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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79277 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

Um Olhar da Psicologia Analítica sobre a Autolesão

An Analytical Psychology View of Self-injury

Una Mirada desde la Psicología Analítica a la Autolesión

Juliana Rangel Alves de Souza* 

Psicóloga, graduada pela Universidade Veiga de Almeida, pós-graduada em teoria e prática Junguiana pela UVA, mestranda pela Universidade Federal de São João del-Rei.


http://orcid.org/0000-0002-9002-2697

Walter Melo** 

Professor do Departamento de Psicologia da UFSJ. Docente dos Programas de Pós-graduação da UFSJ e da UFJF. Doutor em Psicologia Social pela UERJ. Pós-doutorado pela Sorbonne.


http://orcid.org/0000-0002-5755-0666

*Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ, São João Del Rei, MG, Brasil

**Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ, São João Del Rei, MG, Brasil


RESUMO

O ato de lesionar a pele encontra-se presente em diversas manifestações culturais. A despeito disso, uma das roupagens da autolesão é acompanhada de sofrimento psíquico e foi apartada das manifestações classificadas como culturais, tendo sido hoje posta na categoria de transtorno mental. A abordagem da psicologia analítica, aliada à experiência clínica, com pessoas que lesionam suas peles, ofereceram meios para reestabelecer a ponte entre imagens da cultura e sofrimento mental, tendo como objetivo lançar nova luz sobre o problema a partir de um ponto de vista psicodinâmico. Para isso, a fundamentação teórico-metodológica está pautada na amplificação, concebida por Carl Gustav Jung como processo hermenêutico. Para compreendermos o fenômeno da autolesão, destacamos uma dinâmica específica da energia psíquica, incluindo regressão, represamento, pendulação (modo de compreensão por nós proposto) e imagens do complexo de paraíso perdido, bem como do herói disruptivo, inflação negativa e positiva. Por fim, a imagem da mortificatio alquímica nos serviu de paralelo para a compreensão da autolesão a partir de sua teleologia própria.

Palavras-chave: psicologia analítica; autolesão não suicida; violência autoinfligida; mortificação.

ABSTRACT

The act of injuring the skin is present in several cultural manifestations. Despite that, one of the segments of self-injury is accompanied by psychological suffering and has been separated from the manifestations classified as cultural, having been placed nowadays in the mental disorder category. The approach of analytical psychology, associated with clinical experience with people who injure their skin, offered means to re-establish the bridge between culture images and mental suffering, aiming us to shed new light on the problem from a psychodynamic point of view. To that end, the theoretical and methodological foundations are based on amplification, which was conceived by Carl Gustav Jung as a hermeneutic process. To understand the self-injury phenomenon, we highlighted specific dynamics of psychic energy, including regression, impoundment, pendulation (mode of understanding proposed by us) and images of the lost paradise complex, as well as the disruptive hero, negative and positive inflation. At last, the alchemical mortificatio image served as a parallel to the self-injury understanding from its own teleology.

Keywords: analytical psychology; nonsuicidal self-injury; self-inflicted violence; mortification.

RESUMEN

La acción de lesionar la piel está presente en diversas manifestaciones culturales. A pesar de eso, uno de los ropajes de la autolesión viene acompañado de sufrimiento psíquico y ha sido apartado de las manifestaciones clasificadas como culturales, siendo hoy puesta en la categoría de trastorno mental. El abordaje de la psicología analítica, aliado a la experiencia clínica con personas que lesionan sus pieles, ofreció medios para restablecer el puente entre las imágenes de la cultura y el sufrimiento mental, aquí teniendo por objetivo lanzar nueva luz sobre el problema a partir de un punto de vista psicodinámico. Para ello, la fundamentación teórico-metodológica está basada en la amplificación, concebida por Carl Gustav Jung como proceso hermenéutico. Para que comprendamos el fenómeno de la autolesión, destacamos una dinámica específica de la energía psíquica, incluyendo regresión, represamiento, pendulación (modo de comprensión propuesto por nosotros) e imágenes del complejo del paraíso perdido, así como del héroe disruptivo, inflación negativa y positiva. Por último, la imagen de la mortificatio alquímica nos ha servido como paralelo para la comprensión de la autolesión a partir de su teleología propia.

Palabras clave: psicología analítica; autolesión no suicida; violencia autoinflingida; mortificación.

O comportamento de marcar ou lesionar a pele encontra paradeiro em diversas manifestações humanas ao longo da história. Encontramo-las em alguns ritos de passagem, que inserem o noviço na fase adulta em culturas originárias (Van Gennep, 2013), na “Cura” da iniciação no candomblé (Barbosa et al., 2018), na mortificação física enquanto prática de ascese católica (Palau, 2007), nas tatuagens e piercings que, em determinadas épocas e locais, possuíram significados tão diversos (Ferreira, 2019), entre outras expressões. Longe de objetivar uma homogeneização das experiências humanas, sabe-se que tais expressões, entre outras, possuem caráter singular dentro dos contextos que lhes são próprios. No entanto, salta-nos ao olhar o uso do ferimento ou marca como prática compartilhada dentro de contextos e objetivos religiosos e culturais.

Em paralelo a essas experiências balizadas socialmente, na contemporaneidade encontramos o lesionamento da própria pele enquanto comportamento excluído de um contexto que dê contorno à prática. Contorno que, por sua vez, costuma ser promovido pelo ritual, que encaminha o indivíduo dentro de um processo em desenvolvimento até determinado objetivo (Zoja, 1992).

O ato de lesionar a pele, enquanto quadro patológico, exclui todos os exemplos anteriores onde encontramos algum temenos 1 para tal prática. O nome dado para a problemática do lesionamento de si é objeto de controvérsia e sua nomenclatura heterogênea reflete o problema. Um primeiro desacordo está entre os termos que, de um lado, não separam a autolesão com e sem intenção suicida (parassuicídio, deliberate self-harm, comportamentos suicidários, autodestrutivos e violência autodirigida), enquanto outros diferem os atos com e sem intenção de morte (Guerreiro & Sampaio, 2013; Raupp et al., 2018). Entre as denominações caracterizadas por auto agressões sem intenção de morte podemos destacar a autolesão não suicida/non suicidal self-injury e o self-cuting que mais precisamente dizem respeito a lesões provocadas na pele (American Psychiatric Association [APA], 2014) e os comportamentos autolesivos não suicidários que, por sua vez, incluem tanto o cortar-se, quanto a ingestão de substâncias ou objetos não ingeríveis com propósito autoagressivo, bem como saltar de locais altos (Carvalho et al., 2013; Guerreiro & Sampaio, 2013). Nota-se, aqui, outro desacordo: de um lado a caracterização do fenômeno dentro de um espectro mais abrangente de comportamentos auto violentos e, de outro, um olhar mais específico sobre a agressão à pele.

Buscando pesquisas dentro da abordagem junguiana a fim de decidirmos por uma nomenclatura específica e levantarmos arcabouço pertinente a autolesão e a psicologia analítica, encontramos apenas dois trabalhos, deveras importantes pelo ineditismo: um artigo baseado na experiência clínica de um analista estrangeiro (Tsai, 2002) e uma monografia que partiu da análise de mensagens postadas num grupo de auto lesionadores no facebook (Fabbrini, 2021). No primeiro, o autor sugere relações do fenômeno com imagens de sacrifício, ritos e rituais de iniciação, expiação e redenção, entendendo a prática como um processo arquetípico que, muitas vezes, aponta para a experiência do sagrado. No segundo, o autor coloca a autolesão em relação a uma imagem arquetípica de transcendência e desejo de totalidade, numa vivência de morte-renascimento que, malsucedida, gera dependência, porém provoca o vislumbre de sentir-se vivo. Na primeira referência, o autor faz alusão ao fenômeno como cutting ou self-mutilation, no segundo, como autolesão (não suicida) ou automutilação. Cabe-nos apontar que ambos os trabalhos não chegam a aprofundar no ponto da dinâmica psíquica da autolesão. No primeiro, o autor relaciona a lesão com diversas expressões humanas sem poder aprofundar em nenhuma delas e, no segundo, o pesquisador se detém mais nos dados extraídos do facebook do que em suas respectivas análises, a despeito da ótima qualidade das frases escolhidas pelo autor. Assim, damo-nos conta de uma certa lacuna apresentada por muitas pesquisas sobre autolesão: a impossibilidade de se trazer dados mais profundos, pois, muitas vezes, ou estão inacessíveis a pesquisas transversais ou porque se enfrenta uma limitação da pesquisa baseada em autorrelatos (Klonsky, 2007).

Dessa maneira, e levando em consideração o que foi abordado nos dois artigos supracitados, objetivamos contribuir para um aprofundamento a respeito do quesito psicodinâmico da autolesão a partir da psicologia analítica, favorecendo assim também a compreensão do fenômeno aos psicólogos clínicos interessados. Sem propor uma abordagem, verdade ou olhar único para o problema, oferecemos uma pequena contribuição para enriquecer o tema da autolesão.

Fundamentação Teórico-metodológica

O percurso metodológico do trabalho parte de uma epistemologia “esse in anima” (Jung, 1921/2013, p. 66), o que significa dizer que assumimos que o objeto da pesquisa é a própria experiência que o pesquisador tem do objeto que estuda, sem qualquer perspectiva de pretensa neutralidade. Diante do fenômeno, assumimos uma postura dialética, na qual o conhecimento parte da conexão entre sujeito e objeto. Neste caso, a experiência clínica guiou as articulações teóricas propostas no texto. Dito de outra maneira, o conhecimento aqui gestado é efeito e desdobramento das histórias de vida trazidas pelos clientes que, por sua vez, gerou questionamentos. Tanto na clínica quanto na pesquisa, mantém-se uma atitude simbólica diante dos materiais e, por isso, é possível compreender que o fenômeno apresentado ultrapassa os conhecimentos atuais (Vechi, 2018). Dito isso, o pesquisador dentro das formações e limitações de sua própria equação pessoal 2 pôde fantasiar 3, ampliando conexões de sentidos possíveis acerca do objeto pesquisado. A leitura dos materiais encontrados se articula de maneira sintético-construtiva, proposição de Jung (1916/2013) que indica a leitura dos conteúdos simbólicos de maneira teleológica e prospectiva, ou seja, com ênfase na finalidade ou efeito do material encontrado. O que acaba por se tornar, de alguma maneira, uma abordagem mais especulativa, já que entende o símbolo/objeto de pesquisa e o próprio psiquismo como um devir, um movimento para o futuro.

Isso posto, o encadeamento metodológico se deu segundo a proposta indicada por Vechi (2018), que por sua vez resgata a organização que Humbert (1985) faz do caminho utilizado por Jung: a orientação de que a pesquisa faça uma hermenêutica, ao modo junguiano (método sintético-construtivo 4), em quatro etapas de diálogo: Na primeira, o pesquisador deixa acontecer o encontro dialético com receptividade. Na segunda, ele se deixa penetrar pelos conteúdos e materiais que se presentificam, engravidando-se deles. Na terceira, confronta-se com o que nasce desse processo hermenêutico. E, na quarta, utiliza a amplificação, ou seja, faz analogias entre os símbolos em estudo e outros que possam elucidá-lo. Em nosso caso este processamento deu-se a partir do “engravidamento” na clínica, onde os sistemas dos pacientes que se auto lesionavam penetraram na psique da autora e puderam gerar impressões e fantasias acerca do processo vivido, desembocando na articulação da amplificação aqui apresentada que, por sua vez, foi resumida numa “síntese metaforizante” do processo, um “como se” 5 descrito em etapas. Além disso, para ilustrar as ideias aqui concatenadas pontuamos cada processo em análise com frases retiradas de outras pesquisas acerca da autolesão. Nesse caso, pesquisas empíricas, a fim de tornar mais clara a concretude do eixo engravidamento-amplificação.

No que diz respeito a quarta etapa da pesquisa descrita por Vechi (2018), cabe-nos destacá-la como um modelo eminentemente junguiano. Para a compreensão do conteúdo inconsciente, Jung (1931/2013) utilizava o método da amplificação, entendendo que as imagens não se escondiam nem tentavam confundir-nos, mas se expressavam em linguagem arcaica. Diz ele:

O que faço é o seguinte: Adoto o método do filólogo que está bem longe de ser livre associação, aplicando um princípio lógico - a amplificação, que consiste simplesmente em estabelecer paralelos. Por exemplo, no caso de uma palavra muito rara, com a qual nunca antes nos defrontamos, tenta-se encontrar passagens de textos paralelos, se possível, aplicações paralelas, onde a palavra ocorra. Aí tentamos colocar a fórmula que adquirimos através dos conhecimentos de outros textos frente à passagem que nos trouxe dúvida. Se ela se tiver, então, tornado legível, poderemos dizer: “agora é fácil compreendê-la”. Foi assim que aprendemos a ler hieróglifos e inscrições cuneiformes, e dessa mesma forma poderemos ler os sonhos (Jung, 1931/2013, p. 99).

Penna (2005) caracteriza o método de investigação da psicologia analítica como um processamento simbólico, onde se utiliza a amplificação como meio de tornar conhecidos os aspectos desconhecidos do símbolo/objeto de pesquisa, criando neste processamento uma verdadeira ponte entre o mundo arquetípico, a consciência e o mundo externo. Diz a autora:

A função psicológica que compreende os símbolos opera por associações, comparações, analogias e pela busca de sentido e integração do desconhecido na consciência. O processamento simbólico visa a elucidar, enriquecer, ampliar e aprofundar os significados ocultos do símbolo, a fim de atingir sua integração na consciência (Penna, 2005, pp. 90-91).

Considerando o modelo proposto, elaboramos as amplificações acerca do processo de autolesão a partir de paralelos com o conceito de energia psíquica e seus movimentos (Jung, 1928/2013) e com a mortificatio (Edinger, 2006), enquanto etapa alquímica. Outras analogias foram traçadas, mas essas foram as principais, as demais foram tratadas como auxiliares. Abaixo, disporemos explanações um pouco mais detidas acerca da energia psíquica e da mortificatio alquímica a partir do ponto de vista da psicologia analítica.

Energia Psíquica

Jung (1928/2013) compreende a questão da energia psíquica sob o aspecto quantitativo. Dessa maneira, privilegia não a causa (qualidade ou essência da energia), mas os valores energéticos, suas relações de intensidade, dinâmicas, em suma, seus efeitos e finalidades. A base dessa proposta conceitual está na diferença de potencial energético. Dito de outra maneira, nos pares de opostos, especialmente na oposição primária entre consciente e inconsciente (Jung, 1955/2012b). Se a base da energia psíquica está nesta diferença de potencial energético, então seu dinamismo também perpassa essa relação. Nessa perspectiva, o autor apresenta-nos a função da progressão da libido, em que o par consciente-inconsciente consegue, a partir de um certo acordo, se movimentar na direção do mundo exterior, correspondendo às suas demandas adaptativas. Mas, para que isso aconteça, o par necessitaria de uma atitude unilateral, uma “decisão” que não se pode sustentar ao infinito, já que as demandas exteriores pedem alterações de atitude, bem como a dinâmica energética, dentro do circuito relativamente fechado que é o psiquismo. Sem diferença energética, a energia se escasseia, o que quer dizer que a unilateralidade da consciência, aos poucos, gera o represamento da libido. No represamento, o par de opostos (consciente e inconsciente) se desagrega em pleno conflito sem resolução. A atitude anterior não pode resolver as questões atuais e o psiquismo se encontra momentaneamente incapaz de produzir um terceiro elemento resolutivo, um símbolo, resultado da dinâmica consciente-inconsciente que se integrou. No represamento da libido há tensão energética e comumente muitos sintomas. A saída para este impasse energético é a função transcendente, a produção de um símbolo que integre os opostos trazendo um novo elemento para a dinâmica psíquica (Jung, 1928/2013).

Mortificatio Alquímica

A obra de Carl Gustav Jung é marcada pelo estudo de manifestações do inconsciente, ou seja, suas imagens. Nas imagens produzidas pelo inconsciente coletivo 6, podemos encontrar certas formas que tendem a se repetir, revelando aspectos potencialmente compartilhados entre os humanos e a natureza. Em alguns desses estudos, Jung (1944/2012) se deteve nos tratados de alquimia, aqui vistos como projeções do psiquismo sobre as ideias de funcionamento e natureza da matéria, até então desconhecidas. Podemos pensar na alquimia como um sonho coletivo que revela as bases psíquicas dos sonhadores. Em suma: sobre a matéria desconhecida foram projetadas, na alquimia, o próprio dinamismo psíquico (Jung, 1944/2012). Ou seja, estudar alquimia sob o ponto de vista psicológico-simbólico é como estudar o psiquismo humano a partir de um paralelo. Diz Jung:

Seu trabalho [o do alquimista] com a matéria constituía um sério esforço de penetrar na natureza das transformações químicas. No entanto, ao mesmo tempo era - e às vezes de modo predominante - a reprodução de um processo psíquico paralelo; este podia ser mais facilmente projetado na química desconhecida da matéria, uma vez que ele constituía um fenômeno inconsciente da natureza, tal como a transformação misteriosa da matéria. A problemática acima referida do processo do desenvolvimento da personalidade, isto é, do processo de individuação, é expressa no simbolismo alquímico (Jung, 1944/2012, pp. 46-47).

Na alquimia encontramos de maneira mais ou menos indiferenciada uma pré-ciência química e uma filosofia mística, que descreve transformações na matéria (“prima matéria”) e dá instruções para tal. Essas transformações acontecem por meio de operações específicas - a depender do autor, a mortificatio é uma delas - que representam certas dinâmicas psíquicas. Os processos da alquimia possuem metas, como a “aqua permanens”, a “pedra filosofal” ou mesmo o “ouro filosófico” (Jung, 1944/2012), compondo um sistema complexo de símbolos que, afinal, se manifestam como projeções imagéticas do próprio movimento do psiquismo em torno do Si-mesmo: o processo de individuação.

Para Edinger (2006), a mortificatio seria composta por imagens psicológicas de morte, matar e torturar, integralmente projetadas na matéria. A mortificatio não possui nenhum paralelo químico, pois significa literalmente matar, estando associada à etapa da putrefactio (putrefação/decomposição dos corpos mortos), consideradas como aspectos diferentes da mesma operação. Associada ao ascetismo religioso, a mortificatio também pode representar penitência, abstinência e rigores físicos com objetivos espirituais. Dessa maneira, compreendemos o processo da mortificatio como metáfora e paralelo para um recurso específico da individuação, onde o simbolismo da morte, tortura e despedaçamento opera transformações.

Resultados

Engravidamento

Ao relatar sua prática psicoterapêutica como um método dialético, Jung (1931/2013) afirma: “ao colocar-nos dessa forma, o sistema dele (cliente) se relaciona com o meu pelo que produz um efeito dentro do meu próprio sistema. Este efeito é a única coisa que posso oferecer ao meu paciente individual e legitimamente” (p. 16). Portanto, neste momento, traremos algumas imagens sonhadas ou fantasiadas espontaneamente pela pesquisadora-terapeuta que se produziram como efeito dos clientes sobre a mesma, ou assim foram interpretadas. A essa etapa é dado o nome de “engravidamento” porque é considerado que as imagens produzidas resultam da união do contexto da terapeuta com os conteúdos do cliente, tanto no aspecto consciente quanto inconsciente, e são aqui traduzidas na linguagem da perspectiva de quem escreve.

“Se ainda houver coração, podemos ressuscitá-la”

Sonho que uma de minhas clientes que se autolesionava morria, o corpo era levado para o hospital. Eu e os familiares da paciente íamos até lá. O médico responsável aparecia para nos avisar que era tarde demais, ela havia partido. O pai questiona se nada podia ser feito para ela retornar à vida, porque “se ainda houver coração, podemos ressuscitá-la”, eu tento demovê-lo dessa ideia.

“Saia daqui. Isso não é coisa de criança!”

Fazendo em casa uma meditação simples, focada na respiração, sou surpreendida com uma imagem que aparece subitamente como um sonho em minha cabeça, ou talvez eu tenha realmente caído no sono enquanto meditava. Nela, havia duas grandes e cônicas cestas de palha, que pareciam estar numa comunidade indígena. Uma delas estava mais ao alto, escorada numa espécie de cavalete rudimentar de troncos de madeira. Esta era cor de palha e preta. A outra, estava no chão de terra batida e possuía cor de palha e vermelho. Um homem entrava na cesta mais alta, deitava-se nela e a fechava. Em seguida, uma menina com ares de brincadeira começava a entrar na cesta do chão. O homem abria seu “sarcófago” de palha e dizia para a pequena que ela não podia fazer isso: “Saia daqui. Isso não é coisa de criança!” e a menina o obedecia.

Bezerros famintos precisam mamar

Buscando traduzir as dificuldades e impasses vividos na clínica da autolesão, fui acometida por uma metáfora que veio já pronta da imaginação. Uma vaca leiteira está sozinha se alimentando num vasto, vazio e verde campo de grama. Ao longe, vê um cercado repleto de bezerros, eles estão muito agitados e parecem desesperados de tão famintos. Algo abre esse cercado e os muitos bezerros correm desatinados em direção à vaca que quer fugir diante desta cena.

Parece difícil afirmar se essas e outras imagens criaram as amplificações acerca do auto lesionamento ou se elas estiveram paralelas às reflexões conscientes acerca dos casos que foram atendidos. Porém, o mais importante é que elas se presentificaram no processo de pesquisa, como símbolos, e foram também fontes de insights significativos que estão organizados mais didaticamente que organicamente nos parágrafos abaixo.

Confronto e Amplificação

No processamento simbólico da experiência clínica e suas imagens consteladas (tópico anterior), puderam nascer certas compreensões sobre o lesionamento de si enquanto sofrimento, sintoma e imagem em movimento, que tenta operar transformações. Confrontamos e amplificamos essas ideias nascituras e organizamo-las como se pode ver nos próximos parágrafos. Junto a elas encontram-se frases de pessoas que lesionam suas peles e deram depoimentos públicos ou em pesquisas publicadas. Esperamos que elas possam facilitar a compreensão do leitor, ilustrando nossas hipóteses-imagens.

1. Presença de violência ou negligência familiar, especialmente dos cuidadores, muitas vezes com marcas intergeracionais profundas. Trechos que ilustram o tópico:

Eu nasci minha mãe me abandonou no hospital com um dia de vida depois fui adotada por pessoas que nunca deram amor me tratam mal e depois eu tava [sic] namorando ele meteu o pé na minha bunda e foi morar com outra depois de ter gastado R$6000 com ele ter feito tudo por ele e ele disse que eu não servia pra nada que nunca gostou de mim . . . . Eu tentei te abortar, mas nem pro capeta você serve . . . . Você não serve pra nada seu bicho do mato, por isso te dei embora quando você nasceu [falas pretensamente ditas por cuidadores] (Fabbrini, 2021, p. 59).

Me sinto sozinha . . . minha mãe fica apenas no quarto dela. Não desabafo . . . a gente sofre [mostra o braço com o corte] . . . . Me corto todos os dias, por causa das brigas lá em casa; . . . sabe tentei me matar . . . me cortei . . . por causa das brigas dos familiares (Felipe et al., 2020, p. 4).

2. Na fase da adolescência, em que há uma certa exigência de rompimento com as figuras cuidadoras, acaba por acontecer uma ambivalência mais forte que oscila num processo de pendulação 7 entre o desejo de resgatar uma relação amorosa com as figuras parentais ou superar de alguma forma o universo infantil, rompendo mais fortemente com uma postura filial dependente. Quanto mais orientadas para o polo de resgate do amor parental, maiores são as possibilidades de serem consteladas imagens perfeitas de amor que, no entanto, são distantes, como se houvesse alguma tentativa de recuperar o que na verdade não aconteceu, imagem paralela ao tema do “paraíso perdido da infância”. Dito isto, parece-nos clara a questão que surge: como resgatar o que na verdade nunca se efetivou? Havendo aqui um impasse em que os polos opostos não geram qualquer síntese de solução do problema. Exemplos:

O preconceito está em casa, na rua e na escola. Sinto raiva, por que [sic] me sinto agredida. Isso me deixa triste . . . o que fazem comigo, não quero que façam com o outro. O pai não gosta de mim, porque sou lésbica, a relação é difícil. Vivo isso na escola e na sociedade . . . sinto raiva e impulsividade . . . roo unha e me corto . . . o pai é o que mais me incomoda (Felipe et. al., 2020, p. 5).

Eu falei pra minha mãe que ela tinha que tentar me entender, ela falou que ela não tem que tentar me entender, eu que tenho que tentar entender ela, porque ela faz de tudo pra mim, que eu tava [sic] sendo uma decepção pra ela, aí ela veio e deu um tapa no meu rosto (Costa et. al., 2021, p. 7).

O meu no começo era assim, tudo feliz, tudo com alegria, tudo certo, passarinhos, tudo bonitinho, minha mãe e meu pai, tudo certinho. Depois, não teve mais colorido, mais nada. Meus amigos me zuavam na escola, aí comecei a me cortar. Meu pai e minha mãe sempre me xingavam, sempre era eu, sempre tava [sic] errada. E meu irmão sempre dava risada (Costa et. al., 2021, p. 8).

3. Diante deste impasse de imagens opostas (amor idílico do paraíso perdido Vs. rompimento heroico do “mundo materno” e infantil), um complexo de poder é constelado. Neste ponto, não se pode aceitar hierarquias e há um grande desejo de possuir autonomia total prematuramente. Este processo reforça ou infla a estrutura do ego, que agora não consegue se submeter à faceta dura da realidade, já que diante dela se sentiria impotente e ameaçado (o que pode ser sentido como morte simbólica). Essa submissão, por sua vez, é essencial para o renascimento à vida adulta (Henderson, 1964). Em outras palavras, fazer uma passagem satisfatória para a vida adulta requereria a aceitação da realidade que foi violenta sem tentativas de salvação do passado doloroso. Nem os cuidadores nem o passado vão mudar e isso parece ser difícil para o autolesionado aceitar. Sem poder abandonar as dores da infância e assumir para si a rédea da vida que precisa incluir seu fardo; Sem poder entender que não há possibilidade de se reparar o passado, mas seguir a partir dele com o que é possível, a pessoa enredada pelo trauma não consegue fazer a passagem simbólica à vida adulta, mas se pretende forte numa inflação, tomada pelo complexo de poder, que no final prejudica a passagem em si enquanto tentam solucioná-la de maneira sintomática. Temos como exemplo:

As marcas em meus braços contam minha história, revelam os meus traumas . . . . Tenho essas (cicatrizes) e mais as cicatrizes internas q [sic] não se curam . . . . Faz um tempo que não me corto, mas não sei até quando serei forte, ou continuarei fingindo ser... (Fabbrini, 2021, p. 50).

Eu me faço de durona, sabe? Mas aqui dentro dói tanto . . . . Aprendi a sorrir mesmo sentindo dor . . . . Aprendi a chorar sem lágrimas, a sorrir sem felicidade, a viver sem vontade . . . . Até quando vou te [sic] que mostra um sorriso no rosto mas por dentro to [sic] me sentindo mal, até quando vou te que mostra [sic] uma pessoa que eu não sou (Fabbrini, 2021, p. 57).

A porra do caralho do corpo é nosso, merda, se quisermos podemos enfiar a porra da mão na porcaria do liquidificador e meter bala ¬¬ NINGUÉM TEM PUTA NENHUMA A VER COM ISSO. Podemos arrancar os nossos olhos e enfiar no c% e ninguém tem porra nenhuma a ver (Arcoverde, 2013, p. 70).

Se essa shit de corpo é meu pq vc tem ideia d q vai me impedir de fazer kualker coisa com ele?? O q é ser normal??? seguir regras declaradas pela sociedade para q assim vc seja aceita? regras ditadas por pessoas q ñ tem coragem ou q são medíocres? Q EU SEJA LOUCO ENTÃO [sic] (Arcoverde, 2013, p. 71).

4. Como o trabalho de abandono da infância (descrito anteriormente) não pôde ser feito, mas, pelo contrário, houve reforço e aumento de energia na oposição entre paraíso idílico Vs. rompimento, vemos acontecer o fenômeno do represamento da libido. O problema dos opostos sem solução acirra a diferença entre ambos que não podem se converter em integração, aqui os sintomas ganham maior gravidade e há a sensação de que não há solução para o sofrimento experimentado. Isso tudo até que a libido regrida, reanimando imagens mais profundas no inconsciente, que são “integradas” ou, melhor, precariamente integradas num processo de inflação negativa:

Quando o homem se identifica com os conteúdos a serem integrados, ocorre uma inflação positiva ou negativa. A inflação positiva assemelha-se a uma megalomania mais ou menos consciente; a inflação negativa vai resultar num aniquilamento do eu. Também pode acontecer que esses dois estados se alternem. Em todo caso, a integração de conteúdos que sempre estiveram inconscientes e projetados significa uma grave lesão do eu. A alquimia exprime este fato através dos símbolos da morte, ferimento, envenenamento, ou então através da estranha ideia da hidropisia (Jung, 1946/2012, p. 150).

Esse é o ponto em que o indivíduo se sente como lixo, sem valor, sem amor, rebotalho de tudo. É uma enantiodromia (reversão para o contrário) ou resposta compensatória ao complexo de poder anteriormente constelado, que tenta solucionar o problema da libido que precisa progredir, ou seja, da pessoa que precisa encontrar saída para seu problema de desenvolvimento. A inflação negativa, citada anteriormente, encontra paralelo com outro processo alquímico, a coniunctio (casamento), neste caso, inferior, onde numa tentativa de integração da personalidade ou das experiências, o indivíduo se identifica de maneira inadequada com aspectos super negativos ou positivos. No primeiro caso, gerando uma inflação negativa e, no segundo, uma clássica, positiva. Em ambas, encontramos a necessidade de desidentificação parcial do conteúdo, que não pode ser absoluto no psiquismo (Jung, 1946/2012). A super identificação com os aspectos negativos pode gerar por si só uma mortificatio, uma sensação de mortificação psíquica, que precisa ser reelaborada, ou em termos alquímicos separada e limpa, para uma posterior integração real e adequada dada pelo símbolo:

A coniunctio inferior ocorre sempre que o ego se identifica com conteúdos provindos do inconsciente. Isso acontece de modo quase regular no curso do processo analítico. O ego vê-se exposto sucessivamente a identificações com a sombra, a anima/o animus e o Si-mesmo. Essas coniunctios contaminadas devem ter como sequência a mortificatio e uma separatio adicional. Numa sequência semelhante manifesta-se no aspecto extrovertido do processo. O ego identifica-se com determinados indivíduos, grupos, instituições e coletividades (transferências coletiva e individual). Essas identificações são misturas contaminadas, que contêm tanto o potencial do indivíduo para nobres lealdades e para o amor pelo objeto como para desejos não regenerados de poder e prazer. Elas devem passar por uma purificação ulterior antes de a coniunctio superior ser possível (Edinger, 2006, p. 231).

Para exemplificar o tópico:

Será que esse vazio um dia vai me abandonar? . . . . Eu sou um lixo mesmo, todo mundo sempre vai embora da minha vida. Eu cansei, as pessoas que eu amava tanto mentiram pra mim e me destruíram, não sinto mais vontade de viver [emoticons de coração partido e choro] (Fabbrini, 2021, p. 54).

O ser humano não morre quando o coração para de bater. Morre quando, de alguma forma, deixa de se sentir importante . . . . Quem aqui tá [sic] cansado disso tudo? Tentar se manter de pé é inútil... É desgastante (Fabbrini, 2021, pp. 60-62).

Agora eu comecei a ir na igreja, e aí quando alguém não quer falar comigo, ou só não quer conversar, não quer ficar perto, vem essa voz falando que é culpa minha, que eu sou ruim, que ninguém gosta de mim e que eu fiz alguma coisa errada . . . . Eu fiz isso aqui, porque antigamente eu me cortava. E aqui é a minha perna, eu tinha escrevido [sic] “Eu me odeio” na minha perna aqui, porque eu cheguei num ponto de não gostar de mim, porque estava dando tudo errado pra mim (Costa et. al., 2021, p. 8).

5. Dado este quadro, a dita regressão da libido anima conteúdos de mortificação física. Nestes casos, o ato de lesionar a própria pele como imagem inconsciente sendo presentificada, trazida à tona insistentemente, ganhando até contornos de compulsão (Zoja, 1992), já que é imagem pura, não elaborada psiquicamente e intensifica-se para obter integração. Este sintoma autodestrutivo, mas ainda assim como tal uma tentativa de cura, poderia ser chamado por nós de mortificatio, palavra emprestada da alquimia medieval. A mortificatio, enquanto processo alquímico, significa matar a matéria prima e no ascetismo religioso estaria relacionado à penitência, abstinência e rigores físicos com o objetivo de dominar as paixões e os apetites humanos: “A mortificatio é a mais negativa operação da alquimia. Está vinculada ao negrume, à derrota, à tortura, à mutilação, à morte e ao apodrecimento. Todavia, essas imagens sombrias com frequência levam a imagens altamente positivas - crescimento, ressurreição, renascimento” (Edinger, 2006, p. 166).

O grande objetivo dos processos alquímicos estaria em aperfeiçoar ou criar a partir da matéria o elixir da vida, a pedra filosofal, a cura de todos os males. Objeto de análise simbólica, para Jung (1944/2012), esses procedimentos seriam como mecanismos da individuação da alma projetada na matéria prima manipulada pelo alquimista. Desse modo, a operação da mortificatio significa a morte simbólica necessária no processo de tornar-se a si mesmo. Necessidade que, no caso do auto lesionamento da pele, está literalizada em ato, imagem e sangue.

O uso do termo mortificatio poderia abranger todo o comportamento autodestrutivo que carregasse de maneira inconsciente a função simbólica de morrer para renascer. Respeitando, assim, a postura preponderantemente teleológica da psicologia analítica no que diz respeito a sugerida nomenclatura diante de outros termos utilizados por autores. A expressão ainda mantém uma abertura simbólica para novas explorações e amplificações futuras. É importante observar que o sintoma final da mortificatio em forma de lesionamento da própria pele de alguma forma aponta para o início do processo não elaborado: a violência ou a negligência sofrida. De certa maneira, poderíamos também pensar que a agressão e a raiva que não podem chegar ao objeto do sentimento, acaba por se dirigir a própria pessoa. Nesse caso, podemos até supor uma tentativa de integração da violência sofrida inicialmente, mas de uma forma a se tentar produzir sentido e futuro, mesmo que sintomaticamente e inconscientemente. Se a violência anterior e a atual autoperpetrada são literais, ou até compulsivas, fixadas na margem infravermelha do espectro arquetípico (Jung, 1916/2013), é imanente então sua continuidade no polo ultravioleta, como imagem psíquica que produz efeitos e sentidos.

Podemos dizer que a imago da mortificatio aparece também como tentativa de cura que gera alívio momentâneo do estado de forte tensão e distanciamento da vida que o represamento da libido gera. O corte, muitas vezes, parece atuar como um rompimento da represa de libido, que pode então soltar-se, circular, o que acaba literalizado no sangue que brota, processo em que a consciência não participa e, portanto, tudo se repete. O impulso não simbolizado vira compulsão porque é inconsciente e automático. Ilustremos:

É uma luta para eu não fazer isso, mas já se tornou um vício . . . . Tem uns três dias que estou me segurando para não ter uma recaída, mas está difícil, só penso nisso, e sei que eventualmente não vou resistir... sempre acontece (Arcoverde, 2013, p. 48).

Quando eu me corto fica tudo bem com tudo o que eu sinto . . . . Eu confesso, quando vc ta la se cortando é uma sensação maravilhosa, mas depois que vc para, viu que n adiantou em nd, e ver cada corte e fica se perguntando: pq eu fiz isso? . . . . Sei muito bem como é, um alívio que a gente sente, mas o pior vem depois [emoticons tristes] . . . . Acho que VC entende, quando se começa n passam de arranhões e depois começam a virar rasgos e VC nem percebe . . . . Eu prometi pra meu namorado que não ia mais fazer isso [emoticon triste] so que não resisti a dor da minha alma é insuportável e só assim pra eu me sentir melhor [sic] (Fabbrini, 2021, pp. 50-51).

Me corto pra me sentir “VIVA” [emoticons de coração partido e choro] (Fabbrini, 2021, p. 53).

Considerações Finais

Neste trabalho, não nos preocupamos em tomar partido de uma perspectiva de autolesão com ou sem intenção suicida, mas a colocamos dentro de um contexto de sentido histórico e coletivo. Para além de descrições sintomatológicas que outros estudos já oferecem, pudemos traçar analogias que resgatam o ato da lesão de uma mera categoria patológica para um ato de sentido teleológico, que se encaminha para uma tentativa de integração de conteúdos complexos. A mortificação/mortificatio é uma expressão humana de diversas matizes, algumas patológicas e outras não, algumas com intenção suicida e outras não, algumas aparecem com a expressão de lesionar a própria pele (nosso ponto de partida) e outras não, mas em todas parece haver um sentido ínsito de renovação.

No caso da expressão do sofrimento que recebemos na clínica, observamos que, a partir de uma violência ou negligência, o indivíduo parece pendular constantemente entre os pares de opostos (pendulação da energia psíquica) do resgate do amor parental e do desejo heroico de rompimento, onde a cada momento uma dessas facetas está consciente e a outra inconsciente, alternando-se sem integração das partes. Se num momento o sujeito está consciente de seu desejo de amor e aceitação, encontra-se alienado da raiva e desejo de rompimento. Se está consciente da necessidade de separar-se de um núcleo afetivo significativo, torna-se inconsciente ou quase inconsciente do desejo de amor idílico primevo. É como se a pessoa estivesse com um pé para fora e o outro dentro da passagem criança-adulto, está no limiar do limiar. E enquanto não aceita a morte da imaginária perfeição idílica ou heroísmo inflado, a morte precisa aparecer como imagem dominante que exige ser integrada pela consciência, tamanha sua força compulsiva.

Por não aceitar a morte, ela se afirma em imagem próxima à literal e aí encontramos o dilema ético diante das imagens do inconsciente, que neste caso se apresenta de maneira específica: como ressignificar a violência recebida daqueles que deveriam cuidar? Como integrar um dado de agressão e negligência? É um impasse significativamente difícil. Se, por um lado, a violência precisa ser combatida, ela é presente e precisa ser elaborada. Neste ponto da difícil elaboração da violência encontra-se a imagem dos “sarcófagos” de palha: é preciso de alguma forma estar crescido para morrer, abdicar de onipotência; morrer e renascer não é brincadeira. O rito de passagem é uma das imagens relacionadas a mortificatio, nele a morte é experenciada para que o neófito possa renascer sob novos moldes.

Nessa movimentação por polos opostos (enantiodromia), entre amor e rompimento, o terapeuta também acaba por encarnar projeções de amor e ódio, e quando ambas se manifestam, vem como desejo de amor com desespero violento, vindo do cliente para o terapeuta, como na imagem da vaca. Aqui, a cerca que abre e fecha é uma imagem importante que precisa estar consciente para o analista, assim como o leite nutritivo do afeto. E este manejo pode ser deveras desafiador.

No sonho “se ainda houver coração podemos ressuscitá-la” fica claro o impasse entre o literal e o simbólico da violência e da morte. Minha própria figura no sonho fica no primeiro extrato afirmando uma impossibilidade de renascimento, enquanto o pai reafirma o aspecto simbólico, onde a partir do coração sobrevivente toda a vida pode se renovar. A dificuldade do resgate do simbólico na situação concreta do lesionamento, lembra a máxima da alquimia: resgatar o “espírito na matéria” 8 (Jung, 1944/2012, p.313) e parece-nos essencial para o entendimento da problemática, ao passo que nos aponta para a saída: o símbolo que integra impulso e imagem, consciente e inconsciente, transcendendo a todos e fazendo a libido progredir novamente.

Na Allegoria Merlini, tratado alquímico medieval citado por Jung (1955/2012a), o rei por estar inflacionado morre e é ressuscitado numa melhor versão, após ser triturado em partes menores e umidificado. Já na leitura feita do Rosarium Philosophorum (Jung, 1946/2012), a coniunctio inferior (inflação positiva ou negativa) do casal alquímico gera a mortificatio, que após processos de separação e purificação, dão lugar ao renascimento do casal agora como o hermafrodito, filius philosophorum, representando a saída integradora do símbolo. Em ambas as leituras, a separação/morte é seguida de união que supera a versão anterior e no segundo caso fica evidente o papel da conexão a partir da imagem na coniunctio (casamento), que Jung relaciona ao amor como capacidade reintegradora: “o amor é mais forte do que a morte” (Jung, 1946/2012, p. 82). Este conteúdo parece estar conectado com o sonho da possibilidade do renascimento a partir do coração preservado, em outras palavras: da possibilidade de integração pelo afeto que sobrevive a mortificatio, ou mesmo o resgate do amor que foi sentido como perdido na violência inicial.

Resumindo em tópicos o que possa ajudar o clínico no manejo desse tipo de sofrimento, elencamos: (a) identificação e elaboração dos traumas que geram a pendulação, destacando que pode ser difícil para o cliente identificá-los já que se encontra numa espécie de dissociação no represamento da libido; entendendo também que essa elaboração poderia dar a saída da infância, não necessariamente a desobediência e rompimento abrupto em si; (b) conscientização da pendulação que também interfere na relação terapêutica; (c) ajudar o cliente a resgatar o “espírito na matéria” num processo de desliteralização e resgate do sentido ínsito ao comportamento autolesivo. O que precisa neste caso morrer e o que precisa nascer? O que é preciso renovar na vida íntima? Ajudando a imagem a operar a transformação sem a necessidade de mutilação, num caminho da compulsão à simbolização; (d) bom manejo do afeto nutridor e cerca separadora no setting terapêutico, favorecendo assim o resgate do vínculo com a vida de maneira mais realista, com menor expectativa idílica; (e) incentivar a expressão da imagem da mortificatio por outras vias, mas sem caça “anti-corte”, sob o risco de acirrar a imagem que pode voltar com maior furor do inconsciente.

Para concluir, sugerimos o uso do termo mortificatio como um constructo imaginal, para designar os movimentos da libido, expressos em imagens ou ações, que se encaminham ou tentam se encaminhar para uma renovação psíquica a partir de imagos de morte e violência. Termo que se encontra de acordo com o pressuposto sintético-construtivo de Jung e mantém espaço para outros e diferentes desenvolvimentos, já que possui mais abertura simbólica que restrição conceitual. Dessa maneira, ficam aqui expostas hipóteses a serem testadas pela observação do pesquisador e do clínico, bem como símbolos a serem explorados por próximas pesquisas.

Notas

1 “Como vimos, a delimitação significa também aquilo que se designa por temenos, isto é, o recinto de um templo ou de algum lugar sagrado e isolado. Neste caso, o círculo protege ou isola um conteúdo ou processo interior, que não se deve misturar com as coisas de fora” (Jung, 1938/2012, p. 119).

2 “O efeito dessa equação pessoal já começa na observação. Vemos aquilo que melhor podemos ver a partir de nós mesmos. (...) Reconhecer e levar em consideração o condicionamento subjetivo dos conhecimentos em geral e dos conhecimentos psicológicos em particular é a condição essencial da valorização científica e correta de uma psique diferente da do sujeito que observa” (Jung, 1921/2013, p. 24).

3 Esta palavra é aqui empregada no sentido próprio da psicologia analítica, como capacidade humana criadora. Diz Jung (1955/2012a, p. 366): “Imagens oníricas, e em geral qualquer imagem da fantasia, são símbolos, isto é, as formulações melhores possíveis de fatos ainda desconhecidos, ou respectivamente inconscientes”. E em outro momento: “A psique cria a realidade todos os dias. A única expressão que me ocorre para designar esta atividade é fantasia” (Jung, 1921/2013, p. 66).

4 Sintético pelo enfoque no encontro do inconsciente com a consciência, promovendo nova atitude, e construtivo porque objetiva a finalidade das imagens, sua promoção de futuro: o processo de diferenciação da personalidade (Jung, 1916/2013).

5 Jung se utiliza da expressão “como se” para falar de conteúdos sobre os quais não podemos fazer afirmações categóricas, dados do inconsciente que apenas podemos deduzir. Afirma o autor: “É nos estados patológicos que podemos encontrar os exemplos clássicos da atividade psíquica inconsciente. Quase toda a sintomatologia da histeria, das neuroses compulsivas, das fobias e, em grande parte, também da dementia praecox ou esquizofrenia, a doença mental mais comum, tem suas raízes na atividade psíquica inconsciente. Por isto estamos autorizados a falar da existência de uma alma inconsciente. Todavia, esta alma não é diretamente acessível à nossa observação - do contrário não seria inconsciente! - mas só pode ser deduzida. E nossa conclusão pode apenas dizer: ‘é como se...’” (Jung, 1916/2013, pp. 87-88).

6 “Os instintos e os arquétipos formam conjuntamente o inconsciente coletivo. Chamo-o “coletivo”, porque (...) não é constituído de conteúdos individuais, isto é, mais ou menos únicos, mas de conteúdos universais e uniformes onde quer que ocorram” (Jung, 1916/2013, p. 77).

7 Um modo de movimentação da energia psíquica, por nós compreendido e proposto no intuito de caracterizar um movimento pendular repetitivo entre pares de opostos, onde, a cada momento, um polo está consciente enquanto o outro inconsciente, invertendo-se exaustivamente “como se” fosse uma certa indecisão psíquica. Esta alternância, ao invés de gerar integração, acirra ou cria o represamento da libido e, como consequência, os sintomas costumam se agravar.

8 Aqui entendido como a possibilidade de resgatar um conteúdo (ou sentido) inconsciente, projetado na concretude do sintoma auto violento ou na própria matéria da pele lesionada.

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Recebido: 08 de Fevereiro de 2023; Revisado: 24 de Junho de 2023; Aceito: 29 de Junho de 2023

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