SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número3Discursos Contemporâneos sobre as Transexualidades: Poder, Verdade e SubjetivaçãoA Experiência Drag Queen como Transição na Vida Adulta índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.20 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2020.54349 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2020, Vol. 03. doi:10.12957/epp.2020.54349
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Representações Sociais de Família para Não Feministas

 

Family Social Representations for Non-feminists

 

Representaciones Sociales sobre Familia para No Feministas

 

Lacilaura Bomtempo Lamounier Costa*; Rafael De Tilio**
Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, Uberaba, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

Os movimentos feministas contemporâneos pretendem alterar as desigualdades entre os gêneros das quais resultam reações conservadoras e tradicionalistas por parte de alguns grupos sociais. O objetivo deste artigo foi compreender as representações sociais de família para não feministas. Foram realizadas onze entrevistas com pessoas autodeclaradas não-feministas, cujos dados foram organizados de acordo com uma análise de conteúdo temática e analisados a partir da Teoria do Núcleo Central das Representações Sociais. Os principais resultados destacam como possíveis NC das RS: naturalização da ideia de família nuclear e dos conflitos entre seus integrantes; prevalência de papéis rígidos e distintos entre homens e mulheres; relevância das mudanças dos papéis femininos na sociedade e na família sem, contudo, haver alterações substanciais nas relações sociais; ameaças às posições privilegiadas dos homens. Compreender como essas RS sustentam práticas de agrupamentos sociais específicos é importante para oportunamente viabilizar seu enfrentamento em busca de uma sociedade menos desigual.

Palavras-chave: feminismo, teoria feminista, família, dinâmica familiar, representações sociais.


ABSTRACT

Contemporary feminist movements intend to change the inequalities between genders, which result in conservative and traditionalist reactions from social groups. The objective of this article was to understand family social representations for non-feminists. We conducted eleven interviews with self-declared non-feminist individuals, whose data were organized according to a thematic content analysis and analyzed from the Social Representations Central Core Theory. The main results highlight as possible representations cores: naturalization of the idea of nuclear family and conflicts between its members; prevalence of rigid and distinct roles between men and women; relevance of changes in women's roles in society and family without, however, effective changes in social relations; and threats to the men privileges. Understanding how these SR support specific social grouping practices is important in order to enable their confrontation in search of a less unequal society.

Keywords: feminism, feminist theory, family, family dynamics, social representations.


RESUMEN

Los movimientos feministas contemporáneos pretenden alterar las desigualdades entre los géneros, de las cuales resultan reacciones conservadoras y tradicionalistas de algunos grupos sociales. El objetivo de este artículo es entender las representaciones sociales de la familia para no feministas. Se realizaron once entrevistas a personas autodeclaradas no feministas, cuyos datos fueron organizados según un análisis de contenido temático y analizados a partir de la Teoría del Núcleo Central de las Representaciones Sociales. Los principales resultados destacan: la naturalización de la familia nuclear y de los conflictos entre sus miembros; los roles rígidos y distintos entre hombres y mujeres; la relevancia de los cambios en los roles de la mujer en la sociedad y la familia sin, sin embargo, cambios efectivos en las relaciones sociales; y las amenazas a las posiciones privilegiadas de los hombres. Es importante comprender la forma en que estas RS apoyan prácticas de agrupamientos sociales específicos a fin de posibilitar su enfrentamiento en búsqueda de una sociedad menos desigual.

Palabras clave: feminismo, teoría feminista, familia, dinámica familiar, representaciones sociales.


 

 

Famílias podem ser compreendidas como unidades sociais interpeladas por marcadores estruturais, culturais e econômicos que implicam em formas diversas de classificação, categorização, constituição e compreensão (Gonzálvez Torralbo, 2013). Sarti (2004) destaca que elas são sistemas de alianças (consanguíneas ou por afinidade) entre grupos mediante diversificados interesses econômicos/políticos e/ou afetivos/amorosos (Zanello, 2018).

Gomes e Santos (2016) argumentam que o modelo de família nuclear (heterossexual, estável e indissolúvel pautado na reprodução biológica) que ganhou destaque no sistema de produção capitalista e na contemporaneidade vem sofrendo alterações devido à maior inserção da mulher no mercado de trabalho e na educação formal, ao controle de natalidade e ao declínio da autoridade paterna. Essas alterações permitiram a emergência de outros modelos e dinâmicas familiares (as homoafetivas, as monoparentais e as recompostas dentre outras) que não raro estão em situação de vulnerabilidade e riscos psicossociais devido às ênfases nos tradicionalismos (Costa & Marra, 2013; Pontes, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015).

Gonzálves Torralbo (2013) e Tarducci (2013) destacam a relevância e as contribuições (teóricas e políticas) dos movimentos feministas modernos para as mudanças nas composições e dinâmicas familiares. Costa e De Tilio (2019) numa revisão da literatura científica (compreendendo o período entre 2007 e 2018) de orientação feminista sobre família destacam que a tradição feminista enfatiza a necessidade de compreender a(s) família(s) como instituição historicamente constituída mediante relações de poder específicos (no caso, a dominação dos homens sobre as mulheres). Por isso, justamente por ser histórica, seus formatos e dinâmicas são passíveis de mudanças que podem ocorrer a partir da politização dos espaços privados, do questionamento das relações de poder e das atitudes consideradas naturais para os gêneros.

Em suma, se por um lado as postulações feministas sobre família nuclear e heterossexual destacam a necessidade de compreensão crítica desta instituição (possibilitando a convivência e aceitação de outros modelos e dinâmicas), por outro lado essas mudanças nas composições e dinâmicas das famílias tradicionais sofrem resistências por parte dos setores conservadores da sociedade (Andrade, 2015; Miskolci & Campana, 2017) que as encaram como desordens políticas e morais da conjugalidade e da parentalidade consideradas "normais" ou "naturais", estabelecendo um pânico moral. Neste contexto, a atual conjuntura política no Brasil é atravessada por questionamentos sobre a afirmação de direitos de grupos minoritários fazendo permanecer muitas das desigualdades de gênero que mantém discriminações, opressões e violências principalmente contra as mulheres (Brandão & Lopes, 2018).

Neste sentido, a Teoria das Representações Sociais (TRS) postulada por Moscovici (2012) considera as representações sociais (RS) como maneiras de compreender e conhecer a realidade apoiadas no senso comum. De acordo com o autor, há processos cognitivos e sociais que organizam as RS que, basicamente, equiparam tanto todo novo conhecimento a um conhecimento prévio (ancoragem) quanto todo conhecimento constituído a um objeto da realidade (objetivação), ambos com o intuito de familiarizar (conhecer) conteúdos até então desconhecidos (Moscovici, 2012). Sá (1996a) esclarece que a ancoragem é a integração por meio da nomeação e da classificação de um objeto (desconhecido) a um sistema prévio de conhecimento e que, para Bertoni e Galinkin (2017), contempla três momentos: atribuição de sentido (consolidação numa rede de significados preexistentes), instrumentalização do saber (atribuição de funcionalidade) e transformação icônica (as representações tornadas familiares transformam as anteriores). Por sua vez, a objetivação tem como intuito fazer com que os elementos ancorados sejam percebidos como reais pelos sujeitos (Sá, 1996a) a partir de três aspectos (Bertoni & Galinkin, 2017): seleção e descontextualização (elementos são destacados do conjunto de informações), formação do núcleo figurativo (estabelecimento de um núcleo imaginante) e naturalização (elementos instituídos são identificados na realidade).

Segundo Sá (1996a) umas das vertentes decorrentes da proposta original da TRS é a Teoria no Núcleo Central (TNC) de Jean-Claude Abric 1 – que subsidia teoricamente este estudo. Essa proposta não pretendeu substituir a TRS de Moscovici, mas complementar e aprofundar suas análises, pois a TNC situa as RS para além do reflexo da realidade enfatizando quatro funções (Bertoni & Galinkin, 2017): saber (compreensão da realidade), identitária (proteção dos grupos), orientação (guiar comportamentos e práticas) e justificadora (justificam os comportamentos). Para a TNC as RS são concomitantemente estáveis/móveis, rígidas/flexíveis e consensuais/divergentes dentre si e entre os sujeitos e seus grupos, isto é, possuem um sistema interno duplo (núcleo central e sistema periférico) de funcionamento estabilizado pelos processos cognitivos da ancoragem e da objetivação (Peixoto, Fonseca, & Oliveira, 2013; Morera, Padilha, Silva, & Sapag, 2015; Sá, 1996a; 1996b).

Para Wolter (2018) o núcleo central (NC) determina a significação da RS e sua organização interna, sendo formado pelos valores e normas estabelecidos pelos grupos e que constituem o contexto ideológico da representação – ou seja, são as crenças e concepções rígidas que mantém a estabilidade, coesão e o funcionamento do grupo. Já os elementos periféricos das RS orbitam e coexistem (por exemplo, nas contradições e conflitos sobre objetos) com o NC, todavia, podendo ser alterados mais facilmente devido às mudanças sociais (Wolter, 2018). Assim, retomando o exposto, se é importante compreender as RS de família para feministas (que questionam o status quo ante, ou seja, os tradicionalismos e conservadorismos de gênero e de família) (Costa & De Tilio, 2019), é igualmente significativo conhecer as RS de família para não feministas para melhor compreender quais e como esses tradicionalismos sustentam práticas ainda frequentes. Em outras palavras, investigar RS de família de grupos resistentes às (reais ou propostas) mudanças sociais nas relações de gênero, nas dinâmicas e nos modelos familiares pode auxiliar a compreender sua evidente presença e força na contemporaneidade. Assim, o objetivo deste artigo foi compreender as representações sociais de família para não feministas.

 

Método

Participantes

Pesquisa transversal e qualitativa (Minayo, 2017). A amostra foi composta por onze participantes autodeclarados não feministas. A composição da amostra observou o critério de saturação dos dados (Nascimento, Souza, Oliveira, Moraes, Aguiar, & Silva, 2018; Minayo, 2017) cujo recrutamento observou critérios de inclusão (autodeclarar-se não feminista e ter mais de 18 anos de idade) e de exclusão (autodeclarar-se feminista ou não ter concepção formada sobre o feminismo; ser menor de 18 anos de idade). As principais características da amostra constam na Tabela 1. De maneira geral, a amostra é heterogênea no que se refere à idade, profissão, religião, renda familiar e nível de escolarização. Todavia, há relativa homogeneidade de gênero (feminino), raça/etnia (branca) e orientação sexual (todos heterossexuais).

 

 

Instrumentos

Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada elaborado pelos pesquisadores que abordava questões sobre definições/dinâmica familiar e sobre as influências dos movimentos feministas no âmbito familiar.

Procedimentos

Coleta de Dados

O recrutamento aconteceu por meio da rede contatos pessoais dos pesquisadores. Após contato inicial com cada participante foi marcado um encontro para explicar os objetivos da pesquisa e agendar a entrevista em local reservado para preservar o sigilo e a privacidade. As entrevistas foram realizadas individualmente entre novembro de 2018 e fevereiro de 2019 pela primeira autora deste artigo e foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. Os nomes dos participantes foram substituídos por nomes fictícios. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, CAAE n. 79690717.8.0000.5154.

Análise dos Dados

Os dados foram organizados a partir de uma análise de conteúdo temática (mediante critérios de similaridade semântica dos conteúdos) (Turato, 2008) e interpretados a partir da Teoria do Núcleo Central (de J-C. Abric) das Representações Sociais. Para Nascimento-Schulze e Camargo (2000), Reis e Bellini (2011), Sá (1996a; 1996b) e Silva e Ferreira (2012) a repetição e a constância de sentidos no conjunto das entrevistas 2 (apresentados nas categorias temáticas da seção seguinte; por limitação de espaço apenas os excertos mais representativos foram apresentados neste artigo) podem ser ilustrativas dos NC das RS, enquanto que os sentidos menos frequentes no conjunto das entrevistas podem ser ilustrativos das periferias das RS deste agrupamento de participantes (não feministas).

 

Resultados e Discussão

Para análise dos dados foram elencadas três categorias: Concepções sobre família (aborda as RS referentes às conceituações e definições de família); Padrões e dinâmicas familiares (ressaltam as práticas, dinâmicas e organizações familiares dos participantes); Intersecções entre feminismo e família (RS que interseccionam feminismo e família).

Concepções sobre família

As RS sobre definições e concepção do que é família não são herméticas e estanques, pois são afetadas por influências sociais, econômicas e culturais, um espaço poroso constituído por forças e relações não restritas ao espaço doméstico (Fonseca, 2007), pois Sarti (2004) destaca que as famílias são sistemas de alianças (consanguíneas ou por afinidade) interpeladas pela cultura e pela organização social.

Gomes e Santos (2016) argumentam que o padrão vigente e considerado ideal de modelo e de dinâmica familiar (heterossexual, monogâmico e estável) consolidou-se na Idade Contemporânea com o sistema de produção capitalista. Entretanto, os mesmos autores apontam recentes mudanças na sua organização motivados pela maior inserção da mulher no mercado de trabalho e na educação formal, pelo declínio da autoridade paterna e o pelo maior controle da natalidade. Considerando o exposto, algumas conceituações sobre família foram realizadas pelos participantes: "Família é um grupo de pessoas que tem uma relação de carinho e proteção" (Matheus), e:

Para mim família são meus pais, meus irmãos, as pessoas com quem eu convivo muito. Tem colega de trabalho também que faz parte da família, tem vizinho que faz parte da família mesmo não sendo por laço sanguíneo. Família é quem é importante pra gente. Até o Fred, o cachorrinho, faz parte da família agora. Família é o alicerce do mundo, eu acho, é a base. Mas se existir amor nessa família, diálogo, amor. Não é só falar que tem uma família, vamos supor... meu marido, minha filha, meu filho, mas a gente não conversar, não trocar experiência, aí não é família. (Ana)

Nos excertos de Ana e Matheus o caráter afetivo da instituição familiar foi ressaltado, demarcando ser este um possível NC das RS. Ana destacou algumas relações/dinâmicas que caracterizam uma família – exemplificando o processo de objetivação das RS (Moscovici, 2012). As relações consanguíneas (esposo, filhos) enunciadas, porém pouco destacadas, podem ser compreendidas como elementos periféricos da RS, pois para os participantes não são essenciais e fundamentais para a caracterização de uma família. Mas tanto para Ana quanto para Matheus a afetividade foi destacada como elemento fundamental (portanto, um possível NC) para a conceituação de família, apontando para uma idealização também evidente em trechos das entrevistas de outros participantes: "Acho que família é respeito, a base da educação, união, amor" (Ângela); "Família é tudo, amor compaixão, solidariedade, humanidade, humildade, acolhimento" (Letícia).

A afetividade mencionada nas respostas dos participantes denota a dimensão avaliativa das RS caracterizada pela utilização de expressões como gostar, aprovar, recusar, rejeitar, fazer avaliações e julgamentos (Wolter, Wachelke, & Naiff, 2016). De acordo com os autores, quando os elementos avaliativos assumem lugar de prováveis NC das RS ficam evidenciados valores e normas que norteiam as atitudes dos grupos.

Gonzálvez Torralbo (2013) esclarece que a idealização da composição e da dinâmica familiar são criticadas pelas feministas que pretendem desnaturalizar e desvelar as opressões e violências produzidas por esta instituição. Giallorenzi (2017) e Timm, Pereira e Gontijo (2011) destacam (e reiteram) que os aspectos pessoais/privados são também públicos/políticos (relações de poder definidos pela estrutura social), pois é no seio (do espaço privado das) famílias que as violências e opressões ocorrem, mas que por motivos diversos não são tornados públicos. Os autores argumentam que as violências (em especial a doméstica) contra as mulheres são motivadas e justificadas pelas tradições, costumes e hábitos patriarcais e androcêntricos. Essa naturalização dos conflitos foi mencionada pelos participantes:

Família é tudo igual, só muda de endereço [risos]. Graças a Deus temos lados bons, agora tem as minhas preciosidades que são meus netinhos e tem também as discussões e desavenças igual toda família. Não tem muita diferença não. (Frida)

Toda família tem seus desentendimentos, mas na hora que a gente precisa, eles que estão ali do lado. (Simone)

Acho que é tudo na vida. Apoio. Por mais que tenham brigas sempre estão ali pra ajudar. (Pagu)

Esses trechos evidenciam que as desavenças e as discussões também constituem as relações familiares, mas elas são naturalizadas. Expressões como "tudo igual" ou "toda família" denotam que para os participantes os conflitos são inerentes às constituições familiares. Nesse sentido, pode-se supor que os conflitos assumem caráter de possível NC das RS sobre família. Entretanto, essa suposição de conflito não é destacada como necessariamente expressão de violência, exceto por uma das participantes:

Eu fui criada em uma família grande. Uma família super desestruturada. Eu não tive um modelo de família na adolescência. Casei muito jovem então criei minha família como eu gostaria, veio tudo de mim. Como eu te falei no começo da entrevista, foi só tragédia. Eu tive uma irmã que foi vítima de estupro, foram nove anos de abuso pelo próprio pai. Ele me alisava, colocava no colo. Isso não é normal, destrói uma família. (Flavia)

Assim, a continuidade de violências foi referida pela participante como presente em sua família e da qual resultou a impossibilidade de adequação ao modelo considerado natural/normal de família nuclear. Desse modo, o trecho de entrevista anterior destacou o processo de objetivação das RS (Moscovici, 2012) – em outras palavras: atos que ocorrem nas interações sociais (e que assim podem encontrar respaldo na realidade das vivências – tais como as denominadas anormalidade nas relações entre pai e filha e o descuido entre os membros da família) justificam os conhecimentos construídos sobre (o objeto) família.

Ademais, Andrade (2015) e Miskolsci e Campana (2017) destacam que os valores e modelos tradicionais e conservadores de família consideram negativas as pautas e lutas das mulheres e dos movimentos ligados aos feminismos. Isso ocorre porque estes últimos revelam e questionam as contradições dos modelos naturalizados de família (espaço de afeto e de possíveis violências), todavia não são significados pelos participantes como explicações para as complexas contradições inerentes ao funcionamento das dinâmicas familiares, mas sim como principais promotores do fim da família (considerada) normal. Esse argumento foi referido por alguns dos participantes:

Família é um esteio, um lugar onde se encontra apoio e proteção. Um porto seguro. Pelo menos deveria ser, na minha concepção. A família está completamente destruída. Hoje não se valoriza mais isso. A geração de 1990 pra cá não quer construir uma família. Hoje eu acho que uma família pode ser constituída por um casal homossexual e continua sendo família. Mas essa desconstrução de família, muitas pessoas extremistas, acham que tem que destruir a família. A instituição família é um lugar de apoio, de segurança, onde as pessoas vão encontrar a força para alavancar suas vidas. (Antônio)

É a base de tudo. Uma família estruturada é a coisa mais importante de todas. Minha família era uma família no molde tradicional, que para mim é o modelo que funciona. A família onde não tem respeito ou que não é essa família tradicional para mim está errado. Aí eu sou contra o feminismo. Uma família com a hierarquia que existia antes. (Pedro).

No trecho de entrevista de Antônio outro possível NC sobre família é o "apoio, a segurança", demonstrando o valor afetivo desta instituição. Isso também foi referido pelo participante Pedro ("base de tudo") para quem a hierarquia entre os integrantes é outro provável NC do que ele denomina "família tradicional", e o que rompe com esse modelo é significado (familiarizado) como desviante ("está errado"). Além disso, foi evidenciada a dimensão avaliativa das RS (Wolter et al., 2016) quando os participantes revelaram sentimentos e avaliações acerca das mudanças referentes a família ("a família está destruída"; "sou contra"; "está errado").

Em suma, considerando o conjunto de entrevistas, destacaram-se como possíveis NC das RS dos participantes sobre família tanto a idealização dessa instituição como a naturalização dos conflitos. A recorrência da dimensão avaliativa (Wolter et al., 2016) destaca a influência de valores morais tradicionais de gênero e sexualidade na constituição destas RS.

Padrões e dinâmicas familiares

Os resultados das RS não se limitam ao campo simbólico e cognitivo, pois eles incidem nas ações dos sujeitos. Conforme Bertoni e Galinkin (2017) argumentam uma das funções das RS é a de orientação, servindo de guias para comportamentos e práticas. Em relação às práticas referentes às dinâmicas familiares dos participantes foram evidenciadas as expectativas e responsabilizações desiguais para homens e mulheres no âmbito doméstico e familiar. Fascioli Àlvarez (2015) e Lago, Souza, Kaszubowski e Soares (2009) apontam para a dicotomia entre o espaço público e privado como elemento relevante na consolidação do capitalismo – o espaço doméstico foi delegado às mulheres e aos homens foi privilegiado o acesso ao espaço público. Zanello (2018) esclarecem que os cuidados aos integrantes da família e do ambiente doméstico foram ressaltados como aspectos elementares na vida da mulher.

A proeminência dessas representações foi evidenciada pelos participantes: "Minha mãe que falava isso: você vai casar, minha filha, você tem que pensar que você vai ter uma casa, uma família, seus filhos – a responsabilidade é sua" (Ana);

Eu sempre tive que tomar as decisões. Tudo de ruim era minha culpa, tudo de bom é mérito dele. As meninas (filhas) chegavam perguntando e ele falava para me pedir. Até hoje ele fala que eu que sei. Mas não é concordando, é tirando a responsabilidade dele. Tudo que acontece de ruim é culpa minha, eu que não soube criar as meninas. Ele fala que se ele não trabalhasse de caminhão e cuidasse das meninas elas teriam outra educação... fala que elas foram malcriadas por mim. (Judith)

Percebeu-se que a responsabilização feminina pelo espaço doméstico e pelos cuidados da família assume posição de provável NC das RS no conjunto das entrevistas em relação as dinâmicas familiares, evidenciada nos termos "responsabilidade sua" e "tirando a responsabilidade dele". Por meio da objetivação (Moscovici, 2012) Judith explicou como percebe esses aspectos em sua vivência de forma concreta fornecendo exemplos referentes à relação com as filhas. Esse aspecto não revela um aspecto particular ou peculiar das RS (de Judith), mas sim denota aspectos coletivos da sociedade (por isso são RS) da qual ela é integrante – neste sentido, dados do IBGE (2018) elucidam que no Brasil em 2016 as mulheres dedicaram aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos cerca de 73% de horas mais do que os homens. Andrade (2015) e Biroli (2018) ressaltam o caráter afetivo e de gratuidade dessas atividades (pois as tarefas domésticas predominantemente realizadas por mulheres não são compreendidas como trabalhos geradores de renda, salvo quando exercidas por trabalhadores domésticos empregados para esse fim), acentuando as desigualdades na divisão social e sexual do trabalho nos âmbitos domésticos e extradoméstico.

Andrade (2015) aponta que embora tenham ocorrido modificações, principalmente nos últimos decênios, nas relações entre homens e mulheres, ainda ocorrem reproduções e continuidades, tais como a dupla jornada de trabalho feminino com a delegação do trabalho doméstico para outras mulheres (por exemplo, empregadas domésticas) perpetuando a submissão feminina nos trabalhos precários. As dificuldades de conciliação entre diversas esferas da vida, expectativas, funções e papéis, bem como a delegação de atividades a outras mulheres foram relatadas pelos participantes:

Eu saio correndo atrasada todo dia pro serviço, mas pra mim isso é normal, não acho que seja um peso. Minha alegria é ir para o serviço e saber que eu deixei a comida pra L. e o pro H. sair de barriguinha cheia. É mais um cuidar, eu sou feliz aqui. Tem meu trabalho também que chega lá eu nem lembro que tem filho, marido, vou viver um outro mundinho à parte. (Ana)

Eu detesto sujeira, então eu limpo, lavo roupa, gosto de fazer minha comida. Mas a sociedade fala que é Amélia, discrimina. A gente tem uma moça que ajuda [em casa]. A gente se divide entre eu, minha mãe e minha irmã. São papéis diferentes, mas que se complementam. Como dois remos. O homem tem papel de base, esteio; a mulher tem a ternura, o carinho, escolhe onde vai viajar, jantar, a cor da casa; mas acho que se complementam. (Antônio)

Fiquei grávida, parei de trabalhar um tempo, depois engravidei de novo e tive só a licença. Sem empregada, então foi bem trabalhoso. Era dia e noite, os meninos quase não dormiam e no outro dia trabalhava e arrumava casa. Minha mãe ajudava – o que seria de nós sem as mães. Tem agora as escolinhas para as crianças que tendo dinheiro ajuda muito. Mas isso tem um lado não muito legal. Os meus foram para escola com 6 anos, hoje as crianças vão com meses. Então acho que atrapalha o convívio familiar. (Frida)

No conjunto das entrevistas dos participantes ficou ressaltada uma ancoragem da RS da mulher/feminino enquanto cuidadora associada quase que exclusivamente ao ambiente doméstico – o que poderia ser indicativo de outro provável NC das RS sobre padrões e dinâmicas familiares. Por exemplo, na entrevista de Ana ficou evidenciada a afetividade pela qual ela se referiu às atividades domésticas e de cuidado dos filhos, destacando a naturalização do cansaço e da abdicação do espaço público; Antônio relatou em sua entrevista a mulher como principal cuidadora do espaço doméstico, pois homens que executam essas atividades são pejorativamente denominados de "Amélia", além de ressaltar que homens (esteio) e mulheres (decisão sobre fatos menos importantes) assumem papéis dissimétricos nas relações de poder.

Tanto nas entrevistas de Antônio quanto na de Frida foram apontadas a delegação das tarefas e cuidados domésticos para outras mulheres. Frida destacou os atravessamentos de classe social quanto ao provimento dos cuidados, além da dimensão avaliativa (Wolter et al., 2016) quando mencionou que as creches "atrapalham" o convívio familiar, reafirmando a mulher/mãe enquanto cuidadora responsável pela família.

Mesmo que algumas mudanças tenham ocorrido em relação ao (suposto) modelo ideal/natural de família (Pontes, Féres-Carneiro & Magalhães, 2015), conforme aponta Gonzálvez Torralbo (2013) alguns significados e práticas permaneceram sem ou com poucas alterações, conforme retratado por alguns dos participantes:

Eu vejo dois aspectos, um que eu vi na minha família e outro que eu via em outras famílias. Na minha nunca teve um papel da mulher como quem fica em casa e cuida dos filhos e o outro vai trabalhar. Hoje em dia isso já se modificou bastante, gradualmente. Na minha percepção isso não existe mais, na minha cabeça não existe tarefas das mulheres e dos homens. (Matheus)

Meu salário é maior que o do meu marido, mas nem por isso eu acho que eu sou melhor do que ele. Na verdade, ele é o homem da casa. Fui criada desse jeito: a gente tem que respeitar a figura masculina. Mesmo não concordando com ele eu tenho que respeitar. Eu posso expressar a minha opinião, mas eu tenho que respeitar a opinião dele. Ele tem o papel de pai, então ele tem que desempenhar esse papel de homem. Eu como mulher tenho que desempenhar esse papel de mulher, de mãe, de esposa, de dona de casa. É aí que é complicado, que eu acho que muito casamento não dá certo. Porque a mulher acha que não é bem assim. (Ana)

Não acho compatível com as minhas ideias a mulher ir trabalhar e largar os filhos com empregadas para ser uma profissional. Depois tem que pagar um psicólogo porque vai ter problemas, pois não estava em casa pra cuidar dos filhos. No trabalho ela está indo muito bem, em casa eu já acho que está deixando a desejar. Ela quer competir com o marido e isso é horrível. São papéis diferentes. É a questão da hierarquia: o homem tem que ser aquele que traz a condição financeira para dentro de casa. Se a mulher quer ser parceira eu até admiro, mas a hierarquia eu ainda considero que tem que ser como era antigamente. Tem que haver um diálogo, mas tem que prevalecer a experiência do homem. Se bem que depende muito, porque tem homens completamente deturpados. (Pedro)

A despeito das mudanças nos arranjos, composições e dinâmicas familiares (ilustradas pelo excerto de Matheus), quase sempre são ressaltados os papéis tradicionais e conservadores de homens e mulheres. Como possível NC da feminilidade atrelam-se responsabilizações pelo cuidado do âmbito familiar e a maternidade; acerca da masculinidade ressalta-se como possível NC a superioridade sobre as mulheres. Por exemplo, na entrevista de Ana isso foi expresso por meio do emprego da palavra "respeito" e da submissão subjetiva – ainda que ela tenha renda superior ao companheiro; na entrevista de Pedro isso foi evidenciado com a suposição de uma hierarquia na qual "prevalece a experiência do homem". Por mais que tal capacidade seja questionada ("existem homens completamente deturpados") os significados são reinterpretados para manter os possíveis NC das RS (Wolter et al., 2016), prevalecendo a RS de eficácia e superioridade dos homens diante das mulheres.

Ademais, a dimensão avaliativa (Wolter et al., 2016) também pode ser observada nas entrevistas de Ana e Pedro ("não é compatível"; "não é bem assim"), considerando negativas as mudanças nas dinâmicas familiares. De maneira geral, os conteúdos presentes no conjunto de entrevistas apontam para a prevalência de papéis rígidos e distintos entre homens e mulheres. Como provável NC da feminilidade a maternidade e a domesticidade ganharam destaques, implicando na responsabilização feminina por eles; já no que se refere à masculinidade evidenciou-se a relação de poder, provimento e superioridade diante das mulheres. Tais concepções são fomentadas por meio da dimensão avaliativa (Wolter et al., 2016): valores morais e sociais que apontam para a manutenção de interesses e privilégios coadunados pelo capitalismo e pelo patriarcado.

Intersecções entre feminismos e família

Os modelos, formatos e dinâmicas familiares têm passado por mudanças ao longo do tempo de acordo com o contexto social e histórico. Giallorezzi (2017), Gonzálvez Torralbo (2013) e Tarducci (2013) ressaltam que os movimentos feministas questionam o patriarcado e as opressões (dos homens para com as mulheres) na esfera familiar. Assim, algumas RS presentes no conjunto das entrevistas dos participantes sobre as intersecções entre feminismos e família apontaram para os feminismos como potenciais ferramentas de transformação questionadora das posições ocupadas pelas mulheres e das relações de poder:

Acho que [o feminismo] interfere sim. A liberdade pra trabalhar é uma conquista, agora essa liberdade sexual já acho negativo. Acho que a liberdade da mulher que talvez nem seja esse feminismo, tá mudando a estrutura do mundo. Hoje ela trabalha, ocupa outros espaços, tem uma outra visão. Uma visão que não é a minha. Porque o mundo que eu quero é um mundo de amor, sem violência e o princípio está nisso. Na mulher reconhecer o seu lugar, se valorizar e contribuir para um mundo melhor nesse sentido de família. Porque a violência tem a ver com isso, com essa falta da família. Talvez isso não dependa tanto do homem porque o homem não é tanto sentimento, é mais razão. Enquanto a mulher é mais sentimento, amor, carinho. Antigamente as famílias às vezes não eram tão bem estruturadas, tinham casos de adultério e as esposas nem sabiam disso ou até fingiam que não sabiam, deixavam passar tudo para manter a relação dos filhos e talvez também porque ela não tinha aquela independência, seu próprio dinheiro. Mas eu acho que de uma certa forma quando as pessoas mantinham as famílias tinha menos violência, menos coisas ruins. (Ana)

Acho que interfere positivamente e negativamente. Negativamente porque com essa questão do empoderamento as mulheres acham que não precisam de ninguém, aí qualquer coisa que acontece por exemplo já acaba um relacionamento, não tenta melhorar nada. Mas por outro lado, é bom que se ela precisar enfrentar as coisas ela enfrenta, igual minha irmã que cuida dos filhos sozinha. Os dois pais não estão nem aí. Não é fácil. (Pagu)

No relato de Ana pode ser observada a função identitária da RS (Bertoni & Galinkin, 2017) ("não é uma visão minha"). Nestes excertos das entrevistas de Ana e Pagu podem evidenciar prováveis periferias das RS (considerando que os tradicionalismos, conforme apontado anteriormente, são possíveis NC) que indicam possibilidades de mudanças para as mulheres na sociedade e na família; eles podem ser elementos periféricos porque apontam para contradições ("interfere positivamente e negativamente"; "a liberdade para trabalhar já é uma conquista, a liberdade sexual já é negativa") diante de ideias e hábitos consolidados (Nascimento-Schulze & Camargo, 2000).

Neste sentido, o feminismo foi apontado pelos participantes como possível responsável pela dissolução das relações familiares (provável NC) ("qualquer coisa já acaba um relacionamento"). Outro possível NC no conjunto das entrevistas foi a quase exclusiva responsabilização feminina pela manutenção da família. Exemplo disso é Pagu e Ana destacarem a inexistência da responsabilização do homem pelo cuidado com os filhos ("os dois pais não estão nem aí"; "talvez isso não dependa tanto do homem") sem haver questionamentos a respeito disso. Mariano e Carloto (2009) destacam as pressões feministas pela corresponsabilização dos homens pelas atividades domésticas como meio de reconfigurar as relações de poder – tema relatado nas entrevistas:

O homem se sente inseguro quando a mulher sai para trabalhar ou quando a mulher não depende deles. Há homens que não aceitam isso ainda. Então se você não tem um relacionamento maduro ele pode não entender que você quer trabalhar, ir atrás dos seus objetivos. O homem se sente ameaçado quando a mulher ganha mais que ele, ou ele não aceita receber ordens de uma mulher. Isso é o fim do mundo (Ângela)

A mulher poder pensar que se o homem pode ela também pode. Então muda um pouco isso [na família]. Acho que pode causar uma revolução. Isso para os homens vai ser negativo, mas para as mulheres é positivo. Que a mulher vai alcançar espaços que antes só o homem podia estar, as pessoas falam que isso é machista (Letícia)

Talvez as mulheres hoje são mais firmes nos seus posicionamentos, antes a gente só falava sim senhor. Hoje elas se impõem mesmo. Sabem mais o que querem. Acho positivo desde que se impõem positivamente, desde que não exagerem. Podem se mostrar como mulheres, feministas, mas sem extrapolar. Querer ser mais que o homem, porque ganha mais se achar melhor (Frida).

Novamente, as implicações/consequências dos feminismos nas práticas por parte dos membros das famílias parecem configurar elementos periféricos das RS, sendo positivas ou negativas a depender do contexto e do agente ("isso para os homens é negativo, mas para as mulheres é positivo") – mas se destaca como provável NC nas entrevistas que as mudanças na dinâmica familiar repercutem como ameaças às posições dos homens. Exemplo disso é o relato de Frida sobre o rompimento com a submissão feminina apontado como positivo, desde que ocorra com ressalvas e limites ("sem querer extrapolar, querer ser mais que o homem"), denotando uma ancoragem (Moscovici, 2012) do feminismo como um machismo ao contrário – isto é: a alegação de que o objetivo do feminismo seria, simplesmente, inverter as relações de poder e dominar os homens a partir de uma perspectiva sexista (Coelho, 2016).

Como mencionado, há na sociedade brasileira contemporânea movimentos conservadores guiados em valores tradicionalistas religiosos (de sexualidade e de gênero) que argumentam que as demandas (por direitos) dos feminismos levariam à destruição da família ideal (heterossexual, nuclear e monogâmica), impingindo tanto um pânico moral quando barreiras ao exercício dos direitos das mulheres (Miskolci & Campana, 2017). Essas resistências de caráter conservador e tradicionalista foram relatadas nas entrevistas, como por exemplo:

A gente imagina uma baderna [feminismo]. A legalização das drogas, liberação de gênero... tem umas que apoiam relação com animal, a pedofilia também. Isso é muito sério, é uma abordagem muito forte. Se eu tivesse um segundo companheiro por exemplo não aceitaria ter relação com as minhas filhas. Não adianta abrir as portas e falar que tá tudo liberado. Isso não é família. (Flavia)

Evidencia-se, neste sentido, uma argumentação permeada por termos que denotaram afetividade ("baderna"; "isso é muito sério") desvelando a dimensão avaliativa das RS (Wolter et al., 2016). Ademais, também foi ressaltado um não reconhecimento das articulações entre os feminismos e família. Fascioli Àlvarez (2015) esclarece que a consolidação do capitalismo implicou no fortalecimento das divisões entre espaço público e privado, repercutindo em barreiras que reforçam relações tradicionalistas e conservadoras entre os gêneros, fazendo com que mudanças sejam dificultadas ou não reconhecidas – tal como expresso nas entrevistas, por exemplo:

Acho que [o feminismo] não interfere na dinâmica familiar em si, ela altera a dinâmica da sociedade no sentido de que ajudou a mulher a ter alguns direitos como votar, de conscientização da mulher estudar e ser independente. Influenciou nesse processo, vejo o feminismo como um catalisador. (Matheus)

Eu acho que não interfere tanto não. Direitos iguais lá fora, no mercado de trabalho. A mulher fazer o mesmo serviço que o homem. Eu vejo muita mulher engenheira e isso antigamente era profissão só para homem. E eu vejo muito homem enfermeiro que é uma profissão mais feminina. Então, aí sim, estão os direitos iguais. Agora, dentro de casa você já vê que não tem aquela igualdade. É muito raro você ver um homem ajudar dentro de casa. Você vê, mas é muito raro. E é raro você vê uma mulher fazendo um serviço mais pesado de homem. Lá em casa a gente faz, eu pego enxada, pego furadeira. Minha mãe fala que eu sou até meio doida, que eu pego a furadeira e saio pra todo lado. (Simone)

Por meio da objetivação (Moscovici, 2012) os participantes apontaram mudanças incipientes e repercussões (mesmo que restritas) do feminismo na sociedade, mais especificamente relacionadas ao âmbito público. Em contrapartida, Simone ressaltou que apesar das mudanças ocorridas no espaço familiar há a manutenção de relações e funções para homens e mulheres que, apesar de questionados ("pego enxada, furadeira"; "sou até doida"), são mantidos – devido ao fato de serem possíveis NC (trabalho/funções masculinas e femininas). Esse aspecto revela as tensões constitutivas entre NC e esquemas periféricos 3 (Sá, 1996a; 1996b; Morera, Padilha, Silva, & 2015).

De maneira geral, o conjunto de entrevistas destaca como possíveis NC das RS as mudanças (reais e potenciais) das posições ocupadas pelas mulheres na sociedade e na família. E as repercussões dos feminismos na família foram consideradas elementos em destaque, porém periféricos nas entrevistas. Os movimentos feministas foram apontados como responsáveis pelas dissoluções das relações familiares (provável NC) e a família e a maternidade foram posicionadas como prováveis NC da feminilidade. Como provável NC do conjunto das participantes destaca-se que as mudanças que permeiam a dinâmica familiar foram consideradas ameaçadoras às posições dos homens.

Destarte, essas representações foram fundamentadas em valores morais tradicionais que guiam práticas (dimensão avaliativa). Por fim, mesmo que relatados questionamentos (e tentativas de reconfigurações) das relações entre os gêneros na família, as RS permanecem hierarquizadas e desiguais devido às resistências e ressalvas destacadas pelos participantes.

 

Considerações Finais

A família é uma instituição que organiza relações sociais e de poder a partir de fatores culturais, econômicos e históricos. Os feminismos questionam posturas tradicionais e conservadoras de família (heterossexuais, nucleares e monogâmicas) a fim de combater as desigualdades entre os gêneros, o que leva a considerar que o não feminismo pode compactuar e reiterar com essas desigualdades – por isso o objetivo deste estudo foi investigar RS sobre família de não feministas.

Os principais resultados destacaram como prováveis NC (constâncias e resistências) das RS de família deste agrupamento de participantes: a idealização dessa instituição em termos tradicionalistas; a naturalização dos conflitos entre seus integrantes; a recorrência da dimensão avaliativa das RS (valores morais tradicionais e conservadores) sobre gênero e sexualidade; em relação à dinâmica familiar foi enfatizada a prevalência de papéis desiguais e rígidos entre homens e mulheres; a maternidade e sua responsabilização pelo âmbito doméstico e familiar; a superioridade dos homens em relação às mulheres. Em suma, todos estes parecem manter e ser mantidos devido aos interesses do capitalismo e do patriarcado.

Além destes, no que se refere às intersecções entre feminismo e família se destacaram: a importância das mudanças das posições ocupadas pela mulher na sociedade e na família – contudo, sem efeitos imediatos nas interações dos participantes; os feminismos apontados como responsáveis pela dissolução das relações familiares, pois atentam contra a família e contra os papéis de gênero supostamente normais e naturais. Por isso, ser autodeclarado não feminista posiciona os participantes de maneira contraditória diante das principais pautas dos movimentos feministas: se por um lado os participantes reconheceram os benefícios provenientes dos feminismos, por outro lado em nada ou pouco executaram ações coadunadas com esse reconhecimento – destacando as tensões entre os elementos centrais e periféricos das RS.

Como limitações deste artigo destacam-se que a amostra contou apenas com sujeitos heterossexuais e inseridos em composições familiares nucleares e que o instrumento de coleta empregado (roteiro de entrevistas) não é o mais usual nas pesquisas pautadas na TNC das RS. Desse modo, os resultados representam um recorte de uma realidade que cada vez mais tensiona elementos do núcleo central e dos esquemas periféricos. Por fim, a partir dos seus resultados, essa investigação destaca a importância de realizar outras pesquisas que discutam como as RS reproduzem/alterem relações sociais desiguais tais como as vigentes.

 

Referências

Andrade, J. E. (2015). O feminismo marxista e a demanda pela socialização do trabalho doméstico e do cuidado com as crianças. Revista Brasileira de Ciência Política, (18), 265-300. doi:10.1590/0103-335220151810         [ Links ]

Bertoni, L. M., & Galinkin, A. L. (2017). Teoria e métodos em representações sociais. In L. P Mororó, M. E. S Couto, & R. A. M Assis (Orgs.), Notas teórico-metodológicas de pesquisas em educação: Concepções e trajetórias (pp. 101-122). Ilhéus, BA: Editus. Recuperado de http://books.scielo.org/id/yjxdq/epub/mororo-9788574554938        [ Links ]

Biroli, F. (2018). Gênero e desigualdades: Limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Brandão, E. R., & Lopes, R. F. F. (2018). "Não é competência do professor ser sexólogo": O debate público sobre gênero e sexualidade no Plano Nacional de Educação. Civitas - Revista de Ciências Sociais, 18(1), 100-123. doi:10.15448/1984-7289.2018.1.28265        [ Links ]

Costa, L. B. L., & De Tilio, R. (2019). Revisão integrativa da literatura feminista sobre características da família. Manuscrito submetido para publicação.         [ Links ]

Coelho, M. P. (2016). Vozes que ecoam: Feminismo e Mídias Sociais. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(1), 214-224. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082016000100017        [ Links ]

Costa, F. A. O. & Marra, M. M. (2013). Famílias brasileiras chefiadas por mulheres pobres e monoparentalidade feminina: Risco e proteção. Revista Brasileira de Psicodrama, 21(1), 141-153. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicodrama/v21n1/a11.pdf        [ Links ]

Fascioli Álvarez, A. C. (2017). ¿Esla vida familiar relevante para la justicia social? Ideas y Valores, 66(163), 81-103. doi:10.15446/ideasyvalores.v66n163.49543         [ Links ]

Fonseca, C. (2007). Apresentação de Família, Reprodução e Parentesco: Algumas considerações. Cadernos Pagu, (29), 9-35. doi:10.1590/S0104-83332007000200002        [ Links ]

Giallorenzi, M. L. (2017). Critica feminista sobre la noción de la buena madre. Revista Reflexiones, 96(1), 87-95. doi:10.15517/rr.v96i1.30634        [ Links ]

Gonzálvez Torralbo, H. (2013). La producción científica sobre la familia en Chile: Miradas desde la antropología feminista. La ventana, 4(38), 88-119. Recuperado de http://www.scielo.org.mx/pdf/laven/v4n38/v4n38a5.pdf        [ Links ]

Gomes, I. C. & Santos, C. V. M. (2016). The L Word: Discussões em torno da parentalidade lésbica. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(1), 101-115. doi:10.1590/1982-3703000092014        [ Links ]

IBGE. (2018). Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Recuperado de https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=o-que-e        [ Links ]

Lago, M. C. S., Souza, C. D., Kaszubowski, E., & Soares, M. S. (2009). Gênero, gerações e espaço doméstico: Trabalho, casa e família. Paidéia, 19(44), 357-366. doi:10.1590/S0103-863X2009000300010        [ Links ]

Mariano. S. A., & Carloto, C. M. (2009). Gênero e combate à pobreza: Programa bolsa família. Revista Estudos Feministas, 17(3), 901-908. doi:10.1590/S0104-026X2009000300018        [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2017). Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: Consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, 5(7), 1-12. Recuperado de http://rpq.revista.sepq.org. br/index.php/rpq/article/view/82/59        [ Links ]

Miskolsci, R., & Campana, M. (2017). "Ideologia de gênero": Notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado, 32(3), 723-745. doi:10.1590/s0102-69922017.3203008         [ Links ]

Morera, J. A. C., Padilha, M. I., Silva, D. G. V., & Sapag, J. (2015). Aspectos teóricos e metodológicos das representações sociais. Texto & Contexto - Enfermagem, 24(4), 1157-1165. doi:10.1590/0104-0707201500003440014        [ Links ]

Moscovici. S. (2012). Representações sociais: Investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Nascimento, L C. N., Souza, T. V., Oliveira, I. C. S., Moraes, J. R. M. M., Aguiar., R. C. B., & Silva, L. F. (2018). Theoretical saturation in qualitative research: An experience report in interview with schoolchildren. Revista Brasileira de Enfermagem, 71(1), 228-233. doi:10.1590/0034-7167-2016-0616        [ Links ]

Nascimento-Schulze, C. M., & Camargo, E. V. (2000). Psicologia social, representações sociais e métodos. Temas em Psicologia, 8(3), 287-299. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2000000300007        [ Links ]

Peixoto, A. C. S., Fonseca, H. O., & Oliveira, R. M. R. S. (2013). Ancoragem. Cadernos CESPUC, 23, 8-12. Recuperado de http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoscespuc/article/download/8297/7178        [ Links ]

Pontes, M. F., Féres-Carneiro, T., & Magalhães, A. S. (2015). Homoparental families and biological motherhood. Psicologia & Sociedade, 27(1), 189-198. doi:10.1590/1807-03102015v27n1p189        [ Links ]

Reis, S. L. D. A., & Bellini, M. (2011). Representações sociais: teoria, procedimentos metodológicos e educação ambiental. Acta Scientiarum. Humanand Social Sciences, 33(2), 149-159. doi:10.4025/actascihumansoc.v33i2.10256        [ Links ]

Sá, C. P. (1996a). Núcleo Central das Representações Sociais. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Sá, C. P. (1996b). Representações sociais: Teoria e pesquisa do núcleo central. Temas em Psicologia, 4(3), 19-33. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1996000300002        [ Links ]

Sarti, C. A. (2004). A família como ordem simbólica. Psicologia USP, 15(3), 11-28. doi:10.1590/S0103-65642004000200002        [ Links ]

Silva, R. C., & Ferreira, M. A. (2012). Construindo o roteiro de entrevista na pesquisa em representações sociais: Como, por que, para que. Escola Anna Nery, 16(3), 607-612. doi:10.1590/S1414-81452012000300026        [ Links ]

Tarducci, M. (2013). Adopción y parentesco desde la antropología feminista. La ventana, 4(37), 106-145. Recuperado de http://www.scielo.org.mx/pdf/laven/v4n37/v4n37a6.pdf        [ Links ]

Timm, F. B., Pereira, O. P., & Gontijo, D. C. (2011). Psicologia, violência contra mulheres e feminismo: Em defesa de uma clínica política. Revista Psicologia Política, 11(22), 247-259. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v11n22/v11n22a05.pdf        [ Links ]

Turato, E. R. (2008). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Wolter, R. P. (2018). The Structural Approach to Social Representations: Bridges between Theory and Methods. Psico-USF, 23(4), 621-631. doi:10.1590/1413-82712018230403        [ Links ]

Wolter, R. P., Wachelke, J., & Naiff, D. (2016). Abordagem estrutural das representações sociais e o modelo dos esquemas cognitivos de base: Perspectivas teóricas e utilização empírica.Temas em Psicologia, 24(3), 1139-1152. doi:10.9788/TP2016.3-18        [ Links ]

Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Lacilaura Bomtempo Lamounier Costa
Rua José de Alencar, 904 apto 201, Nossa Senhora Abadia, Uberaba - MG, Brasil. CEP 38025-120
Endereço eletrônico: lacilaura_lamounier@hotmail.com
Rafael De Tilio
Rua do Professor, 370 apto 203, Jardim Irajá, Ribeirão Preto - SP, Brasil. CEP 14020-280
Endereço eletrônico: rafael.tilio@uftm.edu.br

Recebido em: 30/05/2019
Reformulado em: 12/06/2020
Aceito em: 12/06/2020

 

 

Notas

* Psicóloga graduada pela UFTM, Pós-Graduada em Teoria Psicanalítica pela UNIUBE, Mestre em Psicologia pela UFTM. Membro do HUBRIS (Laboratório de Estudos e Pesquisa em Sexualidade e Violência de Gênero).
** Docente do Departamento de Psicologia e do Programa em Pós-graduação em Psicologia da UFTM. Líder do HUBRIS (Laboratório de Estudos e Pesquisa em Sexualidade e Violência de Gênero).
1 Sem esgotar o campo de possibilidades e de desdobramentos da TRS após a proposição original de Serge Moscovici destacam-se as abordagens cultural, social, dialógica e estrutural.
2 Usualmente, as pesquisas pautadas na TNC das RS utilizam instrumentos como testes de centralidade, como os de evocação e/ou de associação de palavras. Todavia, segundo o próprio Abric, outros instrumentos e estratégias de coleta dos dados (grupos focais, entrevistas de diversos tipos, documentos e mídias etc.) podem ser utilizados com igual eficácia para o estudo do NC haja vista que o conteúdo produzido/relatado estaria lastreado em RS.
3 Apesar desse sistema duplo (núcleo central e esquema periférico) possuir relações de tensões na determinação da hegemonia de algumas representações sobre outras, não há como saber com exatidão em que circunstâncias as alterações ocorrem. O máximo que se pode supor é que as mudanças entre periferia e centro dependem de movimentações históricas e sociais de longa duração e estruturais numa sociedade.

 

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001.

 

Este artigo de revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.

Creative Commons License