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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2021.61072 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. 02. doi:10.12957/epp.2021.61072
ISSN 1808-4281 (online version)

 

TRADUÇÃO

 

Psicologia Social a partir da América Central: Desafios e Perspectivas. Entrevista com Ignacio Martín-Baró 1

 

Social Psychology from Central America: Challenges and Perspectives. Interview with Ignacio Martín-Baró

 

Psicología Social desde Centroamérica: Retos y Perspectivas. Entrevista con Ignacio Martín-Baró

 

Ignacio Dobles Oropeza*, I; Marcela Pereira Rosa**, II
I Universidade da Costa Rica - UCR, San José, Costa Rica
II Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência

 

 

Apresentação

A obra de Ignacio Martín-Baró representa um inegável marco na psicologia latino-americana. Padre jesuíta formado em filosofia, teologia e psicologia, Martín-Baró apresentou sempre uma profunda preocupação com a realidade dos povos latino-americanos e a premente tarefa de colocar as ciências sociais a serviço da transformação social e da libertação das maiorias populares. Desde a década de 1970, seus esforços por edificar uma Psicologia da Libertação significaram a busca por uma reconstrução teórica e metodológica da Psicologia a partir de um profundo exercício crítico.

Apesar da relevância de suas contribuições, a difusão dos estudos de Martín-Baró ainda é bastante reduzida na psicologia brasileira e são poucos os textos disponíveis em português. Um importante esforço de tradução de sua obra no Brasil vem sendo feito por Fernando Lacerda Jr. 2, resultando na publicação de importantes textos de Martín-Baró na forma de artigos, capítulos e livros 3. Buscando contribuir com a necessária difusão da obra baroniana no Brasil, apresentamos aqui a tradução de uma entrevista feita com Ignacio Martín-Baró pelo psicólogo costarriquenho Ignacio Dobles Oropeza.

Ignacio Dobles é professor e investigador da Escola de Psicologia da Universidade da Costa Rica e colaborou com Martín-Baró 4 até o ano de 1989, quando o jesuíta foi assassinado pelo exército salvadorenho na Universidade Centro-americana "José Simeon Cañas" (UCA). Tendo compartilhado com Martín-Baró projetos investigativos e de articulação acadêmica, Dobles tem contribuído com a sistematização e difusão da obra baroniana na América Latina.

A entrevista aqui apresentada foi realizada no ano de 1987, em meio à aguda situação de guerra e intervenção na América Central, e publicada originalmente na Revista Costarricense de Psicología. Como informado por Ignacio Dobles, houve um atraso na publicação do número da referida revista. Embora conste originalmente que a publicação data de 1986, ela só foi publicada no ano seguinte, o que permitiu a inclusão da entrevista realizada em 1987.

A entrevista traz importantes apontamentos realizados por Ignacio Martín-Baró. Nas respostas por ele oferecidas encontramos sínteses primordiais acerca de conceitos-chave e proposições centrais de seu pensamento, o que faz dela um importante material de estudo para aqueles que buscam compreender e apreender as proposições baronianas e, como o fez o autor, colocar a Psicologia em um horizonte de compromisso crítico com as maiorias populares.

Marcela Pereira Rosa e Ignacio Dobles Oropeza

Introdução

Falar da obra do psicólogo social salvadorenho Ignacio Martín-Baró, que teve uma importante incidência em nosso meio, é referir-se ao processo de tentar construir uma psicologia que dê resposta aos grandes desafios que enfrentam nossos povos centro-americanos na atual conjuntura crítica de sua história.

Dr. Ignacio Martín-Baró trabalha na Universidade Centro-Americana "José Simeón Cañas" em San Salvador, é Doutor em Psicologia Social pela Universidade de Chicago, e se caracterizou por um importante nível de produção acadêmica e profissional, incursionando em campos que têm sido comumente alheios à ótica e à ação do psicólogo por não se enquadrar no "encargo social" outorgado à nossa disciplina pelos guardiões do poder estabelecido.

Seu livro mais conhecido em nosso meio é "Ação e Ideologia: Psicologia Social a partir da América Central" 5, que é a primeira tentativa que conhecemos de um psicólogo social centro-americano de definir a disciplina, sua história, seu conteúdo e propósitos a partir da ótica das grandes maiorias em nossos países, caracterizados pela desigualdade econômica e social e o desfrute do poder por parte de minorias, assim como por tentativas de transformação social com o olhar voltado para o desenvolvimento integral do homem centro-americano. Numerosos artigos e publicações referentes à palpitante realidade de El Salvador, assim como uma preocupação constante por definir conceitualmente a incursão possível do profissional em Psicologia no âmbito dos grandes problemas políticos e sociais, são elos na busca da construção de uma "psicologia centro-americana", não como espécie de "regionalismo acadêmico", mas como redefinição, reconceitualização da bagagem teórica e metodológica da disciplina psicológica em função da desideologização e do compromisso crítico do profissional, do qual nos fala Ignacio Martín-Baró na entrevista que apresentamos na sequência. Esta tarefa, não isenta de contradições, é necessariamente uma tarefa coletiva.

Temos orgulho de poder apresentar o pensamento de Martín-Baró, problematizando o que tem sido sua própria trajetória e o que ele considera serem as tarefas da Psicologia centro-americana sob a forma de uma entrevista que esperamos servir para motivar a discussão, a reflexão. Estamos seguros de que Martín-Baró, sempre preocupado por estimular o debate e a produção dos psicólogos centro-americanos, compartilharia do nosso desejo de que esta entrevista se converta em ferramenta que nos coloque novas perguntas, novos desafios.

Sua obra "Ação e Ideologia: Psicologia Social a partir da América Central" teve uma importante influência na psicologia social costarriquenha. Há vários anos de sua publicação original, como você avalia a tarefa de construir uma psicologia social a partir da América Central? Podemos falar do desenvolvimento de uma psicologia social centro-americana?

Eu acredito que, se meu livro Ação e Ideologia (1983) teve algum influxo na Costa Rica e em outros países latino-americanos, isso se deve a que ele responde a uma necessidade sentida e dá expressão a um movimento. A necessidade é obviamente a de uma psicologia que confronte nossos problemas e que o faça a partir das aspirações históricas de nossos povos. O movimento é o de um bom número de psicólogos latino-americanos e, concretamente, da América Central, que há anos vêm se esforçando em sua reflexão e, sobretudo, em sua práxis, por elaborar formas próprias de fazer psicologia, capazes precisamente de responder a nossos problemas e de canalizar as justas aspirações de nossos povos. Nesse sentido, eu gosto de pensar em minha obra como um produto – um entre outros – de um grande coletivo latino-americano, no qual sem dúvida vários psicólogos costarriquenhos ocupam um importante lugar. Sirva como exemplo o trabalho de Mirta González 6, que me parece louvável sob muitos aspectos. "Ação e Ideologia" é um passo e, para alguns, pôde servir de catalizador. Para mim, concretamente, me deu a oportunidade de entrar em contato com muitos colegas latino-americanos cujo trabalho, dada a precariedade de nossa comunicação científica, me era desconhecido. Mas já em 1972 eu havia escrito um pequeno livro, "Psicodiagnóstico da América Latina" 7, que expressava posturas similares, ainda que a partir de uma perspectiva predominantemente psicanalítica. E esse trabalho me havia sido em boa medida inspirado por quem me antecedeu na cátedra de psicologia social na Universidade Centro-americana de San Salvador, o Dr. Jesús Arroyo 8.

Localizar meu trabalho no contexto de um quefazer mais amplo e coletivo representa um início de resposta à pergunta se se está construindo uma psicologia social centro-americana. Há três índices significativos de que estão ocorrendo os primeiros passos nesta tarefa. Antes de tudo, há uma clara vontade de enfrentar problemas cruciais de nossa situação, tenham ou não sido tratados pela psicologia social dominante. Muito de nosso trabalho ainda é definido pela lógica dos modelos desenvolvidos nos Estados Unidos, tanto pelos problemas que esses modelos pretendem explicar, como pela maneira peculiar de abordá-los. Contudo, cada vez é maior o número de trabalhos propostos a partir da realidade centro-americana. O próprio estudo de vocês sobre a dívida externa na Costa Rica 9 é um bom exemplo do que pretendo dizer. Em segundo lugar, se observa uma crescente independência teórica e metodológica dos psicólogos centro-americanos com respeito aos cânones científicos impostos pelos grandes centros do poder acadêmico, e isso não por um desejo independentista, que seria ridículo cientificamente falando, mas por uma compreensão mais clara do que são as ciências sociais e os limites do positivismo. Finalmente, ocorre entre os psicólogos centro-americanos uma crescente escolha de servir às causas das maiorias oprimidas de nossos povos e suas lutas históricas de libertação, o que exige um compromisso que obriga a reformular os pressupostos mesmos de nosso saber teórico e prático. Como tenho dito em vários lugares, o "a partir de quem" condiciona essencialmente o "quê" e o "como". E somos cada vez mais os que queremos fazer psicologia social a partir das maiorias populares da América Central. Que o consigamos ou não, que sejamos totalmente consequentes ou não, este é outro problema.

Há dois fatores que têm ajudado de modo muito fundamental a dar impulso à psicologia social centro-americana. Por um lado, a crise que acometeu a psicologia social dominante há quase duas décadas 10. Em minha opinião, esta crise não regrediu ou, pelo menos, não o fez de maneira satisfatória; a corrente central de psicólogos sociais, sob a égide norte-americana, retomou sua atividade como se nada tivesse acontecido. Porém, a crise abriu uma brecha que pode ser aproveitada pelos psicólogos sociais "da periferia", concretamente pelos latino-americanos, para tomar distância frente a uma forma de pensar e fazer psicossociais considerada até então como inquestionável. Por outro lado, as circunstâncias atuais de nossos países, a crise que eclodiu no istmo centro-americano, prontamente nos colocou frente a situações limites, tanto pessoais como coletivas, que nos têm retirado de nosso quefazer rotineiro e tem nos obrigado a definir novamente nosso aporte científico e profissional a partir da história de nossos povos.

Continuando com o anterior, que categorias teóricas básicas você considera que devem ser desenvolvidas pela psicologia social, especialmente no contexto centro-americano?

Na medida em que a teoria deve estar vinculada a uma práxis psicossocial, as únicas categorias que de antemão teriam que ser esclarecidas são aquelas mesmas que definem a práxis do psicólogo social: o que é uma ciência social, o quefazer do cientista social, a historicidade de seu conhecimento, o enraizamento classista de sua epistemologia. Contudo, já a partir de minha própria experiência, sinto a necessidade de elaborar uma boa quantidade de conceitos, começando pelo de ideologia, que define o objeto específico da psicologia social. Fernando González Rey 11, um psicólogo cubano, nos lembra em seus valiosos trabalhos sobre a necessidade de recuperar a categoria de personalidade como o nível mais complexo de regulação psíquica, no qual se articulam as forças sociais que determinam o ser humano. No fundo, me resulta difícil pensar em alguma categoria significativa em psicologia que não deva ser reformulada para retirá-la de seu viés hedonista e homeostático. É claro que é possível que alguns conceitos não resistam à prova e tenhamos que descartá-los. Mas, novamente, isso deve ficar sujeito ao veredito da práxis histórica.

Pessoalmente, a partir de meu trabalho em El Salvador, estou tentando elaborar algumas explicações teóricas sobre duas áreas críticas de nossa realidade: a da política e a da religião, significativamente dois âmbitos muito pouco ou nada explorados pela psicologia latino-americana até apenas alguns anos atrás. Uma categoria fundamental em ambos os casos é a de povo. O que é psicossocialmente o popular? Quem, como e por que é povo a partir de um ponto de vista psicossocial? Outra importante categoria é a de libertação, na qual, novamente, se juntam o terreno político e o religioso. Esta categoria requer uma reformulação do conceito clássico de alienação, que nós psicólogos tendemos a despojar de seu enraizamento histórico e social ou mais bem a descartar de fato de nossa reflexão. A lista poderia ser interminável, porque são mais as perguntas do que as respostas das quais dispomos ou, pelo menos, de que eu disponho, em particular à luz dos processos que se vivem em um país como El Salvador, convertido, para o bem ou para o mal, em um laboratório da história.

Como evitar, neste processo, que essas categorias e suas derivações metodológicas caiam em esquemas meramente interacionistas?

Se o único perigo fosse o do interacionismo, sobretudo determinadas formas de interacionismo, não haveria muito com o que se preocupar. O interacionismo representa já um grande passo sobre a maior parte dos esquemas que são empregados em nossos textos de introdução à psicologia. Pablo Fernández Christlieb 12, um psicólogo social mexicano de um grande rigor conceitual, propôs um interessante modelo para a análise psicopolítica como momento da análise psicossocial, elaborado fundamentalmente na perspectiva do interacionismo simbólico. Uma apresentação desse modelo aparecerá em um livro 13 sobre psicologia política latino-americana que estou editando com Maritza Montero 14, e que esperamos poder apresentar no próximo congresso da Sociedade Interamericana de Psicologia 15, em Havana. O perigo que espreita nosso trabalho na psicologia está sobretudo no onipresente reducionismo homeostático e hedonista, tão vinculado ao positivismo individualista.

Porém, um erro tão grave como a queda no reducionismo seria a rigidez intelectualista, quer dizer, o não tentar avançar enquanto não se tenha atado todos os cabos teóricos e previsto todos os perigos. Isso equivaleria à paralisia e, na prática, a um abandono do compromisso histórico com as exigências das lutas populares em virtude de um escrúpulo razoável, mas não absoluto. Não pretendo negar a necessidade de um trabalho teórico sério e sistemático; se há algo que nos possa fazer dano é o pretender encobrir a superficialidade com os "slogans" políticos, ou a análise crítica com os dogmas ideológicos. Mas tão nocivo como o dogmatismo ignorante é a paráfise 16 intelectualista, o medo do equívoco e do erro.

Dito isso, eu acredito que a melhor maneira de evitar qualquer forma de reducionismo na psicologia social centro-americana é sua própria historicização, quer dizer, mantê-la permanentemente vinculada aos processos populares. Nada mais necessário para uma ciência social do que submeter-se ao veredito contínuo da história dos povos. Deixemos que seja a própria práxis popular a decidir sobre a validez de nossos conceitos e modelos, sobre sua utilidade não apenas para explicar a realidade existente, mas sobretudo para transformá-la em benefício das maiorias oprimidas e de seu projeto de libertação histórica.

A categoria de ideologia tem sido fundamental no desenvolvimento de sua obra. Como você a define? Como suas implicações psicológicas e psicossociais podem ser estudadas?

Sou consciente de que minha conceitualização da ideologia não é muito "ortodoxa", nem para os funcionalistas, nem para os marxistas, ainda que tenha mais destes do que daqueles. Eu já dizia antes que se trata de uma categoria que requer uma melhor elaboração e com isto não pretendo prevenir-me. Para mim a ideologia é uma leitura da realidade, uma interpretação do mundo, que se dá na prática cotidiana, ou seja, na maneira como os grupos e as pessoas vivem e atuam. Essa leitura ou interpretação é, portanto, primeiro existencial, ou seja, é vivida pelas pessoas e só então temática, ou seja, elaborada como visão de mundo. Mas é, além disso, uma leitura determinada pelas peculiaridades da luta de classes em cada sociedade concreta. Trata-se, por consequência, de uma leitura realizada a partir de certos interesses sociais e históricos, quer sejam os da própria classe, quer sejam os das classes dominantes, quer sejam uma mescla de uns e outros. Porque a ideologia não é uma leitura definida mecanicamente, mas reflete as complexidades próprias de cada localização em uma determinada formação social e em um determinado momento histórico.

Esta ideia da ideologia como estrutura de interpretação, na qual e pela qual as pessoas vivem sua relação com o mundo, a tomei de Althusser 17, independentemente de que responda ou não adequadamente ao seu pensamento. Creio que me afasto dele quando atribuo aos grupos e pessoas um papel muito mais ativo na articulação concreta da ideologia do que, ao que me parece, ele lhes atribui. Em qualquer caso, as pessoas e os grupos não são puros fantoches nas redes da ideologia ou, pelo menos, não o são sempre nem necessariamente, senão que podem chegar a ser verdadeiros atores, capazes de modificar suas relações com o mundo através de uma tomada de consciência práxica. O camponês salvadorenho, que se envolve em um trabalho de conscientização religiosa, frequentemente termina com uma clara consciência política que o leva a participar organizadamente dos movimentos populares.

Esta compreensão implica que toda interpretação do mundo é ideológica e, por consequência, que não só há ocultamento e justificativa em determinadas ideologias, mas em todas. Para mim, o problema não está aí, mas no grau e caráter de cada ocultação, da "falsa consciência". Mas me parece ingênuo pretender que, em uma sociedade submersa na luta de classes, como a nossa, exista alguma abordagem da realidade que esteja livre de todo influxo de interesses parciais, ou seja, uma leitura "acabada" ou "pura" da realidade. Nada mais ideologizado que o suposto "fim das ideologias", mas isso talvez tanto por um lado como pelo outro. Por isso o cientista social deve estar sempre disposto a revisar suas explicações e que a práxis histórica o leve a um nível superior de interpretação da realidade. Suponho que esta visão constitui uma verdadeira "heterodoxia"; em todo caso, sou consequente e aceito que também ela é ideológica.

Com respeito a qual seria a melhor maneira para estudar as implicações psicossociais da ideologia, creio que o método de investigação-ação, sobretudo tal como o coloca Fals Borda 18, resulta muito adequado. A maioria de psicólogos sociais latino-americanos, sobretudo aqueles mais preocupados com os problemas de nossos países, tende a tomar cada vez mais distância em relação ao paradigma experimental e a utilizar com mais frequência os métodos de investigação chamados qualitativos. Quanto a temas de investigação, me parece que é essencial desentranhar o caráter ideológico daquilo que em cada situação constitui o sentido comum, ou seja, os pressupostos inquestionados de nosso quefazer cotidiano, de nossas rotinas.

Passando a outra ordem de coisas, como você entende hoje em dia o papel do psicólogo nos países centro-americanos? A seu juízo, quais são suas tarefas fundamentais no plano da intervenção psicossocial?

Em outubro de 1985 pronunciei uma conferência na Universidade da Costa Rica sobre "o papel do psicólogo no contexto centro-americano", que foi publicada no Boletín de Psicología (n. 17, 1985, p. 99-112) editado pelo Departamento de Psicologia e Educação da Universidade Centro-americana de San Salvador 19. Mais recentemente, em novembro de 1986, pronunciei outra conferência na Universidade de Porto Rico, campus de Río Piedras, intitulada "Para uma Psicologia da Libertação", também reproduzida no Boletín de Psicología (n. 22, 1986, p. 219-231) 20. Ambas conferências oferecem uma resposta à sua pergunta e revelam o que pode ter havido evolução em minha maneira de pensar no lapso de um ano.

Sintetizando muito brevemente, acredito que a definição do papel do psicólogo nos países centro-americanos (e talvez em qualquer país) deva ser feita em função de uma análise o mais precisa possível sobre os problemas mais importantes que afetam nossos povos e de uma tomada de consciência sobre o que a psicologia pode e deve fazer em sua resolução. É necessário, portanto, começar com um diagnóstico da realidade nacional, diagnóstico que, para ser certeiro, deve chegar às raízes estruturais dos problemas, mas, para ser útil, deve chegar até a especificidade das formas concretas pelas quais os problemas se apresentam em cada situação. Daí que o diagnóstico deva realizar-se em cada país. Eu não duvido, por exemplo, que existam muitos aspectos comuns entre a situação estrutural de El Salvador e a de Costa Rica, provavelmente muito mais do que geralmente se aceita, entretanto, me parece evidente que existem também notórias diferenças entre ambos os países e que inclusive as formas conjunturais como aparecem os mesmos problemas estruturais são muito distintas.

Uma vez diagnosticados os problemas, é preciso ver as possibilidades objetivas da psicologia. Não acho que se deva ter muitas ilusões, por exemplo, sobre o que a psicologia pode fazer para resolver a guerra civil que há sete anos assola El Salvador. Contudo, não entendo como se possa ser hoje em meu país um bom psicólogo – e digo tanto no sentido científico, como no profissional e ético – sem tomar a guerra como marco fundamental de referência para o próprio quefazer. É lamentável ver como a psicologia tem contribuído para refinar e potencializar certos processos bélicos, às vezes com uma tremenda inconsciência vinculada ao tecnocratismo; mas também é admirável observar o trabalho de alguns psicólogos que, em condições inclusive heroicas, contribuem, não apenas para amenizar os efeitos da guerra, mas para propiciar uma verdadeira psicologia da paz. Por isso eu tenho afirmado que a psicologia deve ter como horizonte de seu quefazer a conscientização, entendida tanto em sua vertente do saber cognoscitivo das pessoas, como em sua vertente do saber práxico, que permite aos povos tomar as rédeas de seu próprio destino histórico. A desalienação individual tradicionalmente propiciada pelos psicólogos deve estender-se a uma desalienação grupal, assim como o ideal de adaptação apresentado ontem como critério de saúde mental deve ser substituído por um ideal de realização coletiva (e não apenas individual, como geralmente se postula). Nas atuais circunstâncias centro-americanas, esta conscientização serve de veículo para um processo de libertação histórica, segundo o qual não há autêntica liberdade pessoal sem liberdade coletiva, mas não haverá liberdade enquanto não sejam transformadas radicalmente aquelas estruturas – que são sociais, ainda que também pessoais – que aprisionam nossos povos na opressão e na injustiça.

Há três tarefas que me parecem de particular importância e urgência, e que acredito que devam ser desenvolvidas em todos os países centro-americanos e talvez latino-americanos. Em primeiro lugar, estaria isso que há anos Guzmán-Böckler 21 chamou de "desmistificação e reencontro da memória coletiva". Temos que colaborar com a ruptura com o presentismo de nossas formas de vida, que quebra nossa identidade histórica e bloqueia qualquer projeto nacional. A recuperação da memória coletiva deve servir como veículo de conscientização e como instrumento de luta popular. Em segundo lugar, a psicologia deve contribuir com a desideologização da experiência cotidiana. É claro, de acordo com a visão de ideologia que eu tenho, uma completa desideologização requereria a eliminação da divisão de classes sociais, o que não deixa de ser um ideal bastante utópico, ainda que devamos tender a ele. Contudo, o que pretendo afirmar é a necessidade de que os grupos e pessoas possam formalizar sua experiência de forma mais imediata, espontânea e autêntica, o que exige desmontar o clima de mentira social e de terrorismo ideológico em que vivem nossos povos. O discurso dominante não apenas nega os aspectos mais cruciais da realidade, mas o "golpe cultural" proveniente dos Estados Unidos obstaculiza todo o esforço por elaborar uma cultura própria, popular. Precisamente a recuperação da memória histórica se enlaça com esta recuperação da própria experiência presente, e uma e outra tornam possível a definição do futuro. A última tarefa que considero crucial em nossos países é a potencialização das virtudes populares. Resulta ofensivo que, na hora de buscar modelos de identificação, ideais humanos, de uma ou outra maneira recorramos a exemplos de fora – científicos, políticos, culturais, empresariais. Se estivéssemos um pouco mais atentos à realidade de nossos países, poderíamos ver as profundas qualidades que têm nossos povos e que lhes têm permitido não apenas sobreviver em circunstâncias terríveis, mas emergir com força e dignidade no presente histórico. Uma importantíssima tarefa da psicologia deve ser o resgate dessas virtudes populares – essa inteligência, solidariedade e fé no ser humano – e sua potencialização através do quefazer educativo em seu sentido mais amplo.

Você elaborou nesse mesmo terreno o conceito de "compromisso crítico" que pode assumir o psicólogo frente aos processos de sua sociedade. Como você entende isso? Como fazer para canalizar o conhecimento gerado pelo trabalho psicológico de tal maneira que ele não seja utilizado pelos "guardiões" do "sentido comum" opressor?

O compromisso crítico supõe, antes de tudo, a aceitação de que as ciências sociais não são assépticas, mas envolvem opções de valor que não simplesmente entram no momento de aplicar nosso conhecimento com uma ou outra finalidade, mas configuram intrinsecamente o mesmo saber. Neste sentido, a perspectiva que se adote e o lugar epistemológico a partir do qual se atua condicionam substancialmente o que se vê e o que se faz, e isso com independência da consciência que o próprio cientista possa ter. Por isso, a objetividade do cientista não está em buscar uma assepsia absoluta ("a torre de marfim"), uma imparcialidade total, sempre ilusória; a objetividade científica reside mais em conhecer os próprios condicionamentos e em tomar partido por aqueles valores nos quais se acredita, sabendo que se trata de uma opção parcial e limitada. A objetividade frente à tortura, por exemplo, não pode consistir em não tomar partido frente a ela, mas em tomar consciência de como nossa posição de classe frequentemente nos torna cegos frente àquelas formas de tortura que favorecem nossos interesses de classe. Isso é o que ocorre à senhora Kirkpatrick 22 quando condena o regime "totalitário" da Nicarágua, mas não condena o "autoritarismo" de Pinochet.

Como já disse antes, eu acredito que o compromisso do cientista social na América Central hoje deve ser com as aspirações e lutas das maiorias populares, e isso, tanto por um imperativo de lógica científica – elas têm mais razão –, quanto por um imperativo ético – elas têm melhor razão. Mas acredito que o compromisso deve ser crítico. Não se deve ser ingênuo frente às limitações históricas que adquirem todos aqueles grupos e partidos que lutam pelo povo e pretendem representar seus interesses. Seria um erro de puritanismo acadêmico não vincular o compromisso a nenhuma instância histórica concreta devido a que toda instância é talvez parcial e imperfeita; mas seria um erro não menos grave submeter-se de forma incondicionada às exigências da disciplina partidarista. Eu acho que a melhor contribuição que o cientista social pode fazer lhe exige uma postura crítica, comprometida sim, mas sem perder a capacidade de criticar. Não há nada mais castrante, menos científico e, em última instância, mais empobrecedor para os próprios movimentos populares que a submissão a uma suposta ortodoxia, qualquer que seja ela. Por isso considero que o método de investigação-ação constitui uma das formas mais originais por meio das quais o cientista social pode se comprometer criticamente com os movimentos populares.

Não há, é claro, nenhuma garantia de que o conhecimento não vai terminar nas mãos das classes opressoras. Mas é preciso dar-se conta de que atualmente o conhecimento é quase "propriedade privada" dessas classes. O fato de que o tenha que compartilhar, e compartilhar subsidiariamente, já é uma mudança importante. Contudo, o fundamental reside em que o conhecimento gerado a partir de um compromisso crítico é um conhecimento em geral pouco útil para as classes dominantes, já que é um saber surgido a partir de outros interesses. Sem sermos ingênuos, nem ignorar a grande capacidade de recuperação do sistema estabelecido, é importante sublinhar que há conhecimentos de difícil digestão para aqueles que se encontram no poder, conhecimentos, na verdade, subversivos, que preferem desconhecer, negar ou descartar.

Por último, gostaríamos de perguntar sobre sua posição em torno da relação da psicologia e, em particular, da psicologia social com outras disciplinas.

Um dos princípios epistemológicos básicos consiste em que a verdade se encontra no todo mais do que nas partes, e que o mais concreto é o mais aparente, mas não o mais real. Neste sentido, a segmentação da realidade constitui, analiticamente, uma perigosa forma de abstração, mas que deve ser dialeticamente superada. A vida humana, os problemas sociais, não estão segmentados e, portanto, tampouco podem estar sua compreensão e solução. A própria psicologia social nasce como uma "ciência híbrida", forçada por uma série de problemas que são da psicologia, mas também da psicologia e da antropologia. O caráter "fronteiriço" da psicologia social deve sensibilizar-nos para compreender a necessidade da cooperação interdisciplinar mais estreita. Por outro lado, me ocorre com frequência encontrar explicações mais próprias da psicologia social nas revistas de sociologia ou de ciências políticas que nas de psicologia, e aprender mais nos romances de García Márquez 23 ou de Vargas Llosa 24 do que nos textos de psicologia social, que tendem a repetir as mesmas ideias com uma consistência digna de melhor causa. Concretamente, eu penso que os psicólogos sociais devemos nos mover com familiaridade nas análises da antropologia e da sociologia, da ciência política, da história e da filosofia. Certamente, não acredito que ninguém pense hoje em dia que a superespecialização constitui um ideal e, assim como o avanço das ciências requer uma limitação sobre o que se pode ser competente, assim devemos estimular muito mais aquelas formas de trabalho que nos permitam abordar integralmente os problemas.

Caracas, 3 de março de 1987.

 

 

Endereço para correspondência
Ignacio Dobles Oropeza
Escuela de Psicología - Monterrey, San Pedro de Montes de Oca, San José, Costa Rica
Endereço eletrônico: doblesignazio@gmail.com
Marcela Pereira Rosa
Avenida Professor Mello de Morais, 1721, bloco A, sala 103, Cidade Universitária, São Paulo - SP, Brasil. CEP 05508-030
Endereço eletrônico: marcela.pereirar@gmail.com

Recebido em: 23/09/2020
Reformulado em: 13/11/2020
Aceito em: 13/11/2020

 

 

Notas

* Psicólogo, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura, professor da Escola de Psicologia da Universidade da Costa Rica.
** Psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.
1 Entrevista realizada com Ignacio Martín-Baró por Ignacio Dobles Oropeza. Originalmente publicada na Revista Costarricense de Psicología. Dobles Oropeza, I. (1986). Psicología Social desde Centroamerica: Retos y perspectivas: Entrevista con el Dr. Ignacio Martín-Baró. Revista Costarricense de Psicología, (8-9), 71-76.
2 Fernando Lacerda Júnior (1982 –) – psicólogo, pesquisador e professor na Universidade Federal de Goiás, vem realizando um importante trabalho de estudo crítico, sistematização e tradução da obra de Ignacio Martín-Baró.
3 Cf. Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: Estudos psicossociais (F. Lacerda Jr. Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. Na apresentação do livro, Lacerda Jr. menciona os textos já traduzidos de Martín-Baró para o português.
4 Cf. Dobles Oropeza, I. (2016). Ignacio Martín-Baró: Una lectura en tiempos de quiebres y esperanzas. San José, Costa Rica: Editorial Arlekín. No livro, Dobles narra episódios de seus encontros e intercâmbios com Ignacio Martín-Baró.
5 Martín-Baró, I. (1983). Acción e ideología: Psicología Social desde Centroamérica. San Salvador, El Salvador: UCA Editores (N.T.).
6 Mirta González Suárez (1948 –) – escritora, psicóloga e professora emérita na Universidade da Costa Rica (N.T.).
7 Martín-Baró, I. (1972). Psicodiagnóstico de América Latina. San Salvador, El Salvador: UCA Editores (N.T.).
8 Jesús Arroyo Lasa – Antropólogo e professor de psicologia na Universidade Centro-americana "José Simeón Cañas". Dobles Oropeza (2016, p. 53) (cf. nota 4) afirma que Arroyo Lasa foi uma importante figura na trajetória intelectual de Martín-Baró. Há um texto de Lasa publicado em 1971 em que ele recorre a conceitos da psicopatologia para tratar da dominação capitalista, movimento também desenvolvido por Martín-Baró em seu livro "Psicodiagnóstico da América Latina" (N.T.).
9 Dobles Oropeza, I. et al. (1986). Representaciones sociales sobre el endeudamiento externo de estudiantes universitarios costarricenses. Boletín de la AVEPSO, 9(3), 25-36. (N.T.).
10 Martin-Baró refere-se ao que ficou conhecido como "crise da psicologia social" nas décadas de 1960-1970 (N.T.).
11 Fernando González Rey (1949 – 2019) – psicólogo e educador cubano, foi professor na Faculdade de Psicologia da Universidade de Havana. Em 1995 chegou ao Brasil e de 2000 até o ano de seu falecimento foi Professor Titular e Pesquisador do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), sendo reconhecido internacionalmente pelos seus trabalhos na Psicologia Histórico-Cultural (N.T.).
12 Pablo Fernández Christlieb (1954 –) – psicólogo social mexicano, professor na Universidade Nacional Autônoma do México. (N.T.)
13 Montero, M. (1987). (Coord.). Psicología Política Latinoamericana. Caracas: Panapo (N.T.).
14 Maritza Montero (1939 –) – psicóloga social venezuelana e professora da Universidade Central da Venezuela, é amplamente reconhecida na América Latina por seus trabalhos e pesquisas na área de Psicologia Comunitária e Psicologia Política. Foi uma das fundadoras da Associação Venezuelana de Psicologia Social (Avepso) (N.T.).
15 XXI Congresso Interamericano de Psicologia, realizado em 1987 em La Habana, Cuba (N.T.).
16 "Paráfise" é um conceito da botânica, que designa o filete estéril que acompanha os elementos produtores de esporos nos cogumelos. Ao empregá-lo aqui em um sentido figurado, Martín-Baró parece chamar atenção para a esterilidade da produção intelectual que teria medo do equívoco (N.T.).
17 Louis Althusser (1918 – 1990) – filósofo francês marxista, amplamente conhecido por seu Marxismo Estrutural (N.T.).
18 Orlando Fals Borda (1925 - 2008) – pesquisador e sociólogo colombiano, um dos fundadores da pesquisa-ação participante (N.T.).
19 Possivelmente esse seja o trabalho mais conhecido e citado de Ignácio Martín-Baró no Brasil. Há uma tradução para o português feita por Yayá M. de Andrade e revisada por Oswaldo H. Yamamoto e José Q. Pinheiro, publicada em 1996. Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia (Natal), 2(1), 2-27. doi:10.1590/S1413-294X1997000100002 (N.T.).
20 Há uma tradução desse texto para o português feita por Raquel Guzzo e Fernando Lacerda Jr., publicada no Brasil em 2011. Martín-Baró, I. (2011). Para uma Psicologia da Libertação. In R.S.L. Guzzo & F. Lacerda Jr. (Orgs.), Psicologia Social para a América Latina: O resgate da Psicologia da Libertação (pp.181-197). Campinas, SP: Alínea. (N.T.).
21 Carlos Guzmán-Böckler (1930 – 2017) – sociólogo guatemalteco. (N.T.)
22 Jeane Kirkpatrick (1926 – 2006) – embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas durante o governo de Ronald Reagan. Afirmava que os estados socialistas eram regimes totalitários, enquanto as ditaduras militares implantadas na América Latina eram "apenas" autoritárias, a fim de defender e justificar a política externa dos EUA de apoio a essas ditaduras (N.T.).
23 Gabriel García Marquez (1927 – 2014) – jornalista e escritor colombiano, considerado o maior representante do realismo mágico da literatura latino-americana (N.T.).
24 Jorge Mario Pedro Vargas Llosa (1936 –) – jornalista e escritor peruano, importante ensaísta e romancista latino-americano (N.T.).

 

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