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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.20 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2020.52582 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2020, Vol. 02. doi:10.12957/epp.2020.52582
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Eventos de vida e Construção da Identidade na Adultez Emergente

 

Life Events and Building Identity during Emerging Adulthood

 

Eventos de Vida y Construcción de Identidad en la Adultez Emergente

 

Tuíla Maciel Felinto*; Gustavo Gauer**; Giulia Bodanese Rocha***; Karen Cristina Rech Braun****; Ana Cristina Garcia Dias*****
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFGRS, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Durante o período da adultez emergente, a forma como eventos vividos são compreendidos é afetada pela narrativa de história de vida internalizada pelo indivíduo. A investigação dos tipos de experiências mais frequentes nessa fase contribui para a compreensão da forma como histórias de vida e identidades são construídas. O objetivo deste estudo foi investigar temáticas frequentes nos eventos de vida considerados importantes por jovens universitários. Participaram 287 universitários, com idades entre 18 e 35 anos (M = 22,55; DP = 5,88) que responderam a um questionário no qual relataram sete eventos mais importantes de suas vidas. Valência emocional, importância, prevalência e idade na qual ocorreu foram atribuídos pelos participantes aos seus eventos de vida. Os eventos citados foram, em sua maioria, considerados positivos, resultado condizente com a literatura sobre memória autobiográfica. As três categorias mais citadas envolveram temáticas relacionadas à exploração identitária e de possibilidades, características marcantes da adultez emergente.

Palavras-chave: história de vida, eventos de vida, memória autobiográfica, adultez emergente.


ABSTRACT

During the emerging adulthood life period, the way that the events are understood is influenced by the internalized life story narrative. The investigation of the kind of experience that is most frequent in this period contributes to the understanding of the way life stories and identities are built. The goal of this study was to investigate the most frequently found themes in the events considered the most important ones by Brazilian undergraduates. Participants were 287 college students, with ages between 18 and 35 years (M = 22,55; SD = 5.88), who completed a questionnaire about the seven most important events that happened in their lives. Participants also rated each event for valence, importance, prevalence, and the age in which it occurred. The events mentioned were mostly positive, a result in line with the literature on autobiographical memory. The three most mentioned categories were related to the exploration of identity and possibilities that are characteristic of the emerging adulthood.

Keywords: life story, life events, autobiographical memory, emerging adulthood.


RESUMEN

Durante el periodo de la adultez emergente, la forma como se comprenden los eventos vividos es afectada por la narrativa de historia de vida internalizada por el individuo. La investigación de los tipos de experiencias más frecuentes de esta fase contribuye para la comprensión del modo en que las historias de vida y las identidades son construidas. El objetivo de este estudio fue investigar temáticas frecuentes en los eventos de vida considerados importantes por jóvenes universitarios. Participaron 287 universitarios con edades entre 18 y 35 años (M = 22,55; DE = 5,88), respondiendo a un cuestionario en el que relataron los siete eventos más importantes de sus vidas. Valencia emocional, importancia, prevalencia y edad en la que ocurrieron los eventos fueron atribuidos por los participantes a sus eventos de vida. Los eventos citados fueron considerados positivos en su mayoría, un resultado congruente con la literatura sobre memoria autobiográfica. Las tres categorías más citadas comprenden temáticas relacionadas a la exploración de la identidad y de las posibilidades, características marcantes de la adultez emergente.

Palabras clave: historia de vida, eventos de vida, memoria autobiográfica, adultez emergente.


 

 

A temática da construção da própria identidade é motivo de fascínio não só para a psicologia como também para as mais diversas formas de arte e variados produtos da cultura humana. Um enorme volume de filmes, livros e músicas, entre outros, se dedicam a explorar o processo pelo qual as pessoas passam para definir quem são, como isso acontece, quais os momentos vividos foram essenciais para o desenvolvimento do senso de reconhecimento de si mesmo e como esses acontecimentos se organizam para formar a noção de identidade. Esse estudo busca investigar quais os eventos da própria vida, que uma amostra de jovens universitários considera mais importantes e quais as principais temáticas envolvidas nesses eventos, de forma a contribuir para a compreensão do processo de construção da identidade.

O sistema neuropsicológico e os processos cognitivos que permitem lembrar e relatar o próprio passado são chamados de memória autobiográfica. A representação dos eventos pessoais na memória e sua posterior recordação permitem que o indivíduo construa sua identidade a partir das situações vivenciadas, de suas consequências e das interpretações feitas acerca da experiência. Recordar um evento pessoal se dá de forma consciente e envolve não apenas a recuperação da informação como também a certeza de lembrar que a situação ocorreu (em oposição a apenas saber do ocorrido), o senso de reviver o evento e o sentimento de voltar no tempo (Gauer & Gomes, 2007).

O processo de lembrar e relatar vivências passadas permite manter o senso de identidade e continuidade de si mesmo (Rubin, Berntsen, & Hutson, 2009). Dessa forma, na história de vida de alguém não se trata apenas de uma sequência objetiva de acontecimentos pessoais, mas de um processo reflexivo, a partir do qual o indivíduo pode conectar experiências e significados, formando uma narrativa coerente que se relaciona com sua identidade. O conceito de história de vida (life story) está relacionado à forma como o indivíduo pensa e relata a própria trajetória, indo além de uma sequência objetiva de eventos (life history). Portanto, a história de vida inclui tanto a narrativa do indivíduo (produto linguístico que é recontado em um contexto social e tempo específicos) quanto o raciocínio autobiográfico (autobiographical reasoning), que envolve reflexão acerca do próprio passado de forma a conectá-lo com o presente (Habermas & Bluck, 2000).

Durante a infância, o indivíduo possui uma noção de si mesmo que é construída a partir de afirmações e características atribuídas à pessoa, mas é só durante a adolescência que a noção de identidade começa a ser construída. Além disso, o período do final da adolescência e início da fase adulta também é palco de transformações importantes que contribuem para a consolidação da identidade. Este período é marcado por sentimentos de ambivalência entre o prolongamento da exploração dos diferentes papéis sociais possíveis e a dificuldade em assumir completamente responsabilidades e compromissos mais profundos. Ao longo desse período de transição, chamado de adultez emergente e estimado entre os 18 e 25 anos de idade, os indivíduos possuem certa autonomia dos pais e experimentam mudanças em papéis sociais. Nessa fase, a pessoa não se enxerga mais como adolescente, mas ainda não se percebe como adulto (Arnett, 2005; Arnett, 2011; Dutra-Thomé & Koller, 2014).

O conceito de adultez emergente, enquanto fase do desenvolvimento, foi trazido pela primeira vez por Arnett (2000). Este autor destacou que em sociedades industriais e ocidentais, a entrada na vida adulta é adiada um pouco mais a cada geração, com jovens decidindo por casamento e filhos cada vez mais tarde e com a disseminação do ensino superior enquanto caminho possível. Dessa forma, o início da terceira década de vida se diferencia da adolescência devido à maior independência alcançada, mas também da vida adulta, uma vez que, em geral, ainda não há a limitação dos compromissos familiares e de trabalho. O adulto emergente se encontra, então, em uma situação de vida que permite explorar variadas possibilidades identitárias nas mais diversas áreas da experiência humana, destacando-se entre estas os relacionamentos, o trabalho e as visões de mundo.

Arnett (2004) propôs cinco dimensões características desse período: (a) explorações identitárias, (b) sentimento de instabilidade, (c) foco em si mesmo, (d) sentimento de ambivalência e (e) expectativas quanto ao futuro. Ao mesmo tempo em que permitem experimentar diferentes possibilidades identitárias, profissionais e afetivas, as vivências desse período trazem uma sensação de instabilidade, uma vez que o indivíduo continua apresentando certas características da adolescência como dependência financeira, por exemplo (Dutra-Thomé & Koller, 2014).

No período da adultez emergente, a forma como os eventos vividos são compreendidos é profundamente afetada pela narrativa de história de vida internalizada pelo indivíduo. O passado é constantemente reconstruído, o presente é interpretado e o futuro é antecipado a partir da evolução dessa história. As memórias consideradas como pontos marcantes para o indivíduo são construídas de acordo com a interpretação que é dada tanto para o evento em si quanto para suas consequências. Dessa forma, a narrativa da história de vida pode ser considerada como produto de uma escolha realizada pelo indivíduo, que seleciona eventos que serão lembrados como definidores da identidade (McAdams, 2003).

Independentemente do formato utilizado para o relato, uma história de vida pessoal não inclui todo e qualquer evento vivido, uma vez que o volume de informações seria imenso. Na verdade, trata-se de uma seleção de acontecimentos que apresentam certa relevância para a construção da narrativa e significado pessoal, tanto no momento da codificação do evento quanto no momento da recuperação da memória (Bluck & Habermas, 2000). Em geral, os relatos de história de vida incluem eventos que têm como objetivo informar algo importante sobre o narrador, destacam-se de alguma forma (desvio da normalidade ou do esperado), se referem a conflitos que não foram resolvidos e possuem alta carga emocional ou representam momentos de mudança e preocupações duradouras (Habermas, 2007).

A investigação de eventos de histórias de vida demonstra que a maioria dos eventos recordados pelos participantes ocorreram entre os 15 e os 30 anos de idade. Esse fenômeno é chamado de reminiscence bump e inclui memórias de eventos que representam desafios para a construção da própria identidade (Steiner, Pillemer, Thomsen, & Minigan, 2014). Alguns pesquisadores sugerem que esse fenômeno ocorre devido à grande carga emocional e ao conteúdo relacionado à formação da identidade que os eventos dessa etapa da vida possuem (McAdams, 2003). A investigação do tipo de experiência mais frequente nessa fase contribui para a compreensão da forma como histórias de vida e identidades são construídas.

O objetivo deste estudo foi investigar as temáticas mais frequentes encontradas nos eventos vividos considerados mais importantes por jovens universitários. Os participantes foram questionados acerca de suas vivências mais marcantes e as classificaram em termos tanto de importância quanto de valência, prevalência e da idade na qual ocorreram. O processo de recordar a própria história requer uma filtragem da imensa quantidade de informações armazenadas (Bluck & Habermas, 2000), por isso espera-se que eventos importantes para a construção e integração de um senso coerente de si mesmo sejam selecionados. O levantamento desses eventos permite analisar de forma mais sistemática as situações e as temáticas mais marcantes para universitários brasileiros que se encontram na etapa da adultez emergente.

 

Método

Participantes

A amostra foi composta de 287 estudantes universitários, com idades entre 18 e 35 anos (M = 22,55; DP = 5,88). Uma vez que a faixa etária da adultez emergente (estimada entre 18 e 25) não é inflexível, pois depende de diversos fatores culturais, a delimitação da faixa etária dessa amostra é um pouco mais abrangente. Os participantes eram em sua maioria mulheres (71%), de 18 estados brasileiros (sendo 52% do Rio Grande do Sul, 16,5% de Minas Gerais e 7,3% de São Paulo). A maioria dos participantes eram estudantes de universidades públicas (80,13%), solteiros (86,4%) e não tinham filhos (95%). Um pouco mais da metade (57%) não trabalhava. Com relação à renda familiar, 40,5% dos participantes declarou receber abaixo de R$ 2.490, 27,5% entre R$ 2.490 e R$ 4.980 e 32% recebiam acima de R$ 4.980.

Instrumentos

Questionário sociodemográfico. Os participantes informaram idade, gênero, cidade/estado em que moram, estado civil, filhos, renda familiar, profissão/ocupação, histórico psiquiátrico e tipo de universidade na qual estudam (pública ou privada).

Questionário de história de vida. O questionário de eventos de vida solicita que os participantes relatem os sete eventos mais importantes de suas vidas, na ordem em que se lembrarem deles. Depois, devem relatar o quanto foi importante, se foi positivo ou negativo, que idade tinham quando o evento ocorreu e o quanto acreditam que cada evento que descreveram ocorre com outras pessoas (Berntsen & Rubin, 2004; Rubin et al., 2009).

As instruções foram as seguintes:

"Sua tarefa é escrever os sete eventos de sua vida pessoal – do seu nascimento até o dia de hoje – que são mais importantes para a história da sua vida. Escreva os eventos na mesma ordem que eles lhe vierem à cabeça. Dê a este evento um título, de forma que você mesmo consiga identificar este evento depois."

Depois de feito o relato, cada evento descrito era novamente apresentado ao participante, que deveria responder às medidas de prevalência, valência, importância e idade no evento.

A medida de prevalência foi respondida em uma escala de 0 a 100 (número de pessoas), a medida de valência foi respondida em uma escala de -3 a +3 (de muito negativo até muito positivo), a importância foi medida em uma escala de 1 a 7 (de não importante até mais importante possível) e a idade no evento foi medida em anos.

As instruções para as medidas foram:

"O quão comum é o evento ‘[1]'? De um conjunto de 100 pessoas, quantas irão experimentar este evento pelo menos uma vez durante suas vidas?
O quão importante é o evento ‘[1]' para você? (Utilize o intervalo entre 1 e 7 para responder, sendo 1= não importante e 7= o mais importante possível)
Quantos anos você tinha quando o evento ‘[1]' aconteceu com você?
Para você, ‘[1]' é um evento positivo ou negativo? (Utilize o intervalo de -3 a +3 para responder, sendo -3 = muito negativo e +3 = muito positivo)".

Procedimento

Coleta dos Dados

Os dados foram coletados através da plataforma Survey Monkey. A primeira tela continha um termo de consentimento, ao qual o participante deveria responder "Concordo" para continuar ou "Não concordo" para sair do questionário, clicando em um botão.  Em seguida, eram apresentados o questionário sociodemográfico e o questionário de história de vida. Todos os procedimentos foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Os participantes foram contatados via e-mail distribuído para professores de diversas universidades pelo Brasil. A coleta de dados parou com 422 participantes e os dados foram verificados, sendo excluídos aqueles que não completaram o questionário ou que inseriram respostas que não eram eventos, restando 287 participantes na amostra final.

Análise dos Dados

Os eventos foram classificados inicialmente a partir de uma lista de 38 categorias derivada do estudo de Scherman (2013), que investiga estudos com roteiros de vida em diferentes amostras (Berntsen & Rubin, 2004; Bohn, 2010; Erdogan, Baran, Avlar, Tas, & Tekcan, 2008; Janssen & Rubin, 2011; Rubin et. al., 2009). A autora realizou uma compilação das categorias de sete estudos realizados na Dinamarca, Holanda, Turquia e Estados Unidos. Essa lista foi utilizada em um estudo de roteiros de vida realizado com esta amostra, chegando a uma lista com 38 categorias. Este procedimento é semelhante ao realizado por Rubin et al. (2009), em que eventos de histórias de vida foram categorizados a partir de categorias derivadas de um estudo com roteiros de vida. Foram analisados 2009 eventos e distribuídos nessas categorias por um juiz independente e por um segundo juiz, que categorizou 25% dos eventos. O resultado do Kappa para a análise de dois juízes foi de 0,83, que indica uma concordância quase perfeita (Viera & Garret, 2005). A categoria "Outros" foi analisada uma segunda vez e novas categorias foram criadas para abarcar os conteúdos trazidos por essa amostra. Foram realizadas análises descritivas (frequências, médias e desvios padrão) das categorias finais e correlações entre as medidas. A medida de valência foi deslocada para uma escala de um a sete para a realização dos cálculos.

 

Resultados

O processo de categorização resultou em um total de 27,2% dos eventos incluídos na categoria "Outros", como é esperado para eventos de história de vida analisados a partir de categorias de roteiros de vida (Rubin et. al, 2009). De acordo com os objetivos deste estudo, a categoria "Outros" foi reanalisada e novas categorias foram criadas (Tabela 1).

 

 

A lista final (Tabela 2) conta com 40 categorias. A categoria "Outros" engloba todas aquelas que foram citadas por menos de 4% da amostra (Bohn & Habermas, 2015), sendo 16,5% do total de eventos citados. Alguns exemplos são "Nova faculdade/pós-graduação", "Concursos", "Terapia" e "Comprar uma casa".

 

 

De acordo com a medida de importância (M = 6,32; DP = 0,41), os eventos relatados corresponderam ao que foi solicitado na pergunta de pesquisa, uma vez que a medida apresentou uma média alta e um desvio-padrão baixo. Já a medida de prevalência, indica que os eventos citados variam no quanto são considerados comuns (M = 67,45; DP = 17,01). A média de valência dos eventos indica que a amostra citou predominantemente eventos positivos (M = 1,88; DP = 1,39). Da lista de categorias apresentada, 35 foram consideradas positivas e quatro negativas ("Morte de outros", "Separação dos pais", "Doença grave" e "Morte dos pais"). Considerando um alpha de 0,05, foram encontradas correlações significativas negativas entre as variáveis prevalência e idade no evento e entre importância e idade no evento. As correlações entre as outras variáveis não foram significativas. (Tabela 3)

 

 

A quantidade de eventos ocorridos entre os 15 e 30 anos (62,8%) indica uma alta proporção em comparação com aqueles ocorridos antes ou depois desse período (37,1%). Dos eventos ocorridos na faixa etária destacada, 89,1% foram considerados positivos (Figura 1).

 

 

Figura 1. Gráfico da distribuição de eventos positivos, negativos e neutros por idade.

 

Dada a faixa etária da amostra, não é possível discutir a evidência do reminiscence bump, uma vez que a alta proporção de eventos nessa faixa de idade também pode se dar devido ao fenômeno conhecido como recency effect, em que as memórias mais recentes são recuperadas facilmente (Gauer & Gomes, 2007).

 

Discussão

Os participantes, de forma geral, citaram eventos considerados por eles como muito importantes e principalmente positivos, ocorridos durante a faixa que vai dos 15 aos 30 anos, em sua maioria. De acordo com o conceito cultural de biografia, trazido por Bluck e Habermas (2000), a organização da história de vida se dá também em termos do que é esperado culturalmente para uma trajetória comum. Estudos indicam que as expectativas culturais construídas pelos membros de uma sociedade englobam majoritariamente eventos positivos (Scherman, 2013). Dado que, ao selecionar os eventos mais importantes para incluir em um relato da própria trajetória, os indivíduos são influenciados pelas expectativas culturais (Berntsen & Rubin, 2004; Rubin et. al., 2009; McAdams, 2003), a maioria de eventos positivos no relato é esperada.

As 10 categorias mais citadas pelos participantes estão destacadas na Tabela 4. Destas, quatro se referem a eventos que ocorreram na infância ("Frequentar a escola", "Ter amigos", "Aprender/desenvolver-se" e "Entrar para a escola"). As restantes se referem a eventos ocorridos no período do final da adolescência e início da vida adulta, tendo médias de idade entre 16 e 20 anos. É possível identificar no conteúdo dessas categorias temáticas referentes ao momento de transição e experimentação da adultez emergente.

 

 

Segundo Arnett (2000), é possível destacar três áreas principais em que as questões de identidade são trabalhadas na adultez emergente: relacionamentos afetivos, trabalho e visão de mundo. As três categorias de eventos mais citadas por essa amostra se relacionam diretamente com a proposta do autor. A universidade se apresenta como um novo campo no qual o indivíduo pode experimentar e testar os próprios interesses, fazendo escolhas por conta própria, que contribuem para a construção de sua independência pessoal. O ambiente universitário permite que o indivíduo entre em contato com pessoas de diversos contextos diferentes, cujas ideias muitas vezes entram em conflito com o que foi aprendido durante a infância. Além disso, o próprio contato acadêmico com ideias e teorias variadas expande o repertório de visões de mundo que podem ser exploradas. Para muitas pessoas, o contexto universitário é a primeira oportunidade de contato com ideias conflitantes e de processar todas essas novas informações por conta própria.

Em um estudo com adolescentes e adultos emergentes, Verschueren, Rassart, Claes, Moons e Luyckx (2017) encontraram que, segundo o modelo de formação da identidade de Luyckx et al. (2008), os alunos no final do ensino médio poderiam ser classificados como em um status identitário mais difuso enquanto alunos universitários se encontravam em um status de moratória, caracterizado pela exploração de diferentes opções de possibilidades e visões de mundo. Embora não seja o objetivo deste trabalho classificar diferentes status da formação de identidade e sim explorar temáticas importantes para esse processo, os dados trazidos por esses autores indicam o caráter progressivo da formação da identidade desde o período escolar, se estendendo pela formação universitária.

Da mesma forma, é característica da adultez emergente a exploração da intimidade e o início de relacionamentos mais sérios e marcantes. Ao contrário da adolescência, em que os primeiros relacionamentos existem em um contexto de descoberta e experimentação, na adultez emergente existe um caráter de exploração mais profunda da intimidade. Compreender que tipo de pessoa é interessante enquanto um parceiro de longa duração implica em desenvolver a própria identidade. Este é o momento em que a exploração dos relacionamentos passa a acontecer tendo o futuro em mente de forma mais concreta, mas ainda com liberdade suficiente para mudar de ideia e buscar novas possibilidades (Arnett, 2000).

Além disso, a entrada no mercado de trabalho representa tanto uma oportunidade de experimentação quanto um passo em direção à independência financeira. Ainda sem uma família para sustentar, os indivíduos nessa faixa etária podem explorar diferentes áreas e se envolver em experiências, algumas não remuneradas, que não seriam possíveis com as responsabilidades da vida adulta. São oportunidades de descobrir habilidades e interesses que poderão indicar a direção de um trabalho mais estável e demandante no futuro (Arnett, 2000).

A independência é considerada um dos critérios para ser um adulto, de acordo com estudos realizados com participantes na faixa etária da adultez emergente. Nessa amostra, a categoria "Independência financeira/pessoal" se encontra em sétimo lugar. Em geral, as respostas de participantes de diferentes estudos com a faixa etária em questão, indicam que os três principais critérios para ser considerado um adulto são (a) aceitar a responsabilidade por si mesmo, (b) tomar decisões por conta própria e (c) ser financeiramente independente (Arnett, 2011). Além da importância atribuída a ser responsável pelos próprios gastos, os adultos emergentes têm, nesse momento, a oportunidade de realizar escolhas baseadas nos próprios interesses e opiniões pessoais. Descobrir como tomar decisões por conta própria envolve conhecer limitações e habilidades, desenvolver metas de vida e se responsabilizar pelos resultados de suas ações.

O alto número de citações da categoria "Viagem longa" pode ser interpretado a partir da característica da adultez emergente de foco em si mesmo. Devido ao baixo nível de comprometimento característico dessa etapa, uma vez que a maioria dos indivíduos ainda não está envolvida em relacionamentos pessoais ou profissionais de alta exigência, existe a possibilidade de se engajar em atividades exploratórias (Arnett, 2004). A experiência de viajar sem os pais, geralmente em intercâmbios ou com grupos de amigos, representa uma oportunidade de tomar decisões por conta própria, lidar com problemas e experimentar a independência pessoal.

Dentre as categorias de eventos criados para essa amostra (Tabela 1), merecem destaque as categorias "Interesses/passatempos" e "Experiências religiosas". A exploração de atividades de lazer nessa etapa, em que há pouca supervisão dos pais, mas ainda há considerável tempo livre de responsabilidades, proporciona uma oportunidade de desenvolvimento da identidade. Layland, Hill e Nelson (2017) exploraram essa temática em um estudo qualitativo em que adultos emergentes foram entrevistados acerca de suas atividades de lazer. Os participantes relataram o quanto estas estão profundamente envolvidas com a exploração de si mesmos, com como se identificam e como se relacionam com outros indivíduos. Da mesma forma, as experiências religiosas podem ser marcantes nesse período, envolvendo uma reavaliação de crenças aprendidas na infância que podem ou não ser incoerentes com a própria identidade, além da possibilidade de explorar novos conceitos e visões de mundo e agregá-los ou rejeitá-los de acordo com valores pessoais (Arnett, 2000).

Os eventos que são selecionados para compor um relato de história de vida possuem importância para a construção da identidade e alta carga emocional (Bluck & Habermas, 2000). No conteúdo dos eventos trazidos por uma amostra de estudantes universitários, é possível perceber características da fase da vida na qual as pessoas lidam com o sentimento de ambivalência: afastamento da adolescência e aproximação da vida adulta (Arnett, 2011). Construir a própria identidade é um processo dinâmico e que se mantém ao longo da vida, iniciando-se na adolescência. Durante a adultez emergente, os indivíduos precisam lidar com a integração dos papeis sociais que passam a exercer em uma única identidade (McAdams, 2003).  As temáticas trazidas por essa amostra foram consideradas de grande importância para a forma como universitários brasileiros relataram suas histórias de vida e integraram suas vivências em uma unidade coerente que é reconhecida como parte de sua identidade. As experiências universitárias, a entrada no mercado de trabalho e o aprofundamento das relações interpessoais, as três temáticas mais destacadas por essa amostra, são coerentes com o que Arnett (2000) chama de as três principais áreas de exploração identitária. Esses dados expressam o quanto o período ao final da adolescência e início da vida adulta é marcado por possibilidades de exploração de novas experiências e construção da identidade.

 

Considerações Finais

Nas sociedades urbanas ocidentais atuais, a etapa que se encontra entre o final da adolescência e início da idade adulta se diferencia de ambas as fases por características específicas. Nessa etapa, o indivíduo se encontra experimentando uma liberdade e distanciamento da dependência dos pais que não costuma ser observada na adolescência, ao mesmo tempo que não possui compromissos que impeçam comportamentos exploratórios e focados em si mesmo (Arnett. 2011). Ao investigar os eventos mais importantes da história de vida de universitários, cuja média de idade se encontra na faixa da adultez emergente (de 18 a 25 anos), é possível perceber que a maioria dos eventos citados se referem a vivências características do aspecto exploratório e autocentrado dessa etapa.

A construção de uma narrativa de história de vida é essencial para o senso de continuidade da trajetória e para a integração dos papeis atribuídos ao indivíduo em uma única identidade. A seleção de eventos que merecem fazer parte dessa narrativa se dá a partir da importância destes para a elaboração de um senso de identidade que seja coerente e capaz de integrar os papeis interpretados em diferentes momentos da trajetória (McAdams, 2003). Na adultez emergente, o sentimento de ambivalência é marcante (Arnett, 2004), de forma que construir uma narrativa de identidade que possa agrupar e organizar informações importantes acerca do indivíduo é essencial para a noção de continuidade e o reconhecimento de si mesmo na própria história de vida.

É necessário destacar que a adultez emergente, enquanto fase do desenvolvimento, está profundamente envolvida com aspectos culturais. Segundo Arnett (2000), esta não é uma fase universal do desenvolvimento, pois depende tanto da possibilidade de se adiar o casamento e a decisão de ter filhos quanto da importância do nível educacional para a sociedade em questão. A questão socioeconômica impacta diretamente a forma como os indivíduos irão vivenciar esse período da vida. A falta de oportunidades, as dificuldades financeiras e a situação de vida limitam as possibilidades de escolha e exploração, quando o indivíduo precisa tomar responsabilidades da vida adulta muito mais cedo tendo suas decisões influenciadas com muito mais ênfase por suas circunstâncias. É preciso olhar para os resultados trazidos por esse estudo de forma crítica, como um quadro da juventude universitária brasileira de grandes centros urbanos, e não como um dado geral da realidade de todos os indivíduos nessa faixa etária.

Mais especificamente, este trabalho apresenta enquanto limitação a natureza da amostra de levantamento. Por se tratar unicamente de jovens estudantes universitários, não é possível supor que os resultados encontrados se aplicam a outros grupos de indivíduos. Além disso, apesar da considerável distribuição, a amostra provém principalmente de estados da região sul e sudeste do Brasil, de forma que os resultados podem não ser representativos de jovens universitários das regiões norte e nordeste, por exemplo. Por outro lado, estratégias de levantamento online como a aqui relatada permitem a aquisição de dados em grande quantidade e relativa variedade, com importante economia de recursos. Posto de outra forma, questões de amostragem como esta trazem, em geral, a questão do compromisso entre, por um lado, a abrangência acompanhada de quantidade de dados, e por outro, a sistematicidade e distribuição populacional da amostra. De qualquer modo, a pesquisa em psicologia historicamente encontra benefícios na aceitação de métodos diversos que vão do estudo de caso aos levantamentos populacionais. Resultados como o do presente estudo, uma vez contextualizados nesse sentido, apresentam contribuições importantes para o conhecimento psicológico.

Futuros estudos podem acrescentar dados tanto de diferentes estados brasileiros quanto de outros grupos. Comparações entre regiões e entre coortes de diferentes gerações permitirão retratar aspectos importantes do desenvolvimento psicológico no Brasil. Mais que isso, a comparação entre diferentes contextos, por exemplo, com dados de histórias de vida de jovens trabalhadores, de situação econômico-social desfavorável ou de minorias sociais pode acrescentar informações importantes acerca da fase da adultez emergente, permitindo testar empiricamente a própria validade e significância deste construto teórico.

 

Referências

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Recebido em: 11/04/2019
Reformulado em: 05/12/2019
Aceito em: 17/02/2020

 

 

Notas

* Mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
** Mestre e doutor em Psicologia (UFRGS). Professor Associado, orientador de mestrado e doutorado no PPG de Psicologia da UFRGS.
*** Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
**** Mestre em Psicologia pela UFRGS e professora do curso de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul.
***** Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo e professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

Agradecimentos: Luciana Karine de Souza (UFRGS/UFCSPA); Juliana Ávida de Souza (UFRN); André Luiz Moreno da Silva (USP-RP).

 

Financiamento: CAPES e CNPq.

 

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