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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.20 no.spe Rio de Janeiro dez. 2020

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2020.56659 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2020, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2020.56659
ISSN 1808-4281 (online version)

 

ARTIGOS

 

O Estético-Político em Merleau-Ponty e a Fenomenologia Crítica: Notas Preliminares sobre Relações Raciais

 

The Aesthetic-Political in Merleau-Ponty and Critical Phenomenology: Preliminary Notes on Race Relations

 

Lo Estético-Político en Merleau-Ponty y la Fenomenología Crítica: Notas Preliminares Sobre las Relaciones Raciales

 

Monica Botelho Alvim*
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O trabalho discute o entrelaçamento das dimensões estética e política na filosofia de Merleau-Ponty, tomando como elementos centrais as noções de silêncio e expressão. A perspectiva estético-política implica considerar a carne do social como dimensão invisível, uma rede de estruturas de sentido que ganham visibilidade a partir da expressão, fenômeno da ordem do corpo e do sensível. A partir de reflexões sobre instituição como alternativa à noção de constituição, Merleau-Ponty aborda o problema da gênese do sentido não mais assumindo o sujeito como polo intencional de atos, mas como ação de retomada na coexistência com outros. Acontecimentos que duram e assumem uma dimensionalidade poderão ser retomados pelo sujeito ou por outros e formarão um conjunto histórico, sendo a história um processo de criação e dissolução de formas estáveis, dado na dimensão intersubjetiva e intercorporal. A ação política tem os mesmos atributos da expressão em geral, ela tem um caráter expressivo, é um lugar de nascimento e criação que está para além de cada consciência, implicando o outro, o sujeito no plural em sua coexistência. A partir dessa exploração, discutimos aspectos do problema das relações raciais em diálogo com autores da fenomenologia crítica contemporânea.

Palavras-chave: corpo, outro, branquitude, instituição, história.


ABSTRACT

The work discusses the intertwining of aesthetic and political dimensions in the philosophy of Merleau-Ponty, taking as central elements the notions of silence and expression. A political-aesthetic perspective implies considering the flesh of the social as an invisible dimension, a network of structures of meaning that gain visibility from expression, a bodily phenomenon. From reflections on institution as an alternative to the notion of constitution, Merleau-Ponty addresses the problem of the meaning no longer from the subject as an intentional pole of acts, but as an action of resuming in coexistence with others. Evenements that last and assume a dimensionality character can be resumed by the subject or by others and form a historical set, history being conceived as a process of creation and dissolution of stable forms, given in the intersubjective and intercorporeal domain. Political action has the same characters of general expression, it has an expressive character, it is a place of birth and creation that is beyond each consciousness, implying the other, subjects in the plural, in its coexistence. From this exploration, the article discusses some problems of race relations in dialogue with authors of contemporary critical phenomenology.

Keywords: body, other, whiteness, institution, history.


RESUMEN

El trabajo discute el entrelazamiento de las dimensiones estéticas y políticas en la filosofía de Merleau-Ponty, tomando las nociones de silencio y expresión. La perspectiva estético-política implica considerar la carne de lo social como una dimensión invisible, una red de estructuras de significado que ganan visibilidad desde la expresión, un fenómeno del orden del cuerpo y de lo sensible. A partir de reflexiones sobre la institución como alternativa a la noción de constitución, Merleau-Ponty aborda el problema de la génesis del sentido no más considerando el sujeto como un polo intencional de actos, sino como una acción de retomada en la coexistencia con otros. Los eventos que duran y asumen una dimensionalidad pueden ser asumidos por el sujeto o por otros y formarán un conjunto histórico, siendo la historia un proceso de creación y disolución de formas estables, dado en la dimensión intersubjetiva e intercorporal. La acción política tiene los mismos atributos que la expresión en general, es un lugar de nacimiento y creación que está más allá de cada conciencia, lo que implica al otro, el sujeto plural en su coexistencia. A partir de esta exploración, discutimos algunos aspectos del problema de las relaciones raciales en diálogo con los autores de la fenomenología crítica contemporánea.

Palabras clave: cuerpo, otro, blancura, institución, historia.


 

 

Neste trabalho temos por objetivo discutir o entrelaçamento das dimensões estética e política na filosofia de Merleau-Ponty e desenvolver um breve diálogo com a problemática das relações raciais, tal como abordada por fenomenólogos contemporâneos. Há no pensamento político e na ontologia de Merleau-Ponty uma grande convergência e buscaremos apresentar elementos da ontologia que permitam demonstrar isso, a partir da discussão do entrelaçamento do estético e do político em seus trabalhos, para em seguida integrar brevemente as questões estruturais envolvidas na problemática das relações raciais.

Em uma entrevista concedida a Jean Paul Weber, poucos meses antes de morrer e logo após a publicação de Signos, Merleau-Ponty foi perguntado sobre a ligação entre filosofia e política e respondeu:

Filosofia e política são solidárias. Assim, enquanto filósofo, sou contra as ideias vazias, contra os objetos puramente ideais. E também contra uma matéria que não seja senão coisa. Do mesmo modo, na política, eu detesto o liberalismo verbal sem relação com a realidade humana, concreta. E sou contra o terror, que transforma o homem em coisa (Merleau-Ponty, 2000a, pp. 303, tradução nossa).

Nesta resposta de Merleau-Ponty está colocada como ligação entre filosofia e política a premissa central que atravessa todo o caminho percorrido por ele na construção de seu pensamento: a tentativa de ultrapassar o idealismo e o objetivismo, tanto em filosofia quanto em política, assumindo uma posição que recusa as concepções dicotômicas em prol de uma perspectiva estrutural na relação entre termos opostos. Desde o início, ele encontrou na fenomenologia um caminho possível. Retomando Husserl em sua proposta de conceber uma correlação consciência-mundo onde a cada ato corresponde um objeto de consciência, Merleau-Ponty (2000a) assume um caminho próprio, encontrando no corpo – "unidade indissolúvel" (p. 303), ao mesmo tempo visível e vidente – sua referência. Ele afirma: "Não é possível dividir o corpo em dois, dizendo: ‘Aqui o pensamento, a consciência, lá a matéria, o objeto'. Há uma profunda circularidade no corpo, é isso que eu chamo a carne" (Merleau-Ponty, 2000a, p.304, tradução nossa).

A noção de carne é uma resposta que Merleau-Ponty apresenta em seus últimos trabalhos, quando pensa em termos de uma dimensão onde ideia e materialidade não estejam colocadas em relação de contradição. A afirmação que ele faz na citação contém a questão de fundo que contrapõe em sua ontologia da carne: a antítese entre Ser e Nada, uma antinomia que atribui ao Ser plenitude e positividade, e ao Nada negatividade, e onde o Nada é o contraditório do Ser. O que resulta em uma espécie de dilema: ou há ser ou há nada, não há simultaneidade. Desenvolvendo uma longa argumentação, na qual faz uma crítica a Sartre, Merleau-Ponty (2000a) entende que pensar na relação com o mundo como abertura do nada ao ser já pressupõe oposição.

Uma vez que o ser em-si sartriano é pura positividade e não admite em si qualquer negatividade, o nada só pode ser seu contraditório, isto é, ou há ser ou nada e não a simultaneidade entre ambos conforme admite a oposição real (Garcia, 2017, pp. 84).

À noção do espírito como negação do ser pleno e plano, Merleau-Ponty contrapõe a noção de nada e ser como avesso e direito um do outro, tirando as duas dimensões de uma relação contraditória e propondo a indivisão entre elas. As categorias visível e invisível por ele propostas implicam uma dimensão invisível, de profundidade, que sustenta o visível e assim a negatividade deixa de ser contraditória para tornar-se verticalidade e profundidade do visível.

Garcia (2017) aponta ainda uma importante consequência da antinomia Ser e Nada: pensar o negativo como contrário do ser acaba por impedir essencialmente a tarefa da dialética. "Entre o ‘ser puro' e o ‘nada puro' não pode haver passagem, imbricação, o movimento e a transformação que a dialética reclama. Entre o puro ser e o puro nada só há conciliação ‘aparente'" (Garcia, 2017, p. 85), não há passagem, movimento.

Merleau-Ponty (2000a) refere-se à ambiguidade como uma relação de circularidade na qual se pode alcançar o movimento dado pelas diferentes relações entre as coisas. A ontologia da carne pressupõe um tipo de relação entre termos opostos, tais como sujeito e mundo, visível e vidente, sensível e sentiente, que envolve contradição e entrelaçamento, uma relação dialética sem síntese que ele propõe e denomina "hiperdialética" (Merleau-Ponty, 2000b, p. 95) e que aponta para o lugar central da ambiguidade em seu pensamento. "O que chamamos hiperdialética é um pensamento que, ao contrário, é capaz de verdade, pois encara sem restrição a pluralidade das relações e o que chamamos ambiguidade" (Merleau-Ponty, 2000b).

Na conferência intitulada "O Elogio da Filosofia" (Merleau-Ponty, 1953/1960) ele pensa a função do filósofo e a caracteriza como a posse inseparável do gosto da evidência e sentido da ambiguidade. Posicionando-se assim, ele afirma um tipo de reflexão filosófica que se dá apenas quando o filósofo se recusa a instalar-se no saber absoluto, quando aceita "o movimento que leva incessantemente do saber à ignorância, da ignorância ao saber, e um certo repouso nesse movimento" (Merleau-Ponty, 1953/1960, p. 14, tradução nossa) compreendendo que o que o impulsiona à busca da evidência da verdade é a própria ambiguidade.

Quando reflete sobre o filosofar a partir da discussão da filosofia de Bergson, ele afirma: "Se filosofar é descobrir o sentido do ser, não é possível filosofar abandonando a situação humana. É preciso assumi-la. O saber absoluto do filósofo é a percepção" (Merleau-Ponty, 1953/1960, p.24-25, tradução nossa). E propõe pensar a percepção como recuperação de uma coisa muda que se revela a si própria através de nós, o que seria, ele afirma, coexistência e não coincidência (Merleau-Ponty, 1953/1960, p. 25-26).

A noção de coexistência é fundamental nesse seu modo de pensar, onde os termos opostos não são alternativas, onde as relações não são excludentes, regidas pelo "ou". Não são tampouco regidas pelo "e". É justamente nesse movimento onde há coexistência e revezamento, contradição e entrecruzamento, que se pode pensar em um filosofar como busca de verdade no movimento temporal. Uma temporalidade que está deslocada do sujeito, nos conduzindo aqui ao tema da instituição.

A partir de reflexões sobre a instituição como alternativa à noção de constituição, Merleau-Ponty (2003) já abordara o problema da gênese do sentido não mais como dada a partir do sujeito como polo intencional de atos. O instituído não decorre diretamente da ação de um sujeito, podendo ser retomado por ele ou por outros com os quais coexiste, o que significa pensar a temporalidade não mais como instantaneidade e conferir a ela uma nuance de duração. São os acontecimentos que duram e assumem uma dimensionalidade que poderão ser retomados pelo sujeito ou por outros e formarão um conjunto histórico, sendo a história compreendida como um processo de criação e dissolução de formas estáveis, tema ao qual retornaremos adiante.

Pensando a expressão como instituição, o filósofo descentra do sujeito e centra no mundo intersubjetivo o lugar de inauguração e criação. No fenômeno da expressão há, segundo ele, uma boa ambiguidade, "uma espontaneidade que acompanha aquilo que parecia impossível, ao se considerar os elementos separados, que reúne num só tecido a pluralidade das mônadas, o passado e o presente, a natureza e a cultura" (Merleau-Ponty, 2000a, p. 48, tradução nossa).

O trabalho expressivo na arte realiza-se a partir do que já está dado silenciosamente e é retomado pelo artista, cuja ação gestual dá visibilidade ao mundo, faz falar esse silêncio por uma linguagem indireta. O artista, em seu estilo de perceber, explora o mundo e o mostra de uma perspectiva oblíqua, alusiva, provocando o espectador a um movimento espontâneo de exploração, de certa forma, interminável.

O que não é substituível na obra de arte, o que a torna muito mais do que um meio de prazer (...) é ela conter mais do que ideias, matrizes de ideias, é nos fornecer emblemas cujo sentido nunca terminamos de desenvolver, é justamente porque se instala e nos instala num mundo cuja chave não temos, ensinar-nos a ver e finalmente fazer-nos pensar como nenhuma obra analítica consegue fazê-lo, porque a análise encontra no objeto apenas o que nele pusemos (Merleau-Ponty, 1960/1991, pp. 81).

A perspectiva dada a partir de elementos como matrizes, emblemas, pivôs, relevos, apontam para uma dimensão espacial, uma dimensão onde fato e essência, sensível e inteligível estejam entrelaçadas. Pensar em termos de percepção, expressão e história a partir da temporalidade da instituição implica consideração do sentido como movimento hiperdialético, onde não há síntese a partir de um sujeito, mas sim retomada e instituição de sentidos.

Assim, não há pensamento de sobrevoo, razão universal, história universal, mas movimento que retoma, transforma, refaz e nunca completa. A relação com a linguagem também é compreendida por ele nessa perspectiva. Não há relação de antecedência e consequência, ou mesmo de subordinação entre a linguagem e o sentido, o que vivemos e queremos dizer é o que ainda não foi dito, não é o que está em uma palavra que possa governar o sentido.

Em sua ontologia, ele concebe a ideia como profundidade do sensível, linhas de força e dimensões como visibilidade segunda que constitui uma espécie de armadura ou carne do mundo. Pensar nessa instância silenciosa e invisível do mundo que sustenta o visível como seu avesso e no sentido como movimento de passagem e reversibilidade, nos remete à circularidade do corpo – ao mesmo tempo visível e vidente - e à sua capacidade exploratória desse mundo no qual está imerso. Para Merleau-Ponty (2000b) trata-se de uma exploração sensível que não transforme o mundo em tese, o que daria um contorno subjetivo ao ser. "O sensível é o único meio de o Ser manifestar-se sem tornar-se positividade, sem cessar de ser ambíguo e transcendente (...) o sensível é isso: essa possibilidade de ser evidente em silêncio, de ser subentendido (...)" (Merleau-Ponty, 2000b, p. 199).

A noção de coexistência implica o problema do outro, que, sendo outro corpo, pode comungar comigo dessa evidência sensível. As palavras permitem que eu e outro nos encontremos em um mundo cultural e linguageiro comum, entretanto elas não têm o poder de guardar nelas todo o sentido, são envoltas por esse fundo silencioso, por uma "vida surda que levaram e continuam a levar em nós", como afirma Merleau-Ponty (200b, p. 79). Pois as palavras que pronuncio, os traços que desenho, os gestos que faço saem de mim espontaneamente sem que eu siga regras e eu e outro somos remetidos a algo que se fala em mim. Essa linguagem falante, expressiva e instituinte que me atinge e ao outro, dada na espontaneidade corporal pela sinergia do olhar e do movimento é capaz de desenhar sentidos e torcer a linguagem.  É na coexistência que posso comungar com o outro, de modo intercorporal, da carne do mundo e expressar como resposta ao campo, ao que já está aí, de modo silencioso e invisível. O outro está numa relação lateral (e não frontal) comigo, os outros com os quais coexisto aparecem na carne do mundo.

(...) estão lá como relevos, desvios, variantes de uma única Visão da qual participo. Pois eles não são ficções com que eu povoaria meu deserto, filhos do meu espírito, possíveis para sempre inatuais, e sim meus gêmeos ou a carne da minha carne" (Merleau-Ponty, 1960/1991, pp. 15).

Ao mesmo tempo, mantenho com o outro distância – pois nossas vidas são vividas de modo diferente - e proximidade, quando estou no âmbito do sensível. O problema da encarnação é, portanto, um problema do sensível pois "o sensível é precisamente aquilo que, sem sair do seu lugar, pode assediar mais de um corpo" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 15). Pensar na carnalidade é pensar no corpo como sensibilidade e nas coisas e nos outros como implicados nessa capacidade sensível geral. Não vejo o pensamento do outro, mas outra sensibilidade que, como eu, está inserida em um campo e se relaciona com os objetos ali colocados, apresentando-se a mim como um outro sentiente, outro vidente. "Percebo primeiro uma outra sensibilidade e somente a partir daí um outro homem e um outro pensamento (...) o sensível, que se anuncia para mim em minha vida estritamente privada, interpela toda outra corporeidade através da minha" (Merleau-Ponty, 1980, p. 249-251).

É no âmbito da dimensão sensível ou estética que estamos aderidos ao mundo e podemos ter acesso à essa dimensão invisível e carnal, um mundo silencioso e ainda não proferido. Nosso modo de aproximação do mundo se dá como adesão sensível, modo como podemos explorá-lo por dentro e que não permite certeza, sendo assim denominado por Merleau-Ponty (2000b, p. 37) de "fé perceptiva".

A noção de fé perceptiva reafirma a ambiguidade e a perspectiva de que não há verdade, olhar de sobrevoo que garanta certeza. A fé perceptiva é um tipo de abertura ao mundo que não exclui ocultação, "onde o vínculo de visível e invisível, de sensível e inteligível, manifesta e esconde ao mesmo tempo, na profundidade da carne, suas dimensões e linhas de força (...)" (Alvim, 2020).

A expressão e a linguagem falante arrancam um som novo do aparelho da linguagem, revelando "um sentido lateral ou oblíquo que se insinua entre as palavras" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 47). A linguagem capaz de expressão provoca uma torção nas palavras, as emprega "para exprimir além delas mesmas nosso contato mudo com as coisas, quando ainda não são coisas ditas" (Merleau-Ponty, 2000b, p. 46).

Assim, a busca da verdade não se dá pela certeza, pela visão de sobrevoo, pela reflexão, mas por essa exploração corporal (de dentro do mundo) que nos revela uma dimensão carnal. F. Dastur, ao discutir a noção merleaupontiana de carne, afirma que "não se trata somente de designar com esse termo o fenômeno da encarnação, mas de pensar o entrelaçamento, o quiasma meu e do mundo" (Dastur, 2016, p.15). No movimento de reversibilidade entre visível e vidente, sensível e sentiente, nessa "relação lateral que reúne o sujeito, o outro e as coisas, é esse estofo geral do mundo que se abre, se dobra ou se cava para que seja possível a articulação da visão e do pensamento" (Dastur, 2016, p.16).

A dimensão estética assume o estatuto de logos, o logos do mundo estético de que fala Merleau-Ponty. Não se trata mais, aqui nesse ponto de seu trabalho, de pensar um domínio estético sobre o qual a reflexão vai se debruçar, mas de pensar radicalmente o vínculo carnal entre ideia e sensível, onde a noção de quiasma indica um ponto de entrelaçamento, de onde brota a expressão, com algo se visibilizando e se abrindo a carne do mundo. É quando eu sou mundo e o mundo sou eu.

 

A História e a Perspectiva Estético-Política

Desse ponto, podemos falar mais especificamente da história e da perspectiva estético-política. Como discutimos antes, a história é concebida por Merleau-Ponty como um processo de criação e dissolução de formas estáveis, uma práxis inter-humana e intersubjetiva, "uma ação que se inventa" (Merleau-Ponty, 1955, p. 10) e que abre a carne do mundo. Na esteira do rompimento com Sartre, ele elabora e publica, em Signos, uma série de textos políticos onde apresenta claramente que sua concepção da história e da política é tributária dessa ontologia que esboçamos brevemente. O pensamento político de Merleau-Ponty está estreitamente relacionado com sua ontologia e poderíamos afirmar que a noção de expressão como instituição é o coração da ação política.

A ação política tem os mesmos atributos da expressão em geral, ela tem um caráter expressivo, é um lugar de nascimento e criação que está para além de cada consciência, que implica o outro, o sujeito no plural em sua coexistência.

Revel (2015) corrobora a compreensão de que o trabalho de Merleau-Ponty sobre a expressão é a matriz do seu pensamento sobre a história e a esfera política. Afirma que a noção de expressão como pensamento da invenção, da inauguração e da criação é colocada em jogo nas malhas daquilo que já está lá, ou seja, os termos liberdade e historicidade, tradicionalmente opostos, são colocados nessa relação a partir de sua proposta hiperdialética que surge em recusa à dialetização do real.

O signo distintivo do político ali é precisamente reconhecer na trama prosaica da história, ou seja, nas determinações existentes, seus efeitos e inflexões, reconhecer em seu peso, na materialidade do que já está lá, a possibilidade de uma prosa, de uma abertura e de uma invenção do mundo. As determinações históricas e nossa capacidade de agir são uma "compossibilidade simultânea" (Revel, 2015, p. 12, tradução nossa) que se dá como quiasma.

Uma estrutura não apenas dupla, mas que entrelaça inseparavelmente as duas faces que apresenta lhes conferindo a característica de uma simultaneidade. Um e outro lado do quiasma se apresentam sempre juntos e ao mesmo tempo, sua reversibilidade tende a essa co-presença necessária. (Revel, 2015, pp. 12, tradução nossa)

A autora discute a origem ao mesmo tempo linguística e estética do pensamento de Merleau-Ponty sobre a história e a esfera política e entende que suas discussões sobre a linguagem, especialmente no diálogo com o modelo linguístico de Sausurre, "permite se desembaraçar de uma certa ideia do negativo e abrir a possibilidade de reler Marx com outras lentes que aquelas do materialismo dialético" (Revel, 2015, p. 123, tradução nossa).

Nos desenvolvimentos de Signos, já no prefácio, esse desenho é apresentado e Merleau-Ponty (1960/1991) faz um panorama do problema do marxismo num cenário de crise, onde filósofos romperam com aquela perspectiva, colocando em cena os dilemas da filosofia e do engajamento. Ali o marxismo é encarado por ele como "um imenso campo de história e de pensamentos sedimentados, em que iremos nos exercitar e aprender a pensar" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 11). Propõe encarar Marx como um clássico, por enxergar que a despeito da crise do marxismo naquele momento histórico e de um certo fracasso entre teoria e prática, a obra de Marx estaria para além dos seus próprios enunciados.

Há uma relação interna entre o positivo e o negativo, sendo ela o que Marx tinha em vista (...), relação que "opera em trechos inteiros de sua obra, abre dimensões novas à sua análise histórica (...) sem deixar de ser fontes de sentido e reinterpretáveis" (Merleau-Ponty, 1960/1991, pp. 9)

Pergunta-se se o domínio teórico sobre a história será também domínio prático. Conclui por entender que a filosofia é uma espécie de "ação à distância" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 12) que sem ser "serva ou senhora da história", exige mistura e promiscuidade com ela. Naquela obra está, de fato, explícita essa relação da expressão e da linguagem com o sentido histórico e com a política.

O modelo linguístico de Sausurre demonstra que a observação diacrônica da língua, ou seja, ao longo do tempo histórico, pode mostrar seus deslocamentos semânticos, mas não é determinante de seus sentidos atuais. Há no encontro da fala e da língua, uma sincronia do tempo atual que, entretanto, não é desconectada do conjunto histórico, não se encerra no momento instantâneo, "a historia exterior é acompanhada de uma história interior que, de sincronia em sincronia, dá um sentido comum pelo menos a certos ciclos de desenvolvimento" (Merleau-Ponty,1969/2002, p. 47).

No entanto, a perspectiva diacrítica de Saussure que põe o todo em primeiro lugar, não pode ser, para Merleau-Ponty, senão o todo compreendido como "unidade de coexistência" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 40) onde "as partes aprendidas da língua valem de imediato como um todo" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 40). O que se apresenta para ele como possibilidade de pensar na diferença entre os signos, levando a um aprofundamento da ideia de que o sentido nasce na interseção, no intervalo, no entrecruzamento. Sendo o signo diacrítico, ele reclama um sentido na sua borda, "esse sentido nascente na borda dos signos, essa iminência do todo nas partes encontra-se em toda a história da cultura" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 41).

Ele reafirma a inadequação de se pensar separadamente pensamento e linguagem, como se a linguagem fosse um código para traduzir o pensamento, compreendendo que ambos se dão juntos. "Pensamento e palavra contam um com o outro. Substituem-se continuamente um ao outro" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 17). Reafirmando a relação entre silêncio e expressão, ele reafirma a potência falante: a palavra toma seu impulso na onda da comunicação muda em que está envolta, há uma potência falante onde a expressão se premedita, o que "Paul Valéry acertou em chamar animal de palavra (...) As operações expressivas ocorrem entre palavra pensante e pensamento falante" (Merleau-Ponty, 1960/1991, p. 18).

Ao pensar a comunicação com o outro, Merleau-Ponty reafirma essa inseparabilidade entre pensamento e fala. Ele afirma:

Falando aos outros, não falo de meus pensamentos, falo-os, e falo o que está entre eles (...), o mundo comunicativo não é um feixe de consciências paralelas. Os traços se confundem e passam um pelo outro, formando uma única esteira de "duração pública", de onde falo e penso. Na operação expressiva, no movimento falante, fazemos mundo e história no campo intersubjetivo e intercorporal, abrimos a carne com o outro, a relação com a verdade passa pelos outros. Ou procuramos a verdade com eles, ou não a descobriremos. (Merleau-Ponty, 1953/1960, pp. 41)

Merleau-Ponty (1960/1991) afirma que é a partir desse modelo que deveríamos pensar o mundo histórico, no qual estamos tal como estamos na linguagem e no ser.

É da mesma ordem do movimento da Palavra e do Pensamento, e, enfim, da irrupção do mundo sensível entre nós: em toda parte há sentidos, dimensões, figuras para além daquilo que cada ‘consciência' poderia ter produzido, e, contudo, são os homens que falam, pensam, veem. Estamos no campo da história como no campo da linguagem ou do ser. (Merleau-Ponty, 1960/1991, pp. 20)

O movimento da história desenha e vai deixando rastros, "as iniciativas humanas não anulam o peso das coisas e a força das coisas opera sempre através dos homens" (Merleau-Ponty, 1960/1991). Não faz sentido perguntar se a história é feita pelos homens ou pelas coisas, mas há uma carne da história, estofo que compartilhamos. Na condição de seres encarnados, nossa expressividade se dá a partir de sua sensibilidade a uma situação e o que enunciamos na expressão não ultrapassa o balanço final dessa troca com a situação.

Não há, pois, história universal (...) o sentido histórico é imanente ao acontecer inter-humano e frágil como ele. Mas precisamente por isso, o acontecer assume o valor de uma gênese da razão (Merleau-Ponty, 1953/1960, pp. 53).

O acontecer é, tal como compreendemos, aquilo que nos pro-voca, afeta e exige uma resposta na expressão. O pintor é aquele que, em um laço sensível onde o olho se comove pelo impacto do mundo, restitui o mundo ao visível através dos traços da mão. Nesse mesmo sentido, um acontecimento histórico pode nos co-mover, impactar e assumir valor de gênese.

Arendt (1963/1999) e Patocka (1999) discutiram a condição problemática como aquela que começa a história. O homem histórico, propõe Patocka (1999), é o sujeito da problematicidade e o homem pré-histórico o sujeito da certeza ingênua e absoluta. A condição não problemática do mundo pré-histórico (e não do mundo pré-científico, como na fenomenologia clássica) é, assim, compreendida por ele como mundo natural. E poderíamos dizer que a condição problemática tem valor de gênese. Pensando o mundo natural com Patocka como mundo pré-histórico e com Merleau-Ponty como mundo mudo, "mundo de natureza, onde nada foi dito, simbolizado, expresso (...) e nem por isso é amorfo, informe e sem significação" (Merleau-Ponty, n/d, como citado por Barbaras, 2014, p. 156), nos interessa pensar nos elementos que articulam essa dimensão presente, passível de ser sentida e não pronunciada, permanecendo no fundo invisível e operando.

O silêncio desse mundo onde nada foi expresso tem como ingrediente dimensões silenciadas no curso da história humana. As formas de silenciamento são variadas e agem de modo a evitar a condição problematizadora, naturalizando relações de dominação e mantendo a vida naturalizada, no mundo pré-histórico.

A perspectiva estético-política implica, em última instância, considerar a carne do social como dimensão invisível, uma rede de estruturas de sentido invisíveis que ganham visibilidade a partir da expressão, fenômeno da ordem do corpo e do sensível, sem estar centrado no sujeito.

A seguir abordaremos brevemente o fenômeno das relações raciais buscando explorar estruturas de sentido que aí estão em jogo, compreendendo racismo e branquitude como direito e avesso, para pensar dois aspectos envolvidos na invisibilização: a questão do corpo e do outro e a negação de um lugar nessa estrutura de coexistência a alguns humanos.

 

Entre Silêncios e Silenciamentos: as Estruturas da Exclusão

Assumindo como ponto de partida a questão da coexistência e da relação com o outro, retomamos neste ponto da discussão o lugar do corpo na exploração do mundo, no pertencimento e na produção de sentidos, buscando uma interlocução do pensamento de Merleau-Ponty, que vimos discutindo até aqui, com autores contemporâneos do campo da fenomenologia crítica (Weiss, Murphy, & Salamon, 2020). A fenomenologia crítica é uma vertente que "vai além da fenomenologia clássica refletindo acerca das estruturas sociais quasi-transcendentais que tornam nossa experiência do mundo possível e significativa" (Guenther, 2020). Abordando temas como relações raciais, de classe e de gênero, reúne discussões que refletem tanto um fazer filosófico quanto uma abordagem do ativismo político, retomando autores clássicos – dentre eles Merleau-Ponty – para pensar criticamente questões contemporâneas envolvendo aquelas dimensões estruturais da sociedade.

Pretendendo, nesta última seção, abordar a invisibilização e o silenciamento como formas de uma estrutura de exclusão social e de violência, o corpo é uma temática relevante para nossa discussão. A temporalidade está envolvida na compreensão de Merleau-Ponty (1945/1994) sobre o corpo, mostrando como o corpo habitual é um gesto motor, um passado do corpo que, tendo sido um dia pessoal e atual, foi automatizado e tornou-se um hábito, automatismo que sustenta as ações de um sujeito. Esse corpo habitual abriga a experiência e oferece um lastro, um saber motor que permite a ele lidar com o mundo e responder ao que se apresenta no campo. As significações motoras se tornam o próprio corpo e a cada experiência atual, o hábito pode ser atualizado e renovado, processo que vai dando nascimento e forma a um estilo motor e perceptivo, sendo o corpo habitual, em verdade, uma forma engajada de tomarmos parte no mundo.

Merleau-Ponty pensa o corpo como eu posso, esse poder de exploração do mundo como capacidade virtual, como potência gestual que diante da situação atual nos lança para o porvir, gesticula e movimenta para lá, para o novo, ainda virtual, com o lastro do passado habitual e apoiado no solo concreto do presente, nesse topos. Essa dimensão habitual envolve uma significação motora, não produzida de modo representacional, mas na exploração sensível que, no movimento e na coexistência, confere sentidos e proporciona pertencimento à cultura e à linguagem. O outro, que como eu também é corpo, me mostra com seu olhar que ambos nos dirigimos ao mesmo mundo e nessa relação empática, corporal, coexistimos e nos comunicamos de modo intercorporal, nessa bruma silenciosa que envolve o diálogo. O esquema corporal é assim adquirido e renovado, nessa estrutura eu-mundo-outro, numa relação de coexistência.

O hábito quando sedimentado e não atualizado torna-se uma fixação que desconecta o sujeito de sua capacidade livre de responder e suas ações permanecem automatizadas. O que pode se dar em razão de forças no próprio mundo social que impedem essa atualização e exercício de liberdade, como acontece nas relações pautadas pelo racismo.

A discussão do racismo em perspectiva fenomenológica toma o corpo e os hábitos perceptivos na relação entre brancos e negros como elemento central (Fielding, 2020; Ortega, 2020; Alcoff, 2006; Karera, 2020). O pioneiro nessa discussão foi Franz Fanon, que em sua obra seminal "Pele negra, máscaras brancas" (Fanon, 1952/2008) problematiza alguns aspectos da Fenomenologia de Merleau-Ponty, propondo como oposição ao esquema corporal um "esquema epidérmico racial" (Fanon, 1952/2008), como discutiremos adiante, onde o olhar do branco sobre o sujeito de pele negra é determinante de certa configuração subjetiva. Esse olhar branco está no centro dos estudos críticos sobre a branquitude que eclodiram nos Estados Unidos nos anos 90.

Sendo a branquitude uma chave importante das discussões dos autores da fenomenologia crítica, em sua maioria norte-americanos, ela é compreendida grosso modo como a maneira pela qual as pessoas brancas percebem e agem no mundo, sendo uma espécie de eixo norteador da estrutura social. Considerada um modo estrutural de perceber, um lugar de onde o sujeito branco percebe o mundo e o outro, carrega um caráter normativo construído historicamente. Schucman (2014) discute a branquitude como identidade social normativa, na qual o branco se considera desracializado, colocando o foco da problemática do racismo sobre os não-brancos.

Fielding (2020) considera os modos de perceber como hábitos em nível cultural e histórico que podem ser renovados de acordo com os acontecimentos, compondo uma estrutura de fundo que nos parece natural e que permanece invisível. Analisa a racialização como hábitos perceptivos culturais que, a partir dessa estrutura de fundo que parece natural, molda o modo como percebemos um ao outro. A autora ressalta o fenômeno da branquitude como um fenômeno que permanece no fundo, não sendo visível em si, mas que ocupa o lugar de um fundo normativo.

Alcoff (2006) problematiza igualmente as dimensões de visibilidade e invisibilidade. Enfatiza o lugar da identidade social na constituição de um senso de si e coloca as dimensões de raça e gênero como fundamentais nessa constituição identitária. Ambas conferem marcas visíveis ao corpo "guiando, senão determinando o modo como percebemos e julgamos os outros e somos percebidos e julgados por eles" (Alcoff, 2006, p. 5, tradução nossa). A autora discute o fato de que a visibilidade, na sociedade materialista, é critério dominante de verdade e argumenta que ainda que as práticas de visibilidade revelem fatos significantes sobre nossa ideologia cultural, "o que o visível revela não é a verdade última; ao contrário, ele frequentemente revela projeções pessoais, ansiedades e a inscrição material de violência social" (Alcoff, 2006, p. 8, tradução nossa). Pensar como identidades generificadas ou racializadas operam no aqui e agora e quais são as implicações disto na ação política são questões discutidas pela autora. Compreende que apenas uma leitura fenomenológica da identidade racial como é vivida no corpo dos sujeitos racializados em suas múltiplas manifestações, em um dado momento cultural, assim como uma "apreciação dos seus efeitos epistêmicos geralmente ocultos e seu poder sobre as imaginações coletivas" (Alcoff , 2006, p. 179, tradução nossa) pode permitir alguma transformação.

Fanon (1952/2008) ao discorrer sobre a experiência vivida do negro, coloca a vivência do ser objeto como elemento principal, onde o olhar do branco tem um poder determinante de fixá-lo. Ele afirma ser qualquer ontologia "irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada" (Fanon, 1952/2008), onde ao povo colonizado é atribuída uma impureza que interdita qualquer explicação ontológica, pois ao retirar dele suas instâncias de referência e tentar molda-los à imagem e semelhança da estrutura de referências do colonizador, não permite compreender o ser do negro.

O olhar branco que objetifica o corpo negro resulta em dificuldades na elaboração do seu esquema corporal, pois seu conhecimento se dá em terceira pessoa, do outro para ele, como negação, numa dialética efetiva que estrutura definitivamente o sujeito e o mundo. Assim, ele propõe que abaixo do esquema corporal proposto por Merleau-Ponty, há um "esquema histórico-racial" (Fanon, 1952/2008, p. 1622) que não foi produzido por suas percepções e sensações corporais, mas foi tecido pelo branco ao lhe objetivar, narrar. Diante de histórias, narrativas e olhares, que atacam o esquema corporal do negro, ele desmorona e cede lugar a um "esquema epidérmico racial" (Fanon, 1952/2008, p. 1633).

Olhe o preto!… Mamãe, um preto!… Cale a boca, menino, ele vai se aborrecer! Não ligue, monsieur, ele não sabe que o senhor é tão civilizado quanto nós… Meu corpo era devolvido desancado, desconjuntado, demolido, todo enlutado, naquele dia branco de inverno. O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe, um preto! (...) Nas proximidades do branco, no alto os céus se desmantelam, debaixo dos meus pés a terra se arrebenta, sob um cântico branco, branco. Toda essa brancura que me calcina… (Fanon, 1952/2008, p. 1657-58)

Karera (2020) discute o fato de que esse advento do esquema epidérmico-racial representa uma ruptura fundamental entre o sujeito e o mundo, o que implicaria uma falha na concepção de Merleau-Ponty em termos da sua consideração de uma sinergia eu e outro.

Alienando e desfigurando, o esquema epidérmico-racial divide violentamente as subjetividades racializadas a tal ponto que dificilmente se pode prestar conta de si mesmo. A sinergia existencial entre eu e o outro, que supostamente subjaz universalmente o esquema corporal e em ultima instância sedimenta um conhecimento de mim como agente prático, é anulada pelo olhar racista (Karera, 2020, p. 291, tradução nossa).

É importante ressaltar que, tal como discute o autor, o epidérmico e o sócio-histórico e econômico são dimensões entrelaçadas. "A epidermalização, assim, é a internalização de mitos sócio-históricos fundados e nutridos por condições econômicas repressivas" (Karera, 2020, p. 292, tradução nossa). O brasileiro Almeida (2019) refere-se ao racismo estrutural nesse mesmo sentido, como um fenômeno que decorre da estrutura social, de uma certa normalização da constituição das relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares.

Yancy (2020) propõe a noção de "corpos confiscados" para referir-se a encontros disruptivos e violadores sofridos pelo corpo negro em espaços sociais saturados racialmente. O olhar branco que fixa o corpo negro geraria uma espécie de despossessão, um confisco do corpo, reduzido que seria a uma epiderme submetida a toda uma rede de estereótipos atribuídas a ela. Nesse contexto, o autor considera que o fenômeno do olhar branco e sua força estrutural performativa e habituada é um pressuposto e que "o olhar branco pressupõe a maior acumulação histórica de material semiótico branco, poder institucional e hegemonia" (Yancy, 2020, p. 71). Compreendendo a branquitude como "norma transcendental" (Yancy, 2020, p. 71), ele discute como essa normatividade é produzida na sociabilidade e historicidade, onde os significados e integridade existencial próprios dos corpos negros foram sendo roubados deles para então serem despejados de volta, sobre eles, significados que se pressupõe que ele sejam, que eles tenham.

Tendo em conta esses apontamentos preliminares acerca do tema das relações raciais, gostaríamos de retomar as discussões de Merleau-Ponty, perguntando-nos acerca dos limites colocados pela questão racial e suas consequências sobre o corpo-sujeito em sua potência criadora e transformadora. Quais seriam as consequências de conceber a branquitude como norma transcendental, considerando que, como discutimos, de um ponto de vista hiperdialético a relação entre transcendência e imanência é ambígua, ideia corroborada por Whitney (2020). A nosso ver, a hipótese de Fanon que considera qualquer ontologia irrealizável num contexto de colonização necessitaria maior exploração e discussão em contraponto com a ontologia merleaupontyana, o que não seria possível no escopo deste trabalho, ainda que possamos trazer algumas pistas.

A questão da temporalidade da instituição coloca novas perspectivas para esse debate, pois como discutimos, pensar em termos de percepção, expressão e história a partir da temporalidade da instituição implica consideração do sentido como movimento hiperdialético, onde não há síntese a partir de um sujeito, mas sim retomada e instituição de sentidos. A coexistência implica contradição e entrecruzamento.

Considerar as dimensões históricas e a capacidade de agir como compossibilidades simultâneas dadas numa relação quiasmática onde é possível abrir a carne, implica pensar numa história humana sempre por se fazer, onde os acontecimentos podem assumir o valor de gênese. Entretanto cabe pensar, sim, na capacidade de agência reduzida quando obstaculizada por restrições de direitos e violências. Recentemente vivemos um acontecimento que pode ser brevemente discutido a partir disso. Refiro-me ao assassinato de um homem negro de 40 anos, George Floyd, por um policial branco, em Minneapolis, Estados Unidos. Atendendo a um chamado de um comerciante por uma suspeita de que Floyd pagava uma compra com uma nota falsa, os policiais o algemaram e imobilizaram deitado no chão. Tendo permanecido ajoelhado sobre o pescoço de Floyd, o policial permaneceu indiferente aos apelos do homem, que dizia "eu não consigo respirar", mantendo-se na mesma posição por oito minutos e quarenta e seis segundo, até que Floyd ficou inconsciente, morrendo minutos depois, a caminho do hospital. Toda a cena foi filmada por uma adolescente que testemunhou o acontecimento e o vídeo foi publicado e se disseminou rapidamente pelas redes sociais, resultando em uma onda de protestos de grande proporção em todo o país – a maior onda desde o assassinato de Martin Luther King - e que se espalhou por vários países na Europa, África, Ásia, América do Sul, inclusive no Brasil.

As manifestações antirracistas foram marcadas pela frase "vidas negras importam" e teve a participação massiva de pessoas brancas, dando visibilidade a diversas linhas de força que subjazem ao fenômeno do racismo, em especial a violência policial contra pessoas negras. Gostaríamos de destacar aqui o caráter performativo dos protestos nos Estados Unidos. O tempo de 8 minutos e 46 segundos tornou-se uma espécie de símbolo da violência racista e da banalidade e objetificação das vidas negras e foi objeto de algumas ações performativas: canais de TV a cabo interromperam sua programação durante esse intervalo de tempo, mantendo apenas uma tela preta onde se lia a frase "Não consigo respirar"; o mesmo aconteceu com a plataforma de música Spotify; nas redes sociais muitos postaram imagens pretas, sem legendas; pessoas se manifestaram ficando ajoelhadas ou deitadas de bruços, na mesma posição de Floyd, durante 8 minutos e 46 segundos; além disso, os manifestantes por diversas vezes repetiam a frase "eu não consigo respirar". Um outro elemento muito presente nessas performances foi o ficar ajoelhado. Essa era uma referência ao gesto de Colin Kaepernick, um jogador de futebol americano que começou em 2016 a protestar contra a desigualdade e a brutalidade da discriminação racial, permanecendo ajoelhado na lateral do campo durante a execução do hino nacional, antes das partidas. Com esse gesto, Kaepernick foi alijado do futebol, tendo ficado sem contrato em 2017, apesar de ser um jogador de alta performance. Entretanto, esse gesto se instituiu e tornou-se também símbolo da luta antirracista.

Se tomarmos essa situação à luz de nossas discussões, podemos pensar o acontecimento da morte de Floyd e sua frase que implorava pelo direito de respirar também como um ato expressivo instituinte, que provocou desvios no curso dos acontecimentos históricos, retomando e atualizando movimentos passados da luta antirracista, transformando e incorporando aos gestos do punho cerrado do movimento Black power, restrito então aos negros, outros gestos agora performados também por pessoas brancas. Como um gesto político, implicou o sujeito no plural em sua coexistência sensível.

Concebendo a ação política como abertura na carne e a história como formação e dissolução de formas estáveis, consideramos que os acontecimentos recentes, dados no contexto da pandemia do Corona Vírus, no qual a crise expõe e visibiliza as contradições do capitalismo, a precariedade do sistema social, político e econômico que produz pobreza, desigualdade e exclusão e em uma situação na qual a morte surge no horizonte de todos como uma realidade possível, um movimento se fez e contribuiu para visibilizar redes de estruturas de sentido invisíveis que sustentam na profundidade invisível modos de perceber naturalizados em torno da branquitude e de estruturas sociais, econômicas e políticas que se alimentam de um processo sistêmico de discriminação racial.

 

Considerações Finais

Falamos aqui do lugar de uma psicologia de base fenomenológica em diálogo com o pensamento de Merleau-Ponty. Buscar um método em psicologia que logre articular o mundo histórico e a singularidade exige um esforço empreendido em diversas frentes, o que temos tentado desenvolver, coletivamente, em nossas pesquisas. A proposta de uma clínica de situações contemporâneas (Alvim & Castro, 2015) tem como um de seus eixos centrais pensar uma psicologia não-psicologizante e crítica, onde a ênfase esteja em um olhar crítico para a situação contemporânea, tendo como eixo a perspectiva da intersubjetividade e da intercorporeidade.

Pensar uma fenomenologia crítica que possa auxiliar nessa tarefa e especialmente no debate de questões como gênero, raça e classe é uma tarefa que vem nos movendo na direção de discutir as perspectivas políticas nesse campo da filosofia. Em nossas pesquisas e intervenções clínicas, seja no âmbito individual ou em grupos, no consultório ou nas favelas, prezamos por um método que seja ativado pela condição problemática, considerando o sentido histórico e como isso repercute na singularidade dos sujeitos. Tomando a linha de compreensão da arte como linguagem indireta que no entrecruzamento de visibilidade e invisibilidade dá a ver algo, abrindo a possibilidade de ouvirmos em nós os rumores do mundo, pensamos no campo da experiência artística e na potência que tem de visibilizar estruturas sedimentadas de sentido invisíveis e inconscientes que impregnam nossos modos de ver e sentir (autor (a) 2020).

A crise compreendida como perda de sentido é dada pelo acontecimento, situacional, concreto, e que tem valor de gênese. O que dá a oportunidade de, na expressão e fala, ressignificar existência e mundo, um trabalho que pode ser considerado político. Para Patocka (1999), a perda do sentido não é cair no não-sentido, exige uma interrogação do próprio sentido antes não problematizado. Isso não prescinde do outro, é feito na coexistência, no diálogo, visando ao coletivo. Nesse quiasma onde as determinações históricas e nossa capacidade de agir são compossíveis, a carne do mundo sócio-histórico pode então se abrir e o mundo se movimentar na direção de alguma mudança.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Monica Botelho Alvim
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Instituto de Psicologia - Programa de Pós graduação em Psicologia
Avenida Pasteur, 250, Praia Vermelha, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. CEP 22290-240
Endereço eletrônico: mbalvim@gmail.com

Recebido em: 05/07/2020
Aceito em: 04/09/2020

 

 

Notas

* Psicóloga, mestrado e doutorado pela Universidade de Brasília, pós-doutorado pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, docente PPGP/UFRJ.

 

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