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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2021.62734 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. 03. doi:10.12957/epp.2021.62734
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

 

Repercussões do Acesso às Redes Sociais em Pessoas com Diagnóstico de Anorexia Nervosa

 

Raquel Borges de Moraes*, I; Manoel Antônio dos Santos**, II; Carolina Leonidas***, I
I Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, Uberaba, MG, Brasil
II Universidade de São Paulo - USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

A exposição prolongada às mídias digitais tem sido associada ao desenvolvimento de mudanças no comportamento alimentar, mediante a internalização de padrões de magreza idealizada. Este estudo teve por objetivo investigar a percepção de pessoas com diagnóstico de transtornos alimentares acerca da influência do acesso às redes sociais virtuais sobre a precipitação e/ou manutenção de seus sintomas. Participaram seis mulheres e um homem, com diagnóstico de anorexia nervosa, que se encontravam em tratamento em um serviço especializado de um hospital universitário do interior paulista. Utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada aplicada individualmente e audiogravada. Os dados foram transcritos e organizados em três categorias temáticas: Reverberações emocionais do acesso indiscriminado aos conteúdos online;Tomada de consciência acerca da influência perniciosa da mídia; Internet como fonte privilegiada de acesso à informação de qualidade duvidosa. Analisados com o amparo da literatura específica da área, os resultados indicaram que as redes sociais estimulam a busca obsessiva de um corpo idealizado, associando-o com a obtenção de felicidade e satisfação pessoal sob a égide do individualismo. Espera-se que os achados incentivem um olhar crítico acerca dos conteúdos disseminados indiscriminadamente no universo virtual.

Palavras-chave: distúrbios do ato de comer, anorexia nervosa, comportamento alimentar, rede social, internet.


 

Repercussions of Accessing Social Networks on People Diagnosed with Anorexia Nervosa

 

ABSTRACT

The prolonged exposure to digital media has been associated with the development of changes in eating behavior, through the internalization of idealized leanness patterns. This study aimed to investigate the perception of people diagnosed with eating disorders about the influence of access to virtual social networks on the precipitation and/or maintenance of their symptoms. Six women and one man, diagnosed with anorexia nervosa, participated in the study. They were being treated in a specialized service of a university hospital in a municipality in Brazil (Ribeirão Preto). A semi-structured interview script was used, applied individually and audiotaped. The data were transcribed and organized into three thematic categories: Emotional reverberations of indiscriminate access to online content; Awareness of the pernicious influence of the media; Internet as a privileged source of access to information of doubtful quality. Analyzed with the support of specific literature in the area, the results indicated that social networks stimulate the obsessive search for an idealized body, associating it with obtaining happiness and personal satisfaction under the aegis of individualism. The findings are expected to encourage a critical look at the contents indiscriminately disseminated in the virtual universe.

Keywords: eating disorders, anorexia nervosa, feeding behavior, social network, internet.


 

Repercusiones del Acceso a Redes Sociales en Personas Diagnosticadas con Anorexia Nervosa

 

RESUMEN

La exposición prolongada a los medios digitales se ha asociado con el desarrollo de cambios en el comportamiento alimenticio, a través de la internalización de los patrones de delgadez idealizados. El objetivo de este estudio fue investigar la percepción de las personas diagnosticadas con trastornos alimentarios sobre la influencia del acceso a las redes sociales virtuales en la precipitación y/o el mantenimiento de sus síntomas. Participaron seis mujeres y un hombre, diagnosticados con anorexia nerviosa, que estaban bajo tratamiento en un servicio especializado de un hospital universitario en un municipio del interior de Brasil (Ribeirão Preto). Se utilizó un guion de entrevista semiestructurado, aplicado individualmente y audiografiado. Los datos se transcribieron y organizaron en tres categorías temáticas: Reverberaciones emocionales del acceso indiscriminado a contenidos en línea; Conciencia de la influencia perniciosa de los medios de comunicación; Internet como fuente privilegiada de acceso a información de dudosa calidad. Analizados con el apoyo de la literatura específica del área, los resultados indicaron que las redes sociales estimulan la búsqueda obsesiva de un cuerpo idealizado, asociándolo con la obtención de felicidad y satisfacción personal bajo la égida del individualismo. Se espera que los hallazgos alienten una mirada crítica a los contenidos difundidos indiscriminadamente en el universo virtual. diseminado indiscriminadamente en el universo virtual.

Palabras clave: trastornos de la ingestion de alimentos, anorexia nervosa, conducta alimentaria, red social, internet.


 

 

Os seres humanos sempre se comunicaram por meio de redes – presenciais ou à distância, por meio de correio, telégrafo, linha telefônica, fax e, no contemporâneo, pelas redes sociais virtuais, entre outros meios que foram aperfeiçoados no decorrer do tempo. Porém, com o surgimento da internet, as redes (ou mídias) sociais ganharam maior relevância e seu uso foi intensificado no ambiente virtual. Redes sociais podem ser configuradas por pessoas ou organizações que compartilham valores e objetivos comuns, com ferramentas reguladas pelo princípio básico de compartilhar e receber informações, constituindo grupos de interesse. Essas redes estão cada vez mais presentes na vida de jovens e adultos, que recorrem a elas para ter acesso a informações, opiniões e conteúdos diversificados (Fernandes, 2011).

Antes do surgimento da internet, adquirir informações e dicas do que e como fazer para manter um corpo em conformidade com o padrão estético socialmente valorizado não era tão acessível para a maioria das pessoas. Dicas, macetes e "truques" estavam disponíveis apenas para uma parcela privilegiada da sociedade, que tinha fácil acesso à rede e às mídias sociais (Custers, 2015). A total falta de limites e regulamentação para exposição de internautas aos conteúdos disponíveis online conduz os usuários a acreditarem nas imagens a que estão expostos diuturnamente, valorizando cada vez mais a aparência física e adotando hábitos e comportamentos apontados como normais ou socialmente desejáveis (Santos, Banuth, & Oliveira-Cardoso, 2016). Além disso, os usuários ainda vivem sob constante pressão social para se engajarem em certas práticas, incentivados por subcelebridades que se autoproclamam "autoridades em saúde" e que se oferecem como "modelos" corporais a serem seguidos e idolatrados, com postagens ilustradas com as últimas proezas que realizaram rumo à obtenção do ideal de "corpo perfeito" (Turner & Lefevre, 2017).

A exposição prolongada às mídias sociais tem sido associada ao desenvolvimento de mudanças no comportamento alimentar das pessoas incentivando a adoção de padrões restritivos em resposta à internalização de parâmetros de magreza idealizada. Durante certo período essas mudanças tiveram impactos positivos, pois propagavam questões que embutiam preocupações relacionadas à promoção de saúde. As pessoas eram estimuladas a adotarem hábitos dietéticos saudáveis e passavam a tomar certos cuidados para comer de maneira mais equilibrada, incluindo frutas e verduras no cardápio alimentar. No entanto, isso já não é mais a tônica das postagens nas redes sociais. Hoje em dia, a incidência de comportamentos alimentares disfuncionais e, especificamente, a glorificação de sintomas de transtornos alimentares (TAs), tem aumentado de maneira significativa (Turner & Lefevre, 2017).

Os TAs são caracterizados por uma perturbação persistente dos hábitos alimentares e/ou no comportamento relacionado à alimentação, que resulta no consumo ou na absorção alterada de alimentos, o que compromete significativamente a saúde física e o funcionamento psicossocial (Associação Americana de Psiquiatria [APA], 2013). Atualmente, o Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA) é o tipo de TA com maior prevalência na população (Cauduro, Paz, & Pacheco, 2018), seguido de Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN).

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição – DSM-5 (APA, 2013), o TCA é caracterizado pela ingestão exacerbada de alimentos em um curto período de tempo, evidentemente maior do que a maioria das pessoas consumiria nas mesmas circunstâncias. Esses episódios de compulsão alimentar são permeados pela sensação de falta de controle ou incapacidade de interromper a ingestão alimentar. O transtorno é marcado pela discrição e tentativa de ocultamento dos sintomas, uma vez que os indivíduos acometidos geralmente sentem vergonha da quantidade de alimentos ingeridos e se isolam durante os episódios de compulsão alimentar. Para confirmar o diagnóstico, a compulsão deve ser seguida de desconforto físico, culpa, vergonha, sofrimento evidente e intenso, e ocorrer pelo menos uma vez por semana durante três meses (APA, 2013).

O DSM-5 propõe a definição da AN como uma recusa tenaz do indivíduo em manter o peso corporal na faixa mínima adequada, de acordo com sua idade, altura, gênero, trajetória de desenvolvimento e saúde física (APA, 2013). Além disso, o paciente está permanentemente subjugado pelo temor acentuado do ganho de peso, o que acarreta comportamentos compensatórios que levam a um agravamento do quadro clínico de desnutrição acentuada.

Ainda de acordo com as orientações do DSM-5, a BN é caracterizada por episódios repetidos de ingestão de quantidades exageradas de comida e preocupação excessiva com o controle do peso corporal (APA, 2013). O paciente adota estratégias compensatórias inapropriadas para evitar o ganho de peso – por exemplo, vômito autoinduzido e uso indevido de laxantes, que trazem alívio momentâneo para o sofrimento psíquico, mas que a médio e longo prazo acarretam grave comprometimento à saúde física e psíquica.

Em meados dos anos 2000, as redes sociais virtuais começaram a ser intensamente utilizadas e frequentadas por pessoas com AN e BN. Alguns blogs funcionavam como uma rede de informações que claramente faziam apologia dos sintomas de AN (sites pró-Ana) e BN (sites pró-Mia), com dicas de como executar determinadas ações anoréxicas e bulímicas, tais como "driblar" a fome, executar métodos compensatórios após a alimentação e esconder essas atividades dos pais, oferecendo riscos à saúde de quem seguia essas dicas. Também eram disponibilizados chats com mensagens de encorajamento e apoio para as pessoas que desejavam conversar sobre o que estavam vivenciando, sentimentos e experiências com o uso deliberado de estratégias visando à perda de peso, sem qualquer incentivo à busca por tratamento (Fava & Peres, 2011). Os usuários desses chats apregoavam que AN e BN seriam um estilo de vida, por meio do qual as pessoas praticantes haviam alcançado um controle total – obviamente fantasioso – sobre seu corpo (Custers, 2015).

Um estudo realizado por Sidani, Shensa, Hoffman, Hanmer e Primack (2016) relata que adolescentes que mantêm contato com redes sociais virtuais que divulgam conteúdos sobre saúde e estilo de vida fitness estão mais propensos a desenvolverem TAs. Outro ponto de extrema relevância, levantado por Turner e Lefevre (2017), é o poder que as redes sociais exercem sobre as pessoas que as acessam, principalmente o Instagram. Celebridades, conhecidas como influenciadoras digitais, que não têm qualquer treinamento ou formação qualificada na área da saúde e nutrição, compartilham e incentivam diversas práticas relacionadas ao assunto. Isso se deve ao fato de que essa plataforma é construída basicamente por imagens encadeadas, o que leva à falsa ideia de conexão pessoal e instantânea com o usuário, reforçando uma ilusória sensação de intimidade. Além disso, há claro incentivo para que o internauta elimine certos grupos alimentares de sua dieta, tais como carboidratos, o que no extremo pode desencadear ou agravar a deficiência nutricional (Fava & Peres, 2011).

Os corpos fabricados pelas redes sociais são quase sempre sexualizados (Santos et al., 2016). Os conteúdos digitais influenciam diretamente a percepção que as pessoas têm sobre satisfação corporal e de maneira bastante negativa encorajando a prática de dietas (há milhares delas disponibilizadas no ambiente virtual, ao sabor dos modismos de cada momento, como a low carb) e de atividades físicas extremas, com finalidade de alcançar um ideal de corpo inatingível (Carrotte, Prichard, & Lim, 2017; Santos et al., 2019). A literatura sugere uma forte e consistente correlação entre o uso de redes sociais e os TAs em jovens dos Estados Unidos. Além disso, os indivíduos que desenvolvem esses sintomas tendem a aumentar a frequência de acesso às redes sociais virtuais, em busca de informações e de pessoas dispostas a compartilhar suas experiências (Sidani et al., 2016).

Frente ao exposto, é possível afirmar que há um corpus consistente de pesquisas que sugerem que, dentre os diversos fatores relacionados à etiopatogenia dos TAs, a cultura e a sociedade contemporâneas exercem considerável influência na precipitação e manutenção desses quadros uma vez que elegem a magreza como um dos símbolos contemporâneos de beleza, prestígio e sucesso na vida (Attili, Di Pentima, Toni, & Roazzi, 2018). A despeito disso, ainda são raros os estudos que se dedicam a explorar o impacto da exposição às redes sociais virtuais em pessoas vulneráveis ou propensas a desenvolverem sintomas psicopatológicos relacionados ao comportamento alimentar. Este estudo teve por objetivo investigar a percepção de pessoas com diagnóstico de TAs acerca da influência das redes sociais virtuais sobre o desencadeamento e/ou manutenção dos sintomas indicativos deste quadro psicopatológico.

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo exploratório. A pesquisa exploratória busca explorar um problema e obter maior proximidade com o tema de modo a fornecer informações para futuras investigações. O tema explorado pode ser construído com base em hipóteses ou intuições do pesquisador. Elegemos a abordagem qualitativa por ser especialmente apropriada para a investigação de um fenômeno que é singular, pessoal e contextualizado (Stake, 2011), o que vai ao encontro do objetivo do estudo. Nessa pesquisa, a ênfase recai sobre a singularidade da experiência de utilização de mídias sociais virtuais por pessoas diagnosticadas com psicopatologias que se manifestam sob a forma de graves perturbações dos hábitos alimentares.

Participantes

Participaram do estudo sete pessoas que se encontravam em tratamento regular para TAs, cadastradas em um serviço especializado de um hospital universitário do interior paulista. O desenvolvimento da pesquisa se deu mediante autorização formal da coordenadora do serviço para a realização da coleta de dados. Trata-se de um serviço ambulatorial especializado que conta com uma equipe multi/interdisciplinar. O serviço, além de ser um cenário de formação de recursos humanos e desenvolvimento de pesquisas, oferece tratamento gratuito que ambiciona contemplar a integralidade das necessidades dos sujeitos acometidos pelos sintomas de TAs e prover o acolhimento de seus familiares (Souza, Valdanha-Ornelas, Santos, & Pessa, 2019).  Foram incluídos no estudo seis mulheres e um homem, com idades variando entre 16 e 34 anos. Tais participantes foram extraídos consecutivamente de uma lista de 16 pessoas que se encontravam em atendimento regular no período da coleta de dados. Foram selecionados pacientes com diagnóstico de TAs. Assim, todos os indivíduos que apresentavam essa condição e que frequentavam regularmente o serviço foram convidados a participar do estudo.

A seleção de participantes seguiu os seguintes critérios:

Inclusão:(1) homens e mulheres adolescentes e adultos/as em acompanhamento regular no serviço, (2) ter diagnóstico confirmado de AN ou BN, (3) ter cadastro em alguma mídia social virtual. Exclusão: (1) diagnóstico de outros TAs que não AN/BN, (2) evidência de prejuízo grave na linguagem ou comunicação, (3) déficit sensorial (audição) ou cognitivo, que pudesse prejudicar a comunicação e compreensão da tarefa proposta.

Participaram do estudo todos os pacientes que se enquadraram nos critérios de inclusão previamente estabelecidos. Ao final, constatou-se que nenhum participante elegível para a pesquisa foi excluído devido aos critérios de exclusão. Em termos de diagnóstico clínico, todos apresentavam AN subtipo compulsivo-purgativo. Para delinear o número de pessoas que comporiam a amostra de conveniência foi adotado o critério de saturação de dados, que consiste na suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, redundância ou repetição (Fontanela, Ricas, & Turato, 2008). A Tabela 1 apresenta os dados que permitiram caracterizar o perfil das/os participantes.

 

 

Instrumentos

Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada, desenvolvido especialmente para esta pesquisa com base nos estudos disponíveis na literatura. Essa técnica de entrevista parte de questionamentos básicos, sustentados por teorias e hipóteses relacionadas ao tema pesquisado, que permite novas indagações alicerçadas nas respostas do entrevistado (Campos & Turato, 2009). Além disso, o entrevistado pode discorrer sobre o tema, possibilitando profundidade em sua resposta, que se aproxima de uma conversa informal. O papel do entrevistador é direcionar as perguntas para o assunto que o interessa e retomá-lo caso se distancie da temática (Boni & Quaresma, 2005). O roteiro englobou dados sociodemográficos, que foram complementados com  registros dos prontuários hospitalares, e questões a respeito da relação da/o participante com a sua imagem corporal, se faz uso das redes sociais (em caso afirmativo, quais e com que frequência), se segue algum conteúdo específico e quantas vezes por dia acessa esse tipo de conteúdo, como se sente quando acessa essas redes e se, na sua percepção, há relação entre seu comportamento alimentar e os conteúdos a que tem acesso na internet.

Procedimento

Nos dias de retorno ambulatorial, após os esclarecimentos dos objetivos do estudo, as/os participantes foram convidadas/os individualmente a colaborar. No caso de anuência, foi entregue uma via e requisitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que formalizava o consentimento com a pesquisa, ressaltando o caráter voluntário da participação e a possibilidade de desistência a qualquer momento do estudo, sem qualquer prejuízo para a continuidade do atendimento no serviço.  No caso de participantes menores de 18 anos, o TCLE foi assinado pelos pais ou responsáveis legais, ao passo que as/os participantes assinaram um Termo de Assentimento. Em seguida, foram colhidas informações sociodemográficas e aplicado o roteiro semiestruturado, em sala reservada da instituição hospitalar que resguardava as condições adequadas de privacidade. A duração das entrevistas variou de 25 a 50 minutos com duração média de 35 minutos. As entrevistas foram audiogravadas e transcritas na íntegra buscando-se assegurar a fidedignidade dos relatos.

Análise dos Dados

O corpus de análise foi composto pelas transcrições completas das entrevistas. Foi usada a análise de conteúdo temática compreendida como um conjunto de técnicas de pesquisa cujo propósito é a busca dos sentidos contidos em um determinado documento. Esse método preconiza que o pesquisador não deve manter-se excessivamente fixado na literalidade do texto em um formalismo exagerado que possa limitar sua criatividade e prejudicar sua capacidade intuitiva no exame dos conteúdos. No entanto, o pesquisador também não deve ser extremamente "subjetivista", manipulando interpretações para inserir suas próprias ideias e valores, utilizando o texto apenas para "confirmar" suas pré-concepções.

A partir da leitura exaustiva do corpus constituído pela transcrição da totalidade das entrevistas, as respostas foram organizadas em categorias temáticas, pautadas na regularidade de informações e padrões correspondentes de conteúdo. Seguiram-se os passos metodológicos preconizados por Bardin (2016), a saber: 1. Fase de pré-exploração; 2. Seleção das unidades de análise e categorização; 3. Processo interpretativo. Feito isso, os temas que estiveram em concordância com o objetivo do estudo foram considerados para discussão e a análise buscou elucidar como cada participante percebia e compreendia as questões relacionadas à influência das redes sociais em seu comportamento alimentar e sua vivência corporal. A interpretação aprofundada desse material foi guiada pela literatura especializada no assunto, que possibilitou a construção de sínteses que delinearam as significações atribuídas pelas participantes, de acordo com o propósito compreensivista do estudo e as exigências do método qualitativo de pesquisa (Campos & Turato, 2009).

Considerações Éticas

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, protocolado sob o número 2.480.335 e CAAE 78908517.2.0000.5154. A coleta e análise dos dados foram conduzidas de acordo com os termos da Resolução nº 466 de 12/12/2012 do Conselho Nacional de Saúde, da lei 11.791 (Lei Arouca), que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos.

 

Resultados e Discussão

A partir da análise de conteúdo das entrevistas, foram organizadas três categorias temáticas, que contemplam suas respectivas subcategorias, apresentadas a seguir.

Reverberações Emocionais do Acesso Indiscriminado aos Conteúdos Online

Os participantes relataram o hábito de "acessar" plataformas digitais diariamente. Assim, essa categoria agrupa falas nas quais as pessoas entrevistadas discorreram sobre as consequências emocionais da exposição recorrente a conteúdos relacionados a corpo, beleza, saúde, alimentação e emagrecimento.

Conteúdos Acessados no Instagram, Tomados como Ideais a Serem Alcançados

É inegável que, atualmente, as plataformas virtuais façam parte de uma poderosa estratégia de marketing de grandes empresas ligadas aos ramos de moda, saúde e beleza. Nas sofisticadas peças publicitárias produzidas, é comum que a divulgação de produtos seja veiculada por celebridades, com o intuito de despertar identificação fácil com o público consumidor (Simpson & Mazzeo, 2016; Walker et al., 2015). Essa tendência midiática cresceu extraordinariamente nas últimas décadas com o advento da rede mundial de computadores e a expansão e popularização das tecnologias de informação e comunicação. Nessa perspectiva, os participantes revelam que são expostos diariamente a imagens femininas que exaltam corpos magros e definidos, cuidadosamente selecionados para reprodução e transmissão de padrões corporais que correspondem a ideais inalcançáveis pela maioria absoluta da população, em uma estratégia concatenada para a disseminação e comercialização de produtos (Santos et al., 2019). O achado mais expressivo é que não se nota uma reflexão crítica em relação a esses conteúdos.

Algumas falas dos participantes se mostraram especialmente elucidativas, quando questionados sobre os motivos pelos quais acompanhavam celebridades nas redes sociais.

Eu seguia a G. P. 1 [nome de influenciadora digital] e o amigo dela, J. 2 [nome do influenciador digital]. Eu queria ser ele, ter a vida dele, ter o corpo dele (Arthur).
É uma inspiração pra eu poder ver essas pessoas e seguir [...]. Eu gosto bastante de ficar vendo o corpo delas 3... de como ela era antes e como ela ficou depois da anorexia. [...] porque às vezes eu vejo algumas fotos de meninas anoréxicas e eu fico: "Nossa, eu sou tão horrível por comer, elas são tão magras e eu não posso comer, tenho que ficar igual a elas" (Pérola).
Pelo fato de as pessoas serem magras, acho que é isso (Clara).

Outro dado importante que foi evidenciado nas entrevistas é o recurso que algumas redes sociais utilizam para provocar a "motivação" nos seguidores pela via da culpa. Ou seja, o usuário é induzido a sentir-se culpado por não alcançar determinada meta ou não adotar determinado padrão de comportamento que é apresentado como ideal, como um caminho seguro para a conquista da felicidade e plena realização pessoal. Plataformas que permitem o uso de texto e imagem são consideradas pela literatura como as mais imprudentes e de maior risco, visto que fazem uso de imagens com a finalidade intencional de despertar insatisfação relacionada ao próprio corpo, e para tanto não hesitam em recorrer a textos que incitam remorso a respeito da alimentação (Cohen, Newton-John, & Slater, 2017; Silva, Neves, Japur, Penaforte, & Penaforte, 2018; Wick & Harriger, 2018). Durante as entrevistas, foi possível perceber que as pessoas com AN se sentiam culpadas por se alimentarem de maneira diferente do que foi apregoado pelas redes da internet. Entretanto, o contrário também acontece: quando os influenciadores digitais publicam fotos com refeições comuns, alimentos que fazem parte de uma alimentação equilibrada, as pessoas sentem que têm permissão para comerem sem culpa, como sugere a fala de uma participante:

Eu sigo pessoas justamente que são contra o terror alimentar. Aquela menina 4 eu ainda sigo, acompanho muito ela, então, tipo, tem ela e um grupo de pessoas que são contra o terrorismo alimentar. Sigo nutricionistas bons, que tiram foto de arroz com feijão, às vezes batata frita e chocolate, sabe? (Valentina).

Conteúdos Acessados em Plataformas Online como Fontes de Eterna Frustração

A mídia dissemina hábitos e princípios relacionados a formas de viver que desconsideram as necessidades individuais e anulam a subjetividade das pessoas. Pari passu, é cada vez mais recorrente o aumento de insatisfação corporal como consequência das frustrações resultantes do insucesso dos estilos de vida propagados (Silva et al., 2018).

Eu queria fazer igual, sabe? Tentar ir na academia, ter aquele corpo, tudo, mas eu me sentia mal porque, ao mesmo tempo, eu não conseguia. Elas vivem daquilo, sabe? [...] o exercício, [quando] eu não fazia um dia, eu dobrava no dia seguinte [...] [e sobre a comida] eu não comia muito, era meio que tipo... não tinha muito o que fazer... porque eu já não comia... Aí no outro dia eu comia menos ainda (Vitória).
Quando eu não conseguia seguir o que via na internet, era igual jogar um fósforo em um rio de combustível (Arthur).
Eu começo a me sentir muito mal, porque eu fico pensando que eu estou muito longe de estar como elas, e é aí que eu me odeio ainda mais (Pérola).
Eu me sentia péssima, uma escrava (Maria).
Me sinto mal porque, mesmo fazendo academia, ela é magra. Aquelas mulheres são magras e eu não (Clara).

Nesse cenário artificial alimentado pelo ambiente midiático, cada vez mais o corpo se torna um veículo de reprodução de comportamentos que são emitidos com vistas a atingir resultados padronizados e imediatos. Estudos apontam que a magreza é constantemente equiparada a convicções de sucesso pessoal e bem-estar subjetivo, uma vez que as personagens estampadas nas propagandas divulgam um estado de felicidade permanente que também é parte do produto anunciado com promessas de satisfação corporal e autoestima plenas, como se essas características, exaltadas como ideais a serem perseguidos tenazmente, estivessem de fato ao alcance da maioria da população (Santos et al., 2019; Silva et al., 2018).

Tomada de Consciência Acerca da Influência Perniciosa da Mídia

Essa categoria revela que alguns participantes perceberam o quanto a internet influenciava de forma danosa seu comportamento alimentar e em razão disso desenvolveram formas de controlar o acesso aos conteúdos prejudiciais. Além disso, algumas falas demonstraram o quanto essas pessoas que desenvolveram um quadro grave de TA investem seu tempo e energia vital na manutenção do clima de idealização dos influenciadores digitais, que progressivamente passaram a assumir posição central em suas vidas, como figuras reverenciadas e até mesmo idolatradas.

Percepções sobre a Influência Negativa da Mídia e Uso de Técnicas para Modular o Acesso

 

 

Estudos anteriores encontraram correlação entre a frequência de acesso às redes sociais e a precipitação e manutenção de sintomas de TAs. Encontra-se bem documentado que o aumento do número de acessos às plataformas virtuais é proporcional à exacerbação da insatisfação corporal, incremento da vigilância em relação ao corpo e à comida e elevação da frequência de comportamentos anoréxicos e bulímicos (Cohen et al., 2017; Lira, Ganen, Lodi, & Alvarenga, 2017; Sidani et al., 2016).

Teve uma época em que eu percebi mesmo que estava, tipo, prejudicando, porque eu percebi que eu ficava o tempo inteiro vendo coisas de comida e de exercício. Aí teve uma época em que eu dei o celular pra minha mãe e disse: "Fica um tempo com ele e depois eu volto." [...] Na época em que eu era viciada em procurar caloria, exercício, essas coisas assim. Mas não fazia bem, sabe? Aí eu tentei dar uma distanciada (Vitória).
Eu tinha muito isso de ver dica, mas há algum tempo eu parei com isso porque sei que me prejudica. Já lembrei [do que via na internet]... hoje eu evito. Como eu tenho anorexia há muitos anos, eu desenvolvi métodos pra poder comer sem pensar. Então eu como assistindo alguma coisa, fazendo alguma coisa para que eu possa comer e não prestar muita atenção em mim (Maria).

Ainda nessa linha, indivíduos que desenvolvem sentimentos exagerados de insatisfação corporal parecem ser sugestionáveis e são facilmente influenciados por qualquer conteúdo midiático relacionado ao corpo (Simpson & Mazzeo, 2016). Turner e Lefevre (2017) discorrem sobre o poder de influência que as redes sociais virtuais exercem sobre o comportamento das pessoas, principalmente o Instagram. Influenciadores/as digitais, que não têm qualquer tipo de estudo e formação qualificada na área da saúde e nutrição, sentem-se perfeitamente livres e à vontade para compartilhar conteúdos e incentivar diversas práticas relacionadas ao assunto, muitas vezes de forma irresponsável. Esse fenômeno corrobora a teoria de que plataformas constituídas por imagens favorecem uma falsa ideia de intimidade e conexão pessoal com o usuário, que inicialmente passa a cortar determinados grupos alimentares, como carboidratos e gorduras, incrementando gradativamente a restrição alimentar até induzir deficiência nutricional.

Ela 5 começou com essa dieta de 500 calorias, aí ela começou a emagrecer... Tipo, foi o que eu mais queria. Eu nem me importei se, no final, ela estava quase morrendo, eu não me importei com nada disso. Eu só vi que ela estava emagrecendo e depois ela foi cortando, tipo 200 calorias, e aí eu fui fazendo o mesmo e estava dando certo (Pérola).

Idealização Reverencial dos/as Influenciadores/as Digitais

Reverenciar irrestritamente os/as influenciadores/as digitais é um dos fatores motivacionais mais importantes para assegurar a eficácia da adoção dos comportamentos preconizados como intrínsecos a um estilo de vida propagado como ideal, um bem imaterial altamente apreciado e considerado desejável pelas pessoas. O tema perpassa constantemente as falas dos participantes. A literatura evidencia que são utilizadas estratégias de comparação entre a aparência física da pessoa usuária da plataforma e a imagem exibida (Saffran et al., 2017; Walker et al., 2015). Ademais, estudos apontam que as plataformas imagéticas, tais como o Instagram, Tumblr, Facebook e Pinterest, exercem maior influência na insatisfação corporal e na indução de sintomas de transtornos de alimentação do que as plataformas textuais (Cohen et al., 2017; Wick & Harriger, 2018).

Para ilustrar como essa teoria pode ser útil para estimar o impacto exercido sobre a conduta das pessoas mais suscetíveis a esse tipo de mensagem, destacam-se a seguir falas de participantes que demonstram usar abundantemente de mecanismos de comparação e idealização, evidenciando o quanto a visualização de um corpo modelar pode afetar a percepção das pessoas sobre si mesmas (Santos et al., 2016).

Tudo bem que ela [G. P.] pode sofrer pra ter aquele corpo, mas é bonito, então... (Vitória).
[Eu] gostaria de ser ele [J.], ter o corpo dele e a vida dele (Arthur).
Eu gostaria de ter o corpo da I. G. 6, uma modelo. Eu acho ela elegante. Só que eu sei que ela é bem magra para o padrão da mulher brasileira. Eu tenho consciência disso. [Ela] me passa que tem uma vida bem sofrida, sabe? Que não é um corpo fácil de se construir, não é... Eu sei bem da realidade, não é fácil (Maria).
Ela [uma celebridade dos Estados Unidos, de quem não soube declinar o nome] tem o corpo dos sonhos, ela é bem magra, pra mim ela é perfeita. [...] eu sempre penso que preciso comer menos, que eu preciso ficar igual ela (Pérola).
Quando eu baixei o Instagram e comecei a utilizar, eu comecei a ver corpos, as pessoas idolatrando corpos muito magros, com o ossinho aqui aparecendo, com o ossinho aqui das costas, com o ossinho aqui do quadril, e isso começou a ir entrando na minha cabeça, sabe? [...] eu não queria falar o nome, mas a G. P., ela faz muito terrorismo. Ela foi o xeque-mate para o meu transtorno (Valentina).

Em diálogo com a fala de Maria, o estudo de Chrisler, Fung, Lopez e Gorman (2013) selecionou postagens publicadas no Twitter antes, durante e depois do desfile da marca Victoria's Secret, em 2011. A repercussão junto ao público, em geral, foi significativamente negativa face à magreza extrema das modelos. Foram expressas mensagens que incentivavam comportamentos anoréxicos e bulímicos, excessiva insatisfação com o corpo (durante e após o desfile) e até mesmo ideação suicida de alguns usuários. Nota-se, portanto, que em virtude da idealização da competência dos influenciadores digitais, o que é exposto nas redes repercute de maneira instantânea na autoestima e no equilíbrio emocional dos espectadores expostos às mensagens.

Internet como Fonte Privilegiada de Acesso à Informação de Qualidade Duvidosa

As alternativas escolhidas pelos usuários para modificar o corpo são bastante disfuncionais, uma vez que se apropriam facilmente de informações de como adotar comportamentos extremos que promovem rápido emagrecimento, tais como tomar laxante e induzir o vômito após as refeições. Esses "conhecimentos" duvidosos estão amplamente disponíveis e frequentemente são divulgados em conteúdos desprovidos de crítica, encorajando o engajamento em dietas restritivas, atividades físicas extremas e uso de substâncias perigosas (anabolizantes ou laxantes) para atingir algum propósito incompatível com a saúde (Saffran et al., 2017; Simpson & Mazzeo, 2016; Wick & Harriger, 2018).

As entrevistas possibilitaram a expressão de falas significativas acerca da forma pelas quais os usuários das redes sociais e leitores contumazes de blogs podem entrar em contato e adquirir informações que, posteriormente, contribuirão para fomentar o desenvolvimento de seus sintomas de transtornos do comportamento alimentar.

Existe site que é focado em dieta, até para quem tem mesmo transtorno alimentar, eu seguia muito isso (Maria).
[Informações de] como vomitar... Dietas que eu vejo... Esses dias eu tive uma compulsão e eu fiquei desesperada, aí eu fiquei procurando um jeito de como fazer pra vomitar sem forçar o vômito, aí eu achei [na rede] que era só você misturar água com mostarda e sal. Mas é horrível, passei muito mal e não vomitei. Nem sempre essas dicas dão certo (Pérola).
Tudo que eu sei, eu aprendi na internet. Tudo que eu sei sobre meu transtorno alimentar, formas de não comer e vomitar, eu aprendi lendo em blogs e procurando na internet (Eduarda).
Disso de alimentação... antes eu ficava vendo caloria, receita... Eu tentava seguir sim, o que eu imaginava, eu tentava fazer as coisas... Tipo... tome tantos copos de água por dia, coma tanto de frutas por dia (Vitória).

É preocupante saber que pessoas que, atualmente, estão gravemente adoecidas, antes de terem seus sintomas agravados e de evoluírem para uma situação tão dramática, passaram por anos de intensa exposição às mídias sem que pais, professores e amigos percebessem o que estava acontecendo realmente. Tudo que eu sei do meu transtorno alimentar, eu aprendi na internet. Essa assertiva é emblemática do que muitas vezes acontece e passa inadvertidamente incólume sob o olhar descuidado dos adultos.Segundo os depoimentos colhidos, o tráfico de substâncias anorexígenas, dietas para perder peso e dicas de como induzir o vômito, além de outros métodos purgativos, são fenômenos extremamente difundidos no ambiente virtual. Essa oferta indiscriminada tira proveito da falta de regulamentação em relação ao fluxo incessante de informações que circulam livremente pela rede e bombardeiam pessoas de todas as idades.

O capitalismo financeiro, modo de produção dominante na era contemporânea, forja a construção de um narcisismo dirigido às aparências, propício aos padrões de consumo. Segundo Oliveira (2010), o indivíduo é conduzido a fazer uma gestão ótima do próprio corpo, não por uma escolha refletida e deliberada, mas porque é forçado a investir em sua imagem corporal, tornando o corpo funcional, moldável e desdobrável, regido por essa espécie de narcisismo regulado pela racionalidade instrumental a serviço de ideais de um consumismo desenfreado. Exalta-se, assim, uma beleza com caráter eminentemente funcional, direcionada a determinados fins. Um tipo muito específico de "estética" que, no caso dos indivíduos que evoluem para um quadro de AN, mais se assemelha a uma solução mortífera, patológica, que podemos denominar de uma beleza desvitalizada, anti-vida, portanto, uma necrobeleza (Santos et al., 2016). Basta pensar no culto do aspecto cadavérico dos corpos esquálidos, descarnados e esvaziados de subjetividade, com seus ossos salientes e olhos opacos esculpidos em um rosto sem expressão vital.

 

Considerações Finais

Este estudo investigou a percepção de pessoas com diagnóstico de TA acerca da influência das redes sociais virtuais sobre o desencadeamento e/ou manutenção de seus sintomas com significado psicopatológico. Os resultados permitiram apreender como pacientes com diagnóstico de AN vivenciam a internet na atualidade e como os conteúdos visitados dialogam com a manutenção da sintomatologia que perpetua o quadro clínico com seu cortejo de prejuízos ao processo adaptativo de adolescentes e jovens adultos. De modo geral, foi possível perceber que as mídias sociais afetam o comportamento alimentar e a saúde mental das/os participantes de maneira predominantemente negativa e prejudicial ao desenvolvimento, modificando suas rotinas, práticas alimentares e atividades físicas, além de contribuírem para alterar sua percepção crítica acerca do quanto sua saúde estava sendo comprometida.

Os participantes deste estudo demonstram perceber o impacto da exposição prolongada às mídias sociais sobre seus hábitos alimentares e seu comportamento de modo geral, contudo, não se nota a formação de uma consciência crítica em relação aos ideais corporais disseminados pela rede e internalizados por eles, que seguem sendo intensamente desejados. Esses indivíduos se percebem vivenciando intenso sofrimento relacionado à insatisfação por não serem capazes de alcançar os padrões do corpo ideal, mas têm uma percepção difusa sobre a influência das redes sociais sobre a precipitação e/ou manutenção de seus sintomas. Os influenciadores digitais são reverenciados como modelos de conduta a serem seguidos e as mensagens por eles veiculadas encontram alta receptividade entre os participantes deste estudo.

Foram identificados elementos que respaldam o pressuposto de que as mídias sociais influenciam a precipitação e perpetuação do quadro psicopatológico, entre outros motivos, devido à forte e cruel culpabilização que recai sobre os usuários em relação ao consumo de determinados alimentos e ao desenvolvimento de mecanismos obsessivos de controle para manter um estilo de vida endeusado pelas redes sociais. As mídias sociais, na atualidade, estão disponíveis a qualquer momento para acesso franco, aberto e ilimitado, em dispositivos móveis como smartphones e laptops, sustentando uma falsa ilusão de que tudo o que desejarmos estará sempre ao alcance de nossas mãos (ou de um mero click) a qualquer momento e lugar.

Os conteúdos invadem a vida das pessoas diariamente e as consequências não são devidamente dimensionadas por aqueles que se propõem a ser influenciadores digitais, o que evidencia a irresponsabilidade com o bem-estar de quem faz uso irrestrito dos conteúdos expostos na rede. O impacto das mensagens disseminadas sem qualquer crivo crítico pelas tecnologias de comunicação e informação é de tal forma avassalador que uma participante declarou que aprendeu nas redes "tudo o que ela sabe" sobre estratégias para manter seus sintomas anoréxicos.

Além disso, vale ressaltar que os adultos cuidadores desses/as jovens também estão imersos na cultura da magreza, o que dificulta a construção de um pensamento crítico e esclarecido acerca do que vem sendo disseminado nas mídias sociais virtuais, o que os torna parte involuntária de um complexo sistema de retroalimentação. Nesse sentido, enfatiza-se a importância da assistência aos cuidadores de jovens com TAs, visando a fomentar o desenvolvimento de um olhar crítico para os conteúdos disponíveis online, especialmente aqueles que reforçam ideais de magreza travestidos de discursos de saúde.

Este estudo apresenta algumas limitações, como a captação de participantes em um único serviço especializado. Em se tratando de um tema complexo e recente, ainda há muitas lacunas a serem preenchidas por novos estudos, que se mostram não só necessários como urgentes. Destaca-se aqui a necessidade de pesquisas brasileiras acerca do assunto, uma vez que grande parte dos artigos utilizados para a fundamentação deste estudo é proveniente do cenário internacional. Além disso, não foram encontrados estudos que abordem a perspectiva das pessoas que sofrem de TAs, cujos resultados pudessem ser comparados com os achados desta pesquisa. Isso, por outro lado, evidencia a originalidade e confirma o caráter inovador e exploratório desta investigação, apontado para a necessidade de maior aprofundamento da abordagem científica do tema investigado, inclusive com enquadres e delineamentos metodológicos diferenciados.

 

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Endereço para correspondência
Raquel Borges de Moraes
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Carolina Leonidas
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Recebido em: 04/12/2019
Reformulado em: 09/10/2020
Aceito em: 14/10/2020

 

 

Notas

* Psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais.
** Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
*** Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
1 Uma das maiores influenciadoras digitais da atualidade, que se apresenta como alguém preocupada em difundir práticas de estilo de vida por meio de exercícios físicos e alimentação saudável, natural e orgânica. Contabiliza, atualmente, quatro milhões de seguidores.
2 J. é uma celebridade midiática praticante do estilo de vida Mahamudra, que prega a obediência a alguns conceitos do budismo acerca de uma vida equilibrada espiritualmente, aliada à prática regular de exercícios físicos e alimentação saudável. Conta, atualmente, com um milhão e 900 mil seguidores.
3 A participante refere-se a algumas garotas que ela, habitualmente, acompanha nas redes sociais e que se descrevem como "anoréxicas em recuperação".
4 A participante se refere a uma influenciadora digital que se descreve como "anoréxica em recuperação".
5 A participante faz referência a uma personagem do filme "Anorexia: a ilusão da beleza", produzido em 2014.
6 Modelo angel da marca Victoria's Secret.

 

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