SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21 número2Precarização Social e Fragilização Psíquica na Situação de Desemprego Severo no Município de Corumbá, BrasilAproximações do Campo-tema Juventude e Violência na Periferia de Fortaleza índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2021.61051 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. 02. doi:10.12957/epp.2021.61051
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Considerações Pós-Estruturalistas sobre o Sujeito, o Tempo e a(s) Língua(s) no Filme Babel

 

Lucas de Oliveira Alves*; Marina Fernandes Guedes**; Vinicius da Rocha Barros***; Mériti de Souza****
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, SC, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

No cenário contemporâneo, localizamos uma concepção hegemônica e idealizada sobre a linguagem, definida como capaz de representar a realidade e o sujeito, bem como realizar a plena tradução do sujeito e do outro. Entendemos que os pressupostos modernos de identidade, sujeito cognoscente, tempo linear, binarismo, dentre outros, sustentam a concepção hegemônica de linguagem. Esse artigo visa realizar um exercício de desconstrução da concepção idealizada da linguagem e das suas relações com o modo de subjetivar, que opera a partir dos pressupostos modernos. Produziu-se nesse artigo a leitura e a análise desconstrutiva de algumas cenas do filme Babel (2006), recorrendo ao aporte teórico de autores pós-estruturalistas como Foucault e Derrida. Utilizaram-se conceitos como descontínuo e acontecimento para trabalhar com as aporias da língua e da comunicação, relacionando-as aos pressupostos da identidade, do sujeito cognoscente e do tempo linear. Entende-se que a(s) língua(s) se associam à diferença, aos deslizamentos dos sentidos e à alteridade.

Palavras-chave: pós-estruturalismo, língua, acontecimento, descontínuo, sujeito.


 

Post-Structural Considerations about Subject, Time and Language(s) in the Movie Babel

 

ABSTRACT

In the contemporary scenario, we find a hegemonic and idealized conception of language that defines itself as capable of representing reality and the subject, as well as capable of fully translating the subject and the other. We understand that the modern assumptions of identity, conscious subject, linear time, binarisms, among others, support this hegemonic conception of language. This article aims to perform an exercise of deconstruction of the idealized conception of language and its relations with the modes of subjectivity that operates from modern presuppositions. Therefore, this article aims to produce the deconstructive reading of some scenes from the movie Babel (2006), using the theoretical support of poststructuralists authors such as Foucault and Derrida. We use concepts such as discontinuous and event to work with the aporias of language and communication relating them to the presupposition of identity, conscious subject and linear time. It is understood that the language (s) is associated with difference, sliding of the senses and otherness.

Keywords: post-structuralism, language, event, discontinuous, subject.


 

Consideraciones Post-Estructuralistas sobre el Sujeto, el Tiempo y las Lengua(s) en la Película Babel

 

RESUMEN

En el escenario contemporáneo localizamos la concepción hegemónica e idealizada sobre el lenguaje que la define como capaz de representar la realidad y el sujeto, y también, con la capacidad de realizar la plena traducción del sujeto y del otro. Entendemos que los presupuestos modernos de la identidad, del sujeto cognoscente, del tiempo linear y el binarismo, entre otros, sustentan la concepción hegemónica del lenguaje. El objetivo del presente artículo es realizar un ejercicio de desconstrucción de la concepción idealizada del lenguaje y de sus relaciones con el modo de subjetivar que opera a partir de los presupuestos modernos. Así, se trata de producir la lectura y análisis deconstructiva de algunas escenas de la película Babel (2006), recurriendo al aporte teórico de los autores post-estructuralistas como Foucault y Derrida. Utilizamos conceptos como discontinuo y acontecimiento para trabajar con las aporías de la lengua y de la comunicación relacionándolas con los presupuestos de la identidad, del sujeto cognoscente y del tiempo linear. Se entiende que la(s) lengua(s) se asocia(n) con la diferencia, los deslizamientos de los sentidos y la alteridad.

Palabras clave: post-estructuralismo deconstrucción, lengua, acontecimiento, discontinuo, sujeto.


 

 

Na história da consolidação do pensamento filosófico e científico modernos, noções como as do descontínuo, do acontecimento e de uma lógica não-binária foram reiteradamente desconsideradas e suprimidas no cenário ocidental. O aforismo cartesiano "Penso, logo existo" fundou um pressuposto moderno central: o sujeito cognoscente – um sujeito racional, consciente de suas intencionalidades e atos, apto a investigar, analisar e compreender seu entorno. Coadunou-se a esse pressuposto específica concepção de espaço e de tempo que entende os objetos como inseridos num continuum, ou seja, presentificados na natureza e envoltos por uma continuidade e estabilidade que os define e identifica (Chauí, 2000; Derrida & Roudinesco, 2004; Foucault, 1996, 2004).

De modo a sustentar o pressuposto do sujeito cognoscente, prenhe de uma identidade e capaz de conhecer a si e ao outro em uma suposta totalidade onto-epistemológica, a tradição filosófica e científica moderna apropriou-se dos princípios da lógica aristotélica. Os princípios da identidade (modo de conhecer e subjetivar ancorado na representação e na racionalidade lógico formal), da não-contradição (modalidade de conhecer e subjetivar centrado na idealização da consciência), do terceiro excluído (modelo de conhecer e subjetivar que adota a relação causa e efeito, lógica binária), complementaram-se de modo a consolidar a ideia de que todos os seres possuem predicativos inerentes que os diferenciam entre si a partir da mesmidade, ou seja, do que se repete como idêntico e mantém a continuidade, a linearidade, na dimensão espacial e temporal. Já o princípio da razão suficiente assegurou a concepção de uma causalidade, suprimindo a noção do descontínuo (Bachelard, 1996; Butler, 2015; Chauí, 2000; Foucault, 1996, 2004).

Partindo da premissa de que o homem e os objetos da natureza possuem uma verdade e uma essência subjacentes - um conteúdo imutável, em-si - passíveis de desvelamento, o pensamento moderno buscou desenvolver um método universal, construído a partir de técnica e de linguagem capazes de levar o sujeito à obtenção do conhecimento verdadeiro. De acordo com Chauí (2000), a ideia da linguagem como possibilidade de comunicação-conhecimento aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre de Babel. Neste mito, Deus pune os homens fazendo-os perderem sua língua comum e falarem línguas diferentes, impedindo uma obra em comum. De acordo com a Escritura, a pluralidade das línguas torna-se a causa de todos os desentendimentos e guerras.

O mito de Babel pode ser tomado como uma metáfora para refletirmos sobre a necessidade e dificuldade da comunicação e da intencionalidade nas ações e experiências humanas. O trabalho empreendido na construção da Torre de Babel envolve um projeto coletivo de grandes dimensões, erigido a partir de uma linguagem e um objetivo modelados pelo universal. Uma obra arquitetônica - planejada, lógica - que se esfacela diante do corte e das desorganizações deflagradas pela irrupção dos diversos idiomas.

No livro "Torres de Babel", Derrida (2006) discutirá sobre a tradução e a comunicação a partir do mito bíblico que intitula sua obra. Traçando um paralelo entre o constructo da obra arquitetônica e o constructo da língua, o autor reflete sobre suas incompletudes:

A Torre de Babel não configura apenas a multiplicidade irredutível da língua, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. O que a multiplicidade de idiomas vai limitar não é apenas uma tradução "verdadeira", uma entr'expressão [entr'expression] transparente e adequada, mas também uma ordem estrutural, uma coerência do constructum. Existe aí (traduzamos) algo como um limite interno à formalização, uma incompletude da construtora [constructure] [...]. (Derrida, 2006, pp. 12).

Jacques Derrida (2001, 2006) nos lança a aporia de que a tradução é necessária, mas impossível. Há um limite na tradução, na medida em que há um limite na coerência interna da língua. Para o autor, tanto a arquitetônica da torre (de Babel) quanto a arquitetônica da língua carregam um indecidível, um acontecimento. Desse modo, entendemos que o autor destaca que os entraves à comunicação ocorrem não só em virtude da diversidade de idiomas, mas, sobretudo, pelas opacidades e incompletudes inerentes ao idioma e à língua, impossibilitando uma tradução e uma comunicação plenas - plenas na correspondência transparente e universal entre significante e significado, fala e escrita.

Valendo-se do mito de Babel, o diretor Alejandro González Iñárritu lança, em 2006, um filme homônimo, abordando questões como identidade, diferença, comunicação e tradução. Assistimos personagens em narrativas paralelas que se cruzam em situações marcadas pelo imprevisível e pelo imponderável. No enredo, quatro tramas centrais se entrelaçam, remetendo as personagens a situações inéditas e desconcertantes. Na obra, as seguintes cenas se revezam e disparam os acontecimentos da trama: em uma localização remota ao sul do Marrocos, um púbere marroquino atira com um rifle em um ônibus; uma turista norte-americana, acompanhada por seu marido, é atingida por uma bala perdida dentro de um ônibus, em uma estrada erma do Marrocos; uma babá mexicana, residente nos Estados Unidos, atravessa a fronteira com os filhos de seus patrões; em Tóquio, uma adolescente japonesa surda se vê às voltas com a necessidade de comunicar algo do seu desejo sexual e do seu sofrimento.

Tendo como pano de fundo o universo dramatúrgico do filme de Inãrritu, e valendo-nos de conceitos e articulações pós-estruturalistas de Foucault e Derrida, objetivamos problematizar e desconstruir a concepção hegemônica moderna da língua que a define como enclausurada em um sistema e uma estrutura, que lhe possibilitam representar de forma plena e totalizante o sujeito e seu entorno. Essa concepção promete realizar a transparência do sentido posto no conceito e garantir a linearidade entre a intenção do sujeito e língua, efetivando a plena tradução.

Deter-nos-emos no filme como obra de arte múltipla, repleta de camadas de sentidos, possibilidades de leituras, análises e discussões por meio de enlaces teóricos. Trata-se de um trabalho aberto e subjetivo, de decomposição do filme em sequências de cenas. As cenas decompostas não são selecionadas a partir de um procedimento rigoroso de escolha, mas como elementos de um texto que compreendemos como mais propícios a uma análise articulada entre seu material narrativo e as noções pós-estruturalistas desdobradas no artigo. Uma análise que se corporifica no encontro com a obra - recortes de cenas e diálogos - que nos convida, tendo em observância o adensamento teórico dos autores supracitados, a escrever. Entendemos o filme como um texto, conforme pontua Derrida, pois o texto envolve as produções arquitetônicas, econômicas, simbólicas, orais, escritas, práticas, institucionais, históricas, enfim, a gama de discursos e práticas que envolvem o sujeito e seu entorno, nas suas variadas dimensões. Assim, para Derrida (1991):

[O] conceito de texto que eu proponho não se limita nem à grafia, nem ao livro, nem mesmo ao discurso, menos ainda à esfera semântica, representativa, simbólica, ideal ou ideológica. O que eu chamo de ‘texto' implica todas as estruturas ditas ‘reais', ‘econômicas', ‘históricas', socioinstitucionais, em suma, todos os referenciais possíveis (Derrida, 1991, pp. 203).

Trabalhar com as leituras pós-estruturalistas de Foucault e Derrida implica em reconhecer a impossibilidade da compreensão plena e totalizante do texto, no caso, cenas do filme Babel, bem como do outro em sua constituição subjetiva. Sabemos que a concepção hegemônica da língua opera com referências logocentradas, ou seja, com conceitos e discursos que se pretendem como representações da verdade e como passíveis de atingirem a transparência e a intenção do sujeito. Porém, para Derrida não existe um sentido último a ser desvelado, mas, antes, ele afirma que o sentido desliza e opera na relação entre conceitos.  Para operar com o texto, o autor propõe o trabalho de produção do conhecimento denominado desconstrução.

A operação de desconstrução proposta por Derrida (2008) diz respeito a uma estratégia de produção de conhecimento que problematiza os pressupostos da modernidade, como as matrizes identitárias que redundam uma clausura do sentido na língua e no sujeito. Em outras palavras, as matrizes identitárias buscam estabilizar e atribuir sentidos fechados e últimos às pessoas, aos discursos, a contextos e situações. A proposta derridiana diz respeito a explicitar e criticar o modo de operar binário, hierárquico, substantivado, linear, que opera nos pares de oposição que estruturam a linguagem hegemônica, para trabalhar com a ampliação dos sentidos, com o deslizamento, com o que possa viabilizar "o brilho do além-clausura" (p. 16).

Neste artigo, para operar com a desconstrução no filme Babel, utilizaremos como referência analítica privilegiada os aportes teóricos de Foucault (1996; 2004) e de Derrida (1996; 2001; 2006; 2008), recorrendo de forma específica aos conceitos de acontecimento e descontínuo, conforme postos por estes autores. Assim, inicialmente, buscaremos apresentar brevemente os pressupostos que tangem as concepções hegemônicas de sujeito e tempo, evidenciando seus tensionamentos epistemológicos. Tomando o filme como material de análise, discutiremos os conceitos de descontínuo e acontecimento, tal como explorados, respectivamente, por Foucault e Derrida. Por conseguinte, norteando-nos por algumas discussões de Derrida, nos deteremos à questão da linguagem e da comunicação, procurando desconstruir a ideia de uma linguagem transparente, com uma correspondência universal entre significante e significado.

 

Sujeito e Tempo - Algumas (Des)construções

Detendo-nos nas noções de identidade e tempo em suas dimensões apriorísticas de conceitos filosóficos, percebemos que suas construções estão historicamente e inelutavelmente vinculadas. Na antiguidade clássica, Heráclito concebia que tudo está em fluxo e que não há constância no Universo. É do filósofo a ideia de que não se pode entrar no mesmo rio duas vezes, uma vez que as águas que corriam segundos antes não são mais as mesmas em que ponho os pés, assim como eu não sou mais a mesma pessoa (Mannion, 2010). Dessa metáfora, depreende-se que para o filósofo grego não é possível haver uma mesmidade, ou seja, algo que se mantém sem alteração, igual, uniforme - encarnada no conceito de identidade - uma vez que o ser é inexoravelmente modificado pela transitoriedade do tempo.

Na modernidade, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, o pensamento delimitou e enrijeceu as noções de Tempo, Sujeito e Natureza em prol de um ideal racionalista ancorado no território do método e na certeza de um conhecimento verdadeiro. Neste período, destacaram-se nomes como os de Descartes, Espinoza, Leibniz, Galileu Galilei, Isaac Newton e Francis Bacon (Bachelard, 1996; Blanché, 1983; Chauí, 2010). Tornaram-se fundamentais a separação entre Homem e Natureza e a concepção de um sujeito cognoscente. O saber passa a ser valorizado como razão técnica e instrumental para dominar a natureza, expressa no célebre aforismo de Bacon: "saber é poder".

Nos séculos XIX e XX, particularmente a partir de Hegel e sua concepção de um curso natural da História, pensada como modo de razão e de verdade, assim como de Augusto Comte, no gesto de atribuir a possibilidade do progresso à práxis das ciências positivistas, dissemina-se a concepção de uma ciência independente da filosofia e atrelada a uma ideia de progresso, reforçando a ideia de uma temporalidade linear, contínua e progressiva (Chauí, 2010).

Na epistémê moderna, as premissas de causalidade e continuidade escamoteiam o que é da ordem do descontínuo, obliterando a imprevisibilidade do universo das contingências e das possibilidades. No compasso dessa lógica, o campo das experiências humanas é analisado e calculado por suas chances de êxito ou fracasso, como se houvesse uma métrica para a vida, as ações e as relações. Na contramão dessas premissas, Foucault valoriza a noção de descontínuo, afirmando sua relevância para uma concepção de tempo e de sujeito. Em sua obra "A ordem do discurso", Foucault (1996) descreve que descontínuos são "incisões que rompem a sucessão de instantes no tempo e desorganizam o sujeito, dispersando-o em pluralidades de posições e funções." (p. 56). O descontínuo invalida noções tradicionalmente sustentadas como a de um tempo composto pela sucessão de instantes e a de um sujeito pensante, capaz de se assenhorar da linearidade temporal (Foucault, 1996).

Derrida, em diálogo com Elisabeth Roudinesco (Derrida & Roudinesco, 2004), à guisa do movimento de desconstrução dos pressupostos modernos, convoca-nos a pensar em uma ética possível na impossibilidade do saber. Para o autor, uma decisão ética é aquela que se toma diante de um acontecimento imprevisível, da ordem do imponderável. Em face daquilo que escapa às coordenadas da razão, onde não mais se dispõe dos saberes e normas para orientar a ação, faz-se necessário agir eticamente.

Derrida comenta que é imperativo desfazer os efeitos do cálculo, de modo, a saber onde somos afetados pelo outro que chega (Derrida & Roudinesco, 2004). O encontro com o outro é um evento imprevisível, da ordem do incalculável, um acontecimento que invariavelmente escapa do controle do suposto sujeito cognoscente, expressando sua condição de vulnerabilidade e falibilidade. De modo semelhante ao descontínuo descrito por Foucault (1996), o acontecimento desorganiza o sujeito, obnubilando suas coordenadas lógicas e morais.

Ressaltamos que as desconstruções dos pressupostos da modernidade empreendidas por Foucault, Derrida e outros pós-estruturalistas reverberam em críticas que já vinham sendo tecidas em outras tramas e correntes epistemológicas. Na psicanálise, por exemplo, Freud (1917/1996), a partir do postulado do inconsciente, já endossara que "o eu não é mais senhor em sua casa", e Lacan (1986), sublinhando Rimbaud, afirma em teoria o "eu é um outro". A teoria da relatividade de Einstein, por sua vez, deslegitima a tese de uma linearidade do tempo e de uma regularidade inalterável na relação entre tempo e espaço.

Várias frentes, de campos científicos e filosóficos diversos, abalaram os fundamentos da epistémê moderna, evidenciando a fragilidade de alguns de seus pressupostos. Apesar desses abalos, noções como tempo contínuo, identidade e uma concepção totalizante e presentificada de sujeito da razão e da intenção permanecem delineando de maneira hegemônica os modos de produção de conhecimento. Como exemplo, podemos citar que as ciências e as pesquisas associadas aos pressupostos hegemônicos modernos ancoram-se, ainda, fundamentalmente em uma modalidade de produção calcada na relação binária, linear e determinista entre causa e efeito; sujeito e objeto; estabelecendo o método como técnica associada à definição de objetivos, enquanto hipóteses, proposições que guiam coleta e análise de dados dedutivamente. Seguindo as exemplificações, os dispositivos jurídicos, encarnados no direito penal, pautam-se nas categorias de culpa e dolo, sustentando a concepção de um sujeito da intencionalidade. A política neoliberal postula e reforça o valor meritocrático, construindo a ideia de um sujeito que alcança seus objetivos à revelia das condições materiais desiguais, inconstantes e, sobretudo, excludentes, como justificativa para a suficiência determinística da intenção do sujeito para mudar a sua realidade. Em vista dessa persistência, insistimos em reafirmar o diálogo com Foucault e Derrida, propondo-nos, na sequência, a efetuar um exercício de desconstrução da obra fílmica Babel (Golin & Iñárritu, 2006).

 

Descontínuos e Acontecimentos em Babel

Para subsidiar nossas reflexões acerca do filme Babel, lançaremos mão de dois pressupostos: a noção de descontínuo de Foucault (1996, 2004) e de acontecimento de Derrida e Roudinesco (2004). Tais pressupostos articulam-se com nossa análise da narrativa do filme, que entre possíveis desacomodações e encontros, convidam-nos a pensar a história em sua não linearidade, como propõe Foucault (1996, 2004).

Assim, partindo do pensamento crítico em relação à história tradicional e suas consequentes noções de origem e conhecimento, Foucault (2004), em a "Arqueologia do Saber", discorre que a história contínua é a que entendemos como constituinte de uma história única e global. Ela é a reconstrução de um período, aquilo que poderia ser denominado zeitgeist, quando compreendemos a história em sua continuidade, evolução, composta por predicativos exclusivos, essenciais à fundação e identificação do sujeito, tecendo a sua subjetividade.

A partir da crítica a este modelo hegemônico de compreensão da historicidade, Foucault sugere que a história tenha a característica de mostrar que aquilo que é nem sempre foi, há furos. E é justamente nos furos desta história contínua que o contexto do filme Babel se apresenta. O entendimento a priori sobre os atravessamentos culturais tomados como verdade na narrativa falam deste modelo hegemônico de compreensão da historicidade: uma bala perdida atingindo uma americana em território estrangeiro povoado majoritariamente por árabes é interpretada pelas autoridades e pela mídia como um ataque terrorista; uma babá mexicana cruzando a fronteira "só poderia ser ilegal". As complexidades históricas e territoriais, os conflitos que demarcam a cultura ocidental/oriental do século XXI como a relação entre as fronteiras México e Estados Unidos, os imigrantes, a ilegalidade e o terrorismo, nos levam a pensar na expressão "o rosto de uma época", utilizada por Foucault (2004) metaforicamente, ao descrever a história contínua como um projeto de história global. Para o autor, a história contínua:

(...) procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilização, o princípio - material ou espiritual - de uma sociedade, a significação comum a todos os fenômenos de um período, a lei que explica sua coesão - o que se chama metaforicamente o ‘rosto' de uma época (Foucault, 2004, pp.11).

A sensação de que tudo escapa pelas mãos, à mercê da agência do acaso em uma série de desdobramentos que tensionam a trama do filme, articula-se aqui com o entendimento da história como algo descontínuo. Foucault (2004) sinaliza que a história não é um desenvolvimento harmônico linear, tampouco silencioso de um acontecimento. Ela é, sim, descontínua, feita de rupturas, de tramas que escapam à racionalidade e à intenção do sujeito.

Analisando a narrativa do filme, observamos na trama algumas relações com a descontinuidade. A cena de Amélia (babá) cruzando a fronteira entre EUA e México no carro, com seu sobrinho e as crianças que ela cuidava nos EUA, desvela passagens discursivas a partir das incisões do descontínuo. Após o incidente na fronteira, Amélia se encontra no deserto com as duas crianças que cuida e uma delas, Mike, questiona-a sobre o motivo de eles estarem se escondendo. O diálogo segue:

Amélia: Porque eles pensam que nós fizemos algo errado, querido.
Mike: Isso não é verdade. Você é má!
Amélia: Não, querido! Eu não sou! Eu apenas fiz algo estúpido.
Sequências após, Amélia está na delegacia da fronteira e sentada, conversa com um oficial.
Oficial: É um milagre que achamos aquelas crianças, madame. Não sei como você pôde deixá-los sozinhos daquela forma no deserto.
Amélia: Como eles estão, senhor?
Oficial: Isso não é da sua conta.

Após essa repreensão, o oficial a adverte de que ela está ilegal nos EUA. Comenta que Richard, o pai das crianças, está muito irritado, mas não irá processá-la. Contudo, ela será deportada para o México.

Nas duas situações, observamos uma alteração radical do estatuto do personagem. No discurso de Mike, emerge o predicativo de má, reorganizando a posição de Amélia em um campo moral. Por seu turno, o oficial da imigração reforça esse julgamento moral, acrescentando os efeitos de uma posição outra: a da ilegalidade. A recursividade da história contínua reposiciona a personagem em binarismos morais e legais. Observamos na narrativa que, no discurso do outro, ela oscila de boa babá/boa pessoa a má babá/má pessoa, residente americana e amparada legalmente a deportada, desempregada e desamparada pela lei. Tais marcas que deflagram os binarismos e seus identificadores são possíveis de serem repensadas se olhamos para a história de forma descontínua. A noção de descontinuidade imprime uma ruptura com uma verdade única amparada nos pressupostos da lógica racional, universal e binária.

Na trama que ocorre no Marrocos, assistimos o tiro disparado por Yussef contra um ônibus em movimento desencadear uma série de eventos disruptivos para si e para as pessoas do seu entorno. A bala disparada atinge uma turista americana (Sra. Jones) e vem, de maneira análoga, cortar o tecido da vida social de Yussef, revelando as entranhas de sua família e impelindo as personagens a assumirem outras posições discursivas.

Vemos como conteúdos velados são explicitados a partir das disjunções provocadas pelo(s) descontínuo(s) da narrativa. Em uma cena, os adolescentes Yussef e Ahmad encontram a polícia e descobrem que seu pai está sendo procurado. Eles mentem para a polícia sobre o paradeiro do pai e saem correndo para lhe contar o que aconteceu. Na sequência, a narrativa se desenvolve da seguinte forma:

Ahmed fala para seu pai: Papa, a polícia... eles estão procurando por você.
Pai: Eu? Por quê?
Yussef: Não por você. Eles estão procurando por nós.
Pai: Procurando por vocês? Por quê?
Yussef: Por causa da turista.
Pai: Que turista?
Ahmed: A americana. Yussef a matou.
Yussef: Mentiroso. Nós dois fizemos.
Mãe: O que está dizendo?
Ahmed: Yussef começou a atirar em carros porque Hassan disse que as balas não podiam ir muito longe.
Yussef: Mentiroso! Você começou a atirar em carros.
Ahmed: Mas você a matou!
Pai, segurando Ahmed pela camisa: O que você está dizendo?
Ahmed: Yusef matou a americana e ele espia Zohra nua...E Zohra o deixa olhar.

Nessa sequência, observamos como o descontínuo incide sobre as personagens, revelando subtramas da narrativa – aquilo que era da ordem do inconfessável, na medida em que revelava algo não só da intimidade sexual, mas de um desejo incestuoso. As delações de Ahmed, em uma atitude defensiva, não só quebram o pacto de confiança estabelecido com seu irmão, mantenedores de uma configuração linear e contínua na estrutura e na dinâmica familiar, mas mobilizam todas as personagens a assumirem novas posições diante de um passado outro que se presentifica e diante de um futuro radicalmente imprevisível, em virtude da iminência de um possível encontro com a polícia.

O descontínuo e o acontecimento desconstroem os pares de oposição como o normal e o louco; o sadio e o deficiente; o masculino e o feminino; o civilizado e o bárbaro; a natureza e a cultura; denunciando o jogo que busca enunciar a diversidade, chegando inclusive a propor sua inclusão, sem, no entanto, problematizar a premissa que escamoteia a diferença como constitutiva do subjetivo e do conhecimento, bem como o universal atravessado pelo singular (Skliar, 2003).

Ao encontro dessa leitura balizada pela noção foucaultiana de descontínuo, e considerando a forma como ele é tangenciado pelo imprevisível e pelo imponderável na ação humana, propomos um olhar dirigido à película, articulado à noção de acontecimento que, para Derrida (Derrida & Roudinesco, 2004), descortina-se como algo da ordem do incalculável.

Segundo o autor (Derrida & Roudinesco, 2004), acontecimento, o disruptivo, o novo, envolve o encontro com o outro, com a radical alteridade do outro. O encontro com o outro nos convoca a uma ação ética, ação esta que não pode ser bussolada pelas normas universais ou por uma racionalidade sistemática. De modo a pensarmos e articularmos essa concepção, podemos nos ater à bala perdida e como esse acontecimento mobiliza os turistas que estão dentro do ônibus no Marrocos. Do mesmo modo, podemos pensar a chegada dos estrangeiros Susan Jones (a mulher baleada) e seu marido à aldeia, e a maneira como esse episódio insólito – assim conjecturamos, dada a realidade sociocultural e o isolamento geográfico do local – impele os habitantes a um agir inédito, balizado por uma ética sem prescrições.

Os desdobramentos desta situação estão repletos de cenas onde as personagens precisam lidar com tempos, espaços e alteridades anômalas, disformes e inconstantes: a tensão da espera de um helicóptero da embaixada americana que poderá prestar socorro a Susan, a decisão dos turistas do ônibus de abandonar o casal, a chegada de uma curandeira e o apoio da comunidade local diante do sofrimento do casal, o guia marroquino que nega o dinheiro de Jones. A ordem do incalculável aqui opera, colocando Susan e seu marido à mercê do que escapa do controle e do que conhecem.

Para Fontes (2012), a ressonância ética do acontecimento em Derrida é um ponto chave na compreensão desta ideia, "o que fazer com o que acontece" parece o ponto de ligação entre a ação e o acontecimento em si. Partindo da premissa do acontecimento e sua ressonância ética, trazemos como ilustração novamente a cena de Amélia, seu sobrinho e as crianças na fronteira entre Estados Unidos e México, porém, colocando em destaque agora a atitude de seu sobrinho. Falamos aqui em atitude, pois é sob a ação e decisão que incide também o pressuposto do acontecimento. Ao serem paralisados na fronteira, o sobrinho de Amélia, acuado com a abordagem policial e suas possíveis consequências, resolve fugir, o que culmina em uma perseguição, sendo Amélia e as crianças abandonadas por seu familiar em pleno deserto, em busca de seu salvo conduto. A decisão de seu sobrinho implica em um efeito ético: sob a ameaça de todas as implicações legais "no cruzar a fronteira, sendo um ilegal", o rapaz dá espaço ao imprevisível, ao acaso que ressona na vida de todos os envolvidos naquela cena.

Derrida (Derrida & Roudinesco, 2004) diz que o outro corresponde à figura do incalculável, pois quando afetados por este adentramos o terreno do imprevisível, do acontecimento. Para Derrida (Derrida & Roudinesco, 2004), "o advento do outro, a chegança daquele que chega, é (este) que chega enquanto evento imprevisível" (p. 66).

Para Fontes (2012), procuramos estabelecer um poder como possibilidade de neutralização do acaso. Contudo, o autor refere que o acontecimento em Derrida marca uma possibilidade aberta ao desenlace, ao corte ou à interrupção e redefine os termos do que é entendido como decisão responsável, pois: "(...) o acontecimento se demarca por sua alteridade: abissalmente e infinitamente desalojado de todos os seus lugares próprios, da verdade do próprio lugar, do ter-lugar de sua verdade." (Fontes, 2012, p. 2).

Matrizes identitárias agregam pessoas, espaços e contextos a partir de supostas referências e atributos incrustados nas subjetividades, nos territórios e nas linguagens. A identidade como mesmidade, o que se repete como idêntico, recorre à presença substantivada e universalizada do sujeito para se sustentar. Ainda, a linguagem, ao operar conforme a definição clássica e hegemônica que atribui aos conceitos um sentido último, funciona como sustentáculo à manutenção das construções que atribuem modos específicos de subjetivar e de funcionar a grupos supostamente idênticos: a migrante mexicana (a babá Amélia); o menino marroquino e sua família; o casal estadunidense em férias. As referências econômicas, sociais, de língua, de gênero, dentre outras, configuram a priori uma modalidade subjetiva e um modo de conhecer que definem as pessoas e os grupos. Porém, o descontínuo e o acontecimento que atravessam a vida, o tempo e o espaço eclodem, trazendo à cena a diferença que opera, sempre opera, ainda que se encontre desqualificada e escandida. O descontínuo chega e atravessa a suposta linearidade, identidade, substância. O acontecimento acompanha o outro, aquele que chega com suas inelutáveis singularidade e alteridade. Derrida, em entrevistas com Roudinesco (Derrida & Roudinesco, 2004), afirma: "Sempre desconfiei do culto do identitário, bem como do comunitário, que lhe é tão frequentemente associado" (p. 34).

 

A(s) Língua(s) de Babel

No filme Babel somos apresentados ao universo das múltiplas línguas e do limite da comunicação. Entre as facetas das histórias, encontramos em Cheiko Wataya o drama da adolescente surda numa capital visual como Tóquio. Vemos em Amélia, a babá mexicana, o manejo das línguas conforme o terreno geográfico – inglês na Califórnia, espanhol em Tijuana e ambos na fronteira. Com o casal de turistas americanos, os Jones, detentores da língua inglesa, acompanhamos a necessidade de fazer do guia turístico um tradutor, guia da língua, em Marrocos.

Pinçamos essas cenas, dentre várias que poderiam ser escolhidas, para destacar situações possíveis, mas que escapam daquilo que compreendemos como o esperado. Espera-se, com base nas lógicas modernas de intencionalidade, razão e identidade, que a língua, bem como a comunicação, sejam formas genuínas de acesso ao outro na sua totalidade, e supõe-se que a não conquista desta totalidade deflagre uma falha (de comunicação). Todavia, as personagens que selecionamos carregam consigo um predicativo que abre a discussão deste capítulo: a condição de estrangeiro, dentro e fora, e a exigência da tradução para além do dialeto.

Derrida (1996), em O monolinguismo do outro, ocupa-se desta discussão sobre o estrangeiro, a tradução e a ausência de uma língua da qual o sujeito possa se apropriar por completo, garantindo assim uma comunicação plena. Sou monolíngue, escreve o autor, o monolinguismo "demora-se e eu chamo-lhe a minha morada, e sinto-o como tal, nele me demoro e nele habito." (Derrida, 1996, p.13-14). E continua traçando que o monolinguismo "Não é um elemento natural, não há transparência do éter, mas um meio absoluto. Inultrapassável, incontestável: não posso recusá-lo senão atestando a sua onipresença em mim." (Derrida, 1996, p. 14).

A provocação derridiana faz enlace com as cenas recortadas do filme ao apontar que a língua do outro, seja visual ou oral, demanda uma tradução. Seja por aquilo que distingue, seja por aquilo que supostamente aproxima, ou que é semelhante. Ou melhor, a língua do outro requer uma tradução para além do idiomático, da fala e/ou pelo modo de captar a língua. Derrida comenta: "Ora, jamais essa língua, a única a que me devoto a falar, tanto que falar me será possível, na vida e na morte, essa única língua, veja você, jamais será minha. Jamais foi minha em verdade" (Derrida, 1996, p.14).

Para Derrida (1996), há sempre um outro que separa o sujeito e a língua, impedindo assim a apropriação completa. Essa separação não só reforça o ponto frente à demanda da tradução, como aponta que, na dimensão do intraduzível, há sempre um inultrapassável na tradução, um limite. "Dizes o impossível. O teu discurso não se aguenta de pé. Permanecerá sempre incoerente, inconsistente" (p. 15). O impossível de dizer, assim como a incoerência apontada pelo autor, lança-nos para a dimensão da alteridade.

Ao ultrapassar a fronteira territorial, linguística e cultural, Amélia, a babá mexicana que mora e trabalha nos EUA, vê-se no limite da língua e carente de referenciais de reconhecimento, mesmo sendo fluente em dois idiomas. Quando interceptada pela polícia no retorno aos Estados Unidos, ela explica sua situação e justifica a razão do regresso e das companhias no carro. Todavia, a polícia decide que não é possível escutar a versão da mexicana. A dimensão da alteridade emerge nesta cena do retorno para os Estados Unidos. Os policiais, sustentados pelas lógicas das construções identitárias dentro do prisma da modernidade, do ideal de segurança, decidem não escutar os motivos de Amélia, denotando assim a inconsistência da língua a qual, como vimos, não contempla a totalidade.

Mesmo no exercício contínuo de tentar explicar, no sentido de dar conta daquilo que se pretende falar, a impossibilidade abre brechas e fendas na língua. Ainda em monolinguismo, "Pedes-me para acreditar em ti acreditando na tua palavra. E acabas de acrescentar idioma à língua. Ora isso muda muita coisa. Uma língua não é um idioma, nem o idioma um dialeto" (Derrida, 1996, p. 20).

A polícia, na cena do filme, advém como um outro que coloca Amélia numa situação impossível de manejar diante da impossibilidade da língua. Nesse sentido, Derrida (1996) aponta, ainda, que a "cidadania não define uma participação cultural, linguística ou histórica em geral. Ela não recobre todas essas pertenças. Mas não é por isto um predicado superficial ou superestrutural flutuando à superfície da experiência" (p. 28), e completa que especialmente quando uma cidadania é "precária, recente, ameaçada, mais artificial do que nunca." (p. 28).

Ainda nos fazendo valer da cena da fronteira em Babel, Amélia está acompanhada das crianças norte-americanas Mike e Debbie Jones, e do seu sobrinho Santiago, que assim como sua tia, carrega marcas da precariedade da cidadania mexicana. Amélia justifica a presença das crianças como sendo "sobrinhas", o policial recebe na literalidade o significante e associa dentro da lógica moderna de familiaridade e parentesco – como sendo apenas possível a aproximação consanguínea. Essa aporia na língua associada tanto à fenda quanto à clausura - clausura como fechamento do sentido e fenda como falta e abertura para o sentido - reverbera no ápice da cena, onde Santiago, compelido a responder do lugar do outro excluído, acelera o carro e foge.

Esse recorte nos ajuda a pensar sobre a phóne, voz e fala, bem como, sobre aquilo que escapa da intencionalidade de manter próximo pensamento e conceito. Derrida (2001), em Posições, situa:

A phoné é, efetivamente, a substância significante que se dá à consciência como aquilo que está mais intimamente ligado ao conceito significado. A voz é, desse ponto de vista, a consciência mesma. Quando falo, não apenas tenho consciência de estar presente àquilo que penso, mas também de manter o mais próximo do meu pensamento ou do "conceito" um significante que não cai no mundo, que ouço tão logo o emito que parece depender da minha pura e livre espontaneidade (...). Não apenas o significante e o significado parecem se unir, mas nessa confusão, o significante parece se apagar ou se tornar transparente para deixar o conceito se apresentar ele próprio como aquilo que é, não remetendo a nada mais do que sua presença. (...) Naturalmente essa experiência é um engodo, mas um engodo em cima de cuja necessidade se organizou toda uma estrutura ou todo uma época. (Derrida, 2001, pp. 28).

Compreendemos que o engodo onde o significante e significado fundem, ou seja, onde a palavra parece se apagar fundando um sentido unívoco, conduz-nos para uma suposta essência, remetendo à ideia de que há um significado, um sentido último e único, retroalimentando as concepções de identidade, sujeito cognoscente, intencionalidade e linearidade. A preposição derridiana nos conduz justamente à desconstrução do caráter arbitrário do signo, em que não há um significado universal, uma essência, vide Amélia na posição de "tia", ou as crianças na posição de sobrinhas dela. Derrida (2001) postula que: "A comunicação pressupõe sujeitos (cuja identidade e presença estejam constituídas antes da operação significante) e objetos (conceitos significados, um sentido pensado, que a passagem da comunicação não terá que constituir nem, transformar)." (p. 29-30).

Retornando ao texto monolinguismo, Derrida (1996, p. 43) afirma que "Uma identidade nunca é dada, recebida ou alcançada, não, apenas existe o processo interminável, indefinidamente fantasmático, da identificação". Ou seja, o autor nos orienta na diferenciação entre identidade e identificação. A primeira enquanto essa unidade fixa, absolutista de pertencimento e propriedade. A segunda, a identificação, carrega consigo a percepção de processo, de movimento, deslocamento, devir – e por reverberação deste processo de deslocamento, toca-se nas contradições, nos paradoxos, nas inconsistências, no indecidível.

Cheiko, a jovem japonesa, assim como Richard, o americano que acompanha sua esposa baleada, encontram no outro-tradutor o exercido da tradução mediada pela alteridade. Cheiko encontra no investigador uma abertura para dizer algo sobre a sua história e de seu desejo. A dimensão da alteridade entre a adolescente e o investigador policial não se dá a partir da identidade profissional dele, pelo contrário, foi na alternância de lugares que através dos olhares (comunicação visual) que Cheiko encontra uma possibilidade de se fazer ser escutada, dentro da sua ficção. A adolescente japonesa recorre à escrita (e ao leitor) para dimensionar a sua ficção frente à morte da mãe / língua materna – este lugar onde modernamente convencionamos como um lugar seguro, acolhedor, fixo e respondente por si só. Para Derrida (1996), "Aquele que fala na primeira pessoa eleva a voz a partir da língua da mãe. Evoca uma língua de origem que talvez o tenha perdido (...). Como se fosse capaz de assegurar uma salvação." (p. 52).

Constatar a alteridade implica em reconhecer o outro como radicalmente singular e marcado pela diferença. Essa perspectiva demanda problematizar conceitos que sustentam pares binários como estrangeiro e nativo; identidade e diversidade; eu e outro. A dificuldade é lidar com as referências da língua e da subjetividade que nos atravessam e com a suposta crença de que nos conhecemos plenamente e reconhecemos plenamente o outro a partir da interpretação. Richard enfrenta a sua condição a partir da mediação da língua com o guia turístico que vira tradutor – alteridade. Ambos só se separam na presença da equipe de resgate enviada pelos Estados Unidos (terra mãe de Richard). O turista americano, frente à despedida, oferece dinheiro para o guia marroquino que, num gesto tocante, nega. Nega dando a dimensão do trágico e do impossível. Esta cena, na nossa leitura, não trata de uma prestação de serviço – inicia por ela, mas é deslocada conforme tocante entre dois que reconhecem a dimensão do impagável, a proporção do intraduzível. Conforme Derrida (1996, p. 103), "Nada é intraduzível num sentido, mas em outro sentido, tudo é intraduzível, a tradução é o outro nome do impossível".

 

Considerações Finais

O filósofo Benjamin (1987), em sua obra "Sobre o conceito de história", comenta que: "A história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras." (p. 229). Constatamos que essa noção de Benjamin permeia a narrativa do filme Babel, evidenciando um contraponto que se insinua não em relação aos pressupostos filosófico-científicos modernos de continuidade e linearidade.

Em Babel, não há uma hierarquia de personagens ou ambiências, pois os sujeitos, tempos e espaços estão entrelaçados pelo(s) descontínuo(s) e acontecimentos. Como espectadores de enredos que correm paralelamente, temos a impressão de que o tempo ora se dilata, ora se comprime, desenhando sua heterogeneidade. Uma bala acelerada atinge um corpo. A mesma bala, alojada, o paralisa. O tempo de espera pela operação e pelo resgate da personagem atingida pela bala é lento, ocorre em um espaço fechado, circunscrito. O tempo da família marroquina em fuga é rápido e decorre no vasto espaço de uma região desértica.

A película nos mostra como essas oscilações, presentes na imbricada relação entre arte e vida, espectador e obra, incidem sobre os sujeitos, os impelindo a uma ação, a uma escolha sem parâmetros, sem métricas, incalculável. A construção da narrativa incide igualmente sobre nós, espectadores e teóricos. A obra nos toca, interroga-nos e, de maneira pujante, tal qual os acontecimentos da vida, questiona e põe em xeque os pressupostos hegemônicos que sustentam as línguas e as subjetividades que buscamos problematizar neste trabalho.

Outras obras fílmicas ou mesmo obras de outras esferas da arte e da vida, considerando os modos de lidar com as línguas nos seus deslizamentos de sentido, poderiam ter entrado em cena nessa escrita. Contudo, tivemos que lidar com cortes - corte do tempo e do espaço do artigo. Tendo o significante corte em evidência, podemos pensar as incisões e descontinuidades que rompem no tempo (Foucault, 1996), não apenas como desorganizadoras, mas, sobretudo como novas possibilidades de organização e de tessituras heterogêneas - tessituras que ocorrem na saturação de agoras (Benjamin, 1987) e no encontro com a alteridade, o outro que chega, o acontecimento (Derrida, 2001; Derrida & Roudinesco, 2004).

As análises e discussões deste artigo são inacabadas em seu devir, em seu constante vir a ser, são convites para outras leituras e escritas. Buscamos problematizar e desconstruir, guiando-nos pelo pensamento pós-estruturalista, pressupostos modernos hegemônicos como os de tempo linear, identidade, sujeito da razão e da intenção, de modo a manter dinâmico um campo de forças epistemológicas diversas. Nessa escrita, referenciamo-nos a alguns aspectos do filme Babel, detivemo-nos em algumas cenas e resistimos a outras. Derrida (Derrida & Roudinesco, 2004) ressalta que aquilo que resiste à análise mantém-se analisável. Eis aí um convite aos leitores e leitoras.

 

Referências

Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Benjamin, W. (1987). Sobre o conceito de história. In W. Benjamin (Ed.), Magia e técnica: Arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 222 - 234). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Blanché, R. (1983). A ciência atual e o racionalismo. Lisboa: Rés.         [ Links ]

Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica.         [ Links ]

Chauí, M. (2000). Um convite à filosofia. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Derrida, J. (1991). Limited Inc. São Paulo: Papirus.         [ Links ]

Derrida, J. (1996). O monolinguísmo do outro ou a prótese da origem. Porto: Campo das Letras.         [ Links ]

Derrida, J. (2001). Posições. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Derrida, J., & Roudinesco, E. (2004). De que amanhã...Diálogo. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Derrida, J. (2006). Torres de Babel. Belo Horizonte: UFMG.         [ Links ]

Derrida, J. (2008). Gramatologia. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Fontes, O. (2012). Uma "possibilidade impossível de dizer": O acontecimento em filosofia e literatura segundo Jacques Derrida. Trans/Form/Ação, 35(2), 143-162. doi: 10.1590/S0101-31732012000200008         [ Links ]

Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. (2a ed.). São Paulo: Edições Loyola.         [ Links ]

Foucault, M. (2004). A arqueologia do saber. (7a ed.). São Paulo: Forense.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Conferências introdutórias sobre psicanálise (Vol. 15). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1917)        [ Links ]

Golin, S. (Produtor), & Iñárritu, A. G. (Direção). (2006). Babel [Filme cinematográfico]. Estados Unidos da América, França, México: Paramount Classics.         [ Links ]

Lacan, J. (1986). O Seminário "Os escritos técnicos de Freud" - Livro 1. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Mannion, J. (2010). O livro completo da filosofia (6a ed.). São Paulo: Madras.         [ Links ]

Skliar, C. (2003). Pedagogia (improvável) da diferença: E se o outro não estivesse aí?. Rio de Janeiro: DP&A.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Lucas de Oliveira Alves
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Campus Universitário, Trindade, Florianópolis - SC, Brasil. CEP 88040-970
Endereço eletrônico: lukass.oliveira@hotmail.com
Marina Fernandes Guedes
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Campus Universitário, Trindade, Florianópolis - SC, Brasil. CEP 88040-970
Endereço eletrônico: marinafernandes.guedes@gmail.com
Vinicius da Rocha Barros
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Campus Universitário, Trindade, Florianópolis - SC, Brasil. CEP 88040-970
Endereço eletrônico: viniciusrbarros@gmail.com
Mériti de Souza
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Campus Universitário, Trindade, Florianópolis - SC, Brasil. CEP 88040-970
Endereço eletrônico: meritisouza@yahoo.com.br

Recebido em: 04/09/2019
Reformulado em: 24/08/2020
Aceito em: 21/09/2020

 

 

Notas

* Mestrando em Psicologia Social e Cultura, do PPGP - UFSC.
** Mestranda em Psicologia Social e Cultura, do PPGP - UFSC.
*** Mestrando em Psicologia Social e Cultura, do PPGP - UFSC.
**** Professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UFSC.

 

Este artigo de revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.

Creative Commons License