativo, quiçá, criador na relação pessoa-mundo, como uma harmoniosa forma de contato pela experiência de se sentir em total imersão com o mundo à nossa volta.

 

Ambientalidade: Gestalt-Terapia, totalidade e ecologia como caminho de espiritualidade

Ambientalidade é o terceiro elemento existencial humano por meio do qual nos tornamos, necessariamente, seres de relação, em relação, seres no mundo, do mundo e para o mundo. Prestamos pouca atenção a esse existencial, sem nos dar conta de que estamos imersos no ar, no calor, na atmosfera, elementos sem os quais nossa vida seria impossível. Tal como o peixe que não pode viver fora d`água, seria igualmente impossível ao ser humano viver sem as condições básicas que o meio ambiente lhe proporciona.

A vida corpóreo-mental é fruto do que nossa ambientalidade nos oferece, pois estamos sujeitos, imediatamente e sempre, à sua influência. O meio ambiente é nosso habitat e é por meio dele que conseguimos fazer da existência o locus que nos move, que nos nutre e que torna a vida possível e humana.

Assim como a Gestalt-Terapia, também os conceitos de ecologia e de ambientalidade estão centrados no conceito de campo e de totalidade. Somos seres no mundo e do mundo, e cuidar do mundo é cuidar de nós mesmos. Cuidar do mundo é cuidar de nossas dimensões básicas. Na maioria das vezes, em nossa relação com o mundo, vemo-nos numa posição dentro e fora; contudo, na realidade, nossa posição real é dentro-fora, uma vez que, seres de encontro e de cuidado, não nos é claro o que é de dentro e o que é de fora ou o que é dentro e o que é fora.

O conceito de ambientalidade implica, obrigatoriamente, não apenas em estar atento à nossa relação com o mundo, mas em se experienciar como mundo, como do mundo, como pertencente ao mundo, assim como um rio ou uma árvore pertencem ao mundo. Sou mundo, o mundo sou eu, sou propriedade sua, sem ele eu seria impensável. Assim, é por intermédio do conceito ambientalidade que a Gestalt-Terapia, como expressão harmoniosa de nossa totalidade humana, faz-se, consequentemente, ecológica.

Ser substancialmente ambiental significa que sou o ambiente e o ambiente sou eu. Nenhuma fragmentação, somos um. Ser espírito-matéria, ou matéria-espírito nasce naturalmente da nossa dimensão primeira, ambientalidade, que, por uma coexistência ontológica, revela em nós a existência de uma dupla dimensão coexistente em nós a matéria/materialidade e o espírito/espiritualidade. Assim, somos corpo-matéria-materialidade, espírito-psique-espiritualidade. Duas dimensões absolutamente humanas, inseparáveis.

Corporeidade nos dá uma sutil experiência de espacialidade e de materialidade, o que a coloca sutilmente no mundo da quantidade, ao passo que espiritualidade nos dá uma sutil experiência de temporalidade e de imaterialidade, o que a coloca sutilmente no mundo da qualidade. A relação figura-fundo cabe perfeitamente na relação espiritualidade-ambientalidade ou ambientalidade-espiritualidade, dependendo do olhar ontológico a partir do qual poderíamos pensar uma antecedência metafísica entre estas duas realidades.

Nossa dimensão ambientalidade está diretamente ligada a uma relação espaço-temporal. Enquanto uma dimensão que convive com o dentro-e-fora, ela é ontologicamente dentro e, cronologicamente fora, através dos elementos que compõem o universo. Vivemos uma absoluta coexistência, sendo, ao mesmo tempo, espacialmente corpo, quantidade, materialidade e temporalmente espírito, qualidade, espiritualidade. Espiritualidade é uma dimensão, um "proprium" humano. Somos espirituais, porque somos humanos, somos humanos, porque somos espirituais.

A Gestalt-Terapia, como uma configuração, gera um campo de espiritualidade que se sustenta, que se alimenta de conceitos como contato, awareness, ajustamento criativo, homeostase, pregnância, mudança paradoxal. A Gestalt-Terapia operacionaliza estes conceitos, enquanto geradora de caminhos de espiritualidade, de uma temporalidade a ser vivida na corporalidade da busca de opções para melhor experienciar nossa humanidade, nosso encantamento por nós e pelo mundo.

Quando nos encantamos com uma noite estrelada, com a majestade das montanhas, com a força misteriosa do mar, com a suavidade do canto dos pássaros, estamos experienciando nossa ambientalidade, o mágico processo evolutivo que nos trouxe até aqui, encantando-nos conosco, porque somos partes constituintes de tudo isso e tudo isso é parte fundante de nós mesmos; afinal, somos isso também. Tudo isso é como uma orquestra da qual somos um dos instrumentos, cujas notas, se retiradas, desafinarão toda a melodia. Esta conexão entre você e o outro humano ou não e através da qual você transcende a simples objetividade da coisa através da ressignificação de um novo sentido, é o que constitui a natureza da espiritualidade. Um constitui o outro ultrapassando seu sentido anterior. O encantamento por um pôr do sol, atribuindo-lhe um olhar que vai além do fato material do pôr do sol, é a percepção da totalidade que chega até nós como a arte suprema do universo. Estamos, aí, no reino da espiritualidade.

A totalidade precede ontologicamente suas partes, por isso estes três elementos, animalidade que se expressa fundamentalmente pelo nosso corpo, racionalidade, que se expressa fundamentalmente pelo nosso pensamento, e ambientalidade que se expressa fundamentalmente como meio-ambiente, se juntam, constituindo-se numa totalidade essencial, encarnada na pessoa humana. Devemos pensar esses três componentes como Todos e constituí-los numa única essência, sem cair nas armadilhas do mecanicismo, que reafirma a prioridade das partes com relação ao todo.

O 'Todo', em cada caso individual, é o centro e a fonte criativa de realidade. Existem uma infinitude destes todos, abrangendo todos os graus de existência no universo. . . . Holismo compreende todos os Todos no universo. Holismo é, ao mesmo tempo, um conceito e um fator: um conceito, enquanto significa todos os Todos, e um fator, porque os Todos que ele revela são reais fatores no universo. Nós falamos matéria, enquanto inclui todas as partículas da matéria no universo; do mesmo modo nós falamos Holismo, enquanto incluindo todos os Todos, são Todos que são, finalmente, centros criativos de realidade no universo. (Smuts, 1996, p. 116-117).

Psicologia e humanismo não podem perder a perspectiva dessa visão de totalidade como essência humana. A Gestalt-Terapia, por sua própria definição, baseia-se nessa visão de totalidade operacionalizada, permitindo-nos afirmar, inclusive, que algumas patologias são disfunções desses elementos existenciais, que, quando operacionalizados separadamente, rompem a unidade operativa do ser humano.

Gravei parte desta minha reflexão, num momento em que estava diante do mar, assentado em uma pedra. Estou escutando seu barulho, sua música relaxante, tentando sentir o movimento das ondas que vão e que vêm, que nunca param, que estão sempre à procura de novas areias, de novos horizontes. Acho que é isso que nos espera, sermos como as ondas do mar, marés altas, marés baixas, e sempre em movimento, preparando-nos para uma nova onda, para uma nova jornada. O mar está me ensinando agora, neste momento, o seguinte:

Vida é movimento. Viver é estar em estado de travessia. Nascemos, não sabemos para onde vamos e, muitas vezes, não sabemos de onde viemos. Estar em estado de travessia é procurar a melhor forma, o melhor caminho, o melhor contato. O Gestalt-Terapeuta é um caminhante, caminha olhando para onde vai, sem perder a perspectiva do encontro, do aqui-e-agora.

Trabalhei, ao longo deste texto, um novo tema, original: "Ambientalidade, Coexistência e Sustentabilidade: uma Gestalt em movimento". Esta é nossa estrada, nosso caminho, o deserto que vamos percorrer daqui para frente.

Ambientalidade nos remete a uma relação intrínseca ambiente-corpo. É o concreto, o real, o objetivo, imersão na nossa relação mundo-corpo-pessoa, exatamente como eles são, é experiência, vivência, encontro com nossos elementos estruturantes: fogo, ar, terra, água, constituintes da mãe-terra através dos quais somos gerados em um longo e criador processo evolutivo.

Experienciar, vivenciar Ambientalidade, Coexistência e Sustentabilidade são etapas, respostas que cada ser humano vive por estar no concreto, no objetivo, por olhar o mundo exatamente como ele é, e, a partir desse olhar, olhar o horizonte que o chama, que o provoca. O horizonte é o diferente, é o que está do outro lado da estrada, é por onde caminhamos ao encontro da espiritualidade, da transcendência que se ligam intrinsecamente na constituição de uma Gestalt plena e criadora.

Coexistir, coexistência é viver em espírito de Totalidade, é colocar em prática a consciência de que tudo afeta tudo, é acreditar, de verdade, que tudo está ligado a tudo, que tudo muda, que estamos em estado de mudança permanente e que, não obstante tudo, tudo é UM. Esta é a coexistência, único caminho possível para a manutenção da sustentabilidade humana e ecológica. Este caminho nos leva à transcendência. É para lá que somos chamados. Nosso olhar não se firma apenas na Ambientalidade. Caminhamos daí para a co-existência e só então para a Sustentabilidade. Isto significa que não existem mundo e eu, natureza e eu, mas antes, que somos uma totalidade única, viva, em processo e que estamos sempre à cata do sentido das coisas, das coisas que nos provocam, que nos chamam e às quais precisamos responder.

 

Considerações Finais

Ser pessoa e, sobretudo, ser Gestalt-Terapeuta, é estar em estado de permanente travessia, em estado de movimento total. É fluir, é sentir, é ter uma consciência corporal cada vez mais profunda. É se mobilizar, é agir, interagir, é se encontrar com o mundo exatamente como ele é. É ser como ele é, é ser co-existência na carne, viva e operante. É procurar a realização do momento que retrata uma totalidade, a relação parte-todo, figura-fundo, corpo-ambiente e a máxima unidade mulher-homem, para aí visualizar uma nova Gestalt, um novo momento que pedem respostas concretas.

Entendo que este tema é uma Gestalt que nos impele a fazer passagens da Gestalt para a Gestalt-Terapia. Gestalt-Terapia do caminho, da estrada, da travessia de onde estamos para onde vamos, da Ambientalidade para a Coexistência e daí para a Sustentabilidade. É nos responsabilizarmos não só pelo aqui-e-agora, mas por toda uma estrada que deve ser feita e para a qual o instante nos convoca.

Esse tema intima, provoca a nós, Gestalt-Terapeutas a, ao mesmo tempo, olhar o aqui-e-agora, a realidade exatamente como ela se apresenta, olhar para frente, sermos mensageiros de um novo mundo, de uma nova mentalidade, de uma nova estrutura, fieis a nossa alma ambiental da qual emanam Sustentabilidade e Coexistência, condições estruturantes de uma nova visão de mundo e de pessoa.

Somos gente incomodada, cúmplices do aqui-agora, espacialidade e temporalidade constituídas. Este aqui-agora é sagrado e nos convida a tirar os sapatos diante dele, a nos desvestirmos, a tirarmos as nossas roupas para, assim como a natureza nos fez, caminharmos na direção do amanhã, livres de nós mesmos, livres de toda estrutura que nos prende, para olhar o mundo de uma maneira diferente, adequada, real e efetiva.

Esta é nossa caminhada, cuidadosos de nossa subjetividade, atentos à objetividade das coisas, para através delas e com elas, pensarmos o mundo diferentemente, um mundo novo, um mundo melhor, no qual as pessoas possam olhar para si mesmas, para o outro, para o mundo e sentir alegria de ser pessoa. É essa a nossa caminhada, é essa a nossa proposta.

Um mundo em coexistência, no qual nosso sentir, pensar, fazer, falar, no qual nossas dimensões ambientalidade, animalidade, racionalidade, no qual nossa relação ambiente-corpo possam ser vividos como uma totalidade estruturante de um novo paradigma, de um novo modelo no qual a relação mundo-pessoa se constitua na ética e na estética que moverá as necessidades humanas.

Isto é o que estamos chamando de Ambientalidade, uma nossa dimensão esquecida e ignorada através da qual experienciamos o mundo, não como o outro, mas como parte nascida dele, gerada por ele, com uma sensação imponderável de que sou mundo e que o mundo sou eu. Eu-ele, ambiente-corpo, configuração perfeita, Gestalt plena.

Ambientalidade não é uma questão ambiental, não é um estilo de vida, não é um programa a ser levado a cabo, ambientalidade é uma dimensão humana, parte constitutiva, fundante de uma totalidade, pessoa-mundo, da qual fazem parte também a animalidade e a racionalidade.

Vivemos uma realidade ontológica, somos uma Gestalt, uma configuração, cujas partes estão integradas, articuladas, em metafisica interdependente, formando uma unidade de sentido que pode ser nominada pelo sujeito observador, de tal modo que a modificação em uma de suas partes acarretará uma modificação no todo, realidade expressa de maneira magistral por Edgar Morin, quando afirma: "o todo está na parte que está no todo." (Morin, 1990, p. 109).

Estou pensando que falar deste novo conceito Ambientalidade é  propor um paradigma novo, porque estamos saindo de uma visão de Mundo e de Pessoa fragmentada, mecanicista, reducionista para uma visão gestáltica, sistêmica, holística, de ecologia profunda em que a realidade é vista como um todo, cujas partes co-existem interligadas e interdependentes e que, indo além de uma visão holística, nos conduz a pensar nos modos funcionais de como esta Totalidade se constituiu através de uma bilenar evolução, hoje ainda em andamento.

Se e quando este conceito Ambientalidade começar a entrar no inconsciente cultural da humanidade, e as pessoas começarem a se sentir, a se perceber não como donas, proprietárias da mãe-terra, mas como parte constituinte do cosmos, uma nova onda de proteção do meio-ambiente começará a vislumbrar a verdadeira sustentabilidade: é a pessoa humana que precisa ser salva, porque o universo, se respeitado, tem o de que precisa para ser aquilo que ele é, sem ajuda externa.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Jorge Ponciano Ribeiro
Universidade de Brasília - UnB
SRTVN Qd. 702, Bl. P, Sl. 2119, CEP 70719-900, Brasília - DF, Brasil
Endereço eletrônico: jorgeponcianoribeiro@yahoo.com.br

Recebido em: 13/10/2019
Reformulado em: 05/01/2020
Aceito em: 06/01/2020

 

 

Notas

* Professor Titular Emérito da Universidade de Brasília. Fundador e Presidente do Instituto de Gestalt-terapia de Brasília/DF.

 

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