SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número3Atendimento a Mulheres em Situação de Violência: A Experiência de Profissionais de um CreasAnálise Comparativa de Estudos sobre Bem-Estar Subjetivo no Brasil: Aspectos Epistemológicos, Metodológicos e Teóricos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.20 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2020.54358 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2020, Vol. 03. doi:10.12957/epp.2020.54358
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Incidências da Psicanálise na Instituição: Dispositivos Clínicos para Crianças e Adolescentes com Transtornos Psíquicos Graves

 

Incidences of Psychoanalysis in Institutions: Clinical Devices for Children and Adolescents with Severe Psychic Disorders

 

Incidencias del Psicoanálisis en la Institución: Dispositivos Clínicos para Niños y Adolescentes con Trastornos Psíquicos Graves

 

Volmir Mielczarski dos Santos*; Marta Regina de Leão D'Agord**
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

No presente artigo, apresentamos os resultados de nossa pesquisa sobre as incidências da psicanálise nas equipes que atuam em instituições que atendem crianças e adolescentes. As reflexões sobre essas incidências são desenvolvidas desde a perspectiva da possibilidade de proposição de dispositivos clínicos para crianças e adolescentes com transtornos psíquicos graves. Nossa elaboração passa por um exercício da ampliação da práxis clínica psicanalítica que pode dar sustentação metodológica à proposição destes dispositivos clínicos. Nossa contribuição teórico-metodológica recupera o que Maud Mannoni (1988) denominou de "estouro" da instituição, praticado na Escola de Bonneuil desde 1969. Essa contribuição histórica repercute nos atuais processos da prática entre muitos. Essas práticas, realizadas atualmente em instituições no Brasil e em outros países, buscam orientar as intervenções não a partir das exigências dos especialistas, mas a partir da uma hipótese sobre a posição singular das crianças e adolescentes na relação como campo da fala e da linguagem.

Palavras-chave: dispositivos clínicos, inclusão social, autismo, psicose.


ABSTRACT

In the present article, we present the results of our research on the incidences of psychoanalysis in teams that work in institutions that assist children and adolescents. The reflections on these incidences are developed from the perspective of the possibility of proposing clinical devices for children and adolescents with severe mental disorders. Our elaboration goes through an exercise in expanding the psychoanalytic clinical praxis that can give methodological support to the proposition of these clinical devices. Our theoretical-methodological contribution retrieves what Maud Mannoni (1988) called the "overflow" (éclat) of the institution, practiced at the Bonneuil School since 1969. This historical contribution has repercussions on the current processes of practice among many. These practices, currently carried out in institutions in Brazil and other countries, seek to guide interventions not based on the requirements of specialists, but based on a hypothesis about the unique position of children and adolescents in the relationship with the field of speech and language.

Keywords: clinical devices, social inclusion, inclusion, autism, psychosis.


RESUMEN

En el presente artículo, presentamos los resultados de nuestra investigación sobre la incidencia del psicoanálisis en equipos que trabajan en instituciones que ayudan a niños y adolescentes. Las reflexiones sobre estas incidencias se desarrollan desde la perspectiva de la posibilidad de proponer dispositivos clínicos para niños y adolescentes con trastornos mentales graves. Nuestra elaboración pasa por un ejercicio de expansión de la praxis clínica psicoanalítica que puede brindar apoyo metodológico a la propuesta de estos dispositivos clínicos. Nuestra contribución teórico-metodológica recupera lo que Maud Mannoni (1988) llamó el "desbordamiento" de la institución, practicada en la Escuela Bonneuil desde 1969. Esta contribución histórica tiene repercusiones en los procesos actuales de práctica entre muchos. Estas prácticas, actualmente llevadas a cabo en instituciones de Brasil y otros países, buscan guiar las intervenciones no en función de los requisitos de los especialistas, sino en base a una hipótesis sobre la posición única de los niños y adolescentes en la relación como un campo del habla y del lenguaje.

Palabras clave: dispositivos clínicos, inclusión social, autismo, psicosis.


 

 

No presente artigo apresentamos os resultados de nossa pesquisa sobre as incidências da psicanálise em instituições. Essa pesquisa se desenvolveu em diferentes contextos institucionais, tanto relativos à área da educação como da saúde mental, voltados ao atendimento de crianças e adolescentes com transtornos psíquicos graves. Acompanhando os avanços político-legais da área da saúde mental resultantes do movimento de reforma psiquiátrica e da educação inclusiva, assim como as mudanças nas formas de atendimento, passamos a adequar nossa forma de atuação a essa nova realidade.

As diversas funções afetadas desses sujeitos, acrescentadas às dificuldades psíquicas, vinham sendo abordadas através da tradição da clínica multiprofissional, na qual se multiplicavam intervenções supondo que a adição sistemática contribuiria para restabelecer um quadro de normalidade. Desta forma, era oferecida uma aparência de racionalidade na qual a soma de especialidades e disciplinas constituía uma proposta de resolver um problema de cada vez, de acordo com a natureza de cada um deles.

O que se passou a observar, com o passar do tempo, foi que essa fragmentação imaginária das intervenções produzia efeitos iatrogênicos sobre o sujeito. Ao serem confrontado com tantos discursos apresentados em equivalência, eles se viam perante situações nas quais não se constituía uma base que possibilitasse uma escolha para determinar um sistema de significações. Nossa resposta, neste momento, foi passar a utilizar uma ferramenta central para a montagem de estratégias interdisciplinares: a escuta do sujeito em transferência. O uso de tal ferramenta envolve considerar, nos diversos aspectos da proposição dos atendimentos, a singularidade de cada caso.

No trabalho cotidiano em equipes, percebemos a importância de nos dedicarmos a refinar os elementos teórico-metodológicos que embasavam nossas intervenções. Desde a inserção do discurso psicanalítico, conforme Lacan (1969-70/1992) formalizou no matema do discurso do psicanalista, refletimos sobre as possibilidades e impasses envolvidas na utilização do método clínico psicanalítico transposto para o trabalho em instituição.

Nossa reflexão segue o seguinte caminho: (1) retomamos a proposição de Dunker, Voltolini e Jerusalinsky (2008) de que a psicanálise surge a partir do ato inaugural de Freud que realiza uma subversão dos elementos da clínica médica. A clínica, para Dunker, é um dispositivo que antecede a psicanálise. A psicanálise e o método clínico psicanalítico surgem por uma subversão dos elementos de sua estrutura. Tomamos a perspectiva de estrutura como um conjunto de elementos covariantes. (2) Uma vez que são identificados esses elementos e as torções daí decorrentes, passamos a dirigir nossos questionamentos às especificidades de nosso trabalho com as contribuições de Elia (2007), segundo as quais podemos realizar a inserção da psicanálise no trabalho em instituição através de uma ampliação do dispositivo psicanalítico. Essa ampliação, no entanto, precisa respeitar algumas condições. As condições para uma ampliação passam por uma nova subversão na relação entre os elementos da clínica, subversão que denominamos de segunda subversão. (3) Na sequência, ampliamos nosso diálogo tomando as experiências já consagradas no meio psicanalítico nas quais instituições são criadas com o intuito de oferecer dispositivos de atendimento a crianças e adolescentes com autismos e psicoses desde o referencial psicanalítico (Mannoni, 1987; Stevens, 1996; Kupfer, 1996). Tomando-as enquanto modelos, não como ideais a serem seguidos, mas como estilos específicos quanto à proposição de dispositivos clínicos institucionais. Cada uma subverte, ao seu estilo, os elementos da clínica clássica, numa operação de inserção do discurso psicanalítico no trabalho em instituição. (4) Depois do destaque dessas questões, passamos a um exercício de construção de caso retomando fragmentos de intervenção em equipe com uma criança com sintomas de autismo. Nesse exercício propomos retomar em que sentido as contribuições das elaborações dos autores trabalhados, termos e conceitos, podem nos ajudar a contornar os impasses do caso através das proposições das intervenções da equipe, que muitas vezes, compostas por saberes heterogêneos oriundos de referenciais epistemológicos distintos, não encontram um território comum para proposição do trabalho em conjunto.

 

Do Método Clínico Psicanalítico na Situação de Tratamento Clássica aos Dispositivos Clínicos em Instituição

Propor, no desenvolvimento de nossa pesquisa, uma fundamentação na qual conceitos e enunciados possam ser explicitados e discutidos desde o âmbito de uma pesquisa acadêmica, requer uma metodologia específica, na qual o rigor e cuidado aparentemente contrastam com a liberdade associativa do analista apropriada à escuta de pacientes. Utilizamos elementos do método clínico psicanalítico numa perspectiva que inclua tanto uma formalização quanto uma abertura necessária à proposição da escrita de um ensaio psicanalítico. No ensaio, como nos lembra Adorno (2003), o pensar é realizado de forma fragmentada, pois a realidade para ele é sempre fragmentada. O desafio, nesse estilo de escrita é segundo Starobinski (2011), nunca deixar de estar atento à resposta precisa que as obras ou os eventos interrogados devolvem às nossas questões.

No caminho de elaboração a nossas perguntas, encontramos nas proposições de Dunker, Voltolini e Jerusalinsky (2008) e de Elia (2007), elementos para um diálogo que nos ajudou a avançar muito na direção da formalização de nossos pressupostos. Dunker, Voltolini e Jerusalinsky (2008) ao abordar uma diferenciação entre método psicanalítico de tratamento e de pesquisa, propõe que a clínica é um dispositivo histórico que antecede a psicanálise, e que esta, ao subverter os elementos constitutivos deste dispositivo, inventa um novo dispositivo. Aqui, vale a pena salientar, os elementos constitutivos da clínica destacados por Dunker, Voltolini e Jerusalinsky (2008) são: semiologia, diagnóstica, etiologia e a terapêutica.

Elia (2007) nos traz alguns elementos que se assemelham à proposição de Dunker, Voltolini e Jerusalinsky (2008) quanto a pensar os eixos estruturantes da práxis clínica. No entanto, ele desenvolve seus pressupostos desde uma reflexão sobre a possibilidade de constituição do dispositivo analítico a partir da ampliação do dispositivo psicanalítico clássico.1 Ele não enfatiza tanto uma diferenciação entre metodologia de pesquisa e de tratamento, fazendo referência à já conhecida observação de Freud (2010/1912) de que na psicanálise, em sua prática, pesquisa e tratamento coincidem. No entanto, Elia (2007) destaca que nesse movimento de ampliação, devemos estar atentos no sentido de que determinadas condições devem ser observadas a fim de que possamos verificar a possibilidade de tratamento segundo uma orientação metodológica psicanalítica. Desta maneira, o dispositivo psicanalítico pode ser instalado em uma clínica institucional, não havendo nenhum entrave desde que os agentes (profissionais e pesquisadores) se situem no eixo metodológico definido pelo discurso psicanalítico. Não se trataria aí de exigir que em uma equipe os profissionais sejam psicanalistas, mas que os elementos estruturais do dispositivo psicanalítico se instalem pela quebra da equivalência entre tais condições e sua configuração imaginária – existência de duas pessoas numa sala, com conhecimentos previamente definidos.

Consideramos que na passagem acima destacada, Elia retoma em outros termos os elementos da estrutura acima elencados por Dunker, Voltolini e Jerusalinsky (2008), e realiza o desdobramento da estrutura relativa ao matema do discurso do psicanalista, desenvolvida por Lacan no Seminário O Avesso da psicanálise (1969-1970). Uma ou múltiplas extensões, que possam incluir mais de duas pessoas, mas que garantam, pelo menos, um lugar que seja do analista.

As linhas gerais da proposta de Elia - que determinadas condições sejam observadas a fim de que possamos verificar a possibilidade de tratamento segundo uma orientação metodológica psicanalítica em instituição - passam a ser as linhas de análise em nossa proposta de escrita nos diferentes modelos de dispositivos de tratamento em instituição. São todas elas instituições que fundamentam suas modalidades de trabalho no campo de saber psicanalítico: a experiência francesa de Mannoni na Escola de Bonneuil e os efeitos de sua concepção da Instituição Éclatée (estourada), a experiência brasileira de Kupfer no Lugar de Vida e a instituição organizada a partir da Educação Terapêutica, e, por último, a instituição Belga Le Courtil com um trabalho seguindo a Pratique à Plusiers (prática entre muitos). Todas elas têm seus trabalhos organizados a partir do referencial psicanalítico, oferecendo atendimento a crianças e adolescentes com quadros de psicose e autismo e outros transtornos psíquicos em âmbito institucional.

 

As Instituições Psicanalíticas de Tratamento a Crianças e Adolescentes com Psicose e Autismo e o Destaque das Lógicas Operantes em Diferentes Dispositivos Clínicos

As três instituições acima destacadas podem ser agrupadas sob a expressão cunhada por Laurent (2012): formas institucionais diversas. Elas nos apresentam diferentes maneiras de pensar a estruturação da instituição composta por diferentes dispositivos nos quais o desafio de invenção de procedimentos singulares, adaptados caso a caso, possam propiciar que a presença do outro seja suportável para o sujeito. Nossa investigação manteve como foco uma relação entre duas especificidades: de um lado, as relativas ao modo de estruturação subjetiva das crianças e adolescentes; de outro, as diferentes maneiras de responder desde os diferentes dispositivos aos impasses emergentes da clínica com esses sujeitos.

A retomada de um diálogo com as três modalidades institucionais em nossa pesquisa, nos permitiu identificar elementos de um movimento de elaboração em cada um desses espaços no qual um trabalho inventivo resulta na criação de novos termos e conceitos. Começamos nossa abordagem pela retomada do percurso de elaboração realizado por Maud Mannoni, considerada como pioneira na proposição de dispositivos de atendimento psicanalítico em instituição para crianças e adolescentes com transtornos graves. Encontramos o auge de sua produção na fundação da escola experimental de Bonneuil em 1969. Nesta escola, a concepção de instituição estourada (éclatée) faz derivar toda uma lógica no estabelecimento dos dispositivos institucionais.

Essa concepção é desenvolvida em seu livro Educação Impossível (1988), mas havia sido iniciada no livro A criança, sua doença e os outros (1987) coma tentativa de definir a propósito das crianças que consultam um psicanalista, o que faz parte de um mal-estar coletivo. Concluiu que essa definição envolvia esclarecer a relação entre os sintomas da criança e o entrecruzamento de discursos em torno dela.

A perspectiva de estouro (éclatée) da instituição parte da tentativa de oferecer acolhimento e atendimento a crianças e adolescentes que naquela época eram excluídos de qualquer possibilidade de atendimento. O estouro é introduzido toda vez que uma reflexão sobre o peso das rotinas administrativas nas instituições se realiza, quando tendem a produzir situações nas quais se torna impossível qualquer dialética nas relações.

A reintrodução dessa dialética passa pela introdução da escuta do sujeito no trabalho, situação que ocorre na medida em haja uma transformação produzida pela psicanálise nos membros do grupo. Essa transformação propicia uma situação na qual o sintoma do sujeito não seja lido como índice de uma doença. Os sintomas, neste sentido, seriam tomados como manifestações de uma forma de relação com o outro que não seria a princípio dialetizável.

Do percurso trabalhado sobre Kupfer (1996), pudemos destacar sua referência direta à instituição de Mannoni quando da escolha do nome "Lugar de Vida". A instituição de Mannoni foi nomeada Bonneiul "um lugar para viver" em oposição aos "lugares de tratamento". Numa instituição estruturada a partir da psicanálise e de sua lógica denominada "Educação terapêutica" o que se busca é transpor operadores de leitura construídos na experiência analítica para o âmbito da instituição, seja na escuta de seus grupos, seja na montagem mesma da instituição.

Em sua discussão, Kupfer, Oliveira e Guglielmetti (1998) propôs colocar no horizonte um pensamento no qual psicanálise e instituição não são coisas diversas, em disjunção, mas entender a instituição como um dispositivo de tratamento no qual se visa ao discurso analítico, e, portanto, em conjunção com a psicanálise. A passagem da criança de um espaço a outro, por exemplo, ao ser proposta como uma escansão, pode ou não ter valor de corte, coloca-la perante uma descontinuidade. Propor alternâncias seria para Kupfer algo próximo aos giros discursivos na direção ao discurso analítico. Nesse caso poderia haver uma tentativa de provocar uma manobra na transferência, uma mudança na relação de objeto na qual se encontrava esta criança. Nos textos referentes ao trabalho da instituição Le Courtil, instituição belga fundada em 1984 que acolhe crianças psicóticas e neuróticas graves, retomamos um conjunto de indagações que partem de uma reflexão de Stevens (1996) justamente sobre o que pode ser introduzido do discurso psicanalítico, na medida em que o tratamento psicanalítico enquanto tal ali não acontece.

A invenção da equipe cuja prática é feita por muitos (pratique à plusieurs), respondeu a princípio, nos lembra Baio (1999), a uma necessidade. Esta necessidade se impôs pela descoberta de que, por lado, há uma elaboração de saber que a princípio parece opaca e já está em curso na crianças psicóticas e autistas, fora de toda intervenção e fora de toda sessão; de outro, ele de que, para que essa elaboração prossiga, um outro, um parceiro que não sabe, é necessário. Isso resulta na perspectiva de mobilização de toda uma equipe que possa funcionar de forma homogênea a essa "condição de necessidade" no tempo e no espaço da elaboração do saber, uma equipe que saiba não saber. É preciso saber não saber para possibilitar que as crianças psicóticas e a autistas possam saber.

O destaque dessas três lógicas que retomamos em nosso artigo de forma sucinta, nos permitiu vislumbrar diferentes alternativas quanto a uma reconfiguração espaço-temporal que respeitasse algumas condições desde a perspectiva de tratamento em instituição segundo uma orientação metodológica psicanalítica. O método clínico é introduzido por uma subversão dos elementos estruturais da clínica psicanalítica clássica. Essa subversão é realizada a partir de uma redefinição na relação entre sujeito e sintoma.

 A redefinição na relação entre sujeito e sintoma opera, por um lado, um movimento de elaboração no qual a estrutura da clínica passa por uma rearticulação entre seus termos e, por outro, resulta uma inversão na relação entre sujeito e instituição: como nos lembra Vigano (2006), não é o sujeito que deve respeitar as instituições, mas é a instituição que será respeitada se oferecer maneiras de oferecer ao sujeito formas possíveis dele se representar no laço social. Essa inversão se opera para Mannoni (1988) através dos dispositivos criados através do estouro da instituição, em Kupfer (1996), nos desdobramentos da Educação terapêutica e, para o Le Courtil, com uma Prática entre muitos.

 

A Inserção de Dispositivos Clínicos Psicanalíticos nas Equipes e nas Instituições

Denominamos o caso de "Um menino enrolado no cobertor". O conjunto de intervenções começa com uma primeira reunião entre a equipe da escola e a equipe interdisciplinar de um centro de atendimento educacional. Este encontro acontece depois de 3 meses das tentativas de inserção de A., com 5 anos, nas atividades escolares. Seu caso é trazido em função de uma série de dificuldades envolvidas em um quadro de autismo.

Essas dificuldades já são percebidas quando os educadores relatam como foi sua chegada na escola: "Chegou enrolado em um cobertor no colo da tia, quando ela o soltou, saiu correndo para todos os lados de forma desorganizada, não sabíamos o que fazer". Buscando atender a formulação de um laudo, depois da insistência, por parte dos educadores, nas narrativas para entender o que acontecia, em termos de um diagnóstico de autismo, formulações que não traziam nada sobre a criança, foi lançada uma pergunta: "como está a criança hoje em dia na escola?". A educadora que foi destacada para acompanha-lo individualmente comenta em tom ansioso: "está difícil inseri-lo na atividade do grupo, somente quer ficar vendo o mesmo desenho animado, na sala, repetidamente. Não fala, quando a turma vai ao refeitório, se recusa".

O psicanalista perguntou se ela conhecia o enredo da história do filme que vinha atraindo o interesse do menino. Ela respondeu que não. O psicanalista, então, disse: "de agora em diante ela iria ver o filme e passar a ser especialista no desenho x". Todos riram. Essa intervenção teve um efeito chistoso. A sequência do diálogo sobre o caso fluiu de uma forma mais descontraída, situação que possibilitou que se estabelecessem algumas estratégias nas proposições educacionais.

Passados alguns dias foi realizada uma segunda reunião. A educadora, mais à vontade, relata uma série de avanços. Depois de algum tempo no qual ela propôs algumas brincadeiras com a criança em torno do filme, A. passa a aceitar fazer alguns deslocamentos pela escola. Passa a tolerar ir com a turma fazer o lanche no refeitório, e, inclusive, à mesa, reconhecer um lugar como seu. As brincadeiras com o desenho do filme começaram a se diversificar, o menino passa a estar mais presente na relação com o outro, de forma distinta do momento anterior, no qual muitas vezes ficava indiferente ao que era proposto.

Vamos destacar alguns elementos presentes no processo de criação do dispositivo clínico, procurando relacionar o quanto a retomada das referências a termos e conceitos cunhados pelos autores dos diferentes modelos antes trabalhados contribuíram para o andamento das intervenções, além de ajudarem a construir uma leitura sobre o caso que resultou numa escuta em transferência do sujeito que pode operar no trabalho em equipe.

Um ponto importante foi o efeito de deslocamento em relação a uma posição inicial dos educadores – do não saber perante os sintomas de autismo da criança até então incompreendidos e limitadas à relação a um saber abstrato sobre o diagnóstico do autismo – colocada em movimento a partir do efeito do chiste. Este efeito desencadeou um movimento que colocou o saber do especialista em suspensão e possibilitou que se inserisse na intervenção interrogações sobre os interesses da criança.

Essa suspensão de saber faz parte de um processo denominado pela Prática entre muitos de desespecialização. Desespecializar, para Ciaccia (2007), significa que devemos orientar nossas intervenções não a partir das exigências dos especialistas, mas a partir das exigências do sujeito. Não nos orientarmos necessariamente pela descrição dos sintomas do sujeito, mas partirmos de uma hipótese sobre sua posição singular na relação como campo da fala e da linguagem.

Uma leitura sobre essa relação singular foi sendo construída, ali nenhum saber foi imposto, ao contrário, foi preservada a liberdade de expressão das ideias dos profissionais envolvidos no cuidado da criança. Eles puderam associar livremente, um ambiente de escuta "atentamente distraído", segundo a expressão de Baio (1999) se estabeleceu. Na concepção da Prática entre muitos, o termo "atentamente distraído" foi criado a partir de uma torção da posição relativa a atenção flutuante no trabalho terapêutico do psicanalista.

No trabalho de associações livre foram emergindo os impasses no atendimento. Esses impasses foram dando lugar a uma narrativa na qual os interesses da criança foram aparecendo e estratégias foram sendo propostas. O sintoma ao ser considerado uma resposta do sujeito, expressão de que ali há um trabalho em andamento, colocou o parceiro da criança autista perante o desafio de inventar um encadeamento a um trabalho já iniciado para poder elevá-lo a uma relação ao significante (Ciaccia, 2007).

Desde outra perspectiva, as estratégias de reconfiguração nas rotinas espaçotemporais da escola,  propomos segundo Mannoni (1988) o "estouro" da instituição. Um movimento dialético nas relações é proposto através de algumas sugestões, como exemplo: Durante um tempo, poderia a educadora propor instalar um brincar em torno do desenho e de suas músicas? Essas sugestões colocaram em movimento a relação ao saber e a práxis.

Localizamos nesse movimento em relação ao saber aquilo que possibilita o que Kupfer acima denomina como propor alternâncias visando ao discurso psicanalítico. Esses novos percursos não teriam valor nenhum se não produzissem novas significações. A educadora naquele cenário passou a ocupar a posição do psicanalista de crianças no autismo ou pelo menos dirigir-se em direção a essa posição.

 

Considerações Finais

Um aspecto central de nossa pesquisa sobre as incidências da psicanálise em instituição é destacar que processo de elaboração, para o psicanalista, no trabalho em equipe, equivale à elaboração que ele pratica em outros dispositivos, como o clássico setting.

Nossa pesquisa se debruçou sobre o atendimento de crianças e adolescentes com problemáticas psíquicas graves justamente em momento no qual dois movimentos vem se acentuando: por um lado, um ataque à psicanálise pelo questionamento de sua eficácia, e, de outro, um incremento no que identificamos como uma crescente protocologização da clínica sustentada por uma leitura neurobiológica que suprime a consideração do sujeito em sua perspectiva.

Dadas essas circunstâncias, temos sustentado nos diferentes trabalhos uma tentativa de resposta. Nesse sentido, sustentamos o resgate da potência da consideração ao trabalho com o sujeito em transferência em equipes. O diálogo que percorremos pretendeu destacar que há várias formas de colocar tal trabalho em andamento e maneiras de colocar em jogo a eficácia do método clínico psicanálitico.

Nossa principal contribuição foi a tentativa de demonstrar o alcance da transposição para equipes que não têm a psicanálise como um referencial comum. Em contextos nos quais saberes de campos distintos podem gerar uma confusão entre as diferentes línguas, trabalhamos visando a  construção de um trabalho em conjunto, considerando os diferentes discursos, mas pensando em estabelecer uma língua comum.

Vimos que é uma perspectiva viável para aqueles que se encontram no cotidiano com dificuldades e impasses e estão a procura de formas para sustentar a aposta no trabalho em equipes.

 

Referências

Adorno, T. (2003). O ensaio como forma. In W. T. Adorno, Notas de Literatura (pp. 15-49). São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Baio, V. (1999). O ato a partir de muitos. Curinga/EBP, (13), 63-73.         [ Links ]

Ciaccia, A. (2007). Inventar a psicanálise na instituição. In A. Ciaccia, Pertinências da psicanálise aplicada (pp. 69-75). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Dunker, C. I. L., Voltolini, R., & Jerusalinsky, A. (2008). Metodologia da Pesquisa em Psicanálise. In R. Lerner & M. C. Kupfer (Orgs.),Psicanálise com Crianças: Clínica e pesquisa (pp. 62-92). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Elia, L. (2007). O dispositivo psicanalítico ampliado e sua aplicação na clínica de atenção psicossocial. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 7(3), 613-620. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v7n3/v7n3a18.pdf        [ Links ]

Freud, S. (2010). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In P. C. Souza (Trad.), Obras completas: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia ("O caso Schreber"), artigos sobre técnica e outros textos (Vol. 10, pp. 147-162). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1912)        [ Links ]

Lacan, J. (1985). O Seminário livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1955-56)        [ Links ]

Lacan, J. (1992). O Seminário livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1969-70)        [ Links ]

Laurent, E. (2012). A batalha do autismo. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Kupfer, M. C. (1996). A presença da psicanálise nos dispositivos institucionais. Estilos da clínica, 1(1), 18-33. doi:10.11606/issn.1981-1624.v1i1p18-33        [ Links ]

Kupfer, M. C., Oliveira, L., & Guglielmetti, M. (1998). Lugar de vida, 10 anos depois. Estilos da clínica, 3(5), 10-18. doi:10.11606/issn.1981-1624.v3i5p10-18        [ Links ]

Mannoni, M. (1987). A criança, sua doença e os outros. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.         [ Links ]

Mannoni, M. (1988). A educação impossível. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Stevens, A. (1996). Aclínica psicanalítica em uma instituição para crianças. Estilos da clínica, 1(1), 58-67. doi:10.11606/issn.1981-1624.v1i1p58-67        [ Links ]

Starobinski, J. (2011). É possível definir o ensaio. Remate de Males, 31(1-2), 13-24. doi:10.20396/remate.v31i1-2.8636219        [ Links ]

Viganò, C. (2010). A construção do caso clínico. Opção Lacaniana online nova série, 1(1), 1-9. Recuperado de http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero1/texto6.html        [ Links ]

Viganò, C. (2006). A palavra na instituição. Mental, 4(6), 27-32. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272006000100003        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Volmir Mielczarski dos Santos
General Rondon, 1489 casa 1, Camaquã, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 90900-121
Endereço eletrônico: volmirmielczar77@gmail.com
Marta Regina de Leão D'Agord
Rua Riveira, 600, Petrópolis, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 90670-160
Endereço eletrônico: marta.dagord@ufrgs.br

Recebido em: 04/07/2019
Reformulado em: 25/04/2020
Aceito em: 06/05/2020

 

 

Notas

* Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Pesquisador do Laboratório de Psicanálise - PPG Psicanálise: Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia - UFRGS.
** Psicóloga, Doutora em Psicologia, Pesquisadora Produtividade CNPq. Professora do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia - UFRGS.
1 Em vários aspectos, Luciano Elia se inspira no trabalho pioneiro de Jean Oury, criador da Clínica La Borde nos anos 50, instituição francesa voltada a acolher pacientes psicóticos e tendo a sua estrutura pensada desde princípios psicanalíticos. Em nosso percurso, destacamos o protagonismo de Maud Mannoni, no sentido de sua interlocução nos anos 60 com a Antipsiquiatria Inglesa e o seu trabalho pioneiro de transpor os princípios da Antipsiquiatria a um trabalho institucional com crianças e adolescentes.

 

Este artigo é uma comunicação de pesquisa baseada na defesa de tese realizada pelo autor em 2017 intitulada "As incidências da Psicanálise nas instituições de atendimento a crianças e adolescentes com transtornos psíquicos graves".

 

Este artigo de revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.

Creative Commons License