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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.20 no.spe Rio de Janeiro dez. 2020

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2020.56651 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2020, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2020.56651
ISSN 1808-4281 (online version)

 

ARTIGOS

 

"Psicologia Fenomenológica" de Husserl - a (In)compreensão de Psicólogos Brasileiros: Um Estudo Empírico

 

"Husserl's Phenomenological Psychology" - the (Mis)understanding of Brazilian Psychologists: An Empirical Study

 

"La Psicología Fenomenológica" de Husserl - la (In)comprensión de los Psicólogos Brasileños: Un Estudio Empírico

 

Fabiane Villatore Orengo*, I; Adriano Furtado Holanda**, I; Tommy Akira Goto***, II
I Universidade Federal do Paraná - UFPR, Curitiba, PR, Brasil
II Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Uberlândia, MG, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O presente trabalho apresenta resultados obtidos na pesquisa de mestrado intitulada O que o psicólogo compreende por Psicologia Fenomenológica cujo objetivo foi avaliar a compreensão que psicólogos brasileiros possuem sobre fenomenologia e psicologia fenomenológica. Para tanto, foi realizado um estudo de caráter exploratório que teve como instrumento de pesquisa um questionário desenvolvido pelos pesquisadores, no qual foram levantadas questões abertas sobre a compreensão do referido tema, a apropriação dos conceitos na prática profissional e a possibilidade (ou não) de desenvolver uma psicoterapia fenomenológica. Os dados foram analisados utilizando o método qualitativo fenomenológico de Giorgi e Souza. Como resultado, verificou-se que o psicólogo brasileiro compreende a psicologia fenomenológica como uma abordagem da psicologia, e acredita ser possível uma psicoterapia fenomenológica. Conclui-se que o psicólogo brasileiro utiliza diversos conceitos da fenomenologia e da psicologia fenomenológica na descrição de seus fazeres, porém não há correspondência com a proposta de Husserl para a fenomenologia e a psicologia fenomenológica.

Palavras-chave: fenomenologia, Husserl, psicologia fenomenológica.


ABSTRACT

This work presents results obtained in the master's research entitled What the psychologist understands by Phenomenological Psychology whose objective was to evaluate the understanding that Brazilian psychologists have about phenomenology and phenomenological psychology. For that, an exploratory study was carried out, which had as a research tool a questionnaire developed by the researchers, in which open questions were raised about the understanding of the subject, the appropriation of concepts in professional practice and the possibility (or not) of developing a phenomenological psychotherapy. The data were analyzed using the qualitative method of Giorgi and Souza. As a result, it was found that Brazilian psychologists understand phenomenological psychology as an approach to psychology and believe that phenomenological psychotherapy is possible. We conclude that Brazilian psychologists use several concepts of phenomenology and phenomenological psychology in the description of their actions, but there is no correspondence with Husserl's proposal for phenomenology and phenomenological psychology.

Keywords: phenomenology, Husserl, phenomenological psychology.


RESUMEN

Este trabajo presenta los resultados obtenidos en la investigación del maestro titulada Lo que el psicólogo entiende por Psicología Fenomenológica cuyo objetivo era evaluar la comprensión que psicólogos brasileños tienen sobre la fenomenología y la psicología fenomenológica. Para ello, se realizó un estudio exploratorio, que tuvo como herramienta de investigación un cuestionario desarrollado por los investigadores, en el que se plantearon preguntas abiertas sobre la comprensión del tema, la apropiación de conceptos en la práctica profesional y la posibilidad (o no) de desarrollar una psicoterapia fenomenológica. Los datos fueron analizados utilizando el método cualitativo de Giogi y Souza. Como resultado, se ha encontrado que los psicólogos brasileños entienden la psicología fenomenológica como un abordaje de la psicología, y creen que la psicoterapia fenomenológica es posible. Concluimos que los psicólogos brasileños usan varios conceptos de fenomenología y psicología fenomenológica en la descripción de sus acciones, pero no hay correspondencia con la propuesta de Husserl para la fenomenología y psicología fenomenológica.

Palabras clave: fenomenología, Husserl, psicología fenomenológica.


 

 

Muitas são as dificuldades quando se trata de circunscrever e definir a "psicologia fenomenológica" na Psicologia, principalmente na psicologia brasileira que recebeu essa denominação para designar desde uma "escola psicológica" e uma prática psicológica, até um "referencial teórico" ou mesmo recurso argumentativo para formalizar filosofias já desenvolvidas (Goto, 2015; Cormanich & Arja Castanon, 2018). Essas dificuldades são ainda maiores quando se pensa sobre a viabilidade de uma psicoterapia dita fenomenológica. O ponto é que "psicologia fenomenológica" é uma disciplina desenvolvida por Edmund Husserl para o estudo da consciência psíquica (empírica) na relação com a consciência transcendental, no intuito de ser uma ciência fundamental para a psicologia científica, a partir do método, fenomenológico, que abrange a fenomenologia filosófica.

Na continuidade, com a apropriação dos pressupostos metodológicos da fenomenologia acerca do estudo da consciência (empírica e transcendental), alguns seguidores do filósofo – tais como Max Scheler, Edith Stein, Maurice Merleau Ponty, Jean-Paul Sartre, entre outros – desenvolveram pesquisas em relação às vivências psíquicas, proporcionando assim outros alicerces que redundaram em uma denominação de "psicologia fenomenológica" (Goto, 2015).

No entanto, essa concepção originária de "psicologia fenomenológica" foi sendo esquecida ou mesmo deixando de ser tematizada pelos atuais psicólogos, principalmente com a recepção e circulação da fenomenologia nos Estados Unidos da América (EUA) durante as guerras mundiais (Branco, 2015). A fenomenologia foi recebida nos EUA pelos psicólogos, inclusive os psicólogos clínicos da época que, ao se apropriarem de tais fundamentos, buscando fontes diversas disponíveis, foram elaborando entendimentos e aplicações que se distinguiram do modo de pensamento original dos fenomenólogos. Esses entendimentos e aplicações constituíram-se, assim, na psicologia clínica, em algumas das ditas "abordagens humanistas/existenciais fenomenológicas"; enquanto, logo depois, na pesquisa psicológica empírico-científica surgiu a chamada "pesquisa qualitativa fenomenológica" ligada ao grupo de psicólogos associados à Duquesne University, (Zahavi, 2019; Wertz, 2015; Branco, 2014; Giorgi & Souza, 2010). Mas que, segundo o argumento proposto aqui, também seguiram rumos discordantes dos da própria psicologia fenomenológica exposta por Husserl (Reis, Holanda, & Goto, 2017; Feijoo & Goto, 2016; Goto, 2015). Esta concepção de pesquisa da Duquesne University foi considerada por alguns psicólogos clínicos, como Carl Rogers, como sendo importante para a psicologia humanista, sendo, posteriormente, aperfeiçoado e difundido por Amedeo Giorgi e colegas (Wertz, 2010; Gomes, 1997). Giorgi e Souza (2010) descrevem em quatro passos o que seria uma pesquisa fenomenológica. No Brasil, William Gomes (1997) apresenta a possibilidade de uma pesquisa fenomenológica em três passos e, Amatuzzi (2009), em sete. Isto para citar alguns.

Diante desse contexto e buscando um maior esclarecimento da relação da "psicologia fenomenológica" com as chamadas "abordagens humanistas/existenciais fenomenológicas" no Brasil, o presente artigo pesquisou a compreensão, por parte dos psicólogos brasileiros que se identificam com a fenomenologia, dos conceitos-chave de psicologia fenomenológica ligada a essa tradição. Para tanto, buscou-se contemplar: a) um breve relato histórico, metodológico e conceitual da relação da psicologia com a fenomenologia; e b) os resultados de um estudo empírico realizado pelos autores deste texto e intitulado O que o Psicólogo compreende por psicologia fenomenológica.

É um estudo importante, porque como descrito brevemente, ainda predomina a tradição histórica que aproximou as psicologias, tais como: Psicologia existencial, Psicologia Fenomenológica-existencial, Psicanálise culturalista, Logoterapia, a Psicologia Humanista e os campos e vertentes mencionadas sob o título e ideia de "psicologia fenomenológica", mesmo possuindo conceitos bem diversos e certo desconhecimento da fenomenologia filosófica (Goto, 2015; Medeiros, 2019). Por isso é preciso ampliar o estudo dessas possíveis aproximações, recolhendo informações e conceitos, a fim de esclarecer possíveis erros interpretativos e factuais dessa tradição. Nesse sentido, já observava o historiador da psicologia que:

[...] entre a Psicologia Humanista com as visões filosóficas e científicas, presencia-se um jogo, algo confuso de afinidades e distinções, faltando clareza no entendimento dessas questões. [...] É desconhecida toda a rede de relações conceituais e teóricas, sendo, portanto, desejável a realização de estudos bem detalhados, tal como Tommy Akira Goto (2007) o fez, destacando os aspectos essenciais da Psicologia Fenomenológica, que a tornam diferente de outras correntes da Psicologia de nossos dias (Krüger, 2014, pp. 174)

Relação entre a Psicologia e a Fenomenologia

A psicologia fenomenológica foi desenvolvida por Husserl, ao longo de sua obra, no âmbito da fenomenologia filosófica, com a intenção de estudar mais profunda e rigorosamente a subjetividade. Buscando compreender a possibilidade de o ser humano desenvolver conhecimento, Husserl (1900/2014) inicia a problematização da psicologia com a fenomenologia no prefácio das Investigações Lógicas. Nesse texto, o filósofo afirma que iniciara da convicção de que a lógica das ciências dedutivas deveria partir da psicologia, porém da forma como esta estava constituída, não satisfazia suas expectativas (Husserl, 1900/2014). Na mesma obra, Husserl, então, definiu a fenomenologia como uma "psicologia descritiva", por não poder excluir, na caracterização do conhecimento, as vivências psíquicas. No entanto, na segunda edição das Investigações, Husserl toma outro posicionamento, diferenciando a fenomenologia da psicologia, mas sem afastá-las totalmente, por considerar os fenômenos psíquicos como fenômenos importantes na produção do conhecimento (Husserl, 1900/2014). Porta (2013) acrescenta que, para Husserl, a fenomenologia compartilha com a psicologia o princípio de imanência, ainda que reformulado através da redução 1. E que, somente através da psicologia explicita-se aquilo que, afinal, é o realmente essencial, a subjetividade mesma.

Já em Göttingen, Husserl (1907/1986) publica A ideia da fenomenologia: cinco lições, texto em que postula a concepção de epoché (εποχη) e de redução fenomenológica. Ele as apresenta como método para diferenciarmos o fenômeno puro, objeto da fenomenologia, do fenômeno psicológico, objeto da psicologia. A epoché é o fundamento metodológico basal da fenomenologia, uma atitude de colocar em questão tudo o que me é previamente dado como existente, para chegar, por meio da redução fenomenológica ao que é apodítico do fenômeno visado.

Se ponho em questão o eu e o mundo e a vivência do eu como tal, então a reflexão simplesmente intuitiva virada para o dado na apercepção da vivência considerada, para o meu eu, revela o fenômeno desta apercepção; por exemplo, o fenômeno "percepção apreendida como minha percepção". (Husserl, 1907/1986, pp. 70-71, aspas no original)

Desta forma, ela mesma (minha percepção) se torna, pela redução fenomenológica, um fenômeno puro (percepção vivida). Assim, "a toda vivência psíquica corresponde, por via da redução fenomenológica, um fenômeno puro, que exibe sua essência imanente (singularmente tomada) como dado absoluto" (Husserl, 1907/1986, p. 71 – parêntesis no original). No texto Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (doravante denominado Ideias) o filósofo trata da busca dos fundamentos da subjetividade a partir da fenomenologia já constituída. Recupera e amplia a concepção de consciência intencional de Brentano até a sua nova elaboração: "tudo o que chamamos de objeto, (...), que temos ante os olhos como efetividade, que consideramos possível ou verossímil, (...), é já por isso mesmo, objeto da consciência" (Husserl, 1913/2006, p. 298, grifo original), ou seja, toda consciência é ato dirigido a um objeto que se mostra a esta consciência. Cada objeto tem em si características eidéticas, essenciais, determinadas e apreensíveis, apesar da infinidade de modos de apreensões possíveis. Ao mesmo tempo, apresenta uma pluralidade eideticamente possível, ou seja, um conjunto de camadas do eu e de consciências que tornam possível a identificação intersubjetiva deste algo como sendo um mesmo objeto (Husserl, 1913/2006). Ainda, na mesma obra, Husserl retoma os conceitos gregos de noese (νοησισ) e noema (νοημα), caracterizando-os como os dois polos das vivências intencionais. O polo noético caracteriza-se pelas múltiplas intencionalidades dirigidas a um objeto, seja ele real, imaginativo, perceptivo, etc. O polo noemático, corresponde ao seu correlato intencional, ou seja, o objeto intencionado. Nas palavras do filósofo:

Aos múltiplos dados do conteúdo real [reellen], noético, corresponde uma multiplicidade de dados, mostráveis em intuição pura efetiva, num conteúdo noemático correlativo, ou resumidamente, no noema [...]. A percepção, por exemplo, tem o seu noema, tem, no nível mais baixo, o seu sentido perceptivo, isto é, o percebido como tal [...] Em tudo é preciso tomar o correlato noemático, que aqui se chama sentido [...] exatamente assim como ele está contido de maneira imanente no vivido da percepção, de julgamento, de prazer, etc., isto é, tal como nos é oferecido por ele, se interrogamos puramente esse vivido mesmo. (Husserl, 1913/2006, pp. 203-204, grifos originais)

Esses são alguns postulados alcançados por Husserl e que foram favorecendo a ideia de uma psicologia fenomenológica. Com isso, pode-se dizer que Husserl, a partir das análises fenomenológicas da consciência intencional, chegou a uma concepção de uma psicologia fenomenológica, ou seja, a uma via fenomenológico-psicológica, frente à necessidade esclarecer a vida psíquica, suas estruturas vividas concretamente e os modos de consciência empírico-psíquica (Husserl, 1925-1928/2001). A psicologia fenomenológica não é uma psicologia empírica na relação com o físico, tal como a psicologia científica e outras formas de psicologia investigativa contemporânea, mas sim, constitui-se como uma psicologia pura, quer seja uma psicologia que investiga as vivências psíquicas e que ultrapassa qualquer relação psicofísica. Confirma Husserl que: "A pura psicologia não conhece justamente senão o subjetivo, e admitir aí como existente algo de objetivo é já dela ter aberto mão" (Husserl, 1936/2012, p. 209).

Em nossos dias, a ideia de uma psicologia fenomenológica tem crescido no meio acadêmico brasileiro; porém, esse interesse vem também cercado de entendimentos particulares e, consequentemente, de confusões conceituais (Goto, 2015; Holanda, 2016). O fato é que seu início em solo brasileiro foi constituído por meio de fontes diversas, principalmente oriundas das ditas psicologias fenomenológicas (humanistas e existenciais) dos EUA, acarretando o desenvolvimento de uma orientação assistemática, pouco fundamentada nos pressupostos da fenomenologia de Husserl. Goto (2015) continua declarando que o objetivo original do filósofo era formular uma psicologia pura, racional e não experimental para o estudo da subjetividade psíquica e sua relação com a vida transcendental.

A história conta que, no Brasil, a fenomenologia desembarcou na década de 30 do século passado, inaugurando a fenomenologia como possibilidade metodológica para a psicologia (Goto, 2015; Holanda, 2016). No entanto, foi nas décadas de 60 e 70 que a relação entre fenomenologia e psicologia teve um desenvolvimento mais expressivo, uma vez que a fenomenologia começou a ser vinculada à psicologia clínica, ligada às abordagens humanistas e existenciais também recém-chegadas no Brasil. Vários autores apontam que o desenvolvimento da psicologia fenomenológica em nosso país está relacionado aos psicólogos humanistas, vinculados à Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers (Branco & Cirino, 2016; Gomes & Castro, 2010; Gomes, Holanda, & Gauer, 2004; Holanda, 2016). Gomes, Holanda e Gauer, 2004 indicam também, em contrapartida, que a orientação psicoterápica seguida pelos profissionais identificados com a fenomenologia é baseada no existencialismo de autores como Heidegger, Binswanger, Medard Boss, Minkowski e mesmo Sartre. Os mesmos autores seguem apontando que os profissionais mais diretamente envolvidos com pesquisa empírica seguem, também, Merleau-Ponty.

Gomes e Castro (2010) corroboram com o exposto, e acrescentam que a associação entre a fenomenologia e a filosofia existencial ocorreu devido a uma identificação de uma continuidade de reflexão do estudo dos invariantes intencionais de Husserl para o das estruturas existenciais em Heidegger ou da corporeidade em Merleau-Ponty. Essas diferenças, para os autores, representam uma modificação da lógica ontológica na concepção de natureza humana. Ainda para estes autores, no Brasil, três pesquisadores se destacam com relação à fenomenologia existencial: Daniela Schneider, Yolanda Forghieri e Mauro Amatuzzi, respectivamente, da Universidade Federal de Santa Catarina, da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Schneider realizou uma análise do pensamento sartreano em direção à clínica psicológica; Forghieri descreveu o processo terapêutico a partir da sua vivência como terapeuta e dos relatos das vivências de seus clientes; e Amatuzzi levanta a questão da fala no processo terapêutico (Gomes & Castro, 2010).

Dentre estes, Schneider (2006) afirma que uma psicoterapia existencial realiza uma "radiografia psicológica do sujeito", mostrando as raízes de seus problemas psicológicos, "definidas a partir do resgate de seu projeto de ser" (p. 109) e coloca o ser da pessoa em suas próprias mãos. Forghieri (1997), na mesma direção, declara que "abordagem fenomenológica do ser humano na Psicologia procura investigar a vivência imediata do ser humano conforme é captada por ele próprio [...], pretende chegar à investigação da personalidade de acordo com a percepção que a pessoa tem de seu existir no mundo". (p. 92). Ainda, Amatuzzi (2009) destaca que Husserl esclareceu o caminho fenomenológico para o pensamento humano: atos de consciência, alcance do conhecimento, como o mundo se apresenta. Ao mesmo tempo, este autor mantém-se ligado ainda a Carl Rogers, apresentando, como mostra Branco e Cirino (2016), uma nova compreensão da psicologia de Rogers com base nos aportes da fenomenologia.

No entanto, também pode-se citar Holanda (2016) que apresenta o projeto de uma "psicologia fenomenológica" como uma "abordagem" cujos alicerces se encontram na valorização da subjetividade consciente, nas inter-relações, nas manifestações humanas abarcando toda a complexidade do fenômeno humano. Propõe-se, em síntese, a ver a realidade humana da forma mais complexa e ampla possível.

Retomando a afirmação de Krüger (2014), Goto é um autor que tem destacado os elementos essenciais da psicologia fenomenológica de Husserl, porque segundo a proposta de Goto (2015) é preciso retomar a conceituação originária de Husserl na qual a psicologia fenomenológica tem a intenção de ser uma "nova psicologia" cujo objetivo é investigar e esclarecer os principais conceitos usados na psicologia (consciência, percepção, afetividade, imaginação, fantasia, cognição, etc.) a partir do método fenomenológico (redução psicológico-eidético). Isso significa uma psicologia que estudará a identidade e constituição dos referidos processos psicológicos, não se confundindo de maneira alguma com uma nova abordagem, teórica ou clínica, da psicologia atual.

Destarte, o estudo aqui apresentado, procura avistar o cenário atual do entendimento do psicólogo brasileiro com relação à psicologia fenomenológica e suas interpretações, e entre estas, a viabilidade de uma psicoterapia fenomenológica. Longe de querer abranger a totalidade do quadro, visto que é um estudo preliminar.

 

Método

Para o desenvolvimento do estudo, além da conceituação apresentada, foi realizado um estudo, de caráter exploratório - aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Setor da Saúde sob nº 1818086 da Universidade Federal do Paraná – UFPR, tendo como participantes psicólogos, e realizada no período de 11 a 30 de novembro de 2016, com o objetivo de estudar a compreensão que os mesmos possuem sobre fenomenologia e psicologia fenomenológica. Sobre o estudo, é relevante dizer que os participantes responderam a um questionário desenvolvido pelos autores a partir das obras de Husserl utilizadas no decorrer desse artigo, tendo em vista conceitos fundamentais da fenomenologia e da psicologia fenomenológica e aplicado online. O contato-convite foi realizado por meio eletrônico (email e redes sociais) utilizando-se, para tanto, o mailing obtido por meio de inscrição nos eventos previamente organizados pelo laboratório de pesquisa ao qual a então mestranda estava vinculada, bem como os contatos das redes sociais do laboratório e pessoais dos autores. Ainda, o critério de inclusão era ser psicólogo(a) e concordar com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

No atual artigo serão apresentados os resultados da terceira parte do referido questionário, que foi composta de quatro questões abertas e uma fechada (sim/não), todas de resposta facultativa, com o objetivo de averiguar o que os psicólogos compreendem por psicologia fenomenológica. Tais questões foram as seguintes: Questão 22: "O que é / do que se trata psicologia fenomenológica?" (questão aberta); Questão 23: "Quais são os fazeres de sua prática profissional fundamentados na fenomenologia?" (questão aberta); Questão 24: "É possível desenvolver uma PSICOTERAPIA fenomenológica?" (questão fechada, com opção de resposta "sim" ou "não" – com a resposta "sim", o participante foi direcionado para a questão 25 e com a resposta "não", o participante foi direcionado para a questão 26); Questão 25: "Em que consistiria uma PSICOTERAPIA fenomenológica?" (questão aberta); e Questão 26: "Justifique tal impossibilidade." (questão aberta). As questões desta parte foram desenvolvidas pelos pesquisadores a partir dos textos do próprio Husserl, com perguntas amplas, de modo a acolher as respostas da forma mais autêntica possível.

As respostas desta parte foram analisadas utilizando o método empírico-fenomenológico de Amedeo Giorgi, mesmo assumindo aqui, algumas críticas (Branco, 2014; Feijoo & Goto, 2016) em relação à legitimidade desse método se constituir autenticamente como uma "psicologia fenomenológica" tal como preconizada por Husserl. Contudo, será assumido o método por possibilitar a análise do sentido ou significado, a partir de quatro passos: 1º: Leitura de toda a descrição com a finalidade de alcançar o sentido do todo; 2º: discriminação das unidades de sentido; 3º: transformação da linguagem do participante em linguagem psicológica; e 4º: Síntese das unidades de sentido (Giorgi & Souza, 2010).

 

Resultados e Discussão

Como resultado desse estudo exploratório, foi publicado o artigo intitulado Fenomenologia e Psicologia – a (in)compreensão de psicólogos brasileiros: uma compreensão empírica (Orengo, Holanda, & Goto, 2020) que descreve resultados parciais cuja síntese segue: Responderam ao questionário 100 participantes, porém dois declararam data de graduação posterior à coleta de dados e foram excluídos; desta forma, a pesquisa contou com 98 participantes, todos autodeclarados psicólogos. A média de idade dos participantes foi de 34,6 anos, variando de 22 a 69 anos, sendo 65 do sexo feminino e 33 do masculino. O tempo decorrido desde a graduação até o estudo variou de zero a 39 anos, com média de oito anos. A distribuição geográfica dos respondentes abrangeu as cinco regiões do Brasil. Sessenta e um participantes se formaram em instituição privada de ensino e 37 em instituição pública.

Ainda nas questões iniciais do questionário, foi perguntado "Como você conheceu a fenomenologia?" Obteve-se que 81 dos 98 participantes declararam ter conhecido a fenomenologia através de disciplinas – específicas ou não – durante o curso de graduação, respondendo à questão introdutória "Durante sua graduação, você teve alguma disciplina de fenomenologia?". Aos que responderam "sim" à questão anterior foi solicitado que citassem os nomes de tais disciplinas. Assim, os participantes referiram variados nomes às disciplinas consideradas de "fenomenologia", entre eles alguns diversos da própria fenomenologia ou de abordagens psicológicas que seguem essa tradição. Também, como esperado, foram relatados nomes relacionando o existencialismo e o humanismo com a fenomenologia, por exemplo, Psicologia Fenomenológico-Existencial e Psicologia Humanista-Existencial-Fenomenológica. Acredita-se que isso ocorra devido à fenomenologia filosófica ter desembarcado no Brasil com textos de Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre; e, na psicologia, tenha sido trazida por autores ligados ao humanismo, como Yolanda Forghieri (Holanda, 2016), por exemplo.

No estudo supracitado, 79 psicólogos declararam fazer uso da fenomenologia em sua atuação profissional e, em resposta às questões relacionadas aos pressupostos basais da fenomenologia, observou-se a falta de compreensão dos mesmos quanto a esses saberes. Quais sejam: apenas 25 deles concordam que a fenomenologia tem a pretensão de ser a base para todas as ciências; da mesma forma, pouco menos da metade dos mesmos psicólogos acha que somente a fenomenologia pode converter as ciências em ciências genuínas. Já quando se refere à superação dos radicalismos (subjetivismo-objetivismo, racionalismo-empirismo, etc.), 64 dos 79 psicólogos "fenomenólogos" afirmam que a fenomenologia é capaz de realizá-la; assim também, 54 destes psicólogos concordam que a fenomenologia é a ciência da intersubjetividade transcendental.

A terceira parte do questionário, foco desse artigo, contou com um número de respostas variado dependendo da questão, uma vez que, nessa parte, não havia a obrigatoriedade das respostas. Os participantes foram divididos em dois grupos, de acordo com sua identificação como "fenomenólogo" (grupo 1 – G1) ou "não fenomenólogo" (grupo 2 – G2). O critério adotado para essa classificação foi a resposta à questão introdutória "Na sua prática profissional, você utiliza alguma abordagem fenomenológica? – sim/não".

A questão de número 22, "O que é / do que se trata psicologia fenomenológica?" obteve, então, 81 respostas, sendo 68 respostas do grupo 1 e treze do grupo 2.

Foram identificadas cinco unidades de sentido (US) para esta questão. Quais sejam:

1 - Descrição, observação ou estudo dos fenômenos fundamentada na fenomenologia. Esta US foi identificada em 34 respostas do G1 e em seis respostas do G2. Ex: "Ela [a psicologia fenomenológica] cuida do fenômeno como ele aparece. Preocupa-se com a essência do fenômeno" [P75].
2 - Suspensão de a priori. US identificada nas respostas de onze participantes do G1 e uma do G2. Ex: "Aquela em que o psicólogo se dispõe a observar o fenômeno sem pré-conceitos" [P96].
3 - Respeito à singularidade, à subjetividade, à individualidade. Esta US foi identificada em nove repostas do G1 e em nenhuma resposta do G2. Ex: "Trata-se de compreender o sujeito da forma como se apresenta e se percebe no momento presente" [P51].
4 - Forma de psicoterapia ou de intervenção. US identificada em sete respostas do G1 e uma do G2. Ex: Basear sua intervenção com facilitador nos processos da psique baseando eticamente nos fenômenos desse processo" [P62].
5 - Abordagem da psicologia. US identificada em quatro respostas do G1 e em duas do G2. Ex: "Linha teórica, forma de entendimento do mundo" [P41].

Houve, ainda quatro respostas (uma do G1 e 3 do G2) às quais não corresponderam a nenhuma dessas USs.

É importante destacar que em algumas respostas foram identificadas mais de uma US. Os dados obtidos sugerem que, para o psicólogo de ambos os grupos a psicologia fenomenológica trata do estudo ou descrição dos fenômenos, com a preocupação com sua essência. Aparece nas respostas um cuidado em utilizar os termos da fenomenologia: "fenômeno", "essência" "suspensão de a priori", porém, não fica claro o que o psicólogo compreende por estes termos, nem como tais conceitos seriam apropriados nos seus fazeres profissionais. Em se tratando da psicologia, acredita-se que o fenômeno aqui referido seja o fenômeno psicológico, que, da mesma forma, demandaria uma definição. Igualmente está claro, para o psicólogo, que uma psicologia fenomenológica pede uma suspensão de julgamentos (método fenomenológico) e de [pré-conceitos] a priori 2, também preconiza o respeito à subjetividade e singularidade de seu cliente. Fica difícil estabelecer, pelas respostas dadas a essa questão, se o participante da pesquisa aqui descrita, entende a psicologia fenomenológica como uma possibilidade de investigação do fenômeno psicológico, no sentido de uma ciência psicológica, ou como uma abordagem psicoterapêutica, porque em várias respostas que aparecem a unidade de sentido "estudo dos fenômenos", vem acompanhado da palavra cliente.

Destacamos aqui a resposta do participante P54, que sintetiza o entendimento do grupo 1 sobre o que seria a "psicologia fenomenológica":

A fenomenologia significa estudo dos fenômenos, isto é, estuda tudo aquilo que se mostra a consciência de alguém. Deste modo, a psicologia fenomenológica se embasa no método fenomenológico desenvolvido por Husserl, que trata do cliente sem tentar encaixá-lo em teorias, como fazem algumas abordagens, também é livre de técnicas para conhecer o fenômeno tal qual ele se apresenta. Também se utiliza-se [sic] da redução fenomenológica, ou seja, o terapeuta deve deixar de lado todos os pré-conceitos, crenças, ideologias e etc., para ir de encontro com o cliente [P54] – grifos nossos.

Percebe-se que é uma resposta bastante formalista, que traz elementos da fenomenologia filosófica, como "estudo dos fenômenos [...] que se mostra à consciência"; também, "conhecer o fenômeno tal qual ele se apresenta" e, ainda, "utiliza-se da redução fenomenológica". Permanece a dúvida sobre o entendimento do participante sobre esses conceitos, uma vez que, logo em seguida, utiliza o termo "terapeuta", uma vez que o método fenomenológico não pressupõe uma terapia. Outra questão a ser pensada pode ser o entendimento dos psicólogos sobre a psicologia ser vista como terapia, necessariamente.

Em contrapartida, alguns dos participantes responderam de forma diversa do restante do grupo, por exemplo: o participante P82 respondeu que se trata "do campo energético de cada um"; e, para o participante P33, "trata-se de investigar o fenômeno tal qual ele se mostra, desvelando os sentidos que se mostram no horizonte histórico sedimentado". Além destes, dois outros participantes (P81 e P99) definiram a fenomenologia filosófica e não a psicologia fenomenológica, tal como foi solicitado.

A questão 23, "Quais são os fazeres de sua prática profissional fundamentados na fenomenologia?" foi respondida por 73 participantes do grupo 1 e por 13 do grupo 2, num total de 80 respostas.

Da mesma forma que na questão anterior, houve algumas respostas bastante diversas do restante do escopo, tal como, por exemplo, a do participante P82, que declarou como seu fazer fundamentado na fenomenologia a "limpeza de aura". Apresentamos abaixo as unidades de sentido identificadas para esta questão, bem como o número de participantes que as utilizam e um exemplo de como ela aparece nas respostas. Igualmente à questão anterior, algumas respostas apresentam mais de uma unidade de sentido.

Pode-se afirmar que as respostas a essa questão mostram claramente que os pesquisadores falharam ao elaborá-la, uma vez que a intenção era que descrevessem fazeres concretos de sua prática e que demonstrassem a maneira como os fundamentos da fenomenologia chegam ao fazer profissional do psicólogo. Um número expressivo dos participantes respondeu a essa questão com seu campo de atuação, como escolar, clínica, e muitos outros.

Os participantes que responderam à questão como esperado pelos pesquisadores, descreveram uma atuação pautada na empatia, escuta sem preconceitos, valorização da vivência do cliente, ou seja, elementos que, em verdade, devem se constituir como objeto da investigação fenomenológica, foram entendidos como atitude profissional. Percebe-se, aqui, também, certo formalismo nas respostas, e uma atenção em utilizar os termos da fenomenologia. Porém, aqui se observa mais fortemente a influência da psicologia dita "humanista". A resposta do participante P67 é bastante representativa das respostas à questão:

Acredito que principalmente o estar com o outro de maneira aberta, colocando entre parênteses conhecimentos prévios, valores e julgamentos para que eu tenha acesso aos significados de sua experiência; não olhá-lo com lentes diagnósticas. Busco me abster de tais conhecimentos para compreender o mundo do outro, que é diferente do meu. Também trabalho apenas com o que o cliente aborda, não resgatando assuntos trabalhados em sessões anteriores ou investigando seu passado, pois o que ele me traz é o que está presente em seu campo fenomenológico [P67] – grifos nossos.

A questão é que Husserl (1913/2006) definiu a fenomenologia como "ciência de essências", "ciência eidética"; quer seja "como uma ciência que pretende estabelecer exclusivamente ‘conhecimento de essências' e de modo algum, de ‘fatos'" (p.28). Ainda, Husserl (1927/1990) diz que existe um campo específico da fenomenologia, quer seja, a "psicologia fenomenológica", disciplina que resulta da análise do caráter fundamental da consciência, ou seja, da intencionalidade. Bem diferente da concepção de Husserl, encontrou-se na maioria das respostas, referência à atuação em campo clínico (entendido aqui como a clínica de psicoterapia em consultório). É também interessante destacar as quatro respostas que se referem especificamente à Gestalt-terapia como sinônimo de psicologia fenomenológica. Faz-se necessário explicar que foram respostas espontâneas à questão aqui apresentada, não havia no questionário nenhuma questão específica a uma ou outra "abordagem".

Unidades de sentido identificadas nas respostas à questão 23:

1 - Abordagem Humanista: Escuta livre de preconceitos / compreensão / suspensão de juízo / empatia. US identificada em 16 respostas do G1 e em 3 do G2. Ex: "Busco promover um espaço de escuta livre, pautado em empatia e aceitação incondicional, para que o sujeito ressignifique sua história e realize escolhas autênticas" [P7].
2 - Gestalt-terapia. US identificada em quatro respostas do G1 e em nenhuma do G2. Ex: "Utilizo as bases da fenomenologia porque minha abordagem é gestalt" [P31].
3 - Outros fazeres "fenomenológicos". US identificada em 18 respostas do G1 e em uma resposta do G2. Ex: "Serve como base sendo flexível na hora da condução do processo terapêutico no que diz respeito a facilitar a tomada de consciência do indivíduo para alcançar o objetivo processo terapêutico melhor qualidade de vida" [P62].
4 - Campo de atuação ou atividade "psi". US identificada em 33 respostas do G1 e em nenhuma do G2. Ex: "Atendimento psicoterápico" [P25].

Da mesma forma que nas respostas da questão anterior, obtivemos onze respostas (2 do G1 e 9 do G2) que não foram classificadas em nenhuma das unidades de sentido acima descritas. Ex: "Ver os fenômenos" [P94].

Na questão 24: "É possível desenvolver uma PSICOTERAPIA fenomenológica?", obteve-se 95 respostas dos participantes, sendo 76 do grupo 1 e 19 do grupo 2. Nota-se que 72 dos 76 psicólogos do grupo 1 entendem ser possível estabelecer uma psicoterapia fenomenológica. A proporção é menor entre os participantes do grupo 2, sendo 17 em um universo de 19. Com isso, pode-se dizer que o psicólogo brasileiro, tanto o "fenomenólogo" quanto o "não fenomenólogo", acha perfeitamente possível desenvolver uma psicoterapia fenomenológica.

A questão 25: "Em que consistiria uma PSICOTERAPIA fenomenológica?" foi respondida por 60 psicólogos do grupo 1 e 11 do grupo 2, perfazendo um total de 71 participantes respondentes. Duas das respostas foram bastante complexas, com várias unidades de sentido, mesmo assim foram consideradas, pelas suas totalidades, juntamente com outras quatro, como, por exemplo, possuir certas dúvidas quanto à possibilidade de desenvolver uma psicoterapia fenomenológica. A seguir cita-se uma delas:

Penso que a rigor podemos elaborar uma fenomenologia da psicoterapia, mas uma psicoterapia fenomenológica é algo complicado, pois a fenomenologia é filosófica e não propriamente terapêutica. No entanto existem diversas abordagens que se fundamentam de alguma forma nas reflexões fenomenológicas e acabam carregando o título de psicoterapias fenomenológicas, ou fenomenológico-existenciais, ou existenciais (e note bem, o existencialismo filosófico depende bastante do método fenomenológico), ou até mesmo humanistas-fenomenológicas. Mas de forma geral eu diria que os pressupostos de uma "psicoterapia fenomenológica"; seriam um retorno à experiência mesma, sem distorcer teoricamente aquilo que é experienciado; outro pressuposto seria a relevância do sentido e do significado que são desvelados na situação terapêutica; a "psicoterapia fenomenológica" prescinde também da atitude natural e "pensa" através da atitude fenomenológica e isso leva, penso eu, à fuga de um modelo ideal de homem, ou seja, a "psicoterapia fenomenológica" é aberta às possibilidades existenciais; finalmente creio que um pressuposto é que temos experiências que se estruturam universalmente, porém o conteúdo é particular. Como objetivos poderíamos levantar o desvelamento de sentidos e significados existenciais e a abertura para maior liberdade por parte do paciente (cliente) [P26].

Para o psicólogo brasileiro, uma psicoterapia fenomenológica consistiria em um método compreensivo, com foco no aqui-agora e com uma postura antijudicativa. As respostas sugerem que há entre os psicólogos mais uma apropriação dos conceitos e reflexões fenomenológicas – ou seja, sua visão de mundo e de ser humano – que propriamente uma psicoterapia fundada a partir de uma "ciência psicológica fenomenológica". É importante destacar, também, que dois participantes responderam à questão com a identificação com uma abordagem analítico-existencial, como se a Daseinsanálise fosse sinônimo de psicoterapia fenomenológica. Interessante notar que nesta questão, os participantes que anteriormente (questão 23) haviam feito referência direta à Gestalt-terapia, responderam sem a identificação direta com a abordagem.

As quatro unidades de sentido identificadas para essa questão são as seguintes:

1 - Compreender o cliente/paciente em seu mundo, sem julgamentos. US identificada em 42 respostas do grupo 1 e em 5 respostas do grupo 2. Ex: "Consiste numa psicoterapia que seja sincera ao entender o outro a partir do olhar do outro (suspensão de si/empatia) que, por sua vez está em relação intencional com o mundo" [P57] – grifos nossos.
2 - Foco no aqui-agora. US encontrada em oito respostas do grupo 1 e em nenhuma do grupo 2. Ex: "Aquela que prioriza o que se revela no aqui e agora, o presente, conforme sinalizado por Brentano, antes de Husserl, quando apontava a psicologia do ato, aquilo que inclui a intencionalidade do sujeito no ato, no fenômeno, naquilo que é revelado na relação, o que aparece, e, é descortinado no movimento presente em ato" [P30] – grifos nossos.
3 - Daseinsanálise. US identificada em duas respostas do grupo 1. Ex: "Não trabalho com essa psicoterapia específica. Meu foco é mais existencial sartreano" [P12].
4 - Dúvida quanto à possibilidade. US identificada em seis respostas do G1. Esta seria a resposta mais esperada por parte dos autores deste estudo. Um exemplo de como aparece: "Não estou certo se podemos definir um objetivo particular para essa modalidade de atenção psicoterapêutica, no entanto, podemos constatar que consiste num método compreensivo-descritivo que visa manter em suspenso qualquer posicionamento ontológico prévio com o intuito de explicitar o significado das experiências/vivências" [P8] – grifos nossos.

Tiveram outras 26 respostas (sendo 15 do G1 e 11 do G2) para essa questão que foram identificadas com outras USs. Por exemplo: "Imagino que seja apresentar ao sujeito uma descrição das observações feitas" [P39].

Os participantes que responderam "não" na questão 24, foram encaminhados para a questão 26: "Justifique tal impossibilidade". Esta foi respondida por quatro dos seis participantes que responderam "não" à questão 24. Destes, três são do grupo 1 e um é do grupo 2. As unidades de sentido identificadas nas respostas desses participantes são que faltaria uma teoria da personalidade; faltaria um conjunto de técnicas; e que no ambiente terapêutico, não existiria lugar para a neutralidade da fenomenologia. Os pesquisadores não levaram em consideração a resposta do participante P92 como argumento válido, uma vez que o mesmo declarou, que "Pois não existe o psi, da psicoterapia, dentro da abordagem fenomenológica pode só se fazer um trabalho terapêutico".

Em virtude daquilo que foi já exposto nesse artigo, fica claro que existia uma preocupação de Husserl em determinar exatamente o que seria exclusivamente "psi"cológico e, em momento algum de seus estudos, o filósofo mencionou qualquer "terapia" como um "grande fazer fenomenológico". O primeiro que se tem notícias a fazer uma relação direta da fenomenologia com a psicoterapia foi o psiquiatra Ludwig Binswanger, porém pode-se se ter dúvidas sobre essa aproximação, se foi em relação aos fundamentos antropológicos da psicoterapia ou a uma "psicoterapia fenomenológica" (Orengo, Holanda, & Goto, 2020; Medeiros, 2019; Giovanetti, 2018). É imperioso destacar ainda que nesse período das investigações fenomenológicas de Husserl, a psicoterapia e a terapia – no sentido de tratamento psicológico –, estava presente apenas na Psicanálise de S. Freud e na Psicologia Analítica de C. G. Jung. Sabe-se que o tema do inconsciente em algumas "psicologias" era conhecido por Husserl, tal como aparece no anexo XXI de Fink (ao § 46) na "A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental", intitulado "Sobre o problema do Inconsciente", e que explora o problema da relação da consciência com o inconsciente. No decorrer desse anexo é questionado se não seria uma tendência crescente, principalmente da "psicologia das profundezas" e nas "filosofias realistas e irracionalistas", considerar o ser consciente apenas como um estrato do ser humano. Essa parte indica que Husserl provavelmente conhecia essa "psicologia das profundezas", porém em seu estatuto epistemológico.

 

Considerações Finais

Com essa pesquisa fica evidente que o psicólogo brasileiro compreende e associa a chamada "psicologia fenomenológica" a uma "abordagem" da psicologia, vinculada, quase que como sinônimo, com as psicologias humanistas e existenciais; e, assim, acredita que é perfeitamente possível uma "psicoterapia fenomenológica". O estudo mostra que os psicólogos usam alguns conceitos da fenomenologia husserliana, tais como: a) a perspectiva noético-noemática, o conceito de epoché e de reduções fenomenológicas, mesmo que de maneira superficial e com pouco conhecimento filosófico; b) destacando como a fenomenologia poderia emergir como um método de pesquisa dos fenômenos psicológicos; e ainda, c) servindo como uma base filosófica para a prática psicoterapêutica. Aqui é importante explicitar que, no projeto husserliano da fenomenologia, a intenção é descrever e compreender o fenômeno tal como ele se apresenta, com suas várias possibilidades de presentações, o que também está de acordo com a intenção de pesquisa em sua psicologia. Com isso não existe, na concepção original de Husserl, a prerrogativa de uma mudança diretiva do fenômeno, de fenômeno psíquico, uma vez que a fenomenologia se constitui uma "ciência eidética" Diferentemente disso, quando se pensa em terapia, se pressupõe alteração de estado, mudança.

Diversas foram, também, as limitações desse estudo. Entre elas, destaca-se a participação por adesão, não caracterizando uma amostra com rigor estatístico e com possibilidade de estar situada em um nicho. Outra restrição diz respeito ao instrumento utilizado, que não tornou possível explorar com mais detalhes as respostas obtidas. No entanto, a despeito dessas limitações, e devido ao caráter exploratório do estudo aqui apresentado, acreditamos que foi possível abarcar uma parte ínfima desse oceano brasileiro da psicologia que se assume como tendo uma orientação fenomenológica. Como um estudo preliminar, abriram-se vários questionamentos, mais do que respostas, aos pontos formulados. Desta forma, são necessários mais estudos para preencher as lacunas aqui abertas, como, por exemplo, um estudo analítico-conceitual em relação ao que o psicólogo está compreendendo da fenomenologia e seus conceitos, tais como, fenômeno (psicológico ou não) ou essência; bem como, se há uma apropriação dos conceitos da fenomenologia ou apenas um uso formal de suas expressões.

 

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Fabiane Villatore Orengo
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Recebido em: 01/04/2020
Reformulado em: 24/06/2020
Aceito em: 04/09/2020

 

 

Notas

* Psicóloga (UFPR), Mestre em Psicologia (UFPR), doutoranda em Educação (UFPR), professora de pós-graduação – (UNOESC).
** Psicólogo, Doutor em Psicologia (PUC-Campinas); Professor: Graduação, Mestrado e Doutorado - Psicologia (UFPR); Mestrado e Doutorado - Educação (UFPR).
*** Psicólogo, Doutor em Psicologia (Puc-Campinas), Mestre em Filosofia e Ciências da Religião, Professor: Graduação e Mestrado - Psicologia (UFU).
1 Método utilizado na fenomenologia para se chegar à essência do objeto estudado.
2 Em Ideias I, Husserl distingue dois conceitos de a priori: a) conhecimento de essências e b) conhecimento dos conceitos que, "como categoria", têm significação de "princípios", e das leis essenciais fundadas em tais conceitos [Quijano, A. Z. (1990). Breve diccionario analítico de conceptos husserlianos. Mexico: Universidad Nacional Autónoma de Mexico – tradução livre].

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada CAPES por meio de bolsa de mestrado da primeira autora.

 

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