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Estudos e Pesquisas em Psicologia

On-line version ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.spe Rio de Janeiro  2021

http://dx.doi.org/10.12957/epp.2021.63948 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2021.63948
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Interferências das Residências Multiprofissionais em Saúde na Trajetória Docente de Psicólogos

 

Ana Helena Araújo Bomfim Queiroz*, I; Magda Dimenstein**, II; Candida Dantas***, II
I Faculdade Luciano Feijão - FLF, Sobral, CE, Brasil
II Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, RN, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O artigo analisa as interferências da formação nas Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) na trajetória docente de psicólogos. Tratou-se de um estudo qualitativo com 17 egressos(as) mediante o uso de entrevistas presenciais e à distância, as quais foram transcritas e analisadas por meio da análise de conteúdo temática. A atividade docente de psicólogos está estreitamente vinculada ao cenário de retração do mercado de trabalho no setor público, à ampliação de vagas nas instituições de ensino superior privado e à ampla formação oferecida no modelo de residência para profissionais de saúde. Os psicólogos egressos das RMS e atualmente docentes enfrentam inúmeros desafios em operacionalizar os princípios pedagógicos da Educação Permanente em Saúde no seu cotidiano de trabalho; vivenciam resistências por parte de professores e alunos às metodologias ativas de aprendizagem e observam o descolamento teoria-prática no ensino da psicologia. Apesar da hegemonia dos princípios e metodologias da pedagogia tradicional nos contextos de ensino em que estão inseridos, consideram que a formação propiciada pelas RMS lhes proporcionou uma bagagem teórica-instrumental que favorece a produção de uma prática docente em psicologia comprometida ética e politicamente.

Palavras-chave: residência multiprofissional, ensino superior, docência, psicologia.


 

Interferences of the Multiprofessional Residences in Health in the Teacher Trajectory of Psychologists

 

ABSTRACT

The article analyzes the interferences of training in Multiprofessional Health Residences in the teaching career of psychologists. It was a qualitative study with 17 graduates using face-to-face and distance interviews, which were transcribed and analyzed through the thematic analysis of content. The teaching activity of psychologists is closely linked to the scenario of retraction of the labor market in the public sector, to the expansion of vacancies in private higher education institutions and to the broad training offered in the residence model for health professionals. Psychologists who have graduated from Multiprofessional Health Residences and are currently teaching staff face numerous challenges in operating the pedagogical principles of Permanent Health Education in their daily work; they experience resistance from teachers and students to active learning methodologies and observe the theory-practical detachment in the teaching of psychology. Despite the hegemony of the principles and methodologies of traditional pedagogy in the teaching contexts they are inserted, they consider that the training provided by Multiprofessional Health Residences has provided them with a theoretical-instrumental baggage that favors the production of an ethically and politically committed teaching practice in psychology.

Keywords: multiprofessional residence, higher education, teaching, psychology.


 

Interferencias de las Residencias Multiprofesionales en Salud en la Trayectoria Docente de los Psicólogos

 

RESUMEN

El artículo analiza las interferencias de la formación en las Residencias Multiprofesionales en Salud en la carrera docente de los psicólogos. Se trata de un estudio cualitativo con 17 graduados mediante el uso de entrevistas presenciales y a distancia, que se transcribieron y analizaron mediante el análisis del contenido temático. La actividad docente de los psicólogos está estrechamente vinculada al escenario de retracción del mercado laboral en el sector público, a la ampliación de las vacantes en las instituciones privadas de enseñanza superior y a la amplia formación que se ofrece en el modelo de residencia para profesionales de la salud. Los psicólogos que se han graduado en las Residencias Multiprofesionales en Salud y que actualmente son docentes se enfrentan a numerosos retos para hacer funcionar los principios pedagógicos de la Educación Permanente para la Salud en su trabajo diario; experimentan la resistencia de los profesores y estudiantes a las metodologías de aprendizaje activo y observan el desapego teórico-práctico en la enseñanza de la psicología. A pesar de la hegemonía de los principios y metodologías de la pedagogía tradicional en los contextos de enseñanza en los que se insertan, consideran que la formación impartida por las Residencias Multiprofesionales en Salud les ha proporcionado un bagaje teórico-instrumental que favorece la producción de una práctica docente en psicología comprometida ética y políticamente.

Palabras clave: residencia multiprofesional, educación superior, docencia, psicología.


 

 

O presente trabalho propõe-se a refletir acerca das interferências da formação em Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) na trajetória docente de psicólogos. Compreendemos que a docência envolve muito mais do que uma dimensão técnica, sendo atravessada por relações interpessoais de cunho afetivo, político e ético (Isaia & Bolzan, 2008). Concordamos com Pereira (1996) em pensar a formação docente enquanto professoralidade, ou seja, como um processo de criação que produz modos de pensar, agir e sentir-se. Desse modo, partindo da compreensão de que a docência se produz na vida (professoralidade), múltiplos vetores (macro e micropolíticos) agenciam-se para produzir o fazer docente. Assim, pretendemos problematizar em que medida a formação de psicólogos por meio das RMS interfere nos modos de ensinar e que desafios esses profissionais enfrentam no cotidiano acadêmico atual marcado pela mercantilização do ensino superior em meio à lógica neoliberal.

As RMS surgiram na década de 1970, no contexto das transformações do setor saúde e impulsionadas pelo Movimento Sanitário Brasileiro. Entretanto, ganharam força a partir dos anos 2000 com o processo de institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). Configuram-se como modalidade de Pós-Graduação Lato Sensu, voltadas à formação em serviço, com a proposta de formar profissionais por meio de ações integradas e em diferentes cenários de cuidado em saúde. As RMS se configuram como dispositivo de mudança das práticas de gestão, de atenção, bem como das práticas pedagógicas no e para o SUS, tornando-se uma importante estratégia de qualificação de psicólogos(as) para as ações em saúde coletiva no cenário em que as políticas públicas no país têm sido um campo de trabalho privilegiado para a categoria (Cezar, Rodrigues, & Arpini, 2015).

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em psicologia, estabelecidas em 2004 e atualizadas em 2011, incorporaram o debate acerca da saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS) nos projetos político-pedagógicos dos cursos de graduação, visando formar profissionais com apropriação conceitual e técnica em relação ao campo da saúde coletiva. Atualmente, as DCN estão em processo de revisão por meio de um amplo debate coletivo, desencadeado e organizado em parceria entre a Associação Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP), o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Federação Nacional de Psicólogos (FENAPSI).

Apesar dos avanços conquistados nas DCN, ainda predominam na formação em psicologia as bases epistemológicas e metodológicas tradicionais, o que nos convoca a problematizar não apenas os norteadores teóricos e técnicos da categoria, mas a possibilidade de proporcionar uma formação eticamente comprometida com as políticas públicas e com o cuidado das pessoas (Macedo & Dimenstein, 2013). Os conteúdos do campo da saúde coletiva vêm sendo garantidos nas matrizes curriculares e trabalhados nos espaços da universidade de tal maneira que parecem depender, em grande medida, de "(...) um ou outro professor mais sensível e envolvido com o tema" (Macedo & Dimenstein, 2013, p. 214). Nesse sentido, é necessário pensar em modelos acadêmicos (metodologias de ensino, organização dos conteúdos e cenários de aprendizagem) orientados por uma postura crítica e reflexiva, focados na construção do conhecimento a partir da problematização da realidade, da articulação teoria-prática e na participação ativa do aluno no processo de aprendizagem (Dimenstein & Macedo, 2012).

Sabemos que a docência vem se tornando a atividade principal de parte importante da categoria nos últimos anos (Borges-Andrade, Bastos, Andery, Guzzo, & Trindade, 2015; Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, 2016). Nesse sentido, é fundamental problematizar: "(…) Quem é esse professor? De que modo ele se prepara para o compromisso da formação? A que conhecimentos recorre para exercer a docência? Que práticas pedagógicas mobiliza para o ensino? Quais conhecimentos didático-pedagógicos ele domina? (...)" (Souza, 2014, p. 69).

Segundo Souza (2014), grande parte das pesquisas na área estão voltadas para as DCNs, para as reformas nos projetos pedagógicos e, quando relacionadas à prática docente, voltadas exclusivamente à supervisão de estágio. Assim, questiona:

"Sobre a docência, parece que a questão é ainda mais problemática: os formadores dos futuros psicólogos parecem não ter escolhido a docência como campo de atuação, e o fazem como atividade complementar a outras, sobretudo, a atividade clínica. Caberia perguntar se a prática profissional, por si só, habilita o psicólogo como docente e se os cursos de pós-graduação investem na formação do formador" (Souza, 2014, pp. 71).

Além desses problemas, o trabalho docente vem sendo profundamente impactado pelas mudanças na educação e no mercado de trabalho na contemporaneidade. O arranjo produtivo toyotista implementado nos países centrais a partir do final da década de 1970 precisa de trabalhadores que possam lidar com a precariedade de um mundo em crise, marcado pelo subemprego, terceirizações, rotatividade de profissionais e de postos de trabalho, retrocessos nos direitos trabalhistas, sob o discurso do empreendedorismo (Ribeiro & Araújo, 2018). Nesse cenário, a educação é a principal responsável pela formação de trabalhadores condizentes com esse modo de trabalho flexível. A universidade, por sua vez, passa de uma instituição social em suas origens - legitimada a partir da autonomia do saber em relação ao Estado e à religião - para uma organização social, na condição de prestadora de serviços e não mais de direito social. A universidade foi assumindo uma ação instrumental, regida pela lógica da competitividade, eficácia e produtividade, típicas do ideário capitalista (Cordeiro, 2006). Chauí (2001) denominou esse processo de universidade operacional, no qual o docente precisa ser um trabalhador flexível, adaptável e capaz de formar novos profissionais nessa mesma lógica.

A partir da década de 1990, sob a influência dos organismos internacionais, o Brasil inicia seu processo de reforma das diretrizes educacionais, no sentido de adequar-se à nova realidade mundial. Assim, abriu-se espaço para a expansão do ensino privado, amparado pela Lei de Diretrizes e Bases da educação (LDB 9.394/96), pelos decretos n. 2.207/97, 2.306/97 e 3.860/01, e por meio dos programas de transferência de renda e de renúncia fiscal (Léda & Sousa, 2018). Desde então, a expansão do ensino superior vem sendo marcada pelo crescimento exponencial do setor privado-mercantil, enfraquecendo a concepção de educação como direito público e como responsabilidade do Estado, abrindo espaço para o empresariamento do setor (Léda & Sousa, 2018). Guarany (2012) destaca que a lógica neoliberal se utiliza do mecanismo de financerização do fundo público para estabilização do capitalismo, o que significa utilizar recursos públicos para socorrer o capital privado em detrimento do atendimento das necessidades da população. Os programas Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e Programa Universidade para Todos (PROUNI) foram importantes meios da expansão privada financiada por fundo público no Brasil. Por outro lado, esses programas também fazem parte do processo de democratização da educação superior no país e, atualmente, são alvos de diversas pesquisas para avaliar seus alcances.

No cenário da educação voltada às necessidades do mercado, a educação superior é certamente um dos principais focos da adoção do modelo neoliberal e um negócio altamente rentável (Macedo, Lima, Dantas, & Dimenstein, 2017). Observa-se, atualmente, a fragmentação das carreiras e a interiorização de cursos, fruto de um dinâmico processo de fusões e de aquisições entre as instituições de ensino superior (IES) privadas em todo o Brasil (Macedo, Lima, & Dimenstein, 2017). Ademais, há impactos diretos na autonomia universitária, por meio da mercantilização das atividades de pesquisa, ensino e extensão. Os processos de avaliação institucional passam a ser pautados por um discurso utilitarista e critérios quantitativistas. Bosi (2007) aponta, em especial, para a lógica produtivista, que atinge professores e alunos, implementada pelos órgãos de fomento (CAPES, CNPQ e seus equivalentes estaduais) e reiterada pelos sistemas de avaliação institucional. A produtividade é compensada financeira e simbolicamente, entretanto, representa a perda da autonomia intelectual e do controle do professor sobre seu próprio processo de trabalho. Além disso, a ideia do docente empreendedor como aquele que precisa captar recursos no mercado para financiar seus projetos tem estimulado a competitividade entre os docentes e fortalecido o capitalismo acadêmico (Léda & Sousa, 2018).

Assim, a precarização do trabalho docente está para além da flexibilização dos direitos e contratos trabalhistas e do estabelecimento da lógica do capitalismo acadêmico. É possível identificar vários sintomas dessa lógica: grande quantidade de hora-aula por docente; diminuição do tempo para mestrado e doutorado e avaliações institucionais baseadas em publicações (Bosi, 2007). Dessa forma, segundo Cordeiro (2006, p. 54) "vai diminuindo o tempo para as atividades coletivas, para a reflexão, para a crítica da própria prática docente, para a pesquisa da sala de aula e da universidade".

É nesse cenário que inúmeros psicólogos estão inseridos. Como dito anteriormente, a docência tem sido o espaço de trabalho que tem absorvido mais profissionais nos últimos tempos. Por sua vez, muitos desses psicólogos são egressos das RMS. Diante disso, interessa-nos problematizar: como se produziu a trajetória docente dos(as) psicólogos(as) egressos(as) das RMS? Quais os conceitos/ferramentas pedagógicas foram incorporados no cotidiano da docência? Quais desafios vivenciam para operar com tais conceitos/ferramentas nesse cenário de mercantilização do ensino? Que estratégias e artimanhas utilizam no seu cotidiano?

 

Método

Este artigo é parte de pesquisa de doutorado acerca da política de inserção de psicólogos (as) egressos das RMS na docência, com foco nos saberes, práticas e processos de subjetivação envolvidos na atividade acadêmica. Trata-se de uma pesquisa qualitativa no campo da saúde coletiva a partir dos pressupostos da pesquisa-intervenção, que propõe uma intervenção socioanalítica e micropolítica na experiência social, reafirmando o caráter político de toda investigação (Aguiar & Rocha, 2007).

Procedimentos

No Ceará são ofertados programas de Residência Multiprofissional em Saúde no âmbito comunitário e hospitalar. Na presente pesquisa, elegemos os programas de âmbito comunitário (Saúde da Família, Saúde Mental e Saúde Coletiva), com foco na formação de um novo perfil do profissional de saúde para o SUS, com uso de ferramentas ativas de ensino-aprendizagem, no âmbito da rede de atenção psicossocial. Tal escolha deve-se à importância desses cenários para o campo da psicologia por produzir tensões no campo disciplinar a partir da inserção do psicólogo nesses contextos menos clássicos de atuação.

A partir das informações fornecidas diretamente pelas instituições formadoras, identificamos 51 psicólogos egressos dos seis programas que já formaram turmas até julho de 2016. A partir da Plataforma Lattes, que é amplamente utilizada entre os docentes brasileiros, identificamos quais egressos tinham experiência de docência. A principal dificuldade foi a quantidade de currículos desatualizados (24 currículos) e alguns inexistentes (quatro currículos), conforme busca realizada no período da coleta de dados.

Assim, do total de 51 egressos, 23 registraram que atuaram ou estão atuando na docência. Foram realizadas 14 entrevistas presenciais e três à distância (Skype®) no período de outubro de 2015 a julho de 2016, totalizando 17 colaboradores.

Tomando como referência a resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre as Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (Resolução CNS n. 510, 2016), os participantes foram informados sobre todas as condições da pesquisa, sobre a garantia do sigilo e sobre a possibilidade de desistir a qualquer momento por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Análise dos Dados

Realizamos análise de conteúdo temática (Bardin, 2011). Em uma primeira etapa, o material transcrito foi submetido a leitura flutuante e, posteriormente, à um primeiro nível de categorização, a partir das questões do roteiro de entrevista, de acordo com os seguintes eixos: trajetória profissional; experiência nas RMS; experiências docentes; e a relação entre RMS e docência. Em seguida, cada eixo foi analisado a partir de categoriais e subcategorias em articulação com a teoria.

 

Resultados e Discussões

Perfil dos(as) Psicólogos(as) Egressos(as)

Foram entrevistados 17 psicólogos(as) egressos(as) das RMS do Ceará com experiência em docência. Foi possível observar que são professores jovens (28 a 39 anos); em sua maioria, formados há mais de 10 anos em IES públicas e privadas da capital do Estado; com pós-graduação stricto sensu concluída ou em andamento; e com tempo de docência variando entre mais de cinco anos e menos de 2 anos (Tabela 1).

 

 

Considerando as experiências de docência, grande parte havia exercido a docência em RMS (8 participantes). Outras experiências citadas foram em sala de aula nas graduações e especializações em Psicologia e em outros cursos das áreas da Saúde e das Humanidades. Os egressos ministraram disciplinas gerais (Psicologia, Ciência e Profissão; História da Psicologia e Psicologia do Desenvolvimento), diretamente da área da saúde (Saúde Coletiva, Saúde Pública, Psicologia da Saúde, Psicologia e APS, Educação e Saúde, Estágio Básico e Supervisionado) e disciplinas ligadas às abordagens teóricas (Psicanálise, Psicologia Histórico-Cultural, Psicoterapia Breve, Psicoterapia de Grupo). Em especializações e em outros cursos de graduação, ministraram disciplinas relacionadas à Psicologia da Aprendizagem, Psicologia do Trabalho e Organizacional, Psicologia Social e Psicologia Comunitária, Saúde Mental e Saúde Coletiva. Quanto à atividade principal atual, estão divididos em: bolsistas de pós-graduação (quatro); somente na docência (três); assistência à saúde e docência simultaneamente (sete); assessoria técnica e docência (três). Dos que estão na docência em sala de aula, um pouco mais da metade atua em IES privada (cinco) e somente um dos que ensinam em IES públicas (em um total de quatro) possui vínculo efetivo. A maioria destes ensinam em cursos de graduação em psicologia (sete).

Os entrevistados ministram grande variedade de disciplinas, tanto na psicologia quanto em outros cursos da área da saúde e, em sua maioria, exercem outras atividades além da docência. Interessante observar que o mercado de trabalho na docência tem absorvido profissionais que terminaram RMS há pouco tempo, mesmo sem ter cursado mestrado ou com este ainda em curso.

Trajetória Docente: Preparação, Inserção, Pós-Graduação e Professoralidade Docente

A trajetória docente engloba as experiências de ensino ao longo da vida profissional nas diversas instituições pelos quais os(as) psicólogos egressos(as) passaram. Tomando como referência os estudos de Isaia e Bolzan (2008), consideraremos quatro etapas na trajetória docente para pensar as interferências das RMS: preparação para a carreira docente, entrada efetiva no magistério superior, a marca da pós-graduação e a professoralidade docente.

O início da carreira docente envolve uma diversidade de experiências, desde o ensino médio, passando pela graduação; pelos cursos de pós-graduação latu e stricto sensu, por influências familiares e pela atuação como professor substituto (Isaia & Bolzan, 2008). A essa etapa, as autoras denominaram de preparação para docência. Ao serem questionados acerca de como foram construindo seu fazer docente, os entrevistados apontaram: características pessoais; influências familiares; professores que foram referências; experiências de monitoria, estágio, participação em núcleo de pesquisa e/ou extensão e no centro acadêmico durante a graduação; experiência de intercâmbio; e a busca individual de desenvolvimento por meio de cursos e pós-graduações.

Experiências na graduação (projetos de extensão, participação política no centro acadêmico e estágios na área da saúde, por exemplo) aproximaram alguns entrevistados das discussões das mudanças na formação profissional em saúde, colocando-os em contato com processos de educação permanente dos profissionais e da formação por meio das RMS. A fala seguinte expressa esse aspecto: "(...) eu sou filho de extensão dentro da graduação, porque isso fez pra mim toda diferença de uma articulação entre teoria e prática, que foi o que eu pude vivenciar inclusive dentro da residência" (E2).

Além disso, alguns já haviam entrado em contato com residentes nos espaços de estágio, de militância na área da saúde ou em suas relações de amizade. Oliveira (2009) afirma que "a RMS se apresenta não apenas como uma iniciativa de formação técnica, mas como um importante movimento político e de ordenação social para garantia da consolidação do SUS" (p. 76). Nesse sentido, as interferências das residências reverberam na graduação, produzindo outros caminhos possíveis de formação e de atuação na área da saúde.

Um segundo momento da trajetória é a entrada efetiva no magistério superior. Parte dos entrevistados iniciou a carreira acadêmica pela docência em serviço como tutor/preceptor da RMS que cursaram (seis egressos).

"Quando deu um ano, exatamente, foi quando me chamaram, fui convidado pra participar do processo seletivo pra ser preceptor. Já iam lançar a residência, aí eu fiquei felicíssimo, porque ia ter oportunidade de inverter o papel e trabalhar agora como docente do mesmo processo que participei que foi uma coisa muito bacana pra mim" (E16).

Diante de um cenário em que a pós-graduação stricto sensu é reconhecida como o lugar legítimo de formação de professores e de credenciamento para a atuação docente (Ribeiro & Cunha, 2010; Rodrigues, Mello, Teo, Kleba, & Ferreti, 2020), os programas de residência aparecem como primeiras oportunidades de trabalho docente para quem ainda não possui esses títulos.

Os demais iniciaram a carreira docente pelas oportunidades em IES privadas, atuando como professores substitutos em IES públicas e pelas especializações de final de semana. Observamos que a escolha pela docência (em sala de aula e em serviço) está relacionada às oportunidades de trabalho surgidas, como pode ser ilustrado pelas falas a seguir:

"Bom, se eu for falar dessa docência em psicologia organizacional (risos), eu vou... foi muito mais quando eu acabei a residência e eu precisava de um trabalho, e dar aula supriu essa necessidade né? Eu precisava de um trabalho e ganhar dinheiro de alguma forma e a docência surgiu nesse ponto" (E4).

A docência não se configura mais como uma atividade complementar, mas tem se tornado a atividade principal de parte importante de psicólogos, apesar da profissão ainda ser caracterizada pela pulverização dos vínculos com a combinação de vários trabalhos (Bastos, Gondim, & Borges-Andrade, 2010). Compreendemos que esse movimento de busca pela docência como atividade complementar, e mesmo como atividade principal, envolve aspectos relacionados à valorização e remuneração da profissão e à interiorização das oportunidades de mercado, em especial com a expansão das IES privadas. Além disso, a precarização do trabalho nas políticas públicas (Yamamoto, 2012) e as dificuldades de contratação via concurso público nas esferas federal, estadual e municipal, colocam a docência como a saída viável para parte dos psicólogos.

O terceiro momento da trajetória docente é, exatamente, a pós-graduação. Para Isaia e Bolzan (2008) este pode ser um espaço de ampliação de horizontes conceituais e de formação de docentes. Para os(as) entrevistados(as), a RMS foi um "divisor de águas", uma vez que provocou mudanças no modo de pensar a saúde, a psicologia, os processos de ensino e aprendizagem, enfim, a vida.

"Foi muito intenso mesmo, um processo sem igual. Em termos de formação, do que eu vivi hoje, foi mesmo um divisor de águas porque essa coisa do aprender fazendo, de você ter o contexto de trabalho como o contexto de aprendizagem, mas real, sem ser só teoria, sem ser ficção, de fazer isso de verdade mesmo, na prática, você é incentivado a fazer isso" (E16).

A RMS pode ser considerada um tipo de formação com grande potencial disruptivo uma vez que ocorre a partir da problematização da prática e tem em seus eixos norteadores a concepção ampliada de saúde; a abordagem pedagógica que considera os atores envolvidos na formação e no trabalho a partir da Educação Permanente em Saúde (EPS); e a produção de saberes compartilhados em equipe (Pasini & Guareschi, 2010).

A RMS por ser uma formação em serviço, coloca os atores envolvidos em contato com uma diversidade de situações, favorecendo o desenvolvimento da capacidade de lidar com o novo e a adoção de uma postura crítica. Algumas falas afirmam "a comunidade como docente", fazendo referência à potência desses encontros no território para deslocar dos modos já formatados de fazer saúde e de fazer psicologia.

"Então assim, essa coisa de você lidar com o novo e isso não ser tão assustador e o novo não só ser o espaço do não saber, mas ser o espaço de vários saberes que vão brotar em diferentes lugares, eu acho que quando você tem isso como princípio, você não fica tão intimidado e eu acho que você consegue até ser mais desafiado pelos próprios alunos, ser desafiado por coisas que você não tinha pensando ainda, não tinha atuado ainda. Eu acho que é um pouco disso" (E6).

O "aprender fazendo ou aprender-se fazendo" favorece outros modos de aprender, rompendo a lógica, tão presente na graduação, de que há um momento de aprender e outro de aplicar. Vargas (2015) destaca que os processos de formação que tomam como base a Educação Permanente em Saúde (EPS) estão envolvidos com uma produção subjetiva, e não apenas com conhecimentos técnicos ou sobre o SUS. Para o autor, estão "(...) colocando em xeque, ‘o tempo todo' (sic), os modos hegemônicos de ser trabalhador, de ser estudante, de realizar a gestão do trabalho" (Vargas, 2015, p. 115).

Ao serem questionados em que medida a experiência na RMS contribuiu para a trajetória docente, os entrevistados apontaram: o despertar para a docência ao exercer a atividade de apoio institucional às equipes de referência e de condução das rodas pedagógicas; a construção de currículo por meio da produção científica; e a participação em eventos, gerando questões de pesquisa para o mestrado.

"E na residência existe muito essa... eu não sei se as pessoas já entram na residência querendo a carreira acadêmica, veem a residência como uma possibilidade, como esse entremeio da residência para o mestrado... posteriormente o doutorado, talvez a residência como esse lugar de construção de questões" (E4)

Destacaram, também, que a experiência na RMS deu materialidade para trabalhar com segurança em sala de aula ao possibilitar trazer exemplos práticos em relação aos conceitos e às discussões na área da saúde.

"Eu acho que a residência, ela é um elemento importante pra quem quer exercer a docência porque a gente vivencia na pele, né? A gente... é quase por osmose o aprendizado da residência, assim, né? A gente vivencia mesmo o que a gente tá aprendendo e o que a gente tá estudando, então assim, é... ela é fundamental, é um salto, é muito rico a experiência da residência pra quem vai ensinar porque você sabe exatamente o que você tá ensinando, né?" (E11).

O trabalho em equipe multiprofissional favoreceu o amadurecimento profissional e o exercício da interdisciplinaridade.

"(...) eu me sentia um pouco educador físico, um pouco fisioterapeuta, eu me sentia um pouco de cada coisa. Ai eu sempre brinco, eu sempre crio uma imagem para as pessoas quando eu vou falar que é assim... eu me derreti, eu me desintegrei e quando eu voltei eu era um outro psicólogo (...) Então esse contato com a multiprofissionalidade me permitiu um olhar ampliado dentro da minha categoria (...)" (E2).

Além disso, a RMS forneceu referências para a atuação docente a partir da experiência de tutoria/preceptoria, tanto em relação ao acesso às metodologias de ensino e de avaliação quanto na relação professor-aluno.

"Então antes mesmo de ser, de estar em sala de aula nas faculdades, nas IES, e antes de ser tutora, eu já tinha uma experiência pela tutoria, e eu como residente me relacionando com os tutores e com as dinâmicas das atividades na [instituição na qual fez RMS], eu já entrava em contato com outras formas da gente poder discutir, problematizar alguns assuntos. Então isso já colaborou já, acho que isso já foi um diferencial para quando eu assumi o trabalho de docente nas faculdades, nas universidades (...)" (E1).

Vale destacar que, por ser uma formação em serviço, a construção e a operacionalização do projeto político-pedagógico de cada RMS depende, em grande medida, da instituição formadora e de como a gestão da saúde vem sendo conduzida, em especial no âmbito municipal. Há grande diversidade de programas, com realidades institucionais e locorregionais distintas, com maior ou menor "captura e repetição" e com múltiplos efeitos nas práticas de saúde e também na docência.

Como quarto movimento, Isaia e Bolzan (2008) denominam professoralidade docente. É a etapa na qual o docente vai produzindo suas práticas e vai amadurecendo profissionalmente. Para Pereira (1996), "(...) a pessoalidade e a professoralidade do professor caminham juntas, isto é, ser professor é uma alternativa, uma saída que o sujeito constrói a fim de realizar um projeto emergente em sua subjetividade". Esse entendimento nos ajuda a escapar de compreensões que dicotomizam o âmbito pessoal do profissional e que encontram na capacitação a saída para a formação docente.

Ao serem perguntados acerca das estratégias de aprendizagens utilizadas, os(as) entrevistados(as) foram animados a trazer exemplos, o que permitiu nos aproximar de suas experiências, tanto na docência em serviço (explicitada adiante) quanto em sala de aula. Como estratégias educacionais foram citadas: aula expositiva participativa, estudo e discussão de casos, visitas de campo, uso de filmes, participação de convidados para abordarem a prática profissional, discussão de textos sobre a prática do psicólogo, círculo de cultura e atividades vivenciais (teatro, dramatizações, linha do tempo do SUS, etc.).

Consideramos docência em serviço as experiências de tutoria e preceptoria das RMS, os processos de educação permanente e de apoio matricial em saúde mental. O docente em serviço atua como um articulador das relações comunidade-residente, serviços-residente e instituição de ensino-residente. Nesse contexto, o referencial metodológico é a EPS e as estratégias pedagógicas são mais participativas e vivenciais como a discussão de caso e acompanhamento no território. A relação de ensino e aprendizagem se dá a partir das necessidades do cotidiano, estando o docente à disposição do discente.

"E aí a docência em serviço é justamente cuidar dos processos de trabalho pautado dentro de uma lógica de educação permanente, que é formação no trabalho, para o trabalho, com o trabalhador. Então a gente tem justamente essa lógica de refletir sobre o processo de prática, então a gente tem justamente isso" (E2).

Dentre os desafios apontados no contexto da docência em serviço estão: a dificuldade de financiamento das RMS para contratação de docentes e para investir nas mudanças nos cenários de prática (estrutura, organização e formação de profissionais); o dilema entre o protagonismo da RMS em relação às mudanças das práticas e as cobranças da gestão municipal, o que deixa os docentes em situação vulnerável diante das questões político-partidárias; e as diferenças nas práticas pedagógicas do corpo docente.

Na docência em sala de aula, analisamos os contextos das IES públicas e privadas. Nas primeiras, o ensino está predominantemente baseado na pedagogia tradicional, que tem como principal estratégia educacional a aula expositiva. O uso de slides como característica da aula expositiva aparece nas falas como recurso que pode ser utilizado em alguns contextos, como, por exemplo, em disciplinas "de base" ou para momentos de síntese do conteúdo. Desse modo, a relação de ensino e aprendizagem permanece centrada no professor, que deve transmitir os conhecimentos teóricos da área. Nesse contexto, um dos desafios apontados pelos(as) entrevistados(as) é o uso de metodologias mais vivenciais, participativas e não diretivas, enfrentando resistência dos pares e dos estudantes.

"Então a educação em saúde, eles acabam se aproximando de atividades como biodança né? Que antes... era um terror, ainda hoje dentro da academia é visto, é visto assim e para alguns professores, por exemplo, você não utilizar pincel e lousa, não encher de teoria e não trazer várias referências teóricas para poder legitimar o que você está dizendo, não é uma boa aula, você não é um bom professor. Então você é um professor que se volta para prática e se esquece das teorias. Então você ver esse preconceito as vezes perpassando alguns pares, principalmente, reunião de colegiado e tudo mais" (E1)

Nas IES privadas parece haver mais abertura para a diversificação de estratégias educativas. Entretanto, há desafios para operacionaliza-las, como: a grande quantidade de estudantes por turno; predominância de cursos noturnos; a fiscalização dos professores em termos do tempo e conteúdo das aulas, aspectos ligados à pedagogia tradicional. Além disso, as diferenças de nível na formação dos estudantes no ensino médio impactam diretamente nas escolhas pedagógicas.

"Assim, a faculdade privada tem a principal preocupação que é se manter com os alunos, não tem de fato um critério de seleção, quem está disposto a entrar e a pagar, eles aceitam! Então assim, tinham alunos que tinham dificuldade de interpretação de texto, uma capacidade de leitura deficiente, não que não soubesse ler, não chega a esse extremo, mas você dá um texto de sei lá, 20 páginas para eles lerem para aula seguinte, eles tinham muita dificuldade de conseguir sentar, se concentrar, ler e entender aquele texto, texto que era numa linguagem mais técnica, mais formal, coisa que eles podiam ter aprendido antes, não é uma coisa que faculdade precise ensinar a esse ponto. Então assim, o rendimento de alguns alunos e o próprio nível da aula as vezes ficava prejudicado por causa disso" (E6)

Ribeiro e Cunha (2010) apontam que, diante da atual crise paradigmática na educação coexistem dois modelos que se opõem, mas que também se aproximam: o primeiro - conservador - no qual predomina a reprodução do conhecimento; e o segundo – emergente - no qual valoriza a incerteza e a dúvida como motores do conhecimento. As práticas pedagógicas dos professores universitários parecem contraditórias porque oscilam entre esses modelos, evidenciando justamente a crise paradigmática referida pelas autoras. Nas falas dos(as) entrevistados(as) é possível perceber o incômodo em utilizar estratégias educativas reconhecidas como parte do modelo conservador – uso de slides, por exemplo –, ao mesmo tempo que utilizam metodologias ativas e participativas na construção do conhecimento.

Tanto em IES públicas quanto privadas, há uma certa atuação solitária do docente, seja por questões relacionadas ao pouco tempo (múltiplos vínculos nas IES privadas) ou em decorrência de formação docente voltada para formar pesquisadores.

"Na disciplina da atenção primária a gente já fez algumas investidas de tentar juntar enfermagem e medicina, aulas conjuntas, discussão de caso, sei que, e aí infelizmente a universidade não é tão leve com isso, depende das pessoas, tem uma série de junções, casas astrológicas (...)" (E5)

Nos cursos de psicologia, o desafio é lidar com as áreas bem delimitadas entre os docentes, o dogmatismo teórico que afasta os professores e as dificuldades em propor e operacionalizar novas metodologias, tanto nas IES públicas quanto privadas.

"Uma vez um certo colega de categoria, que já está formado, já é mestre me acompanhou numa visita com um aluno de estágio básico, e aí a gente conversando ele pegou e disse assim ‘não, mas como é que pode porque o homem de Freud é diferente do homem de Skinner', mas aí eu disse ‘é, só que na atenção primária, na comunidade, o homem do Freud, o homem do Skinner, o homem sei lá, do Pearls, são todos a mesma pessoa, eles têm fome, eles não querem saber se você é psicanalista, gestaltista ou comportamental. Eles querem saber se você dá uma resposta prática para o que ele está passando" (E2)

Na docência em outros cursos, os(as) entrevistados(as) enfrentam a desvalorização dos assuntos abordados, uma vez que estes não ocupam lugar de importância na grade curricular.

"É diferente da sedução que eu tinha que ter lá [curso de psicologia IES privada no interior do Ceará], que era mais uma coisa assim, das pessoas não se sentirem burras, das pessoas saberem que elas podem falar o que elas estão pensando que isso vai ter um sentido na aula. Lá na medicina era mais assim, de tentar fazer com que eles percebam que aquilo tem um sentido na prática deles, mesmo que eles não vão trabalhar com saúde da família, mesmo que não vão trabalhar com vigilância sanitária, não vão para essa área de saúde coletiva, sabe? É uma forma de estar em sala de aula bem diferente" (E6)

Apesar de tudo, sentem-se habilitados a atuar nesse contexto devido à experiência do trabalho multiprofissional vivenciado nas RMS, aproximando-os das necessidades de aprendizagem referentes ao campo comum, bem como do núcleo específico de outras áreas profissionais. Assim, consideramos que predomina no fazer docente dos(as) psicólogos(as) egressos(as) da RMS uma concepção de construção compartilhada do conhecimento, de autonomia do educando e da aprendizagem significativa. Desse modo, fazem uso de metodologias de ensino ativas e não diretivas, o que aponta para a incorporação dos princípios pedagógicos EPS.

"Eu acho que de certa forma quando você meio que aprendeu de um modo diferente, dialogando e pensando a prática, é difícil você estar numa posição de professor achar que só com os livros você vai aprender tudo né? Você sabe que com você não foi assim, teve um momento que não foram os livros que te ensinaram. Você teve que sentar, discutir com o aluno, ter supervisão, discutir com um profissional mais experiente, e isso é diferente de quem está acostumando a só fazer pesquisa e achar que as respostas só vêm sempre da teoria, de quem está muito na academia, distanciado das práticas, distanciado de outras formas de ensinar" (E6).

A Educação Permanente em Saúde (EPS) pode ser considerada uma política pública e uma concepção pedagógica (Gigante & Campos, 2016). Enquanto política, afirma a articulação necessária entre ensino, trabalho e cidadania. Afirma também a indissociabilidade entre formação, atenção, gestão, controle social e a rede SUS, tomada como espaço de educação profissional. Enquanto concepção pedagógica, baseia-se no conhecimento prévio dos trabalhadores, na problematização da realidade, na aprendizagem significativa e na transformação da prática. Entretanto, operar com essa perspectiva no cotidiano das IES tem desafiado os psicólogos, em especial, em um cenário atravessado pelas forças do processo de mercantilização da educação, caracterizado pela exploração da força de trabalho, marcado pela flexibilização das leis trabalhistas e pela lógica do produtivismo.

Interferências das RMS na Trajetória Docente de Psicólogos: Considerações Finais

Com base nos resultados da investigação, considera-se que a trajetória docente de psicólogos egressos das RMS é uma produção que não pode ser desvinculada do cenário de retração do mercado de trabalho no setor público, ampliação de vagas no setor educacional privado e do movimento de formação de profissionais de saúde no país por meio das RMS. Enquanto docente, o psicólogo enfrenta uma série de desafios em operacionalizar os princípios pedagógicos da EPS, incorporados na RMS, especialmente, a resistência de professores e alunos às metodologias ativas de aprendizagem, os discursos da pedagogia tradicional e o descolamento teoria-prática.

Além disso, destaca-se a potência das interferências ético-político-metodológicas das RMS nos modos de ensinar, nos modos de produzir conhecimento e no deslocamento produzido no campo disciplinar da psicologia. As RMS produzem sujeitos com um olhar ampliado para a produção de saúde; que questionam o saber-fazer da categoria em seu trabalho multiprofissional; assumem o compromisso com o SUS e com a melhoria da vida das pessoas. Apesar da diversidade de propostas pedagógicas e contextos institucionais, propõe uma formação pelo trabalho, amparada na Educação Permanente em Saúde como matriz pedagógica, além da aposta na potência dos encontros entre os diferentes atores (residentes, docentes, coordenadores, comunidade, profissionais dos serviços).

Segundo os(as) psicólogos(as) egressos(as), a formação por meio das RMS é um "divisor de águas", uma vez que provoca mudanças no modo de pensar a saúde, a psicologia, os processos de ensino e aprendizagem, enfim, a vida. Também marca a trajetória acadêmica ao "produzir questões", que serão trabalhadas em outros espaços da pós-graduação (mestrado e doutorado). Possibilita a circulação em espaços acadêmicos (congressos, fóruns etc.), provoca a experiência da escrita reflexiva e garante o produto desta no currículo, em um contexto de pressão cada vez maior por publicações.

A experiência na RMS dá "materialidade" para o trabalho docente, tornando a fala do professor "mais viva"; transformando os parâmetros do ensinar e aprender, a partir da reflexão sobre a prática e atualizando saberes da graduação. Ao mesmo tempo instrumentaliza, ao proporcionar ferramentas tais como o trabalho com grupos, o uso de metodologias ativas e de avaliação participativa. Entretanto, é preciso considerar que os programas se diferenciam porque uns apresentam mais possibilidade de ofertar experiências diversas de ensino, assistência, gestão e controle social do que outros.

Ao falar de suas práticas docentes, os profissionais fizeram-nos refletir acerca das estratégias, resistências e artimanhas no sentido de sustentar os posicionamentos ético-políticos atualizados na RMS. Os espaços de ensino são atravessados por saberes e discursos da pedagogia tradicional, que se amparam em uma concepção de aprendizagem centrada em conteúdos, tendo como centro o docente. Nesse sentido, os psicólogos docentes egressos das RMS enfrentam embates cotidianos para atuar em uma perspectiva problematizadora e com articulação entre teoria e prática, desenvolvendo, na maioria das vezes, o trabalho de maneira "solitária", tanto nas IES privadas quanto nas públicas, enfrentando resistências de alunos e colegas ao propor outros modos de ensinar, aprender e fazer saúde.

Consideramos que a principal limitação da pesquisa foi o acesso às informações oficiais sobre os(as) egressos(as) dos programas de residência multiprofissional no país. Vale destacar que existem dois sistemas de informação que consolidam os dados de programas e vagas – SigResidências (MS) e SisCNRMS (MEC) – que nem sempre estão articulados e sincronizados. As informações sobre egressos também são escassas. Fica claro, portanto, a necessidade de maior articulação entre os Ministérios da Saúde e de Educação para garantir o acesso às informações e gerenciar uma política de formação profissional para o SUS. Entretanto, foi interessante perceber que há outros espaços criados pelos participantes de RMS que disponibilizam registros e produções dos que já passaram por essa experiência como residentes, coordenadores e tutores/preceptores.

As residências multiprofissionais em saúde enquanto movimento social e de formação profissional em saúde produzem múltiplas interferências, nos serviços de saúde, na gestão, na academia e na vida cotidiana dos usuários do SUS. Neste artigo, destacamos como a trajetória docente de psicólogos vem sendo impactada pelas RMS. Ainda na graduação, o contato com residentes e egressos nos estágios, nos espaços de militância na área da saúde e nos eventos científicos problematiza o modo de operar da psicologia. São também espaços de inserção na docência, apresentando a Educação Permanente como modelo pedagógico alternativo e possibilitando a construção de currículo e de rede de contatos profissionais. Ao longo da construção da profissionalidade, as experiências na residência permanecem como referência e amparam os desafios cotidianos da docência universitária na atualidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
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Candida Dantas
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Endereço eletrônico: candida.dantas@gmail.com

Recebido em: 31/03/2020
Reformulado em: 14/07/2020
Aceito em: 23/08/2020

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia pela UFRN (2019), Mestre em Saúde Pública pela UFC (2011). Professora da Faculdade Luciano Feijão. Sobral/CE.
** Professora visitante da UFC. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRN. Membro do CA/CNPq. Bolsista PQ1A/CNPq.
*** Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRN. Pesquisa temas sobre relações de gênero, contextos de vulnerabilidade e políticas públicas.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado da primeira autora (CAPES)

 

Agradecimento: À CAPES pelo apoio financeiro por meio de bolsa de doutorado e aos participantes da pesquisa.

 

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