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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.20 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2020.52588 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2020, Vol. 02. doi:10.12957/epp.2020.52588
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

A Culpa na Política Brasileira Atual: O que nos Ensinam Freud e Hannah Arendt?

 

Guilt in Current Brazilian Politics: What do Freud and Hannah Arendt Teach us?

 

La Culpa en la Política Brasileña Actual: ¿Qué nos Enseñan Freud y Hannah Arendt?

 

Bianca Ferreira Rodrigues*; Juliana Morganti**; Ana Carolina Dias Silva***
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo apresentar reflexões sobre possíveis aproximações entre psicanálise e política a partir das considerações teóricas de Freud e Hannah Arendt e entender como essas nos auxiliam na compreensão do cenário político brasileiro atual. Elegemos como chave de leitura a noção de sentimento de culpa em Freud e a concepção arendtiana de política como espaço da diferença e da liberdade. Desenvolvemos assim, um percurso reflexivo partindo das postulações freudianas sobre a organização social, o que nos possibilitou estabelecer uma relação entre culpa e laço social. Em seguida, nos debruçamos sobre a concepção política em Hannah Arendt, buscando avançar no entendimento do espaço político como lugar de tensão de forças entre individual e plural, entre o exercício da liberdade e a tentativa de supressão dessa. Por fim, nos dedicamos a pensar sobre o lugar da culpa na atualidade da política brasileira, levando em consideração os movimentos de polarização e ascensão de discursos de ódio. Dessa forma, localizamos na interface entre política e psicanálise a questão da culpa como elemento fundamental para a compreensão da formação dos laços sociais e para o avanço das análises dos movimentos de destituição simbólica do poder no cenário político atual.

Palavras-chave: psicanálise, política, culpa, laço social.


ABSTRACT

This work aims to reflect on possible approaches between psychoanalysis and politics from the theoretical considerations of Freud and Hannah Arendt and to understand how these ones help us to understand the current Brazilian political scenario. We choose, as reading key, the notion of guilt in Freud and the arendtian conception of politics as a space of difference and freedom. Thus, we developed a reflective course from Freudian postulates about social organization, which enabled us to establish a relationship between guilt and social bonds. Afterwards, we focused on the political conception in Arendt to advance in the understanding of the political space as a place of tension of forces between individual and plural, between the exercise of freedom and the attempt to suppress it. Finally, we thought about the place of guilt in the current Brazilian politics, considering the polarization and the rise of discourses of hate. In this way, we localized, in the interface between politics and psychoanalysis, the question of guilt as a fundamental element for the understanding of the formation of social bonds and for the advancement of the analysis of the movements of symbolic destitution of power in the current political scenario.

Keywords: psychoanalysis, politics, guilt, social bond.


RESUMEN

Este trabajo presenta reflexiones sobre aproximaciones entre psicoanálisis y política partiendo de las consideraciones teóricas de Freud y Hannah Arendt y reflete cómo éstas nos auxilian a comprender el escenario político brasileño actual. Elegimos como clave de lectura la noción de sentimiento de culpa en Freud y la concepción arendtiana de política como espacio de la diferencia y libertad. Desarrollamos un curso reflexivo partiendo de las postulaciones freudianas sobre organización social, lo que nos posibilitó establecer una relación entre culpa y lazo social. Después, nos ocupamos de la concepción política en Arendt, buscando avanzar en el entendimiento del espacio político como lugar de tensión de fuerzas entre individual y plural, entre el ejercicio de la libertad y el intento de supresión de ésta. Finalmente, nos dedicamos a pensar sobre el lugar de la culpa en la actualidad política brasileña, teniendo en cuenta la polarización y el ascenso de discursos de odio. De esta forma, localizamos en la interfaz entre política y psicoanálisis la cuestión de la culpa como elemento fundamental para comprender la formación de los lazos sociales y para el avance de los análisis de los movimientos de destitución simbólica del poder en el escenario político actual.

Palabras clave: Psicoanálisis, política, culpa, lazo social.


 

 

"[...] não ignoramos que a vitória está essencialmente com as tendências que impeliram ao parricídio"
Sigmund Freud

No presente artigo nos propomos pensar sobre as possíveis aproximações entre psicanálise e política, especialmente a psicanálise freudiana, que não tratou do tema diretamente, mas que possibilita diversas interpretações, desde a posição política do próprio Freud na cena científica e acadêmica, até a análise de suas obras em busca do que este tinha a dizer sobre a organização dos homens em sociedade. Aqui interessa essa última vertente de análise, a retomada dos principais escritos freudianos acerca do nascimento e da organização do corpo social, a fim de se pensar uma articulação com o conceito de política como elaborado por Arendt (1950/2002). Da obra freudiana, optamos por destacar a noção de sentimento de culpa, que advém do assassinato do Pai Primevo em Totem e Tabu (Freud, 1912-1913/2012), ao pensarmos na coletividade, e da passagem pelo Complexo de Édipo, que se presentifica com cada criança. Além disso, a culpa se manifesta ainda a partir da necessidade de repressão das moções pulsionais, condição essencial de manutenção da cultura, e da percepção do desamparo, que leva à culpa por desejar ou efetivamente realizar uma ação má direcionada ao outro. Assim, temos tanto a culpa inconsciente, relacionada ao Complexo de Édipo, quanto o sentimento inconsciente de culpa, diante do parricídio, passando pela culpa consciente ou sentimento consciente de culpa, que advém de nossas ações e da relação em sociedade (Gonçalves, 2019). Ou seja, temos um conceito chave para se pensar uma articulação política, uma vez que este se apresenta na gênese e na manutenção do laço social. Trabalharemos com a hipótese de que a culpa é o que permite o viver em sociedade, mas é sentida enquanto algo privado, configurando-se como um elemento do psiquismo que realiza uma ligação entre os homens.

Concomitantemente, procuramos nos aproximar de uma concepção de política que permitisse refletir para além da tradição institucional e legislativa. Nesse sentido, Hannah Arendt é uma autora importante, uma vez que seu pensamento político se desenvolve através de vários estágios, por meio de confrontos com tópicos como ideologia, totalitarismo, poder, liberdade, esferas individual e coletiva, e responsabilidade. Não pretendemos aqui esgotar as possibilidades de análise que cada um desses tópicos oferece, mas extrair do pensamento arendtiano algumas reflexões para avançar no entendimento das interfaces do psíquico com o coletivo, de forma a recolher elementos que nos auxiliem a refletir sobre as questões políticas atuais.

Coletivo e individual estabelecem um paradoxo que toca na vocação da psicanálise de tratar o humano em sua singularidade ao mesmo tempo que o considera em sua universalidade. Freud, ao recorrer ao patrimônio cultural (religião, aparato jurídico, literatura, instituições) para estudar o homem inserido na sociedade, revela a inclinação da psicanálise para pensar a política. Em Totem e Tabu (Freud, 1912-1913/2012) a reflexão apoiada na cena mítica da horda, com ênfase nos movimentos de poder do Pai Primevo em relação à futura posição singular-coletiva dos filhos, assegura a passagem do particular para o universal colocando a teoria psicanalítica em diálogo com as ciências políticas.

Atualmente, assistimos a uma movimentação política de polarização que não é nova, mas assume contornos inéditos no contexto contemporâneo da busca por referências sólidas para se situar num mundo cada vez mais à deriva. No Brasil, tal contexto possibilitou a ascenção de uma onda ultraconservadora que legitima um discurso de ódio em prol da tentativa de estabelecer um sentimento de segurança, mas que segrega e violenta quem se encontra à margem da sociedade. Diante disso, nos perguntamos como, e se, a culpa se presentifica no cenário atual da política brasileira. Considerando a instituição do laço comunitário a partir do ato parricida dos irmãos da horda, conforme postulado por Freud (1912-1913/2012), e o consequente sentimento de culpa pelo ato fundante da sociedade, perguntamo-nos se a culpa ainda funcionaria como ordenadora do laço social. A tentativa de lançar luz a essas questões será nosso objetivo no presente artigo, a partir da discussão e análise de algumas das principais obras de Freud que discorrem acerca da cultura, assim como as de Arendt, que localizam sua concepção de política, a fim de realizar uma articulação com o momento político no qual o Brasil se encontra atualmente. Dessa forma, não pretendemos esgotar o tema, mas suscitar o debate do cenário contemporâneo ao demonstrar a pertinência de obras que ainda dizem muito nosso tempo.

Horda, Édipo e Laço Social

Ao longo de sua obra, Freud frequentemente lançou mão de elementos pertencentes a outras áreas do saber para conseguir dizer daquilo que opera no nível da estrutura, que não se situa em parte alguma no tempo ou no espaço. O mito da horda, presente em Totem e Tabu, se constitui como um exemplo desse processo em que saberes da antropologia e da biologia foram reorganizados de maneira a construir uma narrativa acerca do surgimento da civilização. O próprio Freud (1921/2011) dirá posteriormente, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, que Totem e Tabu se trata de um mito científico e concordamos com Julien (2010) ao demonstrar que esta definição não é em si contraditória, pois é a partir do relato mítico do surgimento da lei que se pode construir um saber científico acerca da proibição do incesto.

Nesse sentido, podemos perceber também uma congruência em suas obras entre psicologia grupal e individual, demonstrando sua interdependência contínua através de uma recusa em estabelecer duramente essa divisão.  O próprio mito da horda possui como um dos elementos de sua construção a fobia infantil, na qual o animal se constitui como uma substituição, uma metáfora do pai. Freud (1912-1913/2012) viu aí o totem, que pode ser uma planta ou animal, mas que representa o ancestral comum que une os integrantes de um clã enquanto familiares. Já Lacan (2005a) vai mais longe ao argumentar sobre a aproximação do totem com o ancestral que o evolucionismo busca para o homem. Ele afirma que este só pode mesmo ser um animal:

Miticamente – e é o que quer dizer mítica mente – o pai só pode ser um animal. O pai primordial é o pai anterior ao surgimento da Lei, da ordem das estruturas da aliança e do parentesco, em suma, anterior ao surgimento da cultura. Eis porque Freud faz dele o chefe da horda, cuja satisfação, de acordo com o mito animal, é irrefreável (Lacan, 2005a, p. 73).

Uma vez que o Pai primordial é anterior à cultura, a figura do pai é aqui de uma significação ímpar, pois representa o laço social invisível, fundado culturalmente - ao contrário do materno, que se manifesta na realidade carnal da gravidez. O assassinato do pai é o que irá marcar a saída da origem biológica e a fundação de um sujeito inserido na linguagem, pois a interdição do desejo desse é o que possibilitará a sua elevação à lei simbólica. Processo complexo e que pode ser inferido tanto do mito da horda, quanto do Édipo, resguardando-se as suas particularidades. Nessas duas narrativas vemos o esforço de Freud em demonstrar como o homem, apesar de seus impulsos animalescos, consegue se organizar minimamente a fim de viver em sociedade, mas não sem consequências. Tal construção a respeito de uma explicação originária da organização social e seus efeitos nos interessa, na medida em que propomos desenvolver o tema da política no cenário contemporâneo.

No mito da horda, como demonstrado por Kyrillos Neto e Moreira (2009), os domínios do Pai Primevo são construídos a partir da recusa e da negação das diferenças em prol da unidade onipotente de si e, portanto, não podem ser considerados políticos, pois não há espaço para a pluralidade dos homens. Enquanto figura de carne e osso, o Pai teve seu reinado de maneira tirânica e a consequência foi a rebelião dos filhos que se unem para matá-lo. Após o sucesso da empreitada esses se veem então diante da necessidade do estabelecimento de uma política que regulasse o viver em comum. O mesmo ocorre com a passagem pelo Édipo, que também pode ser considerada como a primeira forma do aparato da política, já que é essa experiência que introduz a liberdade de se constituir como um sujeito desejante (Kyrillos Neto & Moreira, 2009).

Da mesma forma que o Pai Primevo exercia a interdição sobre as mulheres, a função do pai no Complexo de Édipo é a de interditar o acesso direto e ilimitado da criança à mãe, exercendo o papel de barra numa relação que se inicia de maneira simbiótica e que precisa desse corte para que a criança se torne um ser social. Mas o que essa intromissão gera, num primeiro momento, é a intenção de matar o pai para que a mãe não lhe seja obstruída. Para o inconsciente não há diferença entre a ação de matar, como ocorre com o Pai Primevo, e a intenção de matar, que se atualiza com cada criança. O resultado será a ambivalência de sentimentos, que congrega em si o ódio, o amor e a admiração sentidos pelo pai. É a partir daí que podemos falar de um sentimento de culpa, como demonstra Freud a partir do mito da horda:

Eles odiavam o pai, que constituía forte obstáculo a sua necessidade de poder e suas reivindicações sexuais, mas também o amavam e o admiravam. Depois que o eliminaram, satisfizeram seu ódio e concretizaram o desejo de identificação com ele, os impulsos afetuosos até então subjugados tinham de se impor. Isso ocorreu em forma de arrependimento, surgiu uma consciência de culpa, que aí equivale ao arrependimento sentido em comum (Freud, 1912-1913/2012, pp. 218).

Em outras palavras e congregando mais uma vez, a exemplo de Freud, a ontogênese e a filogênese, podemos dizer que o embate em relação ao pai e sua consequente ambivalência de sentimentos dá origem a um sentimento de culpa que está na base do laço social, pois advém da luta pela emancipação e possibilidade de pluralidade entre os homens. Esse sentimento, apesar de ser categorizado algumas vezes por Freud como inconsciente, permanece atuando, pois, como esclarece Moreira (2005), o que sofre a ação do recalque é a representação ideativa que originalmente produziu a culpa. Por isso podemos dizer que os neuróticos carregam vida afora o sentimento de culpa advindo da cena edípica, porém, isso acontece a partir de um paradoxo, pois "a consciência que se estrutura a partir do Édipo pode pensar tudo, exceto o mais importante, sua própria origem, ou seja, a origem da lei que a regula" (Kyrillos Neto e Moreira, 2009, p. 406).

Graças ao sentimento de culpa, o pai permanece operando, mas de forma qualitativamente diferente, a partir da incorporação de sua lei a essa nova forma de consciência. No mito da horda, o arrependimento quanto ao assassinato do Pai Primevo leva os filhos a estabelecerem os dois tabus fundamentais do totemismo, que, segundo Freud (1912-1913/2012), só poderiam então concordar com os dois desejos reprimidos do Édipo: matar o pai e ter relações com a mãe. No entanto, a incorporação da lei parental ocorre a partir de duas frentes, a primeira a partir da imposição de um traço externo, uma referência segura do eu, que dará origem ao ideal do eu, e, ao mesmo tempo, a imposição da interdição, que formará o supereu. Assim, como aponta França Neto (2005, p. 101), "ambas as instâncias, tributárias do mesmo processo de introjeção, são intimamente relacionadas, e a culpa é a evidência maior dessa origem comum".

O supereu, enquanto instância crítica reguladora, surge então da introjeção do pai privador no psiquismo, já que mediante a sua morte o desejo se tornará mais ameaçador e demandará uma interdição mais rígida. Por isso Lacan (2005b) destaca sempre que o pai é um pai morto, pois, se ele está morto, nada mais é permitido. Ou seja, "em vez de trazer liberdade, a queda da autoridade opressiva dá origem assim a novas e mais severas proibições" (Zizek, 2010, p. 114). E será essa intensificação da repressão interna que possibilitará a vida em comum, como Freud (1930/2010) deixa claro ao dizer que a civilização está baseada na supressão e renúncia aos impulsos, o que intensifica o sentimento de culpa, mas acaba se manifestando enquanto um inescapável mal-estar.

Assim, podemos localizar a culpa, a exemplo de Siqueira (2015, p. 147), "no cerne da existência humana e no advento da civilização". É através dela que o homem será capaz de dominar suas tendências agressivas, possibilitando a renúncia às satisfações mais imediatas e intensas, não apenas devido à pressão exercida pelo supereu, mas também pelo respeito à alteridade a partir do reconhecimento do desamparo. Como demonstra Moreira (2005), Freud utiliza o termo alemão Hilflösigkeit, que pode ser traduzido de maneira literal para insocorrobilidade, ou seja, se trata de um estado constante de necessidade de ajuda, já que impossível de ser sanada. Diante disso, a agressividade dirigida ao outro deve ser introjetada, pois dependo dele e do laço social que formamos para a tentativa sempre em ação de dar conta do desamparo.

A introjeção da agressividade se transformará em sentimento de culpa na medida em que houver uma ação ou uma intenção classificada como má e dirigidas ao outro. Essa classificação acontece também a partir do desamparo, pois a ação má é aquela que coloca em jogo o amor que recebo do outro, o que me leva a agir de maneira "correta" por medo de perder esse amor. Nesse caso, o indivíduo se verá sozinho frente à impossibilidade de resolução ou fuga das maiores fontes de sofrimento, elencadas por Freud (1930/2010) como o próprio corpo, as forças da natureza e os vínculos dos homens entre si. Com isso, a alteridade se reinscreve e traz consigo a culpa por se ter desejado agredir o outro, não somente enquanto pessoa, mas também narcísica e objetalmente. Como descreve Moreira (2005, p. 292), "sinto-me culpado por desejar agredir aquele que no enlaçamento suporta comigo o desamparo".

Nesse sentido, Freud (1921/2011) descreve que quanto mais um homem controla sua agressividade exterior, mais intensa será a inclinação de seu ideal do eu a dirigir essa agressividade ao próprio eu. Ou seja, a hetero-agressividade se transforma em autoagressividade. O que nos leva a pensar, assim como Moreira (2005, p. 293) que "quanto mais um homem libera sua agressividade, menor se torna sua autoagressividade e mais inócuo se torna o sentimento de culpa na manutenção da conduta moral". Em outras palavras, podemos considerar que o sentimento de culpa exerce um papel importante na sustentação da convivência entre os homens, mas este perde parte de sua força em situações nas quais há o predomínio da violência, como os contextos de guerra (Freud, 1915/1974). A agressividade punitiva superegóica pode ser considerada a guardiã dos conteúdos do Id que não primam pela qualidade civilizatória e, por isso, a culpa seria essencial para manter esse mecanismo ativo, resguardando a moral. Assim, entendemos, com Freud, como a culpa se ergue enquanto organizador social, indispensável para a manutenção das relações entre os seres humanos. Nessa perspectiva, nos propomos a pensar a articulação entre culpa e política. Para tanto, partimos do desenvolvimento de uma concepção de política que oriente o presente trabalho, conforme a exposição a seguir.

Concepção Política em Hannah Arendt

Ao propor uma reflexão sobre o inconsciente e a política, Moreira (2019, p. 3) nos traz a definição arendtiana de política como "a convivência entre diferentes". Arendt (1950/2002, p. 7) sustenta tal definição na afirmação de que "a política baseia-se na pluralidade dos homens". Dessa forma, pluralidade e diferença apontam para a dimensão da relação, pois a política, nessa perspectiva, não tem sua origem no indivíduo, mas nos laços que estes estabelecem entre si, espontânea e livremente. A compreensão desse fato, como apontado por Moreira (2019), nos leva ao ponto mais decisivo da concepção de Arendt (1950/2002, p. 14): "o sentido da política é a liberdade". No desenvolvimento do pensamento arendtiano, pluralidade e ação são ideias-chave para a compreensão da noção de liberdade à qual a autora se refere. É a esfera da pluralidade que permite que a liberdade de todos seja estabelecida ou revelada através da ação. A autora celebra então a esfera da política, na qual os indivíduos revelam seus eus únicos através de ação. Para Arendt,

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política. (Arendt, 1958/1981, p. 15)

Pluralidade e individualidade formam, assim, um movimento que permite a criação de um locus, um entre, onde a política é possível a partir da ação. A ação, por sua vez, não prescinde do discurso, pois é através deste último que ela é legitimada. Se a ação se dá por meio da expressão da singularidade, o discurso, na perspectiva arendtiana, representa o agir coletivo que oportuniza o intercâmbio de ideias e opiniões e, em se tratando de ação política no espaço da diferença, a possibilidade de persuasão.

O espaço político, dessa forma, localizado na esfera pública, torna-se o espaço da representação política, no qual os indivíduos devem abrir mão de suas questões particulares e apresentarem-se sem vulnerabilidades com vistas à persuasão na defesa de um determinado aparato ideológico, suprimindo, ainda que momentaneamente, suas necessidades e desejos que se localizam na esfera privada. Da mesma forma, vimos como a lei se estabeleceu entre os irmãos após a morte do Pai Primevo da horda no mito freudiano, inaugurando a necessidade de repressão dos impulsos animalescos num movimento do individual para o coletivo.

Na perspectiva arendtiana, tal exigência faz com que o espaço político se configure como um artifício, pois ele é o local onde os humanos forjam uma possibilidade de serem considerados iguais ao mesmo tempo em que se expõem e se revelam como plurais. Como nos esclarece Abreu (2004, p. 254), "porque os homens são iguais no espaço político é que pode haver comunicação e persuasão, e porque os homens são plurais é que faz sentido a revelação de cada um no espaço público".

Essa tensão de forças entre igualdade e pluralidade faz sentido na concepção de política como liberdade, como local das diferenças. Mas é justamente o "caos das diferenças" que vai demandar uma organização com vistas à relativização tanto das igualdades como das próprias diferenças e é aí que o espaço para a supressão da liberdade se faz notar, especialmente em sociedades em que essas diferenças resultam em polarização de ideias e perspectivas. No afã de preservar o espaço público, a sociedade "clama" por um conjunto de leis que, concebidas para manter a ordem e evitar dissensões, acabam por reduzir consideravelmente e até mesmo anular a diferença, ou a liberdade que se assenta na pluralidade dos indivíduos.

O conceito de liberdade é caro à filosofia e, como aponta Abbagnano (1971/2007), teve seu desenvolvimento ao longo da história a partir de três significados fundamentais, que muitas vezes se sobrepõem: (a) liberdade absoluta e incondicional, ou seja, o que é "causa de si mesmo" (Abbagnano, 1971/2007, p. 606); (b) liberdade ainda como causa sui, mas agora não dizendo respeito ao indivíduo, relacionando-se "à ordem cósmica ou divina, à Substância, ao Absoluto, ao Estado" (Abbagnano, 1971/2007, p. 609); (c) liberdade enquanto possibilidade de escolha e, portanto, limitada, condicionada e finita. Aqui estamos às voltas com esse terceiro significado de liberdade, ou seja, não se trata tanto de autodeterminação absoluta, nem de identificação com uma totalidade, mas de determinar as condições de possibilidade de uma escolha livre. Nesse sentido, livre é "quem possui, em determinado grau ou medida, determinadas possibilidades" (Abbagnano, 2007/1971, p. 610).

Assim, a supressão da liberdade por determinações ideológicas que impossibilitem qualquer resistência livre por parte dos indivíduos incorre num movimento de desnaturação da coisa política, tema no qual Arendt se aprofundou em sua clássica obra Origens do Totalitarismo, publicada em 1951. Arendt (1951/1990, p. 7) afirma, no prefácio à primeira edição, que "a análise histórica e o pensamento político permitem crer, embora de modo indefinido e genérico, que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o ponto de ruptura". Como elucida Moreira (2019, p. 4), "na visão de Arendt, o homem do pós-guerra perdeu o sentido da política como liberdade" e isso parece permitir que o totalitarismo se configure como opção para uma ordenação tida como necessária para a manutenção da coisa pública, para a solução dos impasses. Nas palavras de Arendt (1951/1990, p. 8), "a tentativa totalitária da conquista global e do domínio total constituiu a resposta destrutiva encontrada para todos os impasses".

No caminho para a solução desses "impasses" na esfera política, uma importante ferramenta a serviço do coletivo a ser preservado é o aparato legislativo. A lei, que visa a priori garantir o exercício da liberdade, é o instrumento pelo qual o poder é exercido. Segundo Arendt (1970/1985, p. 32-33), "o poder é originado sempre que um grupo de pessoas se reúne e age de comum acordo", o que nos permite dizer que o poder carece de legitimação, conforme a própria autora assinala: o "poder não precisa de justificativas, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; mas precisa, isto sim, de legitimidade" (Arendt 1970/1985, p. 32). A lei assume uma função essencial nesse sentido, dando suporte ao poder. É importante considerar, porém, que, diferentemente do poder, a lei não é algo inerente às organizações políticas, não se origina da mesma forma que o poder, que surge da ação em comum acordo. A lei, nesse sentido, é forjada, sendo muitas vezes anterior a um comum acordo, que garantiria sua existência política.

As experiências totalitárias, ao se apropriar de um discurso de polarização da realidade, aniquilam os espaços de liberdade e a possibilidade de legitimação do poder advindo do comum acordo. A lei, dessa forma, cristaliza as manifestações de poder, mas não se configura propriamente como uma expressão sua, o que se caracteriza como uma deformação do conceito de política enquanto liberdade.

A perda do sentido da liberdade nas concepções políticas contemporâneas ganha notoriedade quando propomos refletir sobre política e culpa no cenário político atual. A tendência à busca pela homogeneização das ideias como forma de solução de conflitos parece servir aos propósitos de supressão das diferenças, que atinge seu ponto máximo no extermínio do diferente. A História guarda seus dolorosos exemplos dessa obliteração da política conjugada a execuções em massa, genocídios, ditaduras, práticas de tortura e perseguições racistas, xenófobas, misóginas e anti-alteritárias. Atos dignos de repúdio e penalização quando endereçados àqueles que são considerados divergentes, marginais ou antagonistas do pensamento dominante, praticados no seio do status quo dominante assumem condição de menor importância, ou até mesmo irrelevância. Isso nos coloca diante do problema de como a esfera política lida com a questão da culpa frente a eventos desse tipo.

O Lugar da Culpa na Atual Política Brasileira

Assistimos, nos últimos anos, a uma ascensão da ala conservadora no cenário político brasileiro. Manchetes de revistas de orientação política de direita e de esquerda alardeavam a propulsão de uma extremidade "apaziguada" no cenário brasileiro 1, após a "primeira experiência de longa duração da esquerda brasileira no poder", marcada pela priorização de políticas de coalizão durante o governo do Partido dos Trabalhadores - PT (Safatle, 2017, p. 43).

Aqui, concordamos com a leitura de Bobbio (1995), que se dedica à discussão sobre a distinção política 'Direita' e 'Esquerda' apresentando diferentes posições teóricas a respeito do assunto, que vão desde aquelas que consideram tal distinção uma contraposição simplificadora, passando por aqueles que a consideram um erro metodológico, chegando aos que a entendem como uma dicotomia obsoleta e inapropriada. Em contraposição a tal espectro, Bobbio (1995, p. 12) propõe que frente aos "abusos linguísticos" a que foram submetidas as expressões 'direita' e 'esquerda', é preciso recuperar a auréola de sentidos que carregam e a partir dos quais tais palavras são deslocadas sócio, política e historicamente. O autor então apresenta como princípio fundador de tal dicotomia, a igualdade, que se referiria a três variáveis: a) os sujeitos entre os quais se trata de repartir bens e ônus; b) os bens e ônus a serem repartidos; c) o critério de repartição utilizado. O autor ainda indica que a dicotomia 'conservadores' versus 'inovadores' ou 'tradicionalistas' versus 'progressistas' representaria uma metáfora temporal que pode vir a coincidir com a metáfora espacial que deu origem à divisão 'direita' e 'esquerda'.

Feita tal digressão que nos posiciona quanto ao uso da metáfora "Direita" e "Esquerda", voltemos ao cenário político no Brasil. Concomitantemente à predição da ascensão de uma direita conservadora, achava-se igualmente estampada uma denúncia quanto ao alastramento de um discurso de ódio no que se refere a assuntos políticos especialmente voltados a discussões partidárias e pautas políticas diversas, eminentemente aquelas que dizem respeito à pluralidade e à igualdade 2.

Como vimos, para Hannah Arendt, a ação que parte de uma pluralidade estabelece a liberdade e é legitimada pelo discurso enquanto agir coletivo. Assim, podemos pensar como práticas discursivas também podem trazer a representação de estruturas de formações sociais históricas, denunciando relações de poder que, dentre outras funções, também legitimam diversos tipos de violência. Dessa forma, presenciamos o discurso de ódio fazer sua inscrição no tecido social, ratificando a materialização de violências sociais - simbólica e sistêmica.  Em meio a um cenário odioso, presenciamos um "curto circuito entre a funcionalidade do sistema social e sua justificação simbólica" (Drawin, 2013, p. 22). Em outras palavras, podemos pensar como vivenciamos certa relativização da justificação dos discursos frente à organização social adotada.

Drawin (2013, p. 21) aponta como a hipermodernidade, marcada pela introdução da tecnociência, aliada à economia de mercado e consumo em massa, rompe um tempo cultural, provocando a expressão de uma "hipertrofia narcísica dos indivíduos". Esse cenário promoveria, para o autor, uma desculpabilização generalizada no registro simbólico, concomitantemente à intensificação da culpa no registro imaginário. O autor adverte quanto ao entrelaçamento de tais registros, mas indica essa separação didaticamente para propor que, no que se refere ao simbólico, trata-se do declínio de uma moral partilhada que incide no julgamento a partir de um ideal de justiça. Tal fenômeno é correlato à difusão forjada de uma onipotência dos e nos sujeitos, que intensifica uma culpabilização imaginária. Ou seja, há um enfraquecimento da culpa compartilhada moralmente, em prol da intensificação dos movimentos individuais.

Seguindo a pista do autor e tendo em vista como o cenário sócio-político brasileiro tem exigido cada vez mais a atualização de análises críticas que contemplem a relação entre social e subjetivo, no presente artigo, tentamos operar com a tese da desculpabilização a partir de uma pergunta diferente. Tomando a formulação de que "a culpa retém, mitiga e redireciona o ódio para o trabalho hermenêutico que nos convida a pensar e a cuidar da vida" (Drawin, 2013, p. 33), indagamos: como pensar a culpa no cenário de institucionalização do discurso de ódio no campo político?

Nesse caso, propomos traçar uma reflexão acerca da culpa enquanto organizador social, conforme uma leitura de Totem e Tabu, em articulação com o atual cenário brasileiro mergulhado em violências simbólica e sistêmica, expressadas em discurso de ódio movido por um "furor antidemocrático" (Rancière, 2014, p. 107-108), que incita a obliteração da política enquanto liberdade e pluralidade, conforme proposto por Hannah Arendt. Em última instância, perguntamos, após as explanações acima apresentadas, a respeito da articulação entre a culpa e a organização social na lógica dos dias atuais. Vamos inicialmente retomar o que encontramos em Freud.

O autor indica que após a morte do Pai Primevo - um assassinato praticado pelos irmãos - A sociedade repousa então na culpa comum pelo crime cometido; a religião, na consciência de culpa e no arrependimento por ele; e a moralidade, em parte nas exigências dessa sociedade e em parte nas penitências requeridas pela consciência de culpa (Freud, 1912-1913/2012, p. 223).

Havia, portanto, uma exigência de tratar o sentimento de culpa a partir de um reordenamento social. Os irmãos tiveram que constituir uma base para uma transformação. Tratava-se, em última instância, da necessidade do estabelecimento de um acordo que fundaria a possibilidade de legislação. Também nesse sentido, Arendt discorre sobre o fato de a lei, no espaço político, ser sempre forjada, e sua obediência ser o elemento que garante sua existência.

Para Freud, portanto, a culpa é estrutural e fundante da coletividade. Podemos reafirmar que essa advém, no sistema psíquico, do Complexo de Édipo e do assassinato do Pai Primevo, o que demonstra sua qualidade de ser interior ao indivíduo, como também, ser o que possibilita a organização coletiva. Não podemos negar que Freud parte de uma visão de um homem agressivo e animalesco. Para ele, a sociedade nasce a partir de um ato violento. Já Arendt parte da liberdade para então formular a possibilidade do estabelecimento de leis, organizações e exercício do poder. Dessa forma, a autora considera um homem capaz de articular sua posição política em ideias e de discuti-las entre os diferentes. A base desse pensamento é a pluralidade dos indivíduos, que, embora iguais no espaço político, apresentam-se sempre como plurais.

Se considerarmos que Arendt anuncia que o homem pós-guerra abandonou o entendimento da política como o lugar da diferença e que Freud vê no sentimento de culpa a amálgama do tecido social, é forçoso pensar sobre que concepção política regem as relações humanas atuais e qual o lugar da culpa no arranjo contemporâneo. No presente texto, como pontuamos, nos ocupamos do caso brasileiro.

Contextualizemos um pouco mais as relações de poder que estruturam a política brasileira. O modelo de governo no país impera com diversos paradoxos. Vejamos como isso se estrutura: verifica-se a existência de um Estado oligárquico de direito, que opera a partir de uma democracia cujo modelo representativo inverte o próprio núcleo duro da democracia como soberania popular. Isso porque, carregando uma história marcada por longo tempo como colônia de exploração baseada no tripé monocultura-escravização-latifúndio, o Brasil herda a consolidação de um sistema oligárquico. Além disso, esse Estado responde atualmente a partir de um ideal neoliberal - com um sistema de gestão micro e macropolítico - que existe concomitantemente à uma insatisfação generalizada com as formas vigentes de poder; entretanto, presenciamos tal insatisfação ser capturada pela lógica dos dominadores, a saber, aqueles que regem e são regidos pelo lucro em aliança à uma ciência tecnicista (Rancière, 2014; Safatle, 2017).

Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, Freud apresenta sua análise política do cenário de guerra e morte a partir de uma desilusão quanto ao progresso da civilidade humana. Nesse contexto, o vienense já indicava os paradoxos que permeiam o poder:

O Estado exige o grau máximo de obediência e de sacrifício de seus cidadãos; ao mesmo tempo, porém, trata-os como crianças, mediante um excesso de sigilo e uma censura quanto a notícias e expressões de opinião, que deixa os espíritos daqueles, cujos intelectos ele assim suprime, sem defesa contra toda mudança desfavorável dos eventos e todo boato sinistro. Exime-se das garantias e tratados que o vinculavam a outros Estados, e confessa desavergonhadamente sua própria rapacidade e sede de poder, que o cidadão tem então de sancionar em nome do patriotismo (Freud, 1915/1974, p. 316).

Ler essa passagem sem referências temporais e epistemológicas - ou, ao contrário, de forma marcadamente referenciada - nos transporta diretamente aos impasses da política brasileira. Em nossos propósitos, após articularmos a obnubilação da culpa em relação à disseminação de um discurso de ódio vulgarizado por diversos meios, refletimos, consequentemente, quanto à obstinação popular e absolvição das responsabilidades individual e coletiva. Como pensar tal fenômeno? Qual leitura possível a respeito de seus efeitos, tendo em vista as concepções trabalhadas de política enquanto garantia de pluralidade e culpa enquanto organizador social?

Hipotetizamos aqui que o poder do Pai, que impossibilitava a expressão de qualquer individualidade, nos remete, salvaguardando as devidas proporções, ao poder da classe dos dominantes/dominadores, que costumam ser idealizado como supremo e ilimitado, assim como o foi para os irmãos no mito da horda. A frustração que se apoderou dos irmãos ao não atingirem o poder supremo do Pai, associada ao sentimento de culpa filial pela deposição desse - além da "ânsia pelo pai" que sentiram (Freud, 1912-1913/2012, p. 225) - os dispuseram à submissão a um ideal que corporificava tal poder ilimitado, através de um totem. Freud afirma que:

Devido a mudanças culturais decisivas, o original igualamento democrático de todos os membros individuais do clã já não podia ser mantido; assim manifestou-se uma inclinação - apoiada na veneração de indivíduos que se haviam destacado entre os demais - a reviver o antigo ideal do pai, criando divindades. (Freud, 1912-1913/2012, p. 226).

Freud indica ainda como o sistema totêmico, enquanto um pacto com o Pai, remetia à ideia de proteção, cuidado e indulgência, conforme espera a imaginação infantil. Refletimos aqui como, no cenário brasileiro em que presenciamos a ascensão de uma onda conservadora, vemos operar a mesma lógica de eleição de figuras míticas e representantes de um suposto poder supremo e ilimitado, em busca de garantias e apaziguamento. A nova realidade introduzida pela morte do Pai demanda um posicionamento e uma responsabilização frente à destituição simbólica do poder. A mera substituição, ou em outras palavras, a eleição de um totem como tentativa de retorno aos domínios do Pai, opera remanejando as relações de agressividade, uma vez que se presencia um apaziguamento da culpa advinda do remorso coletivo. Ressaltamos que, como vimos, o remorso foi o elemento chave para convocar à sustentação da política através da pluralidade entre os irmãos. Nesse sentido, o discurso de ódio passa a ser legitimado pela tentativa de retorno a esse estágio anterior, de fantasiosa segurança, na medida em que a agressividade é chancelada pela aquietação da culpa coletiva no recurso totêmico. Dessa forma, a supressão/renúncia aos impulsos exigida pela civilização - operação gerida pelo sentimento de culpa - mostra uma face peculiar no manejo do mal-estar inerente a tal equação: a da austeridade e do totalitarismo que obnubilam a pluralidade e a liberdade estabelecida a partir da possibilidade da diversidade. Assim, a partir da concepção política de Arendt e da culpa em Freud, podemos pensar como é a política por excelência que se coloca em xeque.

 

Considerações Finais

Retomamos o recurso mítico freudiano de Totem e Tabu como explicação a respeito da instituição da vida em sociedade para pensar a inauguração da política a partir da destituição da tirania nos domínios do Pai Primevo e a consequente fundação de um espaço de pluralidade entre os seres humanos. Localizamos como articulador central de tal operação o sentimento de culpa pela morte do Pai, que origina o estabelecimento de leis que regulam a existência coletiva dos diferentes.

Para orientar a discussão política que se desenvolveu no plano deste trabalho, elegemos a concepção arendtiana, que dialoga com as construções tecidas a partir de Freud na medida em que, para a autora, a política é baseada na pluralidade entre os seres humanos, cujo sentido último é a liberdade. Na interface entre as proposições da filósofa alemã e do psicanalista vienense, perguntamos, a partir de um cenário político brasileiro marcado pela ascensão de um conservadorismo radical e polarizado por um discurso de ódio institucionalizado, sobre o lugar da culpa enquanto organizador social na atualidade. A culpa deixaria de ser um articulador central na fundamentação de relações plurais?

Entendemos, ao longo da argumentação aqui proposta, que "(...) a culpa enquanto índice metapsicológico dessa cisão que nos constitui não pode obviamente ser eliminada" (Drawin, 2013, p. 30). Se a culpa não pode ser eliminada, faz-se necessário seguir os rumos e as faces que pode vir a assumir. Vimos como contextos de guerra, tanto para Freud, como para Hannah Arendt, alteram as relações entre os homens e evidenciam graves assimetrias de poder que legitimam práticas discursivas violentas que curto-circuitam a operacionalidade da culpa. Fazem-se necessários recursos para chancelar seu apaziguamento. Nesse ínterim, figuras totalitárias parecem surgir como garantia e índice de indulgência, protegendo os homens do confronto responsabilizador com a destituição do poder simbólico do Pai. Nesse cenário, faz-se mister retomar a indicação metafórica freudiana apontada na epígrafe deste trabalho, a respeito da vitória dos impulsos parricidas: é preciso que não subestimemos os impulsos individuais e coletivos, subjetivo-políticos, que tratam de garantir a pluralidade e instaurar a cultura para além de um gozo puro e tirânico. Em outras palavras, trata-se de retomar a força do povo enquanto índice de diferença e pluralidade capaz de sustentar uma certa cota de tensão no tecido social.

 

Referências

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Bianca Ferreira Rodrigues
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Recebido em: 29/04/2019
Reformulado em: 30/03/2020
Aceito em: 31/03/2020

 

 

Notas

* Doutoranda em Psicologia pela PUC Minas - Bolsista CAPES. Mestre e Graduada em Psicologia pela UFSJ.
** Mestranda em Psicologia pela PUC Minas – Bolsista CAPES. Bacharel em Psicologia pela PUC Minas. Licenciada em Letras pela UFMG.
*** Mestranda em Psicologia pela PUC Minas – Bolsista CAPES. Graduada em Psicologia pela UFMG, com ênfase em Processos Clínicos.
1 "A ascensão do conservadorismo no Brasil" - Pragmatismo Político, Abril de 2015; "As raízes da escalada conservadora no Brasil atual - Blog da Boitempo, Abril de 2015; "A queda da esquerda e a ascensão dos conservadores e liberais" - Huffpost, Março de 2016; "A força da direita" - capa da Revista Veja, Outubro de 2016 (Versão Impressa); "Reflexões sobre a ascensão da direita" - Blog Junho, Maio de 2016; "Trumpcalismo, a nova versão do conservadorismo brasileiro" - Estadão Online, Novembro de 2018.
2 "Brasil cultiva discurso de ódio nas redes sociais, mostra pesquisa" - Matéria do Jornal O Globo, Agosto de 2016; "O discurso de ódio que está envenenando o Brasil" - Matéria do jornal El País, Novembro de 2017; "Como o ódio viralizou no Brasil" - Matéria da Revista Carta Capital, Dezembro de 2018; "Denúncias de discurso de ódio online dispararam no 2º turno das eleições, diz ONG" - Matéria da Revista BBC, Novembro, 2018; "O que está por trás do discurso de ódio" - Matéria do El País, Dezembro, 2018.

 

Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

 

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